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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza maio/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e10248 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Considerações Sobre Feminino e Transferência: Do Caso Dora ao Não-todo Fálico

 

Feminine Considerations and Transference: From the Dora Case to the Non-All Phallic Case

 

Consideraciones sobre Femenino y Transferencia: Del Caso Dora al No-Todo Fálico

 

Considérations sur le Féminin et le Transfert: De l'Affaire Dora au Pas-Tout Phallique

 

 

Hevellyn Ciely da Silva Corrêa

Psicanalista, Professora Adjunta da Universidade Federal do Pará, Mestre e Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estágio de doutorado sanduíche na Université Paris VII - Paris Diderot

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As relações entre transferência e feminino na psicanálise surgem a partir da descoberta da transferência, em que, no caso Dora, a presença do feminino não se dá somente por se tratar de uma mulher, mas pelos tropeços no manejo do caso, que fizeram com que Freud postulasse a transferência justamente naquilo que o método falhara, revelando a dimensão erótica presente em todo tratamento. Essa revelação é feita não apenas pelo conteúdo trabalhado por Freud nesse caso, mas pelo mistério da feminilidade, o qual se colocou à Dora e ao próprio Freud. Dedicando-se a esse primeiro momento, em que o feminino comparece no laço transferencial, este artigo investiga as respostas dadas, de Freud a Lacan, ao feminino que se coloca como uma constante interrogação aos limites do significante fálico e, sem dele se apartar, revela uma posição não-toda fálica que pode contribuir com o manejo da transferência.

Palavras-chave: feminilidade; feminino; transferência.


ABSTRACT

The relationship between transference and feminine in psychoanalysis arises from the discovery of transference, in which, in Dora's case, the presence of the feminine is not only because it is a woman but due to the stumbling blocks in the handling of the case, which caused Freud postulated transference precisely in what the method had failed, revealing the erotic dimension present in every treatment. This revelation is made not only by the content worked by Freud in this case but by the mystery of femininity, which placed itself to Dora and Freud himself. Dedicating itself to this first moment, in which the feminine appears in the transference bond, this article investigates the answers given, from Freud to Lacan, to the feminine that poses as a constant interrogation to the limits of the phallic signifier and, without departing from it, reveals a not-all phallic position that can contribute to the management of transference.

Keywords: ffemininity; feminine; transfer.


RESUMEN

Las relaciones entre transferencia y femenino en el psicoanálisis surge a partir del descubrimiento de la transferencia, en que, en el caso Dora, la presencia del femenino no ocurre solamente por tratarse de una mujer, sino por los tropiezos en la gestión del caso, que hicieron con que Freud postulase la transferencia justamente en la falla del método, revelando la dimensión erótica presente en todo tratamiento. Esta revelación se hace no solo por el contenido trabajado por Freud en este caso, sino por el misterio de la femenilidad, lo cual se puso a la Dora y al propio Freud. Dedicándose a este primero momento, en que el femenino comparece en el lazo transferencial, este artículo investiga las respuestas dadas, de Freud a Lacan, al femenino que se desplaza como una constante interrogación a los límites del significante fálico y, sin apartarse de él, revela una posición no-toda fálica que puede contribuir con la gestión de la transferencia.

Palabras clave: femenilidad; femenino; transferencia.


RÉSUMÉ

La relation entre le transfert et le féminin chez la psychanalyse a apparu de la découverte du transfert, où, dans l'affaire Dora, la présence du féminin n'est pas seulement due au fait qu'il s'agit d'une femme, mais aux écueils dans la manipulation de la cas, qui a fait Freud postulé le transfert précisément là où la méthode avait échoué, révélant la dimension érotique présente dans chaque traitement. Cette révélation est faite non seulement par le contenu travaillé par Freud dans ce affaire, mais par le mystère de la féminité, qui s'est placé à Dora et à Freud lui-même. Dans un premier moment où le féminin apparaît dans le lien transférentiel, cet article interroge les réponses apportées, de Freud à Lacan, au féminin qui se pose en interrogation constante jusqu'aux limites du signifiant phallique et, sans sortir de soi-même, révèle une position pas tout phallique qui peut contribuer au maniement du transfert.

Mots-clés: féminité ; féminin ; transfert.


 

 

Contemporaneamente, a dimensão tomada pela transferência levanta importantes e consistentes questionamentos à prática clínica e à construção teórica dentro da psicanálise, a exemplo de interrogações acerca da formação do analista, das formas contemporâneas de patologias, do lugar da psicanálise face ao saber científico, entre outras. Tal levantamento, que aponta o redesenho da psicanálise a partir de diferentes configurações, não é, porém, um fenômeno referente apenas à atualidade, mas uma marca própria à transferência, na medida em que notamos, desde o trajeto freudiano, a própria construção do conceito advir de interpelações ao que até ali marcara o tratamento.

Essas interpelações mostram-se presentes na pena freudiana desde o abandono do método catártico, quando, em Estudos sobre a Histeria (1895/2016a), Freud mostra que a sexualidade que habitava os sintomas histéricos também se manifestava na relação com o médico e não requeria da hipnose para seu tratamento. Mas essa constatação, que dá a Freud a possibilidade de lançar mão da interpretação em seu método, toma maiores contornos e oferece elementos para pensar a transferência somente alguns anos depois, em Análise Fragmentária de Uma Histeria (1905/2016b). No chamado caso Dora, a transferência, que assim tem sua inauguração no saber psicanalítico, já carrega a marca de uma interpelação ao tratamento até então realizado, na medida em que aparece referida aos erros ocorridos durante o caso, os quais permitiram a Freud conceber a relação analítica sob as linhas transferenciais que a compunham.

Outra questão que se desenha nessas intervenções freudianas é a feminilidade. Se Freud conseguiu retirá-la de uma relação de exclusividade com a histeria, como até então era concebida, não conseguiu, porém, deixar de ser convocado por ela e mostrar os próprios limites do autor, como sublinha Kehl (1998). Diante da feminilidade, a princípio ligada à histeria e, posteriormente, foco de estudos em obras como Sobre a sexualidade feminina (1931/2018e) e a conferência A Feminilidade /, o percurso freudiano busca pensar os destinos da sexualidade e seus impasses com a anatomia: seja um corpo cujo sintoma conversivo revela a dimensão inconsciente, seja a diferença sexual na dinâmica edípica. A feminilidade, nesse percurso de Freud, põe às claras os limites do saber psicanalítico, ao mesmo tempo em que convida a novos trabalhos.

Como podemos notar já nesta introdução, transferência e feminilidade têm pontos em comum, sobretudo no que diz respeito à convocação ao trabalho analítico. Sem entrar nos pormenores que a transferência e a feminilidade adquiriram, cada uma, na trajetória freudiana, utilizaremos o método de revisão bibliográfica para nos determos no caso Dora, a partir da releitura feita por Lacan em Intervenção Sobre a Transferência (1951/1998a), a fim de compreendermos como a leitura acerca da transferência foi atravessada pelo feminino, o que promoveu importantes deslocamentos e torções no tratamento. Partimos, portanto, da suposição de que, no caso Dora, transferência e feminino têm implicações para a psicanálise, que recolheremos no decorrer deste trabalho.

 

O que Dora diz à Transferência

Adentrar a investigação que aqui propomos nos encaminha, a princípio, à histeria, uma vez que esta tem grande alcance nos operadores que aqui trabalhamos, pois tanto a feminilidade - pensada como dissolução do complexo de Édipo das meninas - quanto a transferência parecem encontrar na histeria um enlace que, contradizendo-as ou afirmando-as, não passa despercebida a elas. A sexualidade feminina que se mostra via histeria se apresenta desde os estudos de Freud com Charcot na Salpetrière, mostrando que a doença não se situava na circunscrição corpórea dos sintomas, e nos trabalhos com Breuer, em que o caráter sexual presente na relação com o médico funda a noção de tratamento e a própria concepção de histeria para a psicanálise. Nessas primeiras incursões, a histeria parece vir a todo momento levantar questões que se direcionam à feminilidade e à transferência, revelando o estreito enlace entre elas.

A partir dessas questões, Dora chega até o tratamento com Freud (1905/2016b) e dele se desvincula, mostrando que o desenvolvimento do caso é todo ele marcado por um movimento de afastamento e aproximação que a feminilidade e a transferência impõem. Na tentativa de buscar respostas para os trajetos tomados pela libido, que encontram seu destino nos sintomas conversivos, a paciente inicia o tratamento e nele se mantém por meio das relações que ali se estabelecem, tanto com Freud quanto com os demais personagens que compõem o caso, de modo que os sintomas se mostram diretamente vinculados a essas relações e vice-versa.

O relato do caso, já de início, mostra tais relações, na medida em que Freud (1905/2016b) descreve o cenário familiar e sublinha a importância do pai de Dora antes mesmo de apresentar os sintomas e queixas da paciente:

O círculo familiar da paciente, uma jovem de dezoito anos, compreendia os dois genitores e um irmão, que era um ano e meio mais velho. A pessoa dominante era o pai, tanto por sua inteligência e seus traços de caráter como pelas circunstâncias de sua vida, que forneceram o arcabouço para a infância e a história clínica da paciente. Na época em que iniciei o tratamento da moça, ele era um homem de mais de 45 anos, de energia e capacidade incomuns, um grande industrial em confortável situação econômica. A filha se ligava a ele com afeição especial, e o senso crítico nela precocemente despertado ofendeu-se mais ainda com alguns de seus atos e peculiaridades. (Freud, 1905/2016b, p. 188)

O arcabouço para a infância de Dora e seu caso clínico não podem ser pensados, portanto, sem a compreensão da dinâmica familiar e, sobretudo, sem o destaque dado a sua figura paterna. Freud (1905/2016b) irá nos indicar que foi o pai de Dora quem o procurou, assim como é com essa figura que Dora tem maior proximidade, o que se intensificou desde que o pai sofreu de grave doença orgânica, quando a paciente tinha seis anos de idade. Assim, as queixas e o quadro sintomático de Dora - dispneia, tosse nervosa, afonia, irritabilidade e ideação suicida - estão em íntima ligação com o cenário familiar e com o destaque ao pai. Também com essa íntima ligação, um evento será decisivo para o desencadeamento do quadro histérico de Dora: a proximidade com o Sr. e a Sra. K.

O casal, amigo da família de Dora que vivia na cidade B., quando a família lá estava para o tratamento do pai, é situado por Freud (1905/2016b) como uma "amizade íntima" (p. 197), em que a aproximação de seu pai com a Sra. K. é paralela à aproximação do Sr. K. com a jovem Dora. Nessa aproximação, a paciente relata à mãe, "para que esta informasse ao pai" (p. 197), que o Sr. K. tentou lhe fazer uma proposta amorosa durante um passeio de barco no lago. Encontramos aqui elementos que atravessarão toda a direção do tratamento, na medida em que essa dinâmica de aproximações entre o pai de Dora e o casal K. ganhará grande espaço nas queixas da paciente, que então se vê como objeto de trocas: oferecida ao Sr. K. enquanto seu pai mantém relações com a Sra. K. Ao mesmo tempo, Freud suspeitará que ela nutre um amor não reconhecido pelo Sr. K. e tem ciúmes do pai, o que testemunharia uma dinâmica edípica, em que o pai é objeto de desejo da jovem e o amor pelo Sr. K. substitui a figura paterna.

Dessa maneira, os vínculos entre os participantes da dinâmica afetiva de Dora estarão presentes tanto em sua narrativa quanto nas interpretações freudianas. Também a partir desses vínculos podemos ler o abandono do tratamento, já que na relação com o analista se revelam as vias da libido que até então estavam sob as vestes sintomáticas; revelação que não diz respeito unicamente à paciente, mas também ao psicanalista e aos demais personagens, que igualmente se camuflavam nos sintomas por ela apresentados. O abandono do tratamento acontece quando Dora anuncia, depois de duas sessões em que Freud (1905/2016b) analisara seu segundo sonho, que aquele seria seu último dia ali, ou seja, já havia um trabalho em andamento, a ponto de os dois sonhos relatados pela paciente tomarem grande espaço na análise freudiana, quando então a jovem resolve não dar continuidade ao tratamento.

O rompimento do tratamento, que a princípio parece inesperado para Freud (1905/2016b), mostrará uma estreita ligação com as relações entre Dora e o casal K., seu pai e o próprio Freud, o qual tem suas interpretações marcadas pela dinâmica transferencial, conforme será amplamente discutido no posfácio do caso. Essa dinâmica, discutida somente após o fim da análise, revela o que passou despercebido ao analista: o impulso amoroso de Dora pela Sra. K.; e isto, nas palavras de Freud, foi seu "erro técnico" (Freud, 1905/2016b, p. 317), declarado em uma nota de rodapé no pós-escrito.

Portanto, a discussão acerca da transferência em sua relação com o término do trabalho está vinculada ao amor de Dora pela Sra. K., o que será amplamente discutido por Lacan (1951/1998a), conforme exporemos adiante, e desde Freud já aponta um lugar privilegiado reservado a essas duas mulheres. Além disso, a declaração de erro paralela à discussão sobre a transferência nos interessa sobremaneira, pois mostra que, ao tratarmos de uma técnica que se funda na relação entre analista e analisando, falamos de um laço de desejo que sustenta todo trabalho analítico em seu "sucesso" ou "fracasso".

Quando dizemos de uma técnica que se funda transferência, e usamos aspas nos possíveis destinos tomados pelo tratamento, estamos ressaltando que o laço transferencial se apresenta no percurso do trabalho analítico e, sobretudo, aponta o desejo ali presente, o qual irá marcar a direção do tratamento. Nesse sentido, fica clara a importância do caso Dora para a compreensão da dimensão subjetiva que o tratamento analítico carrega, o que Lacan (1951/1998a) irá referir à própria exposição do caso:

É impressionante que ninguém tenha acentuado, até o momento, que o caso Dora é exposto sob a forma de inversões dialéticas. Não se trata ali de um artifício de ordenação de um material cujo surgimento, como Freud formula de maneira decisiva, fica entregue ao gosto do paciente. Trata-se de uma escansão das estruturas em que, para o sujeito, a verdade se transmuta e que não tocam apenas em sua compreensão das coisas, mas em sua própria posição de sujeito da qual seus "objetos" são função. Isto é, o conceito da exposição é idêntico ao progresso do sujeito, isto é, à realidade da análise. (Lacan, 1951/1998a, p. 217, grifo do autor)

Tratamos, portanto, da posição de sujeito revelada na análise que, ao fazer a exposição idêntica ao seu progresso, não pode ser disposta ordenadamente, mas através de inversões dialéticas1, as quais serão seguidas por desenvolvimentos da verdade do sujeito. Essa perspicaz observação de Lacan nos lança ao ponto de convergência de nosso tema: a posição do sujeito, já que é a isso que nos referimos quando nos propomos investigar o feminino em diálogo com a transferência. Incidindo sobre o sujeito, nosso tema de investigação recebe contribuição ainda maior quando acompanhamos o raciocínio lacaniano acerca das inversões dialéticas e os desenvolvimentos da verdade que lhes segue.

Segundo Lacan (1951/1998a), a primeira inversão dialética ocorre quando Dora é convocada a posicionar-se frente ao desenvolvimento da verdade que a leva ao tratamento, ou seja, frente às lembranças das trocas entre os casais - referentes, sobretudo ao assédio do Sr. K., em que a jovem se queixa de ser oferecida como objeto para que o Sr. K. permitisse a relação do pai de Dora com sua esposa -, qual sua contribuição para que estas se mantenham? Diante dessa inversão dialética, revela-se a verdade que denuncia a posição do sujeito Dora, que então se apresenta não apenas em seu silêncio, mas em sua cumplicidade e proteção vigilante.

Já na primeira inversão dialética notamos as vias do desejo, na medida em que as queixas e o sofrimento relatados por Dora dão a ver um sujeito que não se esgota no imaginário de tais queixas, mas que, ao contrário, elas só podem ser concebidas em sua função para o sujeito Dora. Trata-se, nesse sentido, da relação com o Outro enquanto ordenador simbólico, lugar do inconsciente por excelência, onde a narrativa do sujeito se atrela a sua fantasia e dá notícias de seu desejo. Assim, a primeira inversão convoca o sujeito Dora a se posicionar naquilo que narra, ou seja, desvela o caráter fantasioso de resposta ao Outro nas queixas narradas e mostra que, mesmo que essa dinâmica lhe trouxesse sofrimento, também lhe incluía como sujeito em tal sofrimento, e não apenas como objeto.

Essa convocação do sujeito lança-a a novas questões, o que provoca a segunda inversão dialética, a qual, segundo Lacan (1951/1998a), é produzida a partir do súbito ciúme de Dora a respeito da relação amorosa de seu pai com a Sra.Sra. K., ciúme referente àquele que seria sujeito-rival e não à figura paterna. Essa inversão é seguida por um importante desenvolvimento da verdade: o fascínio de Dora pela Sra. K. Ao buscar a dinâmica das queixas de Dora ao seu pai e ao Sr. K., Freud (Freud, 1905/2016b) encontra o fascínio provocado na jovem, a qual elogiava o "corpo branco encantador" (p. 243) daquela que até então era tida como rival. Nas palavras de Freud (Freud, 1905/2016b):

Assim, creio não me equivocar ao supor que o pensamento predominante em Dora, que se ocupava da relação do pai com a Sra.Sra. K., destinava-se não apenas a reprimir o amor ao Sr. K., que antes fora consciente, mas devia esconder o amor à Sra.Sra. K., inconsciente num sentido mais profundo. Com essa última corrente ele se achava em relação de oposição direta. Ela dizia a si mesma, sem cessar, que o pai a sacrificava por aquela mulher, demonstrava ruidosamente que não se conformava em ceder-lhe o pai, e assim ocultava de si mesma o contrário, que não podia se conformar em ceder ao pai o amor daquela mulher e não havia perdoado à mulher que amava a decepção causada por sua traição. (p. 244-245)

Afastando-se de uma lógica edípica linear, que disporia as duas mulheres em oposição e disputa pela figura masculina, o sujeito que assim se revela demonstra a ligação erótica com a Sra. K., ao mesmo tempo em que aponta uma rivalidade de Dora com o pai. Essa ligação erótica (citada brevemente por Freud, mas por ele destacada como um erro em sua condução do tratamento) mostra os limites do próprio analista diante da sexualidade entre as figuras femininas. Notamos aqui os vieses eróticos e radicalmente de alteridade que odesenvolvimento da verdade aponta, já que solicita que Dora venha a responder pela relação que mantém com a Sra. K., encaminhando-a para o que Lacan (1951/1998a) chama de terceira inversão dialética do tratamento.

Alcançamos, assim, o ponto da análise de Lacan (1951/1998a) que irá nos fornecer elementos para pensar o feminino em relação à transferência, pois a terceira inversão dialética, que, segundo Lacan (1951/1998a), escapou a Freud, diz respeito ao mistério da feminilidade que a Sra. K. representa para Dora, o que se evidencia pelos sonhos da paciente e seu posterior abandono do tratamento. Nesses termos, Freud (1905/2016b) alcançou o encanto de Dora pela Sra.Sra. K., porém não conseguiu recolher daí o mistério da feminilidade que o encanto carregava, o que fez o autor e Dora esbarrarem em seus limites diante de feminilidade.

Na leitura realizada por Lacan (1951/1998a), ao se confrontar com o mistério da sua própria feminilidade, Dora revela o valor do objeto Sra.Sra. K. e, na tentativa de escapar do mistério, identifica-se a figuras masculinas - seu pai, Freud, o Sr. K. e, a partir de uma lembrança de infância, seu irmão mais novo. No entanto as mesmas figuras com as quais se identifica elegem-na como objeto de desejo, identificando-a ao feminino, que só pode ser acolhido por Dora quando se esgotar o mistério procurado na Sra. K.

Estamos, portanto, diante de diferentes perspectivas em relação ao feminino: uma tomada pelos homens, como objeto de desejo, e outra tomada por Dora, como mistério encarnado na Sra. K. Nessas diferentes perspectivas, Dora ocupa lugares difíceis de articular, na medida em que é tomada como objeto por aqueles com os quais ela se identifica, ou seja, não se identifica com o feminino enquanto objeto de desejo eleito por outros, ao mesmo tempo em que se direciona ao mistério do feminino, que, aqui, não diz respeito ao mero objeto de desejo masculino. Estamos às voltas, portanto, com a questão: o que seria o feminino?

A distinção entre o feminino como objeto de desejo dos homens e enquanto posição própria às mulheres é discutida por Freud em suas Contribuições à Psicologia do Amor, que nas obras Sobre um tipo particular de escolha de objetos nos homens (1910/2018a), Sobre a mais geral degradação da vida amorosa (1912/2018b) e O tabu da virgindade (1918/2018c) apresenta as diferentes posições assumidas pela figura feminina na fantasia masculina, mostrando que mesmo questões culturais, como a virgindade como tabu, estão intimamente implicadas à dinâmica edípica e não deixam de tentar responder à interrogação do que seria o feminino. Tal interrogação será trabalhada também por Freud em obras mais tardias, como Sobre a sexualidade feminina (Freud, 1931/2018e) e A Feminilidade (Freud, 1933/2018f), ao buscar as particularidades da dinâmica edípica entre as meninas.

Desse modo, o que o caso Dora vem nos apontar é que tal interrogação está presente na própria dinâmica do caso clínico, alcançando tanto a paciente quanto os demais integrantes do caso e o próprio Freud. Com Dora, o mistério do feminino é respondido através de diferentes evasões, ou seja, ela busca escapar do mistério através de vias que lhe lançam novamente a ele. Esse movimento tem consequências na transferência, já que, imediatamente após a inversão dialética reveladora do mistério da feminilidade, Dora abandona o tratamento.

Frente ao insuportável que o feminino a lança, Dora recorre àquilo que poderia lhe assegurar uma circunscrição, o corpo, mas reiteradamente o feminino faz cair por terra essa seguridade. Na queda, o mistério do feminino revela não caber na aceitação de si como objeto de desejo. Observamos, assim, que a posição de sujeito que o mistério do feminino desvela não tem um significante que o represente, sendo o corpo precário para tal, ainda que a ele se recorra. Consequentemente, os modos de constituição de objeto também se mostram envoltos no mistério, o que faz com que "ser objeto" passe pelo corpo e revele justamente aquilo que o objeto tem de enigmático, a saber, o desejo ao qual busca responder.

Nessa leitura lacaniana, conseguimos notar questões acerca do feminino que o autor irá se dedicar quando tratar da sexuação (Lacan, 1972-73/2008), com o feminino enquanto posição de gozo que não se limita ao falo, pois não tem um significante que o represente de todo. No entanto, no momento de seu ensino em que se dedica ao caso Dora, Lacan (1951/1998a) apenas insinua tais construções e, para os nossos interesses, mostra as questões colocadas pelo feminino tomado enquanto objeto de desejo e pelo mistério da feminilidade.

Na falta da função simbólica que dê conta do mistério, Dora elege uma função imaginária na figura da Sra. K. como figura de desejo para seu pai e para o Sr. K., mas essa eleição novamente mostra o fracasso da paciente, já que se dá qual um mimetismo, em que o corpo atua como simulacro situado entre um e outro sexo, ora servindo como identificação masculina, ora como feminino que lhe é objeto. Nesse sentido, os termos "masculino" e "feminino" surgem em Dora como uma oposição, de modo que ao primeiro ela recorre simbolicamente, identificando-se a eles e sentindo ciúmes da Sra. K., e ao segundo recorre pela adoração corporal em seu caráter imaginário, como forma de escapar ao mistério que essa mesma imagem lhe traz.

Observamos aí as tentativas de fuga diante do mistério da feminilidade a todo o momento encontrarem insucesso, tanto da paciente quanto de Freud, em remetê-la a uma ordenação que, via simbólico masculino e imaginário feminino, é dotada de ares fálicos, ou seja, referidos ao significante do desejo. A tentativa de fuga via significante fálico cria dentro da histeria um funcionamento muito particular no que diz respeito ao corpo e, segundo André (1986/1998), terá importantes consequências no trajeto de estudo sobre o feminino em Freud e Lacan, já que a histeria, através do corpo, recorre ao fálico ao mesmo tempo em que denuncia sua insuficiência.

O caráter de recorrência e denúncia da ordenação fálica no corpo se mostra presente desde os primeiros estudos de Freud acerca da conversão histérica - ainda que não claramente referida ao falo, mas na qual se pode antevê-lo -, como em Alguns pontos para o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1893/1996a), e se manterá em seus estudos sobre o complexo de Édipo, como em Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925/2018d), e em seus estudos sobre o feminino, como em Sobre a sexualidade feminina (1931/2018e). No próprio caso Dora (Freud, 1905/2016b), quando relata o erro no posfácio, observamos uma leitura de Freud que, ao notar a semelhança de sua postura com a do pai da paciente, parece indicar o desfecho fálico que deu ao caso.

No trajeto da obra freudiana já conseguimos notar elementos que fazem intercambiar o corpo da histérica com a fase fálica enquanto circunscrição da sexualidade. Partindo desse intercâmbio, Lacan dará maiores amarrações entre o corpo histérico e a função fálica - e aqui já notamos uma importante introdução da noção de "função" dada ao falo -, o que pode ser notado na própria obra a que recorremos, Intervenção Sobre a Transferência (1951/1998a), bem como em obras cujo tema do feminino é central, a exemplo de Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina (1960/1998c), na qual o autor aponta o quanto os estudos até então dedicados ao feminino pareciam ignorar a fase fálica e sua importância no desenvolvimento libidinal e na anatomia feminina.

Além dessas recorrências à relação entre corpo e ordenação fálica em trabalhos sobre o feminino, notamos Lacan lançar mão do feminino para compreender a própria noção de falo enquanto significante, como na aula A menina e o falo do Seminário 5: As formações do inconsciente (1957-58/1999), bem como para discutir essa relação com a dinâmica histérica, nas aulas A questão histérica e A questão histérica (II): o que quer uma mulher, do Seminário 3: As psicoses (1955-56/2010), esta última com grande destaque ao caso Dora. Sem adentrarmos aos detalhes desses trabalhos lacanianos, sublinhamos como as torções entre corpo, feminino e histeria não podem ser pensadas no ensino de Lacan sem sua íntima ligação com o significante fálico.

Tendo em nosso horizonte o alcance do feminino na psicanálise em relação ao falo, voltemos ao caso Dora, a fim de compreender os elementos nele contidos que contribuíram para o desenho posteriormente tomado. Trata-se de observar que esse caso, famoso pela contribuição dada à transferência, traz, exatamente nessa contribuição, as relações entre corpo e ordenação fálica enquanto possíveis respostas ao inominável que o feminino impõe.

Quando Freud, 1905/2016b) relata o abandono do tratamento após o sonho em que se levantam as perguntas referentes aos órgãos genitais - "onde está a chave" feita por Dora na noite anterior ao sonho, e "onde está a caixa", que Freud substitui pela pergunta "onde é a estação", feita no sonho (Freud, 1905/2016b, pp. 286-288) -, é também quando a Sra. K. se torna um mistério para o qual a curiosidade da jovem se volta. No manejo feito por Freud, no entanto, conforme citado anteriormente, essa relação entre algo de enigmático no corpo e na Sra. K. não toma maiores proporções, já que o analista conduz o tratamento a partir da interpretação que direciona Dora como objeto do Sr. K., de modo que tal relação só lhe aparece tardiamente.

Destarte, no caso Dora, o feminino é solicitado a assumir lugar de objeto do desejo através do corpo, no entanto a resposta à solicitação é a denúncia da falta simbólica, que não encontra no corpo seu significante. A denúncia, que lança o feminino na ausência simbólica, traz ainda como consequência a observação de que o corpo só pode ser compreendido como lugar de amparo simbólico por meio do viés fálico, com seduções que ofereçam ao outro o não encontro com a castração.

O feminino, assim, vem denunciar que a falicização do corpo operada pela histeria não se sustenta frente ao inominável, denúncia que recai tanto sobre Dora, já que seus sintomas e fantasias mostravam que era pela lógica fálica que ela operava, quanto sobre o analista Freud, que também não encara esse inominável senão por tentativas de remetê-lo à objetalização. Encontramos no movimento de tomar o corpo através de sua dimensão fálica um importante passo dentro da construção teórica e prática acerca do feminino, pois diz das tentativas de pensar o feminino como espelhamento do masculino no que tange ao complexo de Édipo, ou seja, a sexualidade operaria por caminhos comuns em diferentes disposições anatômicas, de modo que anatomia e sexualidade estão sob uma mesma égide: o falo.

Tal passo, diz André (1986/1998), testemunha a própria trajetória freudiana, na medida em que ela é marcada por tentativas de responder à hiância do inominável. No entanto, se com o falo a histeria encontra um particular investimento do corpo como forma de tamponar o inominável, ela também diz da sua incapacidade de recobrir o feminino. Nesse sentido, diz o autor (1986/1998):

O discurso da histérica tem por função demonstrar que o mito edipiano e a lógica fálica desconhecem a existência da mulher como tal. Daí a ponta de desafio - entre esperança e desprezo - que marca frequentemente a sua relação transferencial com o analista. É que ela o obriga a se explicar: é, ele mesmo, logrado pelo Pai? E o que pode saber ele sobre o que é e o que quer uma mulher? Lembramo-nos do fracasso de Freud com Dora, a quem ele quer a todo custo fazer reconhecer sua posição de objeto sexual para um homem (o Sr. K.), quando a questão de Dora visa antes o enigma que para ela representa a outra mulher (a Sra. K., a mulher do Sr. K. e amante do pai de Dora). A posição de Dora se sustenta pelo culto de uma feminilidade misteriosa encarnada no corpo da Sra. K. (p. 14)

Oscilando entre desprezo e esperança, a recorrência ao fálico no corpo forja um ponto de paragem, de modo que tal oscilação, além de marcar a relação transferencial, marca as formas de a feminilidade irromper ao sujeito. Isto ocorre porque, ao se colocar no corpo como puro mistério, a feminilidade impõe interrogações que parecem apaziguadas, mas não respondidas, pela saída fálica. Dessa maneira, o falo serve como possibilidade oferecida à interpelação feminina, mas o fracasso dessa possibilidade carrega a manutenção do feminino enquanto enigma.

Essa noção da feminilidade terá um aprofundamento no ensino de Lacan para pensar o próprio estatuto do falo em seus diferentes modos de operar em cada sujeito. Antes que nos encaminhemos para as proporções tomadas pela relação entre feminino e falo, porém, mantenhamo-nos no que dessa relação salta aos olhos no caso Dora: o feminino como mistério. É partindo desse mistério que as linhas transferenciais se costuram, e é também a partir dele que o corpo, então tomado como palco de conversões e fantasias de identificação viril, denuncia os limites dos mesmos modos de ser tomado.

A feminilidade como enigma, sempre a relançar convites ao deciframento, é o ponto que recolhemos de nosso percurso no caso Dora, ponto que desde o início se apresentou como peça-chave na leitura de Lacan (1951/1998a) sobre o tratamento, alcança importantes dimensões quando relacionado ao corpo e ao falo. Se em Dora notamos respostas ao enigma através do fálico impresso no corpo, cabe-nos compreender como esse enigmático contribuiu para as investigações psicanalíticas acerca do feminino, de modo a forjar possibilidades outras de respostas, mesmo sabendo que não o esgotará.

 

O Enigma do Feminino: Que Respostas te Decifram?

O mistério do feminino, no qual Dora estagna seu tratamento, mostra-se recorrente na pena freudiana, seja referido à fantasia em Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (1907/1996b), seja às diferentes representações da mulher em O tema da Escolha do Cofrinho (1913/2010), seja nas alusões às deusas mães em Moisés e o Monoteísmo (1938/1996c), em que notamos Freud envolver o feminino em ares enigmáticos. Desse modo, diante do feminino, o saber psicanalítico parece sempre às voltas com algo que lhe escapa, remetendo, portanto, à essência mesma do inconsciente.

Essa leitura que vincula o feminino ao mistério é pontuada textualmente por Freud (1933/2018f) na conferência A Feminilidade, quando nos diz: "Sobre o enigma da feminilidade, ruminaram os seres humanos de todos os tempos" (Freud, 1933/2018f, p. 314), mostrando que, ao se dedicar ao tema da feminilidade, a leitura psicanalítica não se deixa calar diante do enigma, ainda que ao fim da mesma conferência Freud nos convide a procurar sobre o tema em outros lugares - na experiência pessoal, nos poetas e na ciência -, apontando que tudo que até ali fora dito não o esgota. Em outros termos, o trabalho freudiano não se furta a investigar o feminino, construindo, a partir dele e sobre ele, saberes que têm muito a dizer à psicanálise.

Tal caráter da leitura freudiana, diz Assoun (1993), se distancia de leituras feitas ao longo da história, cujo feminino é um mistério intocável, no sentido de que qualquer dizer a seu respeito não tenha legitimidade, mas, ao revés, encontra no mistério um ponto de atração para produzir dizeres que estão no limite extremo da própria experiência analítica. Somos lançados, portanto, aos limites da análise e do fálico, encontrando-nos no seio da castração enquanto ponto de báscula da análise e dos diferentes destinos da sexualidade.

A partir disso, notamos que o mistério do feminino remete a leitura freudiana a limites, o fálico e a castração, que buscam recobrir aquilo que o feminino vem contradizer através de incessantes questões. Tal leitura, esclarece-nos André (1986/1998), dá à trajetória freudiana a preservação do mistério por meio de sua tentativa de cobertura, de modo que as bordas impostas ao mistério parecem tomar maiores proporções que o próprio, o que terá consequências também para a concepção do trajeto analítico que, novamente, mostra-se em estreito enlace com o feminino. E não é, pois, essa característica que vemos claramente no caso Dora, na medida em que Freud sequer levanta a questão da feminilidade quando esta estava no seio do abandono do tratamento?

Se a leitura de Freud parte do mistério e alcança lugares-limites, o trajeto lacaniano faz o movimento contrário, diz André (1986/1998), quando parte desses lugares para deles fazer emergir o mistério. Notamos que a mudança de vetor operada por Lacan, longe de contradizer as construções freudianas, parece ir àquilo que nelas já estava; o que pode ser observado pela própria releitura do caso Dora, em Intervenção Sobre a Transferência (1951/1998a), em que Lacan nos mostra que o limite do tratamento assinala o mistério do feminino que nele subjaz.

Encontrando nos sistemas imaginário, simbólico e real as relações entre o mistério e suas formas de desvelamento, a investigação lacaniana irá alcançar outros resultados em suas investigações sobre a feminilidade. Essa diferença das leituras de Freud e Lacan demonstra que suas perspectivas acerca do mistério e do que lhe encobre são também distintas, de modo que, diz André (1986/1998):

Vemos em Freud uma elucidação que parte do real para chegar à castração e a fazer desta uma verdadeira tela para o real - a ponto de, nos últimos textos, o próprio trauma ser atribuído ao medo da castração, mais que à emergência do real. Em Lacan, ao contrário, o deciframento parte da castração e atinge um ponto de real, de tal sorte que o sistema simbólico se revela não mais como um recobrimento, mas como aquilo que atravessa os furos por onde se manifesta a hiância do real. Esta inversão do sentido das trajetórias respectivas de Freud e Lacan esclarece a diferença de resultados aos quais chegam suas reflexões sobre a feminilidade. (p. 66)

Já não mais falando em tela para o real, a leitura lacaniana a respeito do feminino afasta-se da díade fálico/castrado, e de suas encarnações fantasiosas nas narrativas individuais, para remeter o falo ao significante, de modo que tal díade aí se insere. Nesse sentido, nos diz Lacan em A Significação do Falo (1958/1998b) que este atua como função que faz uma operação fundamental na constituição do sujeito, na medida em que atua como significante da falta e, já que tratamos do feminino, como essa operação nele se dá de maneira muito singular, ou seja, trata-se da relação entre feminino e a falta instaurada pelo significante fálico.

O que ocorre ao feminino para que esteja sempre muito próximo à falta? Isto remeteria unicamente à anatomia? Seria essa proximidade mantida com a falta que lhe confere o mistério? Essas questões, que encontram na clínica e na cultura as mais diversas manifestações, impulsionam as pesquisas lacanianas e, em Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina (1960/1998c), levam o autor a questionar se a mediação fálica drena todo o pulsional da mulher, pois parece sempre escapar. Nesse sentido, mesmo a função fálica instaurando a falta significante em todos os sujeitos, o feminino mostra um além dessa instauração, revelando a natureza própria da pulsão.

A partir da natureza pulsional que se deixa antever pelo feminino, diz Lacan (1960/1998c), ele se dispõe como Outro absoluto na dialética falocêntrica, mostrando novamente que a feminilidade opera dentro da função fálica, mas nela não se encerra, mantendo-se enquanto enigma justamente por sua estreita relação com o Outro. Nesse sentido, o mistério do feminino ganha na pena lacaniana o papel de apontar que a função fálica não se dá de forma maciça e unívoca em todos os sujeitos, mas que há diferentes modos de operar com o significante fálico.

Observamos, até aqui, que o trajeto lacaniano acerca do feminino progressivamente caminha para uma leitura do sujeito que não se esgota no significante fálico, ainda que a ele deva sua instauração. Seguindo o trajeto, alcançamos com Lacan a compreensão de posições de sujeito que se dão pela função fálica e pelo não-todo fálico, é o que Lacan nos diz no Seminário 20: Mais Ainda (1972-73/2008). O sujeito, sendo então pensado a partir da posição assumida na sexuação, já não se pode falar em feminino sem considerar as dimensões do desejo e do gozo, as quais se dispõem em todos os sujeitos e comparecem na clínica via transferência.

Notamos, assim, o feminino se relacionar a conceitos muito caros ao ensino de Lacan, como posições de gozo, desejo e Outro, de tal modo que as elaborações do autor ganham proporções que se distanciam do testemunho anatômico. Nesse sentido, ao tratar do feminino, que neste momento de seu ensino o autor chama de lado mulher da sexuação, Lacan (1972-73/2008) busca compreender os modos particulares de operar com o significante fálico, no registro da falta desejante ou do excesso gozante.

Destarte, Lacan (1972-73/2008) destaca que existe um gozo fálico, regido por um significante localizado na linguagem - o falo como significante que demarca a diferença sexual no registro simbólico e em construções imaginárias - e um gozo Outro, que assinala sempre a insuficiência do sentido dado pelo significante, referindo-se a um tempo originário, o qual se perdeu para entrada no campo da palavra. No entanto, ao mesmo tempo em que o gozo Outro aponta para um tempo mítico, ele só pode ser concebido retroativamente via linguagem e, nesse movimento, aponta para um além do significante fálico. Na medida em que o feminino está duplamente implicado, no gozo fálico e no gozo Outro, ele responde a ambos e, dessa maneira, tem um gozo não-todo fálico, ou seja, inscreve-se no registro fálico e o ultrapassa.

Notamos, desse modo, que a sexuação feminina põe às claras o próprio campo do gozo, revelando sua organização própria em relação à linguagem, e, na medida em que o gozo é constructo teórico-clínico que tem uma importância no ensino de Lacan, notamos que ele não só oferece questões importantes para o feminino, como alcançamos através do feminino maiores compreensões a respeito do gozo. Sem aprofundarmos a discussão sobre as modalidades de gozo, haja vista os limites deste trabalho, sublinhamos a importância clínica da noção de gozo que, diferente do desejo, atua como um excesso, próprio ao sujeito falante, e se vincula diretamente às formações sintomáticas e repetitivas, delas recolhendo uma satisfação nunca plenamente tratada pelas vias simbólicas e imaginárias. Para a nossa discussão sobre o feminino, a sexuação mostra que o campo do gozo, assim como o desejo, é tocado pela função fálica, porém as diferentes modalidades de gozo atestam que há posições distintas face à função fálica.

Considerando que os campos do desejo e do gozo atravessam a direção do tratamento ao se colocarem no laço transferencial, notamos um modo distinto de articular feminino e transferência daquele apresentado no caso Dora. Do enigma da feminilidade, em que na histeria toma o corpo por um viés fálico, passamos ao gozo não-todo fálico, o qual também atravessa o trabalho analítico e, nesses termos, o feminino surge como operador do campo psicanalítico, revelando um modo de gozo que não se limita ao falo e suas tentativas de consistência imaginária.

Isto implica que o trabalho analítico, também no manejo da transferência, se interrogue insistentemente por meio de questões que, com o feminino, não encontram respostas totalizantes, o que nos convida a um manejo que não situe o feminino apenas como objeto masculino, como no caso Dora, tampouco o limite aos constructos fálicos, mas, pelo contrário, que o mistério do feminino e um gozo além do fálico possam também encontrar algum tratamento via transferência. Concluímos, portanto, com uma aposta na potência que o feminino pode oferecer ao trabalho analítico pois, uma vez que ele não se oferece de uma vez por todas nem promete grandes soluções, mostra-se muito caro ao laço transferencial.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Hevellyn Ciely da Silva Corrêa
E-mail: hcs.correa@yahoo.com.br

Recebido em: 22/11/2019
Revisado em: 06/02/2020
Aceito em: 06/02/2021
Publicado online: 15/09/2021

 

 

1 O termo inversão dialética é usado por Lacan na obra a qual nos referimos, Intervenção Sobre a Transferência (1951/1998a), sem uma clara definição conceitual, no entanto o autor a situa como diretamente vinculada à experiência analítica e à transferência quando diz: "Em síntese, com efeito, a psicanálise é uma experiência dialética, e essa noção deve prevalecer quando se formula a questão da natureza da transferência" (p. 215). Sem nos atermos à particular herança hegeliana de Lacan, citada por autores com Safatle (2006), pelo uso do termo "dialética", sublinhamos, pelo modo de operar referido ao caso Dora, a noção de que um termo não existe sem o outro, e que cada um só adquire realidade quando o outro é afetado, porém que não se trata de uma relação complementar que caminhe para um consenso último. Assim, nos indica inversões operadas no tratamento por essa lógica, o que fica claro quando o autor indica as três inversões dialéticas e as mudanças que promovem, conforme iremos nos dedicar no corpo do texto.

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