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versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.2 Fortaleza mayo/ago. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i2.e11411 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Figurações da Relação Mãe-bebê nas Esculturas de Felícia Leirner: Um Olhar Winnicottiano

 

Figurations of the Mother-Baby Relationship in Felícia Leirner's Sculptures: A Winnicottian Look

 

Figuraciones de la Relación Madre-Bebé en las Esculturas de Felícia Leirner: Una Mirada Winnicottiana

 

Figurations de la Relation Mère-Enfant dans les Sculptures de Felícia Leirner : Un Regard Winnicottien

 

 

Carolina de SouzaI; Manoel Antônio dos SantosII

IPsicóloga. Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP)
IIProfessor Titular do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS-USP/CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos estágios iniciais do desenvolvimento emocional, a mãe é capaz de alcançar um nível de sensibilidade tão aguçada que pode se adaptar às necessidades primárias do bebê. Esse estado materno especial muitas vezes serve de inspiração para a produção artística, quando a experiência estética do artista é posta a serviço de sua potência criativa que se consubstancia no ato criador. Partindo dessas premissas, o objetivo deste estudo é ilustrar as singularidades da relação mãe-bebê nos primórdios do desenvolvimento emocional por meio da leitura da obra de arte pelo vértice da teoria psicanalítica de Winnicott, considerando o lugar que a arte pode ter no viver humano. Foram escolhidas cinco esculturas da artista plástica Felícia Leirner para compor o corpus de análise. Essas obras de arte metaforizam o percurso de desenvolvimento da relação estabelecida entre mãe, pai e bebê na esteira do fluxo temporal que caracteriza os primeiros meses do desenvolvimento. Também identificamos nos objetos artísticos a relevância do ambiente na etapa inicial, como uma plataforma do crescimento emocional saudável ao longo da vida. Em vez de utilizar a compreensão psicanalítica para exegese da obra artística, propomos o movimento inverso, no qual é a obra que contribui para iluminar o pensamento psicanalítico, destacando nuanças que podem enriquecer a compreensão de um dos temas fundantes da teoria winnicottiana, o desenvolvimento emocional infantil, sugerindo novas possibilidades de aproximação entre a psicanálise e a arte.

Palavras-chave: relação mãe-bebê; maternidade; arte; criatividade; Winnicott.


ABSTRACT

In the early stages of emotional development, the mother can reach such a heightened level of sensitivity that she can adapt to the baby's primary needs. This special maternal state often serves as an inspiration for artistic production when the artist's aesthetic experience is put at the service of his creative power, which is embodied in the creative act. Based on these premises, this study aims to illustrate the singularities of the mother-infant relationship in the beginnings of emotional development through the reading of the work of art through the vertex of Winnicott's psychoanalytic theory, considering the place that art can have in human life. Five sculptures by artist Felícia Leirner compose the corpus of analysis. These works of art metaphorize the development path of the relationship between mother, father, and baby in the wake of the temporal flow that characterizes the first months of development. We also identified in artistic objects the relevance of the environment in the initial stage as a platform for healthy emotional growth throughout life. Instead of using psychoanalytic understanding for the exegesis of artistic work, we propose the inverse movement, in which it is the work that contributes to illuminating psychoanalytic thinking, highlighting nuances that can enrich the understanding of one of the founding themes of Winnicottian theory, child emotional development, suggesting new possibilities of approximation between psychoanalysis and art.

Keywords: mother-infant relationship; maternity; art; creativity; Winnicott.


RESUMEN

En las etapas iniciales del desarrollo emocional, la madre es capaz de alcanzar un nivel de sensibilidad tan aguzada que puede se adaptar a las necesidades primarias del bebé. Este estado materno especial sirve, muchas veces, de inspiración para la producción artística, cuando la experiencia estética del artista es propuesta a servicio de su potencia creativa que se funden en el acto creador. A partir de estas premisas, el objetivo de este trabajo es ilustrar las singularidades de la relación madre-bebé en los primordios del desarrollo emocional por medio de la lectura de la obra de arte por el vértice de la teoría psicoanalítica de Winnicott, considerando el lugar que puede tener el arte en el vivir humano. Fueron elegidas cinco esculturas de la artista plástica Felícia Leirner para componer el corpus de análisis. Estas obras de arte metaforizan el trayecto de desarrollo de la relación establecida entre madre, padre y bebé en la cinta del flujo temporal que caracteriza los primeros meses del desarrollo. También identificamos en los objetos artísticos la importancia del ambiente en la etapa inicial, como una plataforma del crecimiento emocional saludable a lo largo de la vida. En lugar de utilizar la comprensión psicoanalítica para exégesis de la obra artística, propusimos el movimiento inverso, a lo cual es la obra que contribuye para iluminar el pensamiento psicoanalítico, enfocando matices que pueden enriquecer la comprensión de uno de los temas fundadores de la teoría winnicottiana, el desarrollo emocional infantil, sugiriendo nuevas posibilidades de acercamiento entre psicoanálisis y el arte.

Palabras clave: relación madre-bebé; maternidad; arte; creatividad; Winnicott.



RÉSUMÉ

 

Dans les premiers stades du développement émotionnel, la mère est capable d'atteindre un niveau de sensibilité si élevé qu'elle peut s'adapter aux besoins primaires du bébé. Cet état maternel particulier sert souvent d'inspiration à la production artistique, lorsque l'expérience esthétique de l'artiste est mise au service de sa puissance créatrice, qui s'incarne dans l'acte créateur. Sur la base de ces prémisses, le but de cette étude est d'illustrer les singularités de la relation mère-enfant dans les débuts du développement émotionnel en lisant l'œuvre par le sommet de la théorie psychanalytique de Winnicott, en considérant la place que l'art peut avoir dans la vie humaine. Cinq sculptures de l'artiste Felícia Leirner ont été choisies pour composer le corpus d'analyse. Ces œuvres d'art métaphorisent le cours du développement de la relation qui s'établit entre la mère, le père et le bébé dans le flux temporel qui caractérise les premiers mois de développement. Nous avons également identifié dans les objets artistiques la pertinence de l'environnement au stade initial, en tant que plate-forme pour une croissance émotionnelle saine tout au long de la vie. Au lieu d'utiliser la compréhension psychanalytique pour l'exégèse l'oeuvre artistique, nous proposons le mouvement inverse, dans lequel c'est l'œuvre qui contribue à éclairer la pensée psychanalytique. Cela est fait à partir des évidences des nuances qui peuvent enrichir la compréhension de l'un des thèmes fondateurs de la théorie winnicottienne: le développement émotionnel de l'enfant. Au même temps qu'on suggère de nouvelles possibilités de rapprochement entre la psychanalyse et l'art.

 Mots-clés : relation mère-enfant ; maternité ; de l'art ; créativité ; Winnicot.


 

 

Criatividade, Arte e Psicanálise

Praticamente desde suas origens, a psicanálise vem sendo aplicada fora do contexto clínico, como no diálogo que estabelece com as obras de arte. Ao investigar os meandros da subjetividade e os contornos da representação de si, a psicanálise mostra ser uma ferramenta útil para dialogar com a produção artística. Dada a sua prerrogativa de investigar o sujeito e as singularidades de suas experiências individuais inseridas em um espaço e tempo específicos (Marsillac, Bloss, & Mattiazzi, 2019), a teoria psicanalítica fornece instrumentos e conceitos potentes para uma decomposição da obra de arte em termos analíticos.

No longo percurso de sua obra, Freud explorou a relação entre a arte e o inconsciente por diversas vezes, seja por meio da incorporação de referências mitológicas e literárias como metáforas em suas construções teóricas, seja pelo postulado fundante do complexo de Édipo, seja pela abordagem de uma narrativa de ficção - a novela O delírio e os sonhos na Gradiva de W. Jensen (Freud, 1907/2015a), seja ainda pelo célebre estudo dedicado à pintura de Leonardo da Vinci (Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci) (Freud, 1910/2013), para mencionar apenas alguns dos múltiplos interesses que evidenciam a diversidade de interesses do pai da psicanálise. Em seu texto O escritor e a fantasia, Freud (1908/2015b) alinhavou alguns dos pressupostos que permitem reconhecer o quanto o diálogo da psicanálise com a escrita literária pode ser profícuo. Freud defende a posição de que o trabalho do artista consiste em transpor seus desejos para a obra que produz com o uso de técnicas que auxiliam o espectador a abrandar suas defesas e superar sua repulsa inicial pelo tema abordado, de modo que possa se identificar com o mesmo.

Abella (2016a) argumenta que, embora o ato de desenvolver nosso pensamento estimulado pela obra de arte possa nos proporcionar um sentimento de intimidade com uma "verdade mais viva" com a qual nos relacionamos, devemos reconhecer que certas aplicações da psicanálise à arte nos informam mais sobre o comentarista, ou sobre suas teorias e fantasias, do que sobre a própria obra analisada. Considerar a complexidade dos conceitos psicanalíticos e os intrincados meandros da experiência estética servem de advertência contra a tentativa de se fazer uma tradução direta dos conteúdos artísticos em termos psicanalíticos. O importante, de acordo com Williams (2020), é encontrar uma organização estética, essa costura invisível que delineia sentidos que emergem na relação que cada intérprete estabelece com seu objeto de análise. A maneira como os elementos se ligam em uma obra de arte reflete o modo como os elementos psíquicos são relacionados na mente de quem aprecia a criação artística.

Para Winnicott (1971/1975c), o indivíduo só descobre o seu self quando é capaz de ser criativo, sendo que a criatividade é considerada um aspecto da vida e do viver total. O impulso criativo é visto como uma coisa em si, algo que é necessário para os artistas assim como para qualquer outra pessoa, porém é possível que um indivíduo perca esse élan com o viver criativo caso ele não seja correspondido pela realidade externa e sinta que sua vida não é real ou significativa. Muitas pessoas experimentam o viver criativo e acabam reconhecendo, em algum momento, que vivem de uma maneira não criativa. Viver criativamente, ou não, vai depender da qualidade e da quantidade de provisões ambientais que o bebê teve à sua disposição nas fases iniciais da vida. A criança só consegue recriar o mundo se este for se apresentando gradualmente, em doses calibradas, em seus momentos de atividade criativa (Winnicott, 1971/1975a, 1965/2011b)

Para o psicanalista, um vestido, um jardim, uma casa, um penteado, uma sinfonia, uma escultura ou uma refeição preparada em casa podem ser considerados como emanações de criações. A criatividade em si possui uma proposição universal e se relaciona com o movimento de estar e permanecer vivo, com a qualidade viva de alguns animais, entre eles, os seres humanos. A criatividade refere-se à atuação transformadora do indivíduo face à realidade externa e à sua capacidade de se tornar uma pessoa ativa e de fazer parte da vida em comunidade. Dessa forma, pode-se dizer que tudo o que acontece é criativo, exceto se o indivíduo estiver doente ou sofrer algum prejuízo em seu processo criativo (Winnicott, 1971/1975a).

Winnicott (1956/1988c) localiza as bases fundantes da criatividade nos primórdios do desenvolvimento humano. Não é sem razão que uma das imagens mais difundidas na arte ocidental é a da mãe com seu filho, em suas inúmeras figurações, sendo a mais icônica a imagem de Maria e Jesus. É também a personificação de uma das principais e enigmáticas relações que compõem o desenvolvimento humano e, por conseguinte, tem sido amplamente estudada por psicanalistas. A representação da figura materna com seu filho na arte combina estilo e convenção com a visão psicológica e experiência criativa de um determinado artista (Adams, 1993). Por meio dessa via - por exemplo, o cuidado materno - o artista pode se conectar com o mistério da criação. Ser mãe também é criar, procriar, recriar, dar à luz uma vida nova, que tem o condão de tornar o mundo mais rico e interessante.

 

A Relação Mãe-Bebê na Concepção Winnicottiana

Um dos maiores desafios do recém-nascido é se defender da descontinuidade provocada pelas diversas intrusões a que se vê submetido quando deixa o útero materno. Tipicamente, de acordo com Winnicott (1949/(1988b, pp. 415-416), "a situação do nascimento propicia uma perturbação excessiva da continuidade devido a reações a invasões" e a atividade mental que ocorre nesse momento está relacionada com a memorização exata do processo de nascimento. Assim, nesse processo inaugural, o bebê vivencia experiências especiais que têm um caráter fundante das bases do psiquismo (Santos, 1999). Nesse momento vigora outro tipo de funcionamento mental, que se relaciona com a palavra "memorizar".

Inicialmente, o ambiente que é suficientemente bom para o bebê é um ambiente físico, com o bebê no útero ou no colo de sua mãe. Winnicott (1949/(1988b) sugere que é somente com o passar do tempo que esse ambiente vai desenvolver novas características, como os aspectos emocional, psicológico ou social das experiências. A partir disso, desenvolve-se a mãe boa, comum, que é capaz de se adaptar ativamente às necessidades de seu bebê.

Dessa forma, Winnicott (1956/1988c) postula que existe uma identificação que a mãe estabelece com o seu bebê, tanto em nível consciente como em nível profundamente inconsciente. O bebê depende completamente da mãe no início de sua vida e, nesse momento, a relação que estabelece com ela não envolve identificação, pois é um estado muito complexo para se atingir nesse estágio inicial da infância (Winnicott, 1956/1988c).

Nessa fase introdutória da vida do bebê não é possível compreender o funcionamento materno sem levar em consideração que ela é capaz de alcançar um nível de sensibilidade tão sofisticado às demandas do bebê, que é como se ela estivesse temporariamente "doente". Esse estado psíquico materno especial, que se assemelha a uma "doença normal", propicia que a mãe desenvolva sua capacidade de se adaptar de forma delicada e sensível às necessidades primárias do bebê. Tão importante quanto esse fenômeno inaugural da vida psíquica do bebê é a mãe também ter a capacidade de se recuperar dessa "doença" depois alguns meses do nascimento (Winnicott, 1956/1988c).

A mãe fornece ao bebê um ambiente (setting) organizado e relativamente previsível, que permite ao pequeno mostrar sua constituição de forma espontânea, revelar suas tendências de desenvolvimento livre de embaraços e constrangimentos, experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações esperadas para esse estágio inicial da vida (Winnicott, 1956/1988c).

A mãe-ambiente, como define Winnicott, pode se sentir como se estivesse no lugar do bebê e, assim, responder às suas necessidades, quando desenvolve a sensibilidade especial como a que foi descrita anteriormente. Do ponto de vista da criança, primeiramente, essas necessidades são corporais e, com o passar do tempo, se tudo correr bem, tornam-se necessidades do ego (Winnicott, 1956/1988c).

Assim, Winnicott (1971/1975b) postula que a "mãe suficientemente boa" (que não é necessariamente a mãe biológica) é aquela que consegue manter uma adaptação ativa às necessidades do bebê e também uma capacidade de reduzir gradativamente esse ajustamento, conforme o bebê vai desenvolvendo sua capacidade de julgar o valor do fracasso da adaptação e de tolerar as consequências da frustração. Nesse momento, observa-se que a mãe (ou parte dela) está em um permanente oscilar entre ser o que o bebê pode criar/encontrar e, alternadamente, ser ela própria, esperando ser encontrada ali onde o bebê a criou. Essa sintonia fina é a chave secreta do ajustamento, que permite ao bebê assimilar, de acordo com sua progressiva capacidade, os enigmas diretamente endereçados ao seu ser.

No começo, a mãe propicia uma adaptação quase completa, dando ao bebê a oportunidade para viver a ilusão de que o seio faz parte dele (Winnicott, 1971/1975b). É como se o seio estivesse sob o controle mágico do bebê, sendo criado e recriado por ele diversas vezes, de acordo com sua capacidade de amar ou mesmo pela necessidade de manter a posse dessa fonte de prazer. Esse é o embrião do gesto criativo. Winnicott (1971/1975b) postula que se trata de um fenômeno subjetivo, que ele denomina seio da mãe. Ela intuitivamente coloca o seio real no momento e no local exato onde o bebê está pronto para criá-lo/encontrá-lo. Assim, o seio estará sempre ali, onde o bebê poderá recriá-lo/reencontrá-lo. A mãe, quando consegue ser o que se espera dela, isto é, ser suficientemente boa, adapta-se às necessidades do bebê, dando a ele a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua própria capacidade de criar. Isso fortalece a criatividade primária do bebê. O que ocorre pode ser descrito da seguinte maneira: há uma área de sobreposição entre o que a mãe pode prover e o que a criança poderia conceber (Winnicott, 1971/1975b). Um caso de coincidência feliz, que favorece a afirmação do gesto criativo da criança.

O bebê consegue se dar conta da existência do seio apenas na medida em que um seio poderia ser criado exatamente naquele local e naquele momento. Não existe de fato um intercâmbio entre a mãe e o bebê. Em termos psicológicos, a mãe dá leite a um bebê que faz parte dela mesma e o bebê recebe o alimento de um seio que também é parte dele (Winnicott, 1971/1975b). Por conseguinte, não existe algo como uma mãe e um bebê, como realidades distintas. Na concepção winnicottiana não há dualidade, mas intersecção. Há continuidade e fluidez na unidade formada por um-bebê-no-colo-de-sua-mãe.

Essa dependência, absoluta no início, do bebê em relação à mãe é essencial nos estados mais primitivos, nos quais ele ainda não se certificou de que pode existir algo que não faz parte dele. A criança, nesse momento, ainda está imersa em um tipo narcísico de relação de objeto (Winnicott, 1971/1975b). Por outro lado, é importante que o bebê também possa exercitar sua curiosidade e ir se integrando gradualmente.

Tal integração é auxiliada por dois conjuntos de experiências: a técnica de cuidado infantil, na qual o bebê tem sua temperatura corporal mantida, é protegido dos excessos de frio ou do calor, é banhado, higienizado, vestido, alimentado, nomeado e embalado e, também, as experiências pulsionais intensas que tendem a cerzir/"unir" a personalidade a partir do interior. Além dessa costura interna, também é importante lembrar que a realidade psíquica interna do bebê pode ser localizada, de certa forma, na mente, no ventre, na cabeça ou em qualquer outra parte dentro dos limites de sua personalidade, enquanto que a realidade externa encontra-se fora desses limites (Winnicott, 1971/1975b, 1945/1988a).

Aos poucos, as pequenas partes da técnica de cuidado infantil, como os rostos que são vistos, os sons ouvidos, os cheiros sentidos e os objetos tocados reúnem-se em um único ser total, que é chamado de mãe (Winnicott, 1945/1988a). De acordo com Winnicott (1956/1988c, p. 496), em algum momento "passa a existir uma relação de ego entre mãe e bebê, da qual a mãe se recupera e a partir da qual o bebê pode eventualmente construir a ideia de uma pessoa na mãe".

Dessa forma, o fornecimento de provisão ambiental suficientemente boa permite que o bebê, em sua fase inicial, comece a existir, a construir um ego pessoal, a ter suas próprias experiências, a controlar suas pulsões e a enfrentar as dificuldades que fazem parte da vida. O bebê pode, então, sentir tudo isto como algo real e se torna capaz de ter um self (Winnicott, 1956/1988c).

A mãe suficientemente boa começa com uma adaptação não intrusiva que atende quase que completamente às necessidades de seu bebê, porém, com o passar do tempo e aos poucos, ela vai se adaptando cada vez menos completamente, ficando menos presa a esse script, de acordo com o aumento da capacidade do bebê de lidar com o fracasso materno. Conforme Winnicott pontua, "não existe saúde para o ser humano que não tenha sido iniciado suficientemente bem pela mãe" (Winnicott, 1971/1975b, p. 26). É nesse momento que o bebê passa para o estágio de dependência relativa, no qual pode se perceber enquanto ser dependente e reconhecer que necessita da mãe. Agora, o crescimento do bebê ocorre também no intercâmbio frequente entre a realidade externa e interna, sendo que ambas se enriquecem mutuamente. A criança se torna capaz de ter algum controle sobre os acontecimentos externos, assim como sobre o seu funcionamento interior (Winnicott, 1963/2007).

A integração do bebê é tão importante quanto o desenvolvimento do sentimento de que ele se encontra dentro do próprio corpo. De novo, são as repetidas e tranquilas experiências de cuidado corporal, articuladas com a experiência pulsional, que vão gradualmente sedimentar um continente e construir a chamada personalização satisfatória. A partir do momento no qual um ser humano percebe que é uma pessoa que se relaciona com outras pessoas, já avançou uma longa etapa da jornada de seu desenvolvimento primário (Winnicott, 1945/1988a). Quando uma criança se torna capaz de encarar o mundo e suas complexidades, ela começa a perceber também o que já estava dentro de seu mundo. A criança gradualmente vai participando de mais círculos sociais e passa a se identificar com a sociedade, entendendo que esta é uma extensão de seu próprio mundo pessoal. Pode-se dizer que nesse momento a criança está ingressando no estágio rumo à independência, podendo então viver uma existência pessoal que é satisfatória mesmo que entrelaçada com as questões da sociedade (Winnicott, 1963/2007).

Na concepção de desenvolvimento emocional elaborada por Winnicott (1957/1982), o pai é destacado como a pessoa que assume uma função especial ao apoiar a mãe para que ela possa exercer suas funções em um ambiente protegido e estável. Também cabe ao pai sustentar a autoridade da mãe e validar a lei e a ordem que ela institui na vida do filho (Veludo & Viana, 2012). A presença do pai na vida da criança, além de dar consistência à função materna, enriquece enormemente seu mundo em construção, especialmente quando há complementaridade nas tarefas dos pais. Para a nutrição emocional do filho, é valioso contar com a experiência de conviver diuturnamente e conhecer os pais.

Quando o casal parental aceita que cuidar da existência da criança é de sua inteira responsabilidade, consegue oferecer a ela um lar suficientemente bom. Cabe destacar que, ao tratar das questões relacionadas às figuras de mãe e de pai no curso do desenvolvimento infantil, Winnicott (1957/1982) está se referindo às funções materna e paterna, e não à concretude do gênero, nem necessariamente aos progenitores da criança. O exercício diário dos cuidados parentais pode, eventualmente, ficar sob a responsabilidade de um homem e de uma mulher que encarnam os papéis socialmente reconhecidos de pai e mãe, como também podemos ter diversas outras configurações familiares: casais homoparentais, família matrifocal ou patrifocal, avós, irmãos adultos, relação de apadrinhamento social, entre outras possibilidades de arranjos distintos. A natureza da relação de parentesco também pode ser considerada secundária: pais biológicos ou adotivos, famílias formadas por laços consanguíneos ou socioafetivos (Rosa, Melo, Boris, & Santos, 2016; Tombolato, Maia, & Santos, 2019). O que importa não é quem desempenha as funções parentais, mas como e com que grau de satisfação pessoal, ou seja, o quão confortável o adulto se sente no exercício dessas funções.

Cada indivíduo é responsável pelo caminho que o leva do estado de união primária com a mãe ao estado de poder ser uma pessoa separada, relacionada à mãe, e depois ao pai e à mãe enquanto casal. A partir disso, a criança pode conceber gradativamente o que chamamos de família, que tem nos laços estabelecidos com os pais uma de suas características estruturais. É importante que a criança tenha familiares a quem ela possa amar ou odiar (Winnicott, 1965/2011a). Irmãos, avós, tios, primos e demais parentes também desempenham papel estruturante no desenvolvimento da criança, assim como os vínculos estabelecidos com seus ancestrais, à medida que lhe conferem um lugar e uma posição relacional na cadeia intergeracional.

O percurso de amadurecimento da criança, desde seus estágios originais, aparece metaforizado e reconstruído de forma recorrente nas produções artísticas. Para Winnicott, o fundamento do processo de simbolização está na expansão da área dos fenômenos transicionais e deriva da atividade do brincar e da criatividade a ela associada, que propicia a entrada do indivíduo na vida cultural (Fulgencio, 2011). A criatividade permite ao artista articular uma linguagem própria que lhe possibilita aceder à dimensão inconsciente. Winnicott (1948/2017) argumenta que um artista, músico, escultor, que entra em contato pessoal com um grupo de pacientes acamados ou imobilizados, permite que cada um, à sua maneira, crie uma ponte entre o inconsciente e a vida consciente comum. É uma ponte que trafega nos dois sentidos. O principal desse encontro é que o paciente, ao descobrir gradualmente seus impulsos criativos e forças integradoras positivas, é capaz de olhar para o que está dentro de si para ver o que quer que esteja lá (o caos, as tensões, o medo, o terror e a morte, assim como a beleza, a alegria de descobrir-se vivo e a vivacidade inata).

Partindo dessas premissas, o objetivo deste estudo é ilustrar as singularidades da relação mãe-bebê nos primórdios do desenvolvimento emocional por meio da leitura da obra de arte pelo vértice da teoria psicanalítica de Winnicott, considerando o lugar que a arte pode ter no viver humano.

 

Método

Trata-se de um estudo teórico, qualitativo e de análise documental. De acordo com Sá-Silva, Almeida, e Guindani (2009, p. 5), "a pesquisa documental é um procedimento que se utiliza de métodos e técnicas para a apreensão, compreensão e análise de documentos dos mais variados tipos". Por documento entende-se toda fonte de informações significativas que podem contribuir para elucidar determinado fenômeno. O mais comum é pensarmos em documentos impressos, porém podemos pensar também em documento no sentido lato, como traços e rastros deixados pelo ser humano durante sua passagem pela vida.

Laville e Dionne (1999) explicam que as técnicas e instrumentos de coleta de informações são essenciais para os pesquisadores das ciências humanas, sendo que, muitas vezes, as fontes primárias dos dados podem ser documentos de diversos tipos. O termo documento, como comentado anteriormente, diz respeito a toda fonte de informações e registro de experiências. Assim, documentos escritos, sonoros e visuais, materiais e imateriais, fornecem informações que podem ser úteis para o pesquisador interessado em elucidar seu objeto de estudo.

Dentre as várias fontes documentais, o pesquisador tem à sua disposição fotografias, pinturas, discos, fitas magnéticas, vídeos, filmes, desenhos, livros, diários, ou seja, tudo aquilo que, com suporte audiovisual, pode difundir informações sobre o ser humano. Tais documentos podem ser encontrados em arquivos de emissoras de televisão, rádio, estúdios de cinema, museus, bibliotecas ou repositórios virtuais (Laville & Dionne, 1999).

O formato do documento não é a questão mais importante, pois qualquer registro dá testemunho e aporta algum tipo de informação. Os dados já estão lá e o pesquisador deve fazer sua triagem, selecionar os registros de interesse e analisá-los criticamente. A coleta de informações consiste em reunir os documentos, descrever ou transcrever seu conteúdo, selecionar as informações pertinentes, analisar o material acumulado, interpretar os achados e tecer conclusões. A pesquisa se insere em um domínio no qual a imaginação desempenha um papel crucial, no sentido de permitir abordar melhor a realidade e não de inventá-la; de construir formas eficazes e originais de abordar as pessoas, suas atitudes, características e comportamentos (Laville & Dionne, 1999).

Para organizar o corpus do estudo foram escolhidas cinco esculturas da artista plástica Felícia Leirner (Figura 1), como materialidades a serem tomadas em consideração para ilustrar a singularidade da relação mãe-bebê nos primórdios do desenvolvimento emocional. Essas obras fazem parte do acervo e encontram-se expostas a céu aberto no jardim do museu da artista. Como os títulos sugerem, os temas das esculturas personificam o momento do nascimento, a relação da mãe com seu filho, a maternidade e as relações familiares.

É importante lembrar que, ao se fazer uma leitura psicanalítica de uma obra de arte, seja um texto, seja um produto das artes plásticas, o psicanalista pode dispor apenas de suas próprias impressões e associações despertadas ao se colocar em contato com as produções. As interpretações elaboradas são registros particulares dos efeitos que as obras produzem na subjetividade do analista. A psicanálise da arte não está limitada a uma verificação do método ou dos conceitos utilizados, o que faz com que ela vá além dos limites empobrecidos de uma psicanálise aplicada (Frayze-Pereira, 2006a).

Segundo Frayze-Pereira (2006b), esse modo de olhar para a arte a partir da psicanálise aproxima-se mais de uma psicanálise implicada, pois é uma visada que deriva do campo das artes e não um modelo que busca encaixar a obra de arte às suas exigências teóricas. A ideia é que a leitura da obra de arte seja problematizadora e multiplicadora de pontos de vista, sem se deixar reduzir a uma mera "aplicação" de conceitos psicanalíticos.

[...] Considerando que é próprio do artista pôr no mundo um ser que jamais foi visto, nunca foi ouvido ou tocado antes dessa instauração, pensar esteticamente supõe fazer contato com esse campo de passagem entre o não-ser artístico e a forma perceptível, assim como pensar psicanaliticamente implica transitar entre o não-dito e o dizível. A Estética pode, assim, ser entendida como o trabalho de dar a compreender a experiência estética cujo campo privilegiado (isto é, não exclusivo) é formado pelas artes. Fundamental, desde a dinâmica da presença e da ausência do sensível, a experiência estética é vizinha da experiência psicanalítica: uma silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer. (Frayze-Pereira, 2006b, p.24)

Neste estudo, a escolha recaiu em um conjunto de obras esculpidas por Felícia Leirner pelo fato de terem causado um poderoso efeito de experiência estética na autora, quando visitou o museu da artista durante uma viagem para Campos do Jordão, cidade serrana do interior do estado de São Paulo. Na época, a pesquisadora estava concluindo o módulo sobre Winnicott de um curso de especialização em Psicanálise. Ao se deparar com as esculturas em tamanho natural, alguns dos principais fundamentos da teoria do psicanalista inglês pareceram ficar mais claros e acessíveis, ricamente ilustrados naquelas obras. As esculturas pareciam remeter aos diversos estágios do desenvolvimento infantil inicial, desde o nascimento, a relação mãe-bebê, a diferenciação e a função paterna. Além disso, a apreciação dos objetos escultóricos permitiu destacar de forma pertinente a importância que o desenvolvimento infantil tem na conformação da matriz teórica winnicottiana.

As esculturas escolhidas têm por títulos: Nascimento - 77 (Figura 2), Maternidade - 10 (Figura 3), Maternidade - 85 (Figura 4), Mãe e Filha - 7 (Figura 5) e Casal com Filhos - 37 (Figura 6). As fotos dessas obras artísticas foram retiradas do site do museu e estão em domínio público (https://www.museufelicialeirner.org.br/acervo/esculturas/).

 

Resultados e Discussão

Observando a parte superior da escultura Nascimento (77) (Figura 2), o círculo mais externo remete ao útero materno, invólucro protetor da forma mais interna, que metaforiza o bebê, que parece estar curvado em uma posição fetal, alojado na cavidade uterina. Nesse estágio, o útero é considerado um bom meio ambiente físico. A parte mais interna também poderia significar a realidade psíquica interior, a qual pode estar localizada no ventre da mãe (representado mais uma vez pelo círculo externo). Pode-se pensar que o círculo do meio sugere uma espécie de forro, que tece o "contorno" da personalidade do bebê.

O círculo inferior da escultura pode significar o processo de memorização exata que ocorre durante o nascimento, pois apresenta semelhanças com o círculo superior (essa semelhança representaria a memória exata). Além disso, as duas partes da escultura estão conectadas e parecem relativamente espelhadas, o que remete ao significado do nascimento, como se cada um dos círculos (ou o bebê) estivessem ocupando lugares diferentes na totalidade da obra, talvez saindo de um lugar conhecido para um domicílio novo. A diferença nos círculos mais internos poderia significar também a perturbação da continuidade que ocorre na dinâmica do nascimento. A memória desse momento pode ser exata, mas existem diferenças entre o período em que o bebê estava no útero e o momento em que ele nasce, transitando de um meio aquático (banhado em líquido amniótico na vida intrauterina) para o mundo aéreo.

Os dois círculos internos apresentam semelhanças, pois delineiam o mesmo bebê, porém o círculo interno da parte inferior parece estar menos encolhido e mais aberto, o que poderia ilustrar uma criança que, ao nascer, vai se abrindo gradativamente para o mundo. Assim, os círculos mais internos podem representar o self do bebê em momentos diferentes da vida: dentro do útero e depois de seu nascimento (Winnicott, 1971/1975b, 1945/1988a).

Já na obra Maternidade (10) (Figura 3) podemos observar que os filhos (as figuras humanas menores) fazem parte do corpo da mãe (a figura humana maior) e estão representados como criaturas que saem dela, como se mãe e criança ocupassem o mesmo espaço e mal se diferenciassem no início. A união dos elementos da obra de arte permite considerar que as "crianças" representadas estão no início de seu desenvolvimento emocional. Também parece que o filho "sente" que o seio da mãe faz parte dele, pois uma das esculturas está com a mão unida na região do busto da mãe. Esse seio, se pode pensar, está exatamente aonde a mão da escultura pode alcançar, como se magicamente tivesse sido colocado ali e como se o filho o tivesse criado para ser encontrado, pois não é possível distinguir claramente o que é o seio da mãe e o que é o braço ou a mão da criança. Observando como os elementos da escultura estão fundidos, pensa-se que a mãe amamenta um filho que faz parte dela mesma, enquanto que a criança cria um seio que também faz parte dela (Winnicott, 1971/1975b, 1956/1988c).

Por conta de todas essas características, entendemos que a escultura pode indicar a fusão mãe-bebê, bem como um tipo narcísico de relação de objeto, e o momento em que o bebê não percebe ainda que existe algo que não faz parte dele, o que poderia remeter ao estágio de dependência absoluta da mãe, uma experiência de máxima sintonia da díade, que é essencial nos estados mais primitivos da vida emocional da criança. Por outro lado, é como se a mãe oscilasse entre ser o que o bebê pode encontrar e ser ela mesma, pois, mesmo fundidos e indiferenciados, é possível perceber que existem três figuras diferentes que fazem parte da obra (Winnicott, 1971/1975b, 1956/1988c).

Na obra Maternidade (85) (Figura 4) pode-se pensar que a mãe está se identificando com seu bebê e que ela poderia estar no estado de sensibilidade aumentada (preocupação materna primária) que Winnicott postula, pois está com ele no colo, envolvendo-o com os braços e olhando diretamente para seu rosto. Também se pode pensar que o bebê ainda depende da mãe, já que está sendo estruturado, seguro pelo colo dela. A mãe está adaptada ao bebê, segurando-o tão próximo ao seu corpo (handling) que parece que os dois são seres contínuos na peça escultural (Winnicott, 1971/1975b, 1945/1988a; 1956/1988c).

Porém, ao mesmo tempo, é possível identificar claramente a figura da mãe e a figura da criança, o que remete a um algum nível de diferenciação possível entre os dois. O bebê pode construir a ideia de uma pessoa na mãe, já que ele também parece olhar fixamente para ela, parecendo fascinado pelo rosto materno, em cuja superfície ele pode buscar reconhecer especularmente sua própria imagem refletida. Os autores entendem que essa escultura poderia ilustrar a fase da dependência relativa, na qual o bebê se dá conta de que é um ser dependente e que precisa da mãe. Esse embalo, esse cuidado da mãe com o bebê, vai ajudá-lo no processo de integração. Se tudo correr bem, gradualmente o bebê vai perceber, por meio de pistas, como os sons, cheiros e visão da face materna, que a mãe é um único ser total. Começa a existir uma relação de ego entre mãe e bebê, na qual este último pode começar a elaborar a ideia de uma pessoa na mãe, o que pode ser representado, novamente, pela figura bem demarcada da mãe na escultura (Winnicott, 1945/1988a, 1956/1988c, 1963/2007).

Comparando-se as duas esculturas intituladas Maternidade, pode-se pensar que, na peça de bronze, o bebê ainda está fundido e totalmente dependente da mãe, não conseguindo percebê-la como um ser único, externo e separado dele. Já na escultura de granito conseguimos vislumbrar melhor os contornos separados da mãe e do bebê, o que pode significar o desenvolvimento do processo de integração (Winnicott, 1971/1975b, 1956/1988c).

Observando a obra Mãe e Filha (7) (Figura 5), pode-se pensar que o bebê já saiu do estado de encantamento em que estava fundido com a mãe, em uma relação imaginária de fascínio mútuo, o que estava representado nas duas esculturas anteriores, e agora está em um momento posterior de sua evolução psicológica, no qual pode perceber a mãe como um ser externo e separado, como outra pessoa. Isto é representado na escultura pela clara divisão entre mãe e criança, e pelo fato de a filha realmente parecer ser uma criança mais velha, que provavelmente vai ter um desenvolvimento e amadurecimento mais avançados (Winnicott, 1971/1975b, 1945/1988a, 1956/1988c). De acordo com Winnicott (1963/2007), a fase rumo à independência está relacionada com os esforços da criança que está na idade pré-escolar e da criança que está na puberdade, sendo que a escultura da menina poderia ilustrar uma criança, e não mais um bebê, que está nesse estágio.

Podemos entender que a filha já tem um self desenvolvido, um ego pessoal, que ela sente ser só dela e que a mãe, por sua vez, está quase completamente não adaptada à criança. A filha pode perceber que está dentro do próprio corpo, que é encarnada e tem uma personalização satisfatória, o que indica provavelmente uma independência genuína por parte da criança. A escultura pode ilustrar essas ideias justamente porque filha e mãe têm contornos muito bem definidos, estão relativamente afastadas uma da outra e ligadas apenas pelas mãos. Essa "pequena" união das mãos também pode representar uma criança que percebe que é uma pessoa que se relaciona com outras pessoas (mãe e filha podem estar conectadas pelas mãos, sendo duas pessoas diferentes, não mais unidas de maneira fusional), o que pode indicar que a menina avançou bastante em seu desenvolvimento, estando menos propensa a se manter cativa de uma relação alienante, como mero prolongamento narcísico da figura materna. A escultura da menina parece representar uma criança saudável, a qual só pode existir se o bebê foi iniciado na vida de forma suficientemente boa pela mãe (Winnicott, 1971/1975b, 1945/1988a, 1956/1988c, 1963/2007).

Finalizando a apreciação das obras destacadas para esta análise, na peça Casal com Filhos (37) (Figura 6) pode-se observar, no mínimo, duas figuras separadas, porém unidas por alguns pontos. Considerando que o título da escultura pressupõe a existência de filhos, para os autores deste trabalho, as partes que unem as duas figuras indicam que o casal necessita auxiliar um ao outro para que a criança (ou filhos) possa se desenvolver de maneira saudável (Winnicott, 1957/1982, 1965/2011a).

De acordo com Winnicott (1957/1982, 1956/1988c), o fornecimento de uma provisão ambiental suficientemente boa permite que o bebê, em sua fase inicial, comece a existir e a construir um ego pessoal, sendo que tal ambiente pode ser oferecido pela mãe e pelo pai da criança. Família é o espaço relacional que protege a criança das invasões do mundo até que ela possa ir se introduzindo gradualmente no ambiente externo, imprimindo sua própria assinatura, sem ter que se defender o tempo todo das intrusões ambientais. As duas imagens da escultura parecem viradas uma para a outra, como se estivessem contornando algo virtual, o que faz pensar no casal protegendo seus filhos do mundo externo nos primeiros estágios da vida emocional (Winnicott, 1965/2011a). Por fim, vale lembrar que mãe e pai são lugares simbólicos que representam as fundações estruturais da família (Winnicott, 1965/2011a) e, sendo assim, as esculturas, com suas formas mais ou menos abstratas, poderiam representar diversas configurações de casais e não necessariamente um casal composto por um homem e uma mulher.

De modo geral, pode-se dizer que o conjunto das cinco esculturas forma uma organização estética que permite que algumas interpretações, como as sugeridas neste estudo, sejam formuladas a partir do impacto estético produzido pela contemplação dessas obras artísticas. Essas produções metaforizaram o percurso de desenvolvimento da relação entre mãe, pai e bebê na esteira do fluxo temporal, bem como a relevância que o ambiente tem nesse processo. Considerando que a intrincada ligação dos componentes de uma obra artística mostra como os elementos psíquicos estão relacionados na mente de uma pessoa (Abella, 2016b; Williams, 2020), ao analisarmos as esculturas escolhidas, utilizando da psicanálise implicada, inferimos o que poderia ser um esboço do percurso de desenvolvimento emocional saudável ao longo da vida.

 

Considerações Finais

Ao analisarmos o conjunto de cinco esculturas de Felícia Leirner, foi possível identificar algumas similaridades entre a criação artística e a concepção psicanalítica do processo de desenvolvimento emocional do bebê. As análises permitiram ilustrar o lugar da mãe nas diferentes "etapas" desse processo e a importância do pai na manutenção da relação saudável mãe-bebê, protegendo o estado de devoção materna primária. Assim, este estudo contribui para exemplificar didaticamente algumas nuanças de um dos temas mais originais e inovadores da teoria de Winnicott, como sua concepção singular da relação mãe-bebê, além de mostrar a possibilidade de relacionar a psicanálise com a arte, em benefício de ambas.

A aproximação psicanalítica da obra de arte é sempre desafiadora. Deve-se ter o cuidado de evitar o reducionismo analítico, pois o objeto de arte é, antes de tudo, um feixe irredutível de fruição da experiência estética que não pode ser aprisionada em uma única leitura. Seguindo o percurso trilhado neste estudo, é preciso afastar o perigo de leituras redutivas, bem como a tentação de fazer "aplicações" estereotipadas de visões teóricas esquemáticas aos fenômenos que subjazem à produção artística.

O encontro com as obras de Felícia Leirner nos permitiu entrar em contato com nossos próprios impulsos criativos, promovendo um olhar inquieto sobre o que o conjunto escultórico da artista nos suscitou à luz da teoria winnicottiana. As análises elaboradas são interpretações particulares dos efeitos que as esculturas imprimiram em nossa subjetividade e não têm a pretensão de traduzir as ideias ou reconstituir a experiência estética da artista plástica ao produzir suas obras.

Entende-se que as teorias psicanalíticas podem dialogar, mesmo que indiretamente, com o trabalho e o projeto estético dos artistas plásticos e escritores. Nessa vertente, este estudo traz como contribuição adicional a potencialidade de inspirar a aprendizagem da teoria e da técnica psicanalítica por iniciantes, como os graduandos de Psicologia, ao problematizar questões relacionadas à teoria psicanalítica para discutirmos o lugar que a arte pode ter no viver e também a importância de termos acesso a esses conteúdos para pensarmos a natureza humana.

 

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Endereço para correspondência:
Carolina de Souza
E-mail: carolina2.souza@usp.br

Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Recebido em: 29/07/2020
Revisado em: 06/02/2021
Aceito em: 09/03/2021
Publicado online: 15/09/2021

 

 

Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

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