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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza mayo/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e10957 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Georges Devereux: Um Psicanalista Freudiano?

 

Georges Devereux: A Freudian Psychoanalyst?

 

Georges Devereux: ¿Un Psicoanalista Freudiano?

 

Georges Devereux : Un Psychanalyste Freudien ?

 

 

Wanessa WonsoskiI; Eliane DominguesII

IPsicóloga e Mestra na linha Psicanálise e Civilização pela Universidade Estadual de Maringá
IIProfessora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise freudiana é um dos principais embasamentos da etnopsicanálise, disciplina fundada por Georges Devereux (1908-1985). Devereux se considerava um "psicanalista autenticamente clássico", de acordo com as concepções "maiores" de Freud, mas com divergências em relação a certas concepções consideradas por ele como "menores". Quais seriam essas concepções "menores" de Freud que Devereux discordava? Quais são as contribuições de Devereux à teoria psicanalítica? São essas questões que orientam este artigo. As concepções abordadas, alvos de discordâncias ou de desenvolvimentos de Devereux, que serão apresentadas aqui são: inconsciente; complexo de Édipo e período de latência; supereu e ideal do eu; e pulsão de morte. A partir da leitura dos principais textos de Devereux, identificamos que o autor adota as proposições freudianas da universalidade do psiquismo e do complexo de Édipo, mas discorda da existência da pulsão de morte e da universalidade do período de latência, e parece indicar uma distinção constitutiva entre o que é da ordem da interdição arbitrária (supereu) e o que é da ordem da função de modelo (ideal do eu). Além disso, Devereux amplia as formulações freudianas a respeito do desenvolvimento psicossexual ao refletir sobre as pulsões incestuosas, agressivas e canibalistas dos pais em relação aos filhos.

Palavras-chave: Georges Devereux; Sigmund Freud; etnopsicanálise; psicanálise; teoria.


ABSTRACT

Freudian psychoanalysis is one of the main foundations of ethnopsychoanalysis, a discipline founded by Georges Devereux (1908-1985). Devereux considered himself an "authentically classic psychoanalyst", according to Freud's "major" conceptions, but with divergences concerning some conceptions considered as minor by him. What were these "minor" conceptions of Freud that Devereux disagreed with? What are Devereux's contributions to psychoanalytic theory? These are the questions that guide this article. The concepts addressed, targets of disagreements or developments by Devereux, which will be presented here are: unconscious; Oedipus complex and latency period; superego and ideal of the self; and the death drive. From the reading of Devereux's essential texts, we identified that the author adopts the Freudian propositions of the universality of the psyche and the Oedipus complex, but disagrees with the existence of the death drive and the universality of the latency period, and seems to indicate a constitutive distinction between what is of the order of arbitrary interdiction (superego) and what is of the order of the model function (ideal of the self). Furthermore, Devereux expands Freud's formulations regarding psychosexual development by reflecting on the incestuous, aggressive, and cannibalistic drives of parents towards their children.

Keywords: Georges Devereux; Sigmund Freud; ethnopsychoanalysis, psychoanalysis, theory.


RESUMEN

El psicoanálisis freudiano es una de las principales bases de la etnopsicoanálisis, asignatura fundada por Georges Devereux (1908-1985). Devereux se consideraba un "psicoanalista auténticamente clásico", de acuerdo con las "mayores" concepciones de Freud, pero con divergencias en relación a ciertas concepciones consideradas por él como "menores". ¿Cuáles serían estas concepciones "menores" de Freud que Devereux discordaba? ¿Cuáles son las contribuciones de Devereux para la teoría psicoanalítica? Son estas cuestiones que orientan este trabajo. Las concepciones en cuestión, blanco de desacuerdos o de desarrollos de Devereux, que serán presentadas aquí son: inconsciente; complejo de Edipo y periodo de latencia; superyó y el ideal del yo; y pulsión de muerte. A partir de la lectura de los principales textos de Devereux, identificamos que el autor adopta las proposiciones freudianas de la universalidad del psiquismo y del complejo de Edipo, pero no está de acuerdo con la existencia de la pulsión de muerte y de la universalidad del período de latencia, y parece indicar una distinción constitutiva entre lo que es del orden de la interdicción arbitraria (superyó) y lo que es del orden de la función de modelo (ideal del yo). Además de esto, Devereux amplia las formulaciones freudianas a respecto del desarrollo psicosexual al reflexionar sobre las pulsiones incestuosas, agresivas y caníbales de los padres en relación a los hijos.

Palabras clave: Georges Devereux; Sigmund Freud; etnopsicoanálisis; psicoanálisis; teoría.


RÉSUMÉ

La psychanalyse freudienne est l'un des principaux fondements de l'ethnopsychanalyse, discipline fondée par Georges Devereux (1908-1985). Devereux se considérait comme un « psychanalyste authentiquement classique », selon les conceptions « majeures » de Freud, mais avec des divergences par rapport à certaines conceptions considérées par lui comme « mineures ». Quelles étaient ces conceptions « mineures » de Freud avec lesquelles Devereux était en désaccord ? Quelles sont les contributions de Devereux à la théorie psychanalytique ? Telles sont les questions qui guident cet article. Les concepts abordés, cibles de désaccords ou de développements par Devereux, qui seront présentés ici sont : de l'inconscient ; le Complexe d' Œdipe et le période de latence ; le dépassé et l'idéal de soi ; et la pulsion de mort.De la lecture des principaux textes de Devereux, nous avons identifié que l'auteur adopte les propositions freudiennes de l'universalité du psychisme et du complexe d' Odipe, mais en désaccord avec l'existence de la pulsion de mort et de l'universalité de la période de latence. De plus, il semble indiquer une distinction constitutive entre ce qui est de l'ordre de l'interdit arbitraire (surmoi) et ce qui est de l'ordre de la fonction modèle (idéal de soi). En autre, Devereux élargit les formulations de Freud sur le développement psychosexuel, en réfléchissant aux pulsions incestueuses, agressives et cannibales des parents envers leurs enfants.

Mots-clés: Georges Devereux ; Sigmund Freud ; ethnopsychanalyse ; psychanalyse ; théorie.


 

 

Georges Devereux (1908-1985) é conhecido como criador da etnopsicanálise, disciplina que articula etnologia e psicanálise na compreensão dos fenômenos humanos, e iniciador da clínica transcultural. A diversidade cultural sempre esteve presente em sua vida, desde seu nascimento na Hungria, na cidade de Lugoj, à época de seu nascimento constituída por três bairros: alemão, húngaro e romeno (Bloch, 2012). Desde pequeno, Devereux falava: francês, alemão, húngaro e romeno, tendo aprendido ao longo de sua vida, além desses, mais quatro idiomas: inglês, malaio, sedang e grego clássico (Araújo, 2016). A diversidade cultural também esteve presente em seus deslocamentos: da cidade natal para Paris, de Paris para os Estados Unidos, com períodos de estadia na Indochina e Haiti.

Seu primeiro deslocamento de Lugoj para Paris foi em 1926. Devereux foi para Paris estudar física, química e matemática com Marie Curie e Jean Perrin. Depois da física passou a estudar etnologia e, em 1933, consegue uma bolsa Rockefeller de dois anos para sua primeira expedição e viaja para os Estados Unidos a fim de aprender o ofício de antropólogo. Nos Estados Unidos, Devereux conheceu os índios Mohave, sendo o período que passa com eles descrito por ele próprio como o mais feliz e estimulante da sua vida (Bloch, 2012).

Após a estadia nos Estados Unidos, Devereux passou 18 meses com os Sedang Moi (na Indochina), quando escreve uma espécie de autobiografia científica, base de seus escritos epistemológicos sobre a contratransferência e sobre a angústia do observador, que deu origem, depois de mais de três décadas, ao livro De la ansiedad al método en las ciências del comportamiento, pulicado em 1967. Após o período com os Sedang Moi, Devereux retornou aos Estados Unidos e fez um doutorado em antropologia com Alfred Kroeber1, intitulado Sexual life of the Mohave Indians. É nesse momento que ele começa a ler sobre psicologia, mas não ainda especificamente Freud. Sobre essa época, Devereux dizia que ainda era antifreudiano e que foram os Mohave que lhe ensinaram a psicanálise, da mesma forma que os pacientes de Freud (Bloch, 2012).

Devereux passou a se dedicar a psicanálise após a Segunda Guerra Mundial. Primeiro, em Paris, onde fez análise com Marc Schlumberger (membro da Sociedade Psicanalítica de Paris), e depois na clínica de Karl Menninger em Topeka, no Kansas. Nessa clínica, Devereux analisa Jimmy Picard e suas transcrições das sessões dão origem ao seu primeiro grande livro, Reality and Dream: The Psychotherapy of a Plains Indian (traduzido para o francês como PPsychothérapie d' un indien des plaines: realité e rêve), publicado em 1951. Esse livro é considerado "(...) a primeira teoria e o primeiro exemplo concreto da utilização dos mecanismos culturais em psicoterapia" (Menninger citado por Devereux, 1951/2013, pp. 41-42, tradução nossa). É também nesse livro que Devereux descreve aproximações teóricas e técnicas em relação à psicanálise freudiana: utiliza-se da interpretação dos sonhos, do método de associação livre e faz referências a conceitos psicanalíticos, como transferência e complexo de Édipo (Domingues, Honda, & Reis, 2019).

Devereux se considerava um "freudiano impecavelmente clássico" (Devereux, 1967, p. 130, tradução nossa). Ele foi psicanalista - membro aderente da IPA, mas não membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris - e etnólogo, uma bagagem que contribuiu para iniciar uma prática transcultural na psicanálise, explicando as relações entre psiquismo e cultura, entre normas sociais e desordens mentais (Bloch, 2012). Segundo Laplantine (2007, p. 11, tradução nossa), Devereux "(...) estimava ser herdeiro direto de Freud" e incorporou seu pensamento.

Em Psychothérapie d' un indien des plaines, Devereux (1951/2013) afirma aceitar as concepções maiores de Freud a respeito da universalidade da dinâmica e estrutura da personalidade, mas divergir em concepções menores. Quais são essas concepções "menores" de Freud que Devereux discorda? Quais são as contribuições de Devereux à teoria psicanalítica? São essas questões que orientam este artigo. As concepções abordadas, alvos de discordâncias ou de desenvolvimentos de Devereux que serão apresentadas aqui, são: inconsciente; complexo de Édipo e período de latência; supereu e ideal do eu; e pulsão de morte.

 

Inconsciente

Em Psychothérapie d' un indien des plaines, Devereux (1951/2013) afirma que compreende o conceito de inconsciente do ponto de vista clássico da psicanálise freudiana e cita os textos de Freud O inconsciente e A repressão como fundamentos de sua concepção de inconsciente. Nesses textos, Freud (1915/2010b, 1915/2010c) salienta que, além de polo pulsional, o inconsciente é constituído por representações psíquicas que foram afastadas da consciência por meio da repressão, ou seja, por material reprimido.

Devereux (1956/1971a), do mesmo modo, afirma que o inconsciente é composto por: 1) aquilo que nunca foi consciente, que compreende as forças pulsionais; 2) aquilo que foi consciente, mas foi reprimido, e acrescenta que o material reprimido é constituído por inconsciente idiossincrático e inconsciente étnico.

O inconsciente idiossincrático corresponde ao inconsciente reprimido já descrito por Freud, o qual, devido a um material ser desagradável ou inoportuno, é suprimido da consciência. Devereux (1956/1971a) apenas salienta que esse inconsciente é composto por materiais que o indivíduo reprimiu por questões individuais, e não culturais.

Já o inconsciente étnico, que também pode ser denominado de inconsciente cultural, refere-se àquela parte do inconsciente que um indivíduo tem em comum com os outros membros da sua cultura2. Em seu modo singular,

cada cultura permite que alguns fantasmas, pulsões e outras manifestações do psiquismo nasçam e permaneçam em nível consciente e outros sejam reprimidos. Por isso, todos os membros de uma mesma cultura possuem em comum certo número de conflitos inconscientes (Devereux, 1956/1971a, p. 29, tradução nossa).

O inconsciente étnico descrito por Devereux (1956/1971a) é modificado e transmitido da mesma forma que a cultura - e não de modo biológico -, em que, conforme as exigências da cultura, cada geração aprende a reprimir determinados conflitos, obrigando a geração seguinte a reprimi-los também. O material que constitui o inconsciente étnico é mantido reprimido devido a alguns mecanismos de defesa que são proporcionados pelas pressões culturais. Quando os meios defensivos proporcionados pela cultura são insuficientes, os indivíduos experimentam dificuldades para dominar e ocultar seus conflitos. Nesse último caso, a cultura deve proporcionar a esses indivíduos alguns meios culturais que permitam que eles expressem seus conflitos ao menos de forma marginal (Devereux, 1956/1971a).

Percebemos que Devereux compreende o inconsciente do ponto de vista clássico da psicanálise freudiana ao descrevê-lo como composto de materiais reprimidos e de forças pulsionais, entretanto faz um acréscimo à teoria psicanalítica quando mostra que o reprimido é também composto por um inconsciente étnico/cultural, ou seja, destaca que o que será reprimido e a intensidade da repressão também são determinados pelas diferenças culturais.

 

Complexo de Édipo e Período de Latência

O debate entre psicanálise e antropologia foi inaugurado por Freud com a publicação de Totem e Tabu, em 1913, e os questionamentos de Malinowski sobre a universalidade do complexo de Édipo. Nesse debate, Devereux adota a posição de Freud e defende a universalidade do complexo de Édipo. Conforme destaca Bastide (1971), Devereux considera que o complexo de Édipo é universal, pois está unido à existência da Cultura, sendo um aspecto característico do Homo sapiens. Desse modo, o complexo de Édipo não é apenas característica da família burguesa vienense, mas é encontrado em todo indivíduo e pode se revestir de diferentes formas, a depender da cultura em que o sujeito está inserido.

Para exemplificar as diferentes formas de expressão do complexo de Édipo, podemos citar o caso apresentado na obra Psychothérapie d' un indien des plaines, na qual Devereux (1951/2013) descreve que os índios das planícies possuem a especificidade de que a própria cultura oferece uma forma coletiva e institucionalizada de expressar a hostilidade em relação ao pai: competições por troféus e honrarias. Destaca-se que tal hostilidade entre os homens está subordinada à hostilidade original à mãe - hostilidade que é reprimida e se manifesta nessas competições -, configurando o complexo de Édipo invertido (negativo), isto é, hostilidade e rejeição ao progenitor do sexo contrário (Domingues et al., 2019).

Já em relação à universalidade do período de latência, Devereux (1951/2013) discorda de Freud (1905/2016), argumentando que os modos de comportamento dependem, em grande parte, dos métodos de socialização e das normas culturais que uma cultura oferece ao sujeito. Dessa forma, se a criança vai passar pelo período de latência, quer dizer, destinar as forças pulsionais sexuais para outros fins não sexuais (Freud, 1905/2016), vai depender da cultura em que ela estará inserida, visto que muitas culturas não inibem o comportamento sexual da criança (Devereux, 1951/2013). Por isso, propõe o autor, o que Freud desenvolveu a respeito dos estágios de desenvolvimento infantil não deve ser automaticamente transposto aos estudos sobre a infância sem a consideração da cultura.

Voltando ao complexo de Édipo, convém destacar que, para Devereux (1965/1972b, p. 174, tradução nossa), "(...) o complexo de Édipo é inseparável da noção de parentesco, e que, do mesmo modo que a ideia de incesto, o pressupõe". O complexo de Édipo começa pelos desejos dos pais, ele é uma "consequência direta e inevitável do (e reação ao) comportamento de Laio e Jocasta" (Devereux, 1967, p. 128, tradução nossa). Dessa forma, "o complexo do filho Édipo é antes [grifo do autor] de tudo a reação provocada pelos impulsos incestuosos e/ou assassinos dos pais, e por isso é, falando puramente, um complexo contralaio ou contrajocasta" (Devereux, 1967, p. 128, tradução nossa).

A sedução dos filhos pelos pais pode ser vista de formas diferentes em diversas culturas, com destaque para o ato dos pais em considerar os filhos como objetos, como o fato de ser comum para certas culturas a filha ocupar o lugar da mãe nos afazeres de casa e na cama do pai quando esta adoece (Devereux, 1965/1972b). Notamos, então, que Devereux (1964/1971b, 1965/1972b) enfatiza o desejo dos pais na constituição do complexo de Édipo, diferentemente de Freud, que se detém no desejo dos filhos. Devereux (1965/1972b), no entanto, não desconsidera o desejo dos filhos pelos pais, aspecto que pode ser visto quando o autor apresenta um caso clínico de um paciente que foi à consulta com a demanda de impotência com a esposa (e não com outras mulheres) e encontrou a virilidade depois que compreendeu que sua esposa simbolizava sua mãe.

Podemos afirmar, portanto, que Devereux destaca as atitudes contraedípicas dos pais a respeito das atitudes edípicas das crianças. Segundo Bastide (1971), deve-se compreender o complexo de Édipo, em Devereux, partindo não apenas da libido infantil, mas da dialética nas relações entre pais e filhos. É válido registrar a sensação de que Devereux ressalta tanto o papel dos pais na formação do complexo de Édipo que, por vezes, compreendemos esse complexo como sendo originado pelos pais, como pode ser visto na seguinte frase: "o complexo de Édipo parece ser uma conseqüência da sensibilidade aos impulsos sexuais e agressivos de seus pais" (Devereux, 1953, p. 139, tradução nossa).

Devereux (1964/1971b) destaca que qualquer estudo sobre a infância não deve ser centrado na criança, esquecendo-se dos pais. Ao contrário, devemos sempre considerar os adultos, as suas tendências sedutoras e destrutoras inconscientes que são dirigidas às crianças. O autor destaca que até as origens da neurose e da psicose não estão exclusivamente na criança, mas nos "erros" parentais. As pulsões contraedípicas dos pais têm muita influência sobre a criança, inclusive no que concerne à delinquência sexual juvenil.

Qualquer um que teve em mãos certo número de observações de delinquentes sexuais não pode deixar de se perguntar se a ilusão pré-freudiana da criança, esse querubim limpo de todo desejo sexual ou edípico, não está em caminho de ser suplantada pela ilusão inversa do pai limpo de todo desejo sexual contra-edípico, isso com o fim de escapar da necessidade de estabelecer irritantes correlações entre o caráter sexual da passagem ao ato (acting out) da criança e as pulsões contraedípicas dos pais. (Devereux, 1964/1971b, p. 201, tradução nossa)

Além das pulsões contraedípicas, Devereux (1967, 1966/1971c) descreve as pulsões canibalísticas dos pais, sendo a contestação de Devereux, nesse caso, em relação à Melanie Klein. Segundo o autor, há pulsões canibalísticas paternas que suscitam nas crianças manifestações reacionais, que ele denomina de "contracanibalísticas". Nas palavras do autor: "(...) as pulsões canibalísticas dos pais sobre os filhos são de ordem primária [grifo do autor], enquanto os fantasmas e pulsões dos filhos são reações, e, portanto, devem ser consideradas como contracanibalísticos" (1966/1971c, p. 173, tradução nossa). Dessa forma, o que Devereux (1966/1971c) propõe é a "(...) anterioridade das pulsões pretendidamente contra-canibalísticas dos pais com respeito às pulsões reativas e, portanto, autenticamente contra-canibalísticas das crianças" (p. 160, tradução nossa).

Devereux (1966/1971c) desenvolve o argumento afirmando que desejos orais são impostos inclusive a bebês mortos. Para exemplificar, relata o caso de uma cultura na qual, quando uma mulher aborta e aparece um pássaro atormentando seu povoado, a mãe que abortou deixa os seios para fora para atrair esse pássaro (pois o bebê, reencarnado no pássaro, buscaria o seio materno), fazendo com que seja possível capturar o animal. Outro exemplo fornecido pelo autor é uma história havaiana, na qual um pequeno tubarão sugou os seios de uma mulher que praticou aborto. Nesse caso, acredita-se que o bebê morto tenha reencarnado no tubarão, do mesmo modo que o bebê teria reencarnado no pássaro do primeiro exemplo. Essas crenças que fazem relação com os desejos orais das crianças, vivas ou mortas, não passariam de projeções do adulto na criança. Isso ocorre porque, prossegue o autor, quando um bebê morde o seio da sua mãe ao se alimentar não é consciente para ele de que se trata de carne humana.

Essas projeções, segundo o autor, mostram um desejo de comer o bebê. Devereux (1966/1971c) descreve que muitos animais comem a placenta e, às vezes, o feto inteiro que acaba de nascer, mas a espécie humana não faz isso, pois "(...) a cultura não atualiza essas pulsões de devoração mais do que sob a forma de projeções ou formações reativas" (p. 164, tradução nossa). Uma defesa proporcionada pela cultura contra as pulsões canibalísticas é vista de modo muito explícito na cultura Mohave, na qual, após a mulher parir, é proibida de comer carne durante um determinado período. Porém, em épocas como as de grande fome, lhe é permitido comer o feto. Isto pode ser visto na Idade Média e em muitos lugares da Austrália, em que matar o bebê foi uma prática recorrente, inclusive preferindo-se matar uma criança a caçar um cachorro.

Em contrapartida, descreve Devereux (1967, 1966/1971c), nunca se viu na história nenhum caso de crianças que mataram seus pais para saciar sua fome. As estatísticas são claras: muitas crianças foram mortas; e a história, a etnologia, a criminologia e a religião nunca negaram esse fato.

Devereux (1966/1971c) ressalta que as pulsões contra-canibalísticas das crianças não têm nada a ver com suas satisfações orais, sendo os desejos orais sentidos por elas usados pelos adultos para justificar que o desejo canibal está na criança e não neles. Porém, o que ocorre, na verdade, é que o adulto possui pulsão canibalística e, tendo dificuldade em aceitar isso, projeta-a sobre a criança.

 

Supereu e Ideal de Eu

O conceito de supereu foi introduzido por Freud no texto O Eu e o Id, de 1923. De acordo com Freud (1923/2011), o supereu é uma instância psíquica que exerce a função de consciência moral, auto-observação e apoio dos ideais. Para ele, a formação do supereu é herdeira do complexo de Édipo. Inicialmente, afirma Freud (1923/2011), a criança investe sua libido nas figuras paternas e o eu não tem controle. No entanto, ao ser interditada e ter que renunciar à satisfação de seus desejos edipianos, a criança transforma seus investimentos em identificações com os pais. Isto ocorre devido ao eu assumir traços do objeto para dizer ao id "veja, você pode amar a mim também, eu sou tão semelhante ao objeto" (Freud, 1923/2011, p. 37, tradução nossa). Dessa forma, as figuras paternas são internalizadas, e a ordem e o dever não precisam mais vir do exterior, estão no interior do indivíduo.

Vale apontar que o supereu é uma parte inconsciente derivada do eu, mas "enquanto o Eu é essencialmente representante do mundo exterior, da realidade, o supereu o confronta como advogado do mundo interior, do Id" (Freud, 1923/2011, p. 45). O fato de o supereu ser inconsciente leva Freud a constatar que "(...) o homem normal não apenas é muito mais imoral do que crê, mas também muito mais moral do que sabe" (Freud, 1923/2011, p. 65).

Devereux (1956) também descreve o supereu como uma instância repressora. Ele afirma que o vocabulário do supereu é predominantemente restrito à palavra "não!" e se caracteriza por ser sadicamente extremo, isto é, "branco ou preto", "oito ou oitenta", e por fazer exigências impossíveis ao eu. Segundo o autor:

O supereu não fornece orientação positiva para um comportamento racional, adequado à realidade e efetivo. A "orientação" que fornece é de um tipo puramente negativo, consistindo principalmente em especificações do que o indivíduo não pode fazer, sentir e pensar. Seu reino é o dos tabus e evasões (Devereux, 1956, p. 189, tradução nossa).

Percebe-se que Devereux (1956) propõe o conceito de supereu nas concepções freudianas, dando uma ênfase maior à sua função interditora e arbitrária, sem propor uma nova definição. Nas palavras do autor:

(...) defino o supereu no mesmo sentido que atribui Freud. No entanto insisto no fato de que o supereu é especificamente o resíduo, o precipitado de todas as experiências que a criança não pode dominar no momento em que elas [experiências] se produziram. (Devereux, 1966/1972c, pp. 53-54, tradução nossa)

Devereux adota a definição de supereu de Freud, pelo menos no que diz respeito às funções do supereu como interditor, ou seja, no estabelecimento do que não se pode e não se deve fazer. No entanto apresenta novas ideias no que diz respeito à formação do supereu, o que leva alguns autores, como Bloch (2012) e Araújo (2016), a afirmarem que Devereux apresenta uma nova teoria da formação do supereu.

Para Devereux (1956), a formação do supereu na criança desenvolve-se a partir de introjeções e "acidentes históricos" de cada sujeito. Estes "acidentes históricos" se referem a acontecimentos que as crianças não conseguiram dominar pelos recursos do eu, como se fossem uma espécie de trauma, e, assim, formam o supereu; são ordens que se dão de maneira agressiva, de obediência imediata e que são incompreensíveis para a criança.

A ordem, de origem heteropsíquica, se intercala de maneira violenta, intrusiva e repentina no desdobramento normal das operações fisiológicas e psicológicas que já estão em curso no momento em que a ordem irrompe no psiquismo da criança - ou do escravo. Para executar essa ordem, a criança deve violentamente interromper e até inviabilizar certos processos psicofisiológicos já em curso. Trata-se de um verdadeiro aborto psicofisiológico. (Devereux, 1967/2009, p. 60, tradução nossa)

Essa ordem incompreensível para criança, que se caracteriza como uma injunção arbitrária que vai contra a sua natureza e que apenas deve ser obedecida imediatamente, faz com que ela a perceba como um material "heteropsíquico", diferentemente de uma ordem dada após explicações e esclarecimentos acessíveis a compreensão da criança, a qual faz a execução ser sentida como "autopsíquica" (Devereux, 1967/2009). Isto explica por que

o supereu tende a conservar os atributos de um material aproximadamente heteropsíquico e por que ele representa um conglomerado fortuito, mais que uma verdadeira estrutura; em resumo, porque o supereu é composto essencialmente de tudo o que não pode ser compreendido, nem dominado, nem transformado em material autopsíquico no momento dos acontecimentos, cujo precipitado constitui o supereu. (Devereux, 1967/2009, p. 61, tradução nossa)

Já o ideal do eu, segundo Devereux (1956), é formado pelas injunções positivas que fornecem para a criança um direcionamento condizente com a realidade.

O horizonte perceptivo [do ideal eu] é grande e totalmente nuançado, e seu "vocabulário" é extenso e adequado à realidade. Seu tema central é a injunção positiva: "Em tal e tal situação (nuançada), a seguinte linha de conduta (positivamente formulada) é apropriada para um determinado tipo de pessoa". Sua "definição da situação" é, assim, baseada tanto por uma avaliação objetiva da realidade externa e das capacidades individuais, por um lado, quanto por um código de ética madura, resultante da sublimação, por outro lado. (Devereux, 1956, p. 197, tradução nossa)

Devereux (1956) acrescenta que a formação do ideal do eu é posterior à formação do supereu.

O ideal do eu se desenvolve muito mais tarde [em relação ao supereu] - provavelmente até o final do período edípico, ou seja, num momento em que as pessoas não são mais experimentadas como objetos parciais "brancos ou negros", mas como objetos tridimensionais e com nuances de alguma complexidade. Em termos muito práticos, desenvolve-se numa idade em que a criança média começa a frequentar a escola. Isto dá ao professor uma oportunidade excepcional de promover o desenvolvimento do ideal do eu, em vez de encorajar uma proliferação adicional de tabus do supereu. Infelizmente, muitas vezes acontece que, enquanto o professor está tentando alcançar esse objetivo, os pais da criança continuam a encorajar um crescimento adicional do supereu, o que, muitas vezes, leva ao antagonismo entre professor progressista e o pai estrito. (Devereux, 1956, p. 197, tradução nossa)

Se o ideal do eu se forma no final do complexo de Édipo e após a formação do supereu, podemos supor que o supereu, para Devereux, não é o herdeiro do complexo de Édipo, nem se forma com a sua dissolução, tal como proposto por Freud. Tal concepção se aproximaria mais da proposição kleiniana, pelo menos no que diz respeito à anterioridade da constituição do supereu em relação à dissolução do complexo de Édipo.

Neste ponto, vale citar um exemplo oferecido por Devereux (1956) a fim de esclarecer a questão do quanto o supereu "é invariavelmente um irracional, dereístico e arcaico, não compatível nem com a realidade externa atual, nem com suas capacidades atuais (adultas), necessidades e direitos" (pp. 197-198, tradução nossa), diferentemente do ideal de eu que oferece uma explicação "baseada tanto por uma avaliação objetiva da realidade externa e das capacidades individuais, por um lado, quanto por um código de ética madura, resultante da sublimação, por outro lado" (Devereux, 1956, p. 197, tradução nossa):

O neurótico promíscuo não se sente culpado de ter violado a regra inspirada pelo ideal do eu: "Pessoas emocionalmente maduras devem se envolver em coabitação apenas com objetos amados." Ele se sente culpado de ter violado o tabu inspirado no supereu: "sexo é pecaminoso e deve ser evitado sempre, em todo momento, sob todas as condições, em qualquer forma, por todas as pessoas, independentemente da idade". (p. 198, tradução nossa)

Vemos, então, que o supereu é um código de proibição, que, nesse exemplo, proíbe a relação sexual e dirige-se a ela com o único vocabulário que compõem essa instância psíquica: "Não!".

Observamos, desse modo, que diferentemente de Freud (1923/2011) - para quem as funções de ideal e interdição estão integradas (o ideal do eu é uma das funções do supereu) e não se forma em momentos e a partir de experiências diferentes -, Devereux (1956) parece querer marcar uma distinção constitutiva entre o que é da ordem da interdição arbitrária (supereu) e o que é da ordem da função de modelo (ideal do eu).

 

Pulsão de Morte

A pulsão é definida por Freud como uma pressão ou força que tem como fonte o somático e que objetiva atingir a satisfação, a qual só é alcançada mediante algum objeto (Freud, 1915/2010d). Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/2016) recorreu pela primeira vez ao termo para falar da pulsão sexual e de algo que se contrapõe a ela, denominado, em 1910, pulsão de autoconservação. Trata-se de uma dualidade, na qual

nem sempre esses instintos são compatíveis entre si; com frequência têm conflitos de interesses; as oposições das ideias são apenas expressão das lutas entre os instintos que servem à sexualidade, à obtenção de prazer sexual, e os outros, que têm por meta a autoconservação do indivíduo, os instintos do Eu. Todos os instintos orgânicos que atuam em nossa alma podem ser classificados como "fome" ou como "amor". (Freud, 1910/2013, pp. 317-318)

A fome e o amor, as duas forças que movem o mundo, segundo o poeta, serviram de inspiração para Freud elaborar a sua primeira teoria das pulsões. Essa teoria foi desenvolvida na obra Os instintos e seus destinos, na qual Freud (1915/2010d) fez uma divisão entre pulsões do Eu (ou de autopreservação), que tinham a função de preservação da existência do sujeito, e pulsões sexuais, que tinham a função de preservação da espécie e de satisfação sexual. Percebe-se que as duas são voltadas para a conservação do indivíduo e para a manutenção da espécie.

Azevedo & Mello Neto (2015) destacam que Freud mostrava inquietações a respeito dessa teoria e deixou claro que a manteria até que as experiências clínicas possibilitassem uma melhor compreensão da teoria das pulsões. Isto ocorreu em 1920, quando Freud (1920/2010e) estabeleceu um novo dualismo pulsional, no qual opõe as pulsões de vida às pulsões de morte. A primeira integraria a pulsão sexual e a pulsão de autoconservação, já a segunda, num sentido oposto, tenderia à destruição das unidades vitais. É nessa segunda pulsão que vamos nos deter, devido a Devereux (1958/1972a) afirmar que não concorda com essa proposição freudiana.

O conceito de pulsão de morte, introduzido por Freud (1920/2010e) em Além do princípio do prazer, refere-se a pulsões que buscam a redução completa das tensões, que buscam o retorno a algo anterior, ao inanimado, ou seja, "retorno ao estado inorgânico" (p. 204). Dessa forma, a pulsão de morte, na compressão freudiana, é entendida como:

(...) uma tendência que levaria à eliminação da estimulação do organismo. Assim, o trabalho dessa pulsão teria como objetivo a descarga, a falta do novo, a falta de vida, ou seja, a morte. Então, o organismo não teria em sua base constitucional o desejo pela mudança, pois estaria fadado a buscar sempre estados anteriores. A tendência do organismo à mudança e ao progresso seria, portanto, uma aparência enganadora. A verdade é que o organismo estaria apenas a buscar um objetivo antigo por caminhos novos, isto é, por conta da pressão de forças perturbadoras externas, o organismo precisaria fazer um "détour" [desvio] da função conservadora para lograr a meta final de conservação de estados antigos, aí é nesse "détour" que se encontra o desenvolvimento. (Azevedo & Mello Neto, 2015, p. 70)

Para manter a vida ante essa tendência destrutora da pulsão de morte, a pulsão de vida encontra soluções, como desviar essa pulsão mortífera para o exterior na forma de destruição. Por outro lado, quando ela permanece no interior, encontra como aliado o supereu, responsável pela dureza e punição ao eu e pelo sentimento de culpa, fazendo com que o sujeito se ache merecedor de sofrimento. Quanto mais controlada a agressividade para o exterior, maior a severidade de seu supereu (Azevedo & Mello Neto, 2015; Freud, 1923/2011).

Essa concepção freudiana não teve a mesma aceitação que tiveram outros conceitos na psicanálise após a morte de Freud (Laplanche & Pontalis, 2016). Entre os autores que não concordam com a noção de pulsão de morte, encontramos Devereux.

Devereux (1958/1972a) afirma que Freud formulou o conceito de pulsão de morte a partir dos relatos dos soldados que voltaram da guerra. Tais soldados sofriam de neurose traumática de guerra e tinham sonhos com repetição compulsiva que pareciam contradizer a ideia do autor de que os sonhos são realizações de desejo.

De fato, a análise dos sonhos dos neuróticos de guerra contribuiu para que Freud elaborasse o conceito de pulsão de morte. Ao analisar esses sonhos, Freud (1920/2010e) constatou que os conteúdos traumáticos eram revividos como uma tentativa do psiquismo de dominar as energias que estavam relacionadas a eles (a pulsão de morte), para que depois fosse possível a ação do princípio do prazer.

No entanto, para além dessa questão dos sonhos dos neuróticos de guerra, Freud (1920/2010e) se aprofunda em outros aspectos, que o levaram à proposição de uma pulsão de morte, com destaque para a compulsão à repetição. Em As neuropsicoses de defesa (1894/2006), ele percebe a repetição como constituinte do funcionamento psíquico e, em Recordar, repetir e elaborar (1914/2010a), ele demostra como a repetição está presente em todo tratamento psicanalítico, manifestando-se na transferência pela atuação.

Além do fenômeno da repetição, a pulsão de morte pode se mostrar presente por meio das experiências clínicas de agressividade, sadismo, masoquismo, ódio etc. Segundo Freud (1937/2018),

se tivermos presente, em sua totalidade, o quadro composto pelos fenômenos do masoquismo imanente de tantas pessoas, da reação terapêutica negativa e do sentimento de culpa dos neuróticos, não poderemos mais sustentar a crença de que o funcionamento psíquico é governado apenas pela ânsia de prazer. Tais manifestações apontam inequivocamente para a existência de um poder, na vida psíquica, que denominamos instinto de agressão ou destruição, de acordo com seus fins, e que derivamos do original instinto de morte da matéria viva. (...) Somente a cooperação e a oposição dos dois instintos primordiais, Eros e instinto de morte, explicam a rica variedade dos fenômenos da vida; jamais um deles apenas. (Freud, 1937/2018, pp. 311-312)

Devereux (1958/1972a) não discute os argumentos que levaram Freud à proposição da pulsão de morte. A sua recusa da pulsão de morte é embasada nos argumentos de que a construção do conceito foi influenciada por modelos de pensamento não científicos e culturalmente determinados. Conforme Devereux (1958/1972a, p. 252, tradução nossa), "a sociologia do conhecimento postula que cada grupo étnico e cada período histórico acordam privilégios a certos modelos de pensamento e obrigam todas suas teorias, ou quase todas, a ajustar-se a esses modelos".

Dessa forma, complementa Devereux (1958/1972a) o que se considera verdade no campo científico tem influência do contexto em que se insere uma afirmação. Em outras palavras, deve-se considerar aspectos como o vocabulário e a estrutura de uma determinada língua, ou mesmo a estrutura da sociedade, que têm influência na produção dos conhecimentos. Além disso, os modelos de pensamento científico são instáveis e variam ao longo da história. Um modelo de pensamento correto pode ser considerado não científico e um pensamento incorreto pode ser considerado científico, a depender do contexto em que ele estiver inserido. Por exemplo, Freud escreveu em esquemas conceituais, mas, quando a psicanálise se difundiu para sociedades do mundo anglo-saxônico, muitos pesquisadores não entenderam a escrita de forma conceitual (metapsicológica) e liam em sentido literal, chegando quase a localizar o id no hipotálamo ou nas glândulas endócrinas e o eu nos lóbulos frontais (Devereux, 1958/1972a).

Seguindo essa linha de pensamento, Devereux (1958/1972a) afirma que a teoria que considera a adaptação como critério de saúde mental e normalidade e a teoria da pulsão de morte primária são teorias insustentáveis que possuem estrutura cultural. No entanto, alerta o autor, isso não quer dizer que uma teoria é necessariamente falsa apenas pelo fato de se ajustar ao modelo de pensamento existente.

Não deixo de reconhecer que elegi essas teorias como tema de discussão porque as considero insustentáveis, e, em consequência, me resulta ser mais fácil discernir o que sua estrutura tem de essencialmente cultural. Por outra parte, quero assinalar mais uma vez que o fato de que uma teoria se ajuste a um modelo cultural de pensamento não prova que seja falsa, e que somente examinarei aqui a gênese [grifo do autor] dessas teorias e não sua validez intrínseca [grifo do autor]. (Devereux, 1958/1972a, pp. 262-263, tradução nossa)

Sobre a proposição da pulsão de morte, Devereux (1958/1972a) descreve os modelos culturais de pensamento que contribuíram para que Freud formulasse o conceito de pulsão de morte: modelo físico, proporcionado pela segunda lei da termodinâmica, na qual se afirma que há uma força (instintual) em uma direção dada; modelo biológico, em que Freud recorre à biologia, propondo um instinto biológico para explicar a compulsão à repetição ao invés de modificar seu esquema da atividade psíquica; modelo mitológico, visto que retoma a velha explicação, constante nas mitologias, da luta de princípios contrários; modelo ético, tomado do Antigo Testamento, ao qual relaciona a existência de um mal inerente à natureza humana; modelo histórico cultural específico, um modelo do romantismo do século XIX, em que se idealizava o homem capaz de afirmar que a morte é produto de sua vontade; e, ainda, modelo clínico, que faz do paciente o único responsável por suas desventuras.

Devereux (1958/1972a) acrescenta diversas críticas ao último modelo. Afirma que depositar a culpa no sujeito não tem nenhuma aplicação na sessão psicanalítica; pelo contrário, pode trazer diversos efeitos negativos, como reforçar o supereu sádico do paciente. Além do mais, esse tipo de pensamento (o da ideia de pulsão de morte primária) também desconsidera a agressividade que possa vir do entorno de um indivíduo e da sua história. "É absurdo insistir constantemente no masoquismo do paciente, negando ao mesmo tempo a considerar os traumas que poderia ter sofrido em sua infância, indefeso frente às explosões dos cegos sadismos de seus pais" (Devereux, 1958/1972a, p. 275, tradução nossa).

Segundo Devereux (1958/1972a), as consequências negativas da formulação desse conceito foram além da clínica. Partindo de Freud, desenvolveu-se na literatura escritos sobre telepatia e também a psicanálise passou a ser associada ao sobrenatural. Além disso, pode-se perceber:

O abandono das teorias educacionais de inspiração psicanalítica que propunham uma tolerância pedagógica, e o retorno de métodos punitivos e a uma atitude anti-institucional ou, pior ainda, a sistemática negativa a oferecer a criança o apoio que tanto necessita a seu Eu frágil e débil. (Devereux, 1958/1972a, p. 276, tradução nossa)

O autor também relata seu choque por encontrar artigos psicanalíticos que defendiam a posição de um general que bateu em um soldado que sofria de neurose de guerra. Afirma que, nessa temática da neurose de guerra, é comum se encontrar tal atitude moralizadora que coloca a responsabilidade no indivíduo (Devereux, 1958/1972a).

Ainda conforme Devereux (1958/1972a) que, na história da psicanálise, com destaque à formulação do conceito de pulsão de morte, o pensamento cultural da época interferiu no desenvolvimento desse campo, aspecto considerado negativo pelo autor, já que a psicanálise seria uma ciência e, portanto, não deveria ser influenciada por fatores culturais. Devereux (1958/1972a) afirma que, quando a psicanálise surgiu, rompeu com os modelos de pensamento propostos pela cultura e mostrou uma orientação autenticamente científica. No entanto, quando a psicanálise se concretizou, foram atribuídos a ela significados culturais. Isto se explica, defende o autor, pelos esforços de tentar integrar a psicanálise a crenças religiosas. Desse modo, "se acentua cada vez mais a tendência a invocar considerações pseudo-psicanalíticas em apoio da ideologia específica da cultura ocidental" (Devereux, 1958/1972a, p. 278, tradução nossa).

Ademais, Devereux salienta que não importa se a religião é verdadeira ou não, se os fenômenos telepáticos são reais ou não, se a cultura ocidental é a melhor ou a pior, mas, sim,

o raciocínio circular [grifo do autor] que consiste em atribuir - com razão ou sem ela - conotações culturais a teorias psicanalíticas que se invocam depois com fins não psicanalíticos e em contextos não psicanalíticos e não científicos. Se esse processo continuar, a psicanálise se converterá em um dos mitos do mundo ocidental, no lugar de seguir sendo uma ciência. (Devereux, 1958/1972a, p. 278, tradução nossa)

Posto isso, Devereux (1958/1972a) ressalta que a psicanálise corre o risco de deixar de ser uma ciência e, por isso, deve se separar da influência cultural e não se importar com os julgamentos, visto que "a verdadeira ciência nunca é respeitável: é um perpétuo foco de rebeldia que se levanta sempre contra os slogans carentes de sentido, e questiona sem cessar as verdades científicas mais solidamente estabelecidas" (Devereux, 1958/1972a, p. 279, tradução nossa).

Diante disso, é possível compreender que, diferentemente da concepção freudiana, Devereux (1958/1972a), além de discordar da concepção de pulsão de morte, alega que manter esse conceito na psicanálise acarreta repercussões negativas e faz com que ela deixe de ser científica.

Verificamos, então, que Devereux (1958/1972a) não discute os argumentos que levaram Freud à proposição da pulsão de morte, o que ele critica são os modelos culturais que levaram Freud a propor o conceito de pulsão de morte como uma pulsão primária, inerente ao sujeito e independente de suas vivências. Essa crítica não se sustenta, pois, como diz o autor, a influência de modelos culturais não é critério para invalidar uma teoria, visto que, de alguma forma, toda ciência sofre a influência de algum modelo de pensamento cultural. Por outro lado, Devereux critica o uso feito pelos psicanalistas do conceito de pulsão de morte para responsabilizar os sujeitos, desconsiderando suas histórias de vida e o contexto em que eles estão inseridos, a qual não deve ser menosprezada. A crítica ao uso do conceito de pulsão de morte feito pelos psicanalistas não se restringe ao uso desse conceito e se estende às formulações freudianas de uma forma geral. Segundo Devereux (1967/2012), há uma tendência a empregar os conceitos psicanalíticos como realidades, como daqueles que buscam localizar o eu no prosencéfalo, apesar de Freud chamar o sistema conceitual da psicanálise de "nossa mitologia". Além disso, o autor também critica o apego aos conceitos freudianos e o abandono de sua epistemologia, que, para ele, significa renunciar ao essencial da psicanálise.

Para Devereux (1967/2012), o essencial da psicanálise é sua epistemologia e metodologia, que levou à descoberta do inconsciente. Sobre o emprego dos conceitos psicanalíticos, Devereux diz:

Eu mesmo utilizo sistematicamente os instrumentos conceituais da psicanálise, mas eu os trato como instrumentos e não como deuses domésticos. Eu os utilizo porque são os melhores instrumentos que conheço e porque me são uteis. (...) Os instrumentos devem se defender por eles mesmos; eles devem merecer seu direito à existência, dia após dia, e devemos colocá-los de lado se eles cessam de ser os melhores que dispomos. Contrariamente, o cientista deve dar uma atenção especial à epistemologia, para seu próprio bem e sob o risco de deixar de ser cientista e se tornar um simples técnico ou, pior ainda, um conservador de antiguidades conceituais. (p. 403)

 

Considerações Finais

A partir de uma discussão introdutória de conceitos psicanalíticos elaborados por Freud e discutidos por Devereux, tentamos identificar algumas aproximações e distanciamentos entre os dois autores. No que diz respeito às aproximações, podemos verificar que Devereux é um psicanalista freudiano ao concordar com as proposições maiores referentes à universalidade do psiquismo, sua estruturação e funcionamento, bem como à universalidade do complexo de Édipo. Devereux amplia as formulações freudianas sobre esse complexo ao refletir sobre as pulsões incestuosas, agressivas e canibalistas dos pais em relação aos filhos. No entanto o autor discorda da existência da pulsão de morte e da universalidade do período de latência, bem como parece querer marcar uma diferença constitutiva entre o que é da ordem da interdição arbitrária (supereu) e o que é da ordem da função de modelo (ideal do eu).

As discordâncias de Devereux em relação às formulações teóricas de Freud estão relacionadas com a forma como o autor concebe a psicanálise, como sendo primeiramente uma epistemologia e metodologia. Os conceitos são como instrumentos que podem ou não ser abandonados segundo sua utilidade, sendo que o autor não questiona as proposições freudianas consideradas por ele como essenciais, como as referentes à universalidade do psiquismo, sua estruturação e funcionamento.

No que diz respeito às inovações de Devereux em relação à teoria freudiana, elas não são significativas quando pensamos em termos de novas formulações teóricas, e sim ao trazer o aporte da cultura para a psicanálise. Vemos isto na ideia de um inconsciente étnico e das variações relativas à intensidade e ao material reprimido em diferentes culturas - que implicam na não universalidade do período de latência, pois a intensidade da repressão varia de acordo com a cultura - e nas diferentes formas de expressão cultural do complexo de Édipo.

A introdução de aspectos culturais na teoria e prática clínica levou à origem de uma prática diferenciada, a clínica transcultural, e à criação de uma nova disciplina, a etnopsicanálise. Essas inovações não cabem no escopo deste trabalho, mas mostram caminhos abertos por Devereux a partir da obra de Freud.

 

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Endereço para correspondência:
Wanessa Wonsoski
E-mail: wanessauem@gmail.com

Eliane Domingues
E-mail: edomingues@uem.br

Recebido em: 20/05/2020
Revisado em: 29/12/2020
Aceito em: 11/01/2021
Publicado online: 15/09/2021

 

 

1 Alfred Loius Kroeber (1876-1960) fez parte da primeira geração de antropólogos americanos formados por Franz Boas (Laplantine, 2012).
2 Convém esclarecer que Devereux diferencia a cultura no sentido particular (com c minúsculo), a cultura de um grupo ou sociedade específica; da Cultura (com C maiúsculo) em si enquanto fenômeno universal (Araújo, 2016).

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