SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21 issue3On the link between Imaginary and Violence: Dissolutions in the BodyThe Tension over the Application of Phenomenology: Jaspers and Phenomenological Psychopathology author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e9431 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Está se constituindo um novo paradigma psiquiátrico?

 

Is a New Psychiatric Paradigm Constituted?

 

¿Se está Constituyendo un Nuevo Paradigma Psiquiátrico?

 

Un Nouveau Paradigme Psychiatrique est-il en Train de se Former?

 

 

Ana Carolina do Rosário CorreiaI; Charles Elias LangII

IMestra em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
IIDoutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O psiquiatra francês Georges Lantéri-Laura utilizou-se do conceito de "paradigma", trabalhado por T. S. Kuhn, para dar conta da racionalidade e da história da psicopatologia. No seu Ensaio sobre os paradigmas da psiquiatria moderna, Lantéri-Laura estabeleceu três paradigmas, situados entre o final do século XVIII e o final do século XX. O primeiro paradigma tem em seu centro a ideia de alienação mental. O segundo trabalha com a noção de que existem as doenças mentais. O terceiro vale-se da noção de estrutura e define as grandes estruturas psicopatológicas. Dessa forma, este ensaio teórico teve como ponto de partida a revisão histórica das tradições psiquiátricas realizada por Lantéri-Laura, buscando avançar e incluir as discussões contemporâneas na proposta de defender um quarto paradigma psiquiátrico orientado pelo conceito de síndrome. Nesse estudo é possível identificar duas lógicas psicopatológicas bastante distintas - uma psicanalítica e outra comportamental -, na qual se funda o Diagnostic and statistic manual of mental disorders (DSM), manual da Associação Americana de Psiquiatria (APA). Para tal fez-se necessária a elaboração de um breve contexto da DSM e de suas cinco edições sobre as principais críticas a esse sistema classificatório. Por fim, discute-se o destino do sistema DSM em face dos novos sistemas diagnósticos emergentes e se conclui que a psicopatologia é um campo diacrônico, em que as mudanças e as atualizações são constantes e necessárias.

Palavras-chave: diagnóstico; Lantéri-Laura; psicanálise; psicopatologia; psiquiatria.


ABSTRACT

The French psychiatrist Georges Lantéri-Laura used the concept of "paradigm", developed by T. S. Kuhn, to explain the rationality and history of psychopathology. In his essay on the paradigms of modern psychiatry, Lantéri-Laura established three paradigms, situated between the end of the 18th century and the end of the 20th century. The first paradigm has mental alienation as its center of the idea. The second works with the notion that mental illnesses exist. The third uses the structure notion and defines the major psychopathological structures. Thus, this theoretical essay had as its starting point the historical review of psychiatric traditions carried out by Lantéri-Laura, seeking to advance and include contemporary discussions in the proposal to defend a fourth psychiatric paradigm guided by the concept of the syndrome. In this study, it is possible to identify two quite distinct psychopathological logics - one psychoanalytic and the other behavioral - on which the Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM), a manual of the American Psychiatric Association (APA) is based. For this, it was necessary to prepare a brief context of the DSM and its five editions on the main criticisms of this classification system. Finally, it discusses the fate of the DSM system in the face of a new emerging diagnostic system and concludes that psychopathology is a diachronic field in which changes and updates are constant and necessary.

Keywords: diagnosis; Lantéri-Laura; psychoanalysis; psychopathology; psychiatry.


RESUMEN

El psiquiatra francés Georges Lantéri-Laura se utilizó del concepto de "paradigma", trabajado por T. S. Kuhn, para hacer frente a la racionalidad y a la historia de la psicopatología. En su ensayo sobre los paradigmas de la psiquiatría moderna, Lantéri-Laura estableció tres paradigmas, situados entre el final del siglo XVIII y el final del siglo XX. El primer paradigma tiene en su centro la idea de alienación mental. El segundo trabaja con la noción de que existen las enfermedades mentales. El tercero se vale de la noción de estructura y define las grandes estructuras psicopatológicas. De esta forma, este ensayo teórico tuvo como punto de partida la revisión histórica de las tradiciones psiquiátricas realizada por Lantéri-Laura, buscando avanzar e incluir las discusiones contemporáneas en la propuesta de defender un cuarto paradigma psiquiátrico orientado por el concepto de síndrome. En este trabajo es posible identificar dos lógicas psicopatológicas bastante distintas - una psicoanalítica y otra de comportamiento -, en la cual se crea el 'Diagnostic and statistic manual of mental disorders' (DSM), manual de la Asociación Americana de Psiquiatría (APA). Para eso, fue necesaria la elaboración de un breve contexto de la DSM y de sus cinco ediciones sobre las principales críticas a este sistema clasificatorio. Por fin, se discute el destino del sistema DSM ante los nuevos sistemas diagnósticos emergentes y se concluye que la psicopatología es un campo diacrónico, en que los cambios y las actualizaciones son constantes y necesarios.

Palabras clave: diagnóstico; Lantéri-Laura; psicoanálisis; psicopatología; psiquiatría.


RÉSUMÉ

Le psychiatre français Georges Lantéri-Laura a utilisé le concept de « paradigme », développé par TS Kuhn, pour expliquer la rationalité et l'histoire de la psychopathologie. Dans son Essai sur les paradigmes de la psychiatrie moderne, Lantéri-Laura a établi trois paradigmes, situés entre la fin du XVIIIe siècle et la fin du XXe siècle. Le premier paradigme a comme coeur l'idée d'aliénation mentale. La seconde fonctionne avec l'idée que les maladies mentales existent. La troisième utilise la notion de structure et définit les grandes structures psychopathologiques. Ainsi, le présent essai théorique a eu pour point de départ la revue historique des traditions psychiatriques menée par Lantéri-Laura. On a essayé à faire avancer et à faire inclure les discussions contemporaines dans la proposition d'un quatrième paradigme psychiatrique, lequel est guidé par le concept de syndrome. Dans cette étude, il est possible d'identifier deux logiques psychopathologiques bien distinctes - l'une psychanalytique et l'autre comportementale - sur lesquelles s'appuient le Manuel diagnostic et statistique des troubles mentaux (DSM) et le manuel de l'association psychiatrique des États Unis (APA). Pour cela, il a fallu élaborer un bref contexte du DSM et de ses cinq éditions sur les principales critiques de ce système de classification. Finalement, on a abordé le futur du DSM face aux nouveaux systèmes de diagnostics. On a, donc, conclu que la psychopathologie s'agit d'un champ diachronique où des changements et des modernisations sont nécessaires.

Mots-clés: diagnostic; Lantéri-Laura; psychanalyse; psychopathologie; psychiatrie.


 

 

Em A estrutura das revoluções científicas (1962/1998), Thomas Kuhn utiliza o termo "paradigma" em mais de duas dezenas de acepções, mas a definição mais emblemática é a de que designa "as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" (Kuhn, 1962/1998, p. 13). Um paradigma representa: a) uma constelação dos compromissos de um grupo de cientistas, isto é, uma matriz disciplinar composta por teorias; e b) as relações de similaridade observadas quando um cientista tenta resolver um problema com base em soluções adotadas em problemas anteriores.

Entre as funções desempenhadas pelo paradigma estão as de fornecer respostas para perguntas científicas e normatizar as descobertas acumuladas pela comunidade de cientistas até aquele momento. Mas estas respostas não são absolutas, uma vez que as matrizes disciplinares e as relações de similaridade tendem a mudar de tempos em tempos. Kuhn (1962/1998)explica essas mudanças, sobretudo, através das definições de anomalia, crise e revolução científica.

Um paradigma deve conseguir solucionar problemas científicos. No entanto, alguns eventos escapam aos mecanismos de resolução de problemas do paradigma. Por mais que haja um esforço resolutivo, algumas vezes tais eventos acabam insolúveis e se tornam anomalias. Se o número de anomalias for maior que o número de soluções apresentadas, o paradigma entra em crise. A partir daí o paradigma precisa superar as anomalias para sobreviver ou será substituído por um novo paradigma que explique de um modo mais amplo e geral sobre os fenômenos anteriores, além das anomalias já assimiladas. Todo o processo que vai da crise ao estabelecimento do novo paradigma constitui o que passou a ser chamado de revolução científica.

Georges Lantéri-Laura utilizou-se do conceito de paradigma para fazer o esboço de uma história da psiquiatria, trabalhando a ideia de que a psiquiatria é uma ciência e, como tal, orienta-se por paradigmas. Um paradigma psiquiátrico, portanto, é aquilo "que unifica durante um período de maior ou menor duração toda uma série de representações teóricas e práticas que se acomodam entre si ou que, em outros casos, se excluem, enquanto esse paradigma funcionar efetivamente [...]" (Lantéri-Laura, 2000, pp. 53-54). Isso significa que em toda a extensão do Ensaio sobre os paradigmas da psiquiatria moderna (2000), o conceito de paradigma é compreendido como uma espécie de denominador comum. Pode-se dizer que o paradigma em psiquiatria é uma noção epistemológica que estabelece uma noção ontológica das categorias de adoecimento psíquico que, razoavelmente, permeiam as comunidades científicas de uma época.

O uso que Kuhn (1962/1998) e Lantéri-Laura (2000) fazem do termo paradigma não é direto e pacífico, pois existem disparidades relacionadas à continuidade e descontinuidade históricas. Primeiramente, há uma diferença de escala, que limita o uso dos paradigmas em psiquiatria a seu universo pontual. Se comparados com os exemplos de Kuhn - as relações entre o geocentrismo e o heliocentrismo, entre física newtoniana e einsteiniana -, os cerca de duzentos anos cobertos pelo estudo de Lantéri-Laura (2000) que revelam uma explícita falta de simetria. Há, também, uma diferença no modo como o antigo paradigma é tratado. No uso feito pelo psiquiatra, o paradigma superado não desaparece, mas fica em segundo plano, de maneira intermitente e sem possibilidades de recuperação de seu antigo posto.

Este ensaio teórico teve como ponto de partida essa revisão histórica realizada por Lantéri-Laura (2000), porém, ainda assim, buscamos avançar um pouco mais no tema e incluir discussões contemporâneas sobre a proposta e defesa de um quarto paradigma psiquiátrico orientado pelo conceito de "síndrome". Nesse ensaio, então, podem-se identificar duas lógicas psicopatológicas bastante distintas: uma psicanalítica e outra comportamental, de que se serve o Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM), manual da Associação Americana de Psiquiatria (APA). Para tal fez-se necessária a elaboração de um breve contexto da DSM e de suas cinco edições sobre as principais críticas referentes a esse sistema classificatório. Por fim, discute-se o destino do sistema DSM em face dos sistemas diagnósticos emergentes.

 

O Surgimento da Psiquiatria

Antes de iniciar sua empreitada, Lantéri-Laura (2000) faz uma breve explanação sobre o surgimento da psiquiatria e sua relação com a medicina. Embora a posição ocupada atualmente pela psiquiatria seja a de uma disciplina dentro da ciência médica, talvez este elo esteja estabelecido a partir de um erro. O que há de medicina na psiquiatria? Quais são os primeiros sinais do surgimento da medicina como ciência, tal como é conhecida hoje?

A aparição do Corpus hippocraticum1, na Grécia do século V a. C., pode ser considerada a primeira aparição histórica da medicina. Lantéri-Laura (2000) não considera teorizações tais como a da teoria humoral, mas sim as características formais que perpassam o conceito de medicina, na época, e que se prolongam até hoje. Primeiro, a medicina se interessou pelo que está dentro da esfera da physis (natureza), e, nesse quesito, é preciso evidenciar que há uma diferença entre o que poderia ser tratado através dela e o que seria um trabalho delegado às artes da cura. A medicina não negava a existência do sobrenatural, mas colocava tais fenômenos entre parênteses e não se dedicava a estudá-los. Esse é o ponto em que a arte da cura entrava em cena e se encarregava de tudo aquilo que estava fora da physis. As consequências dessa divisão foram: 1) uma diferença essencialista entre a enfermidade (que pode ter origens diversas e faz parte do campo do que é natural) e o mal (aquilo que é do campo do sobrenatural); 2) a primeira ocorrência de uma nosologia e de um diagnóstico diferencial, baseados na necessidade de diferenciar as enfermidades umas das outras para se tornarem irredutíveis entre si; e 3) a primazia do exame clínico sobre a terapêutica (Lantéri-Laura, 2000).

Esses mesmos traços formais que relacionam a medicina de outras épocas com a medicina atual devem ser situados na história particular da psiquiatria - ou seja, devemos buscar em que momento a medicina começa a se interessar por algo semelhante ao que chamamos de loucura. Nesse quesito, apesar de diferentes culturas terem uma representação social da loucura, Lantéri-Laura (2000) fixa a origem da patologia mental naquilo que a medicina grega nomeou de frenitis: uma enfermidade que poderia ser de origem exógena ou uma infecção com febre, em que a percepção do sujeito afetado passa por alterações. Assim, ao padecer de uma frenitis, o enfermo corre o risco de perder o senso da realidade a ponto de sofrer de delírios auditivos e de confundir objetos e pessoas.

 

Os paradigmas da História da Psiquiatria Moderna

Lantéri-Laura (2000) assevera que a história da psiquiatria se acha balizada por três paradigmas, situados entre o final do século XVIII e o final do século XX: 1) o da alienação mental; 2) o das doenças mentais; e 3) o das grandes estruturas psicopatológicas.

A Alienação Mental

Para Lantéri-Laura (2000), o primeiro paradigma psiquiátrico é recente na história da medicina e pode ser situado entre os anos 1793 e 1854, época marcada por uma unidade nosológica singular. A alienação foi conceituada como uma enfermidade autônoma que possuía quatro aspectos possíveis: mania, melancolia, demência e idiotia. Esses aspectos, no entanto, jamais poderiam ser redutíveis a patologias propriamente ditas. A medicina mental francesa era, então, a referência europeia, tendo como cenário os hospitais Salpêtrière (pacientes mulheres) e Bicêtre (pacientes homens).

A Philippe Pinel (1745-1826) coube a tarefa de diferenciar a loucura da alienação mental. Essa distinção foi essencial, pois classificar a alienação mental como loucura a associava à alienação com "erros", a "extravagâncias" e a outras "depravações" que, segundo Pinel, seriam próprias da espécie humana. A alienação, então, passou a ser um termo técnico da área médica e foi separada de outras enfermidades de origem orgânica. Toda essa mudança de visão possibilitou que o alienado, ou insensato, fosse compreendido como uma pessoa enferma, e assim escapasse do poder da polícia e da justiça, impedindo que fosse preso como um malfeitor. Lidar com esse sujeito passou a ser responsabilidade da medicina. Exceto em casos de blasfêmia e de regicídio, o direito penal do Antigo Regime Francês entendia que a própria doença já era um martírio muito grande para ser suportado pelo alienado, enviando-o para centros de atenção (Lantéri-Laura, 2000).

A terapêutica, assim como a classificação nosológica, era unitária. O tratamento moral da loucura consistia no isolamento social em asilos exclusivos e o objetivo era buscar no paciente o que restava de sua razão e ocupá-lo com um trabalho direcionado a seu apaziguamento - um trabalho repetitivo e puramente mecânico - e ao bem da instituição asilar (Lantéri-Laura, 2000). Em termos logísticos, os asilos possuíam uma estrutura hierarquizada e eram organizados como uma microssociedade. A demora na compreensão de seu funcionamento e outras dificuldades conduziam pacientes assistidos nesse ambiente à cronicidade e à iatrogenia, efeitos colaterais do próprio tratamento.

A alienação mental foi o modelo que regeu, principalmente, as tradições psiquiátricas francesa e alemã até a metade do século XIX, mas também poderia ser encontrada, com algumas ressalvas, nas tradições italiana e inglesa. A crise maior desse modelo data do período entre 1850 e 1860, momento em que Jean-Pierre Falret (1794-1870) entrou em cena na história da psiquiatria. Falret, juntamente com Pinel e Jean-Étienne Esquirol (1772-1840), compõe a tríade que mais influenciou a medicina mental francesa à época. Sua clínica utilizava um modelo dialético em que se valorizava a subjetividade do paciente e visava à estabilidade metodológica entre a observação, a teoria e a prática psiquiátrica (Ramos, 2010). Falret fazia uma oposição crítica à ideia de alienação mental adotada pela maioria dos psiquiatras e defendia a existência de um número mínimo de enfermidades autônomas.

Além do movimento de resistência encabeçado por Falret, os avanços técnicos no cuidado de crianças, com a então chamada idiotia, tornavam cada vez mais difícil reduzir essa patologia a uma forma de alienação. Os métodos educacionais utilizados nessas crianças nada tinham a ver com o tratamento moral da loucura proposto por Pinel. Ainda sobre esse tema, o conceito de monomania, desenvolvido por Esquirol, era outro obstáculo. O termo acabou sendo utilizado por magistrados como sinônimo de cleptomania e piromania, de modo que o diagnóstico era confundido com um comportamento e acabava enquadrando pessoas que não estavam enfermas. Além disso, o paradigma da alienação mental não dava conta dos progressos realizados pela medicina anatomoclínica. Através das novas técnicas de percussão torácica, os médicos começaram a fazer os diagnósticos positivo e diferencial de doenças pulmonares, sem necessariamente precisarem de signos físicos que, na época, só podiam ser constatados após a morte do paciente. Isso impulsionou os alienistas a também adotarem um método clínico que fosse padronizado e mais ativo (Lantéri-Laura, 2000).

As Enfermidades Mentais

O segundo paradigma estabeleceu uma pluralidade de enfermidades mentais. Essas enfermidades formavam "um conjunto enumerável, finito e entre cujos elementos discretos há intersecções vazias" (Lantéri-Laura, 2000, p. 141). Finito, pois haveria um número limitado de enfermidades, o que abria o horizonte que fazia acreditar que um dia todas seriam localizadas e descritas, portanto, também enumeráveis. Por fim, compreende-se que se são autônomas, seriam também irredutíveis entre si. Ou seja, entre elas haveria intersecções vazias, já que cada uma deveria possuir uma evolução própria e encontrada em todos os pacientes afetados.

Nesse período foi constituído o grande "baú de tesouros" semiológicos, a "fortuna" da psiquiatria, ao qual Lantéri-Laura (2000) se refere como um thesaurus semioticus. A prática psiquiátrica desse período estava centrada no diagnóstico positivo e no diagnóstico diferencial, perspectivas decorrentes da primazia da semiologia e da clínica em relação à terapêutica. A exemplo de Falret, o psiquiatra deveria se dedicar primeiro à investigação ativa, com o objetivo de diagnosticar, para só depois determinar o tipo de tratamento mais adequado. Falret definiu quatro enfermidades irredutíveis: 1) a paralisia geral (ou loucura paralítica); 2) a loucura circular; 3) a loucura epilética; e 4) o delírio alcoólico (agudo ou crônico) (Lantéri-Laura, 2000).

Emil Kraepelin (1856-1926) foi um dos grandes nomes da era das enfermidades mentais, pois organizou uma taxonomia que individualizava algumas afecções mentais (Brunoni, 2017; Lantéri-Laura, 2000). Em seu entendimento, as enfermidades mentais são entidades morbosas discretas, que existem em certo número e de forma independente da percepção humana sobre elas (Pondé, 2018). Dessa forma, o que as aproxima das enfermidades tratadas por outras disciplinas médicas é o seu tipo de evolução.

À Kraepelin é atribuída a tarefa de ter identificado a demência precoce, uma enfermidade fundamentalmente unitária; apesar das formas clínicas diferentes que poderia adquirir (a catatonia, a hebefrenia e o delírio paranoide), a evolução para uma deterioração qualificada da demência afetiva é o que lhe garantia a unidade. Assim, sendo a demência precoce é a causa da maior parte dos delírios crônicos. Os próprios delírios crônicos foram classificados por Kraepelin, posteriormente, enquanto quatro espécies morbosas: parafrenias expansiva, confabulatória, sistemática e fantástica (Lantéri-Laura, 2000).

Em 1870, Falret faleceu e com ele a médecine mentale (medicina mental) francesa, até então dominante, que veio a entrar em derrocada, cedendo lugar à tradição alemã. Esse foi o momento em que a disciplina passou de fato a se chamar psiquiatria (Ramos, 2010). O valor da informação dos sintomas subjetivos diminuiu ao longo do século XIX, dando lugar aos signos físicos percebidos pela inspeção, pelas apalpações, etc.

O paradigma das enfermidades mentais começou a entrar em crise à medida que novas doenças se multiplicavam indiscriminadamente. Isso ocorria porque a prática de batizar uma doença com o nome de seu "descobridor" era uma forma de imortalizar o seu legado. A psicanálise também participou de modo marcante para que esse paradigma se tornasse obsoleto. Freud construiu uma classificação das neuroses, dividindo-as entre as "neuroses atuais" e as "neuroses de transferência". Enquanto o ponto de vista clínico tendia a separar as enfermidades mentais em unidades, a metapsicologia freudiana as reunia e assim trazia de volta algum nível de unidade diante de tantas fragmentações (Lantéri-Laura, 2000).

O congresso de Genebra-Lausanne em 1926 foi o grande marco, seguindo ainda Lantéri-Laura (2000), para o fim das enfermidades mentais. Durante esse congresso, Eugen Bleuler (1857-1939) apresentou seu trabalho sobre as esquizofrenias - referidas tanto no plural como no singular. O texto de Bleuler sugere que a esquizofrenia "não pode se tratar de uma reagrupação secundária de enfermidades primitivamente separadas entre si" (Lantéri-Laura, 2000, p. 168). Essa leitura só se torna coerente a partir do momento em que este grupo deixa de ser compreendido como uma nova enfermidade e passa a ser estudado como uma estrutura.

As Grandes Estruturas Psicopatológicas

O conceito de estrutura, como uma epidemia, se espalhou pelas mais heterogêneas comunidades científicas do entre guerras, com destaque na linguística de Ferdinand de Sausurre (1857-1913), Roman Jakobson (1896-1982) e Louis Hjelmslev (1899-1965), na antropologia de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e na psicologia da Gestalt de Max Wertheimer (1880-1943), Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967). A aplicação do conceito de estrutura - o estruturalismo - à psiquiatria fez parte de um movimento que articulou uma tentativa de retorno a uma unidade, porém sem cair no uso romântico da ideia de totalidade, semelhante àquilo presente no paradigma da alienação mental.

Sob a égide do conceito de estrutura houve uma verdadeira inversão de valores na reação entre a psiquiatria e a psicopatologia. No passado, as duas disciplinas eram sinônimas. Nesse momento, no entanto, a psicopatologia ascendeu e tomou a posição de dominância que antes era ocupada pela psiquiatria. À psiquiatria, deixada em segundo plano, coube as aplicações derivadas da psicopatologia (Lantéri-Laura, 2000).

A oposição entre a estrutura neurótica e a estrutura psicótica foi central para o paradigma, além de ter sido a maior contribuição da psicanálise na época. O binômio neurose-psicose desempenhou um papel duplo, pois era tanto uma resposta válida à demanda por unidade quanto conservava um nível de diferença entre as estruturas, que seria mais psicopatológica (mais formal e objetivo) do que clínica (mais subjetivo) (Lantéri-Laura, 2000).

O fim do paradigma das enfermidades mentais culminou no declínio da atividade diagnóstica e na divisão em duas categorias distintas. A primeira delas era o diagnóstico por empatia, cujo maior representante foi Henricus Cornelius Rümke (1893-1967). O método consistia primeiramente na busca por um sintoma nuclear capaz de estabelecer o diagnóstico de esquizofrenia. O sentimento que o clínico vivenciava no diálogo com o paciente esquizofrênico deveria ser conservado. O diagnóstico, enfim, era realizado através da análise desses sentimentos retidos pelo clínico, a fim de, a partir deles, estruturar um prognóstico.

A segunda categoria diagnóstica, o diagnóstico estrutural, possuía mais rigor teórico, o que alcançou maior destaque com o organodinamismo. Segundo Lantéri-Laura (2000), o "organo" do organodinamismo de Henri Ey (1900-1977) nada tinha a ver com um organicismo que por vezes lhe foi atribuído, já que antes referia-se a uma possibilidade de organização e de eventual desorganização patológica do sujeito. O "dinamismo" era relacionado a uma potência da existência humana.

Ey construiu uma representação de mundo estruturada em três níveis. O primeiro é o da matéria inerte. O segundo, o mundo dos seres vivos, constituídos pelos mesmos átomos da matéria inerte, mas superior a esta, evolutivamente, pelo fator vida. E o terceiro, o mundo do espírito, baseado no mundo vivo, mas nunca reduzido a ele. Essa estrutura de níveis e sua dimensão antropológica compunham a imagem de um sujeito frágil, suscetível a desestruturações globais ou parciais. A questão da liberdade estava aí inserida, primeiro marcando a diferença entre o mundo do espírito, que seria a morada do sujeito; no segundo nível, distinguindo esse sujeito das outras coisas vivas. Em seguida, seria a perda da liberdade o que estaria em jogo, quando se falava numa desestruturação global (Lantéro-Laura, 2000).

Não existiram grandes mudanças no modelo de diagnóstico nesse período, pois a maior parte dos psiquiatras continuava trabalhando da mesma forma como trabalhavam durante o paradigma anterior. O objetivo maior desses clínicos era chegar ao simples diagnóstico diferencial, buscando por sintomas sem uma maior preocupação em distingui-los entre primários e secundários. Aqueles que foram bem sucedidos no âmbito do diagnóstico estrutural, aponta Lantéri-Laura (2000), foram aqueles que melhor dominavam o thesaurus semiologicus, ou seja, a semiologia constituída durante a era das enfermidades mentais.

Se qualquer fenômeno poderia ser explicado mediante sua estrutura, o conceito acaba perdendo o seu vigor; assim, o conceito de estrutura em psiquiatria acabou desgastado (Lantéri-Laura, 2000). A entrada massiva da indústria química na psiquiatria, com a grande variedade de neurolépticos, timolépticos, ansiolíticos e outras drogas, contribuiu para a crise desse paradigma. Ademais, a multiplicidade de tratamentos, como as variantes da psicanálise e as terapias de grupo, exigia novamente que existisse uma variedade clínica diferenciada, que não estivesse rigidamente limitada ao dualismo neurose e psicose. Diante de tanta diversidade de teorias e práticas, as generalizações se tornaram escassas e as "doutrinas" de conjunto eram vistas com desconfiança; assim, a concepção de uma teoria geral já não servia à psiquiatria. Houve uma forte produção de conhecimento empírico em muitas disciplinas médicas, o que favorecia o aspecto prático em relação ao aspecto teórico na formação clínica, culminando em mais um dos motivos do fracasso das grandes estruturas psicopatológicas. O organodinamismo, então, representa uma das últimas grandes tentativas de empreender uma teoria geral em psiquiatria e, portanto, o marco do final desse paradigma é o ano de 1977, quando Henri Ey, seu criador, faleceu (Lantéri-Laura, 2000).

 

Está se Constituindo um Quarto Paradigma Psiquiátrico?

Algumas questões foram levantadas por Lantéri-Laura (2000) depois de concluir a exposição do terceiro paradigma psiquiátrico. O que aconteceu após a queda do paradigma das estruturas psicopatológicas? Ele sucumbiu diante do advento de um quarto e novo paradigma? O autor se preocupou, sobretudo, em saber se há ou não meios reais para abordar essa questão. A partir dessas questões, o trabalho prosseguiu com uma discussão sobre as condições mínimas necessárias ao estabelecimento de um paradigma atual e as dificuldades encontradas neste percurso.

A partir disso, e antes de tudo, é preciso observar atentamente as transições anteriores. Entre o primeiro e o segundo paradigmas, dificuldades intrínsecas surgiram, pois a alienação mental implodiu. A história do movimento de atualização da medicina mental, liderada por Falret, serve de exemplo do autoquestionamento suscitado no seio do paradigma, gerando o sentimento de obsolescência entre os alienistas da segunda geração. Já na transição entre o segundo e o terceiro paradigmas, as dificuldades foram extrínsecas, uma vez que o estruturalismo já era um modelo teórico bem-sucedido em várias comunidades científicas, antes que também viesse a se tornar paradigmático na psiquiatria. Observa-se, então, que as mudanças ocorreram por motivos distintos. Não há um padrão.

Outro fator assinalado corresponde à posição ocupada pelo pesquisador ante um paradigma. Lantéri-Laura (2000) assinala que a tarefa de identificá-lo é relativamente mais fácil quando não se presencia nem se observa o fim deste. Mas uma vez que se está no interior do paradigma, a proximidade excessiva dificulta a identificação de "algo verdadeiramente característico do paradigma enquanto tal, e nos arriscamos com frequência a não reconhecê-lo, substituindo-o, quase sem dar-nos conta, por uma teoria ou uma doutrina" (Lantéri-Laura, 2000, p. 258).

Para identificar um quarto paradigma psiquiátrico é necessário buscar o denominador comum, que deve ser razoavelmente aceito por todos no campo da psicopatologia. Mas afinal, o que unifica os saberes psiquiátricos, atualmente? Lantéri-Laura (2000) esclarece que a tentativa de definir um novo paradigma pode ter dois caminhos desastrosos: a via de um ecletismo generalizado ou a via das regulações parciais que não alcançam o estatuto de paradigma. O ensaio de Lantéri-Laura (2000)segue sem uma resposta definitiva e em vez disso, o autor aponta para duas alternativas possíveis: ou a definição de um quarto paradigma necessita aguardar pelo progresso psiquiátrico um pouco mais, ou simplesmente sua existência não é possível.

 

As Síndromes

Lantéri-Laura faleceu em 2004, antes que pudesse ver um desfecho para o problema da existência ou não do quarto paradigma psiquiátrico. Contudo, o autor deixou pistas das candidatas, à época do ensaio, que despontavam como as mais propensas: as síndromes.

As síndromes foram definidas como um "agrupamento de sintomas correlacionados entre si e que nos conduzem a mais de uma etiologia conhecida" (Lantéri-Laura, 2000, p. 262)2, tendo por característica principal uma evolução regular.

O conceito de síndrome não é novo; foi criado pelo psiquiatra Philippe Chaslin (1857-1823) durante a vigência do paradigma das enfermidades mentais e, como visto anteriormente, se aproxima das enfermidades isoladas por Kraepelin em relação ao seu aspecto evolutivo. Sua origem moderna remonta a Karl Jaspers (1883-1969) e a seu discípulo, Kurt Schneider (1887-1967). Para Jaspers, é preciso compreender que o estudo das síndromes implica saber que nem todas elas possuem uma origem conhecida. Os elementos relevantes para o fechamento de um diagnóstico são os sintomas apresentados pelo paciente (Lantéri-Laura, 2000).

A utilização do conceito de síndrome é considerada desafiadora e até mesmo problemática por alguns autores. Lantéri-Laura (2000) considera válido que as reagrupações de sintomas com a mesma evolução seja o suficiente para distinguir patologias mentais, e que a admissão da síndrome como núcleo de um paradigma psiquiátrico propiciaria um abandono da dimensão etiológica, o que levaria doença e sintoma a se equivalerem. Em outras palavras, ela basta a si mesma, já que é um indicador de doença que passou a ser tomado como a própria doença (Pondé, 2018), ou seja, "uma coisa em lugar de outra anunciada por ela" (Lantéri-Laura, 2000, p. 265). Uma consequência disso é a justaposição de diagnósticos cujos sintomas podem ser semelhantes, mas que na fenomenologia é diferente, a exemplo do humor depressivo causado por hipotireoidismo, síndrome depressiva ou luto (Brunoni, (017). Os critérios diagnósticos das síndromes são basicamente fundamentados na ausência, presença, no número e na duração desses sintomas (Pondé, 2018; Silva Júnior, 2016).

 

Breve Histórico Crítico do Sistema DSM

De acordo com Gori (2005), a psicopatologia hoje está dividida em duas lógicas muito distintas. A primeira delas remete ao conhecimento trágico da psicanálise e à clínica do um a um, incapaz de nivelar todas as flutuações de um caso a outro. A segunda é comportamental, focada na classificação e quantificação de transtornos mentais. Essa última se serve do Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM), manual da American Psychiatric Association (APA). O DSM tem a ambição de se estabelecer como uma classificação "consensual, convencional e tendencialmente desambiguadora [e ainda uma] aspiração a constituir-se em um 'ordenamento' de natureza regular, exaustivo e universalizável" (Dunker & Kyrillos Neto, 2001, p. 3); se pretende ateórico, isto é, desvinculado de quaisquer teorias, com procedimentos e resultados somente oriundos da observação clínica e independentes de laços históricos (Lantéri-Laura, 2000).

A psiquiatria psicodinâmica e a pressão exercida pelo movimento de veteranos dos EUA foram elencadas por Pondé (2018) como as grandes referências do pós-guerra e que culminaram na criação do primeiro DSM (APA, 1952). Em sua primeira edição, reconhece-se uma tentativa de reunir esforços classificatórios anteriores, nos quais o papel da psicanálise era bastante relevante. Nos EUA dos anos 1940 existiam pelo menos três sistemas diagnósticos diferentes: 1) o sistema Standard, criado em 1933; 2) o sistema utilizado pelas Forças Armadas; 3) o sistema da Administração dos Veteranos.

As perseguições nazistas durante a Segunda Guerra Mundial resultaram na emigração de muitos psicanalistas europeus, e grande parte desse contingente especializado se deslocou para os Estados Unidos. Quando os aliados (Estados Unidos, França, Inglaterra e União Soviética) venceram e a guerra chegou ao fim, a Europa estava destruída e a cultura americana passou por um processo de promoção e valorização. A mudança foi tão radical que, mesmo o alemão, língua até então predominante nos veículos de transmissão das ideias freudianas, foi substituído pelo inglês. Segundo Roudinesco (1988), surgiu uma versão americana da psicanálise - a ego psychology -, entendida como uma técnica cuja orientação deveria ser predominantemente médica.

Inúmeras dificuldades, no que tange às nomenclaturas vigentes, se potencializaram no pós-guerra, pois cada caso precisava ser enquadrado num diagnóstico cuja causa da morbidade deveria ser apontada de forma precisa. Isso até então era inédito, pois a régua formal, oriunda em parte dos militares, não se aplicava a todos os civis. As nomenclaturas existentes deixavam de fora cerca de 90% dos casos, já que apenas 10% deles pareciam se encaixar em categorias até então vistas nos hospitais psiquiátricos públicos dos EUA. Dessa forma, distúrbios de personalidade relativamente sem importância, fora do contexto militar, eram classificados como personalidade psicopática. Não havia subsídio teórico para diagnosticar os sintomas de estresse dos ex-combatentes. Novos termos precisaram ser criados para atender a essa necessidade (APA, 1952). Assim, termos como "neuroses psiconeuróticas" e "reações psicofisiológicas" podiam ser encontrados no DSM-I (Brunoni, 2017).

O DSM-II (1968) seguiu a tendência do DSM-I ao adotar conceitos de classificação cujas origens remetiam a Kraepelin, assim como diagnósticos pautados por evidências biológicas. Ambas as edições trataram de dividir os transtornos em duas categorias: aqueles que estavam relacionados a fatores orgânicos/cerebrais e aqueles que não provinham de perturbações orgânicas primárias (Pondé, 2018). O caráter de confiabilidade dos constructos usados no manual começou a ser questionado, pois nessas duas primeiras edições não se utilizavam ainda critérios operacionais: os psiquiatras diagnosticavam, com base em seus próprios julgamentos, se um sintoma era grave o bastante para caracterizar um diagnóstico; logo, apresentava uma reprodutibilidade baixa (Brunoni, 2017).

Uma verdadeira força-tarefa foi formada em 1974, com o objetivo de reformular a terceira edição para que fosse mais replicável, precisa e consistente com a Classificação Internacional de Doenças (CID) e da Organização Mundial de Saúde (OMS), que é mais utilizada fora dos EUA. O DSM-III (1980) contou com diversas mudanças metodológicas e constitui uma verdadeira ruptura epistemológica em relação ao DSM-I e II. A partir dessa terceira edição, constata-se a presença de um modelo neo-kraepeliniano (Brunoni, 2017; Gori, 2005; Pondé, 2018) e o metódico de afastamento entre a psiquiatria e a psicanálise. Segundo Pondé (2018), os fatores etiológicos só foram incluídos quando estavam relacionados a doenças de cunho orgânico, o que distanciou o diagnóstico das suas origens psicodinâmicas. O conceito de síndrome foi sistematizado nessa edição, que surge três anos após do encerramento do terceiro paradigma psiquiátrico (Lantéri-Laura, 2000). O psicodinamismo foi substituído pelo viés comportamental (Gori, 2005). Por fim, o termo "neurose" foi admitido como categoria clínica pela última vez (Dunker & Kyrillos Neto, 2001). Dessa forma, ao invés de descrever transtornos de forma mais genérica, como visto anteriormente, o DSM-III lista arbitrariamente alguns critérios de inclusão, exclusão, duração, número e qualidade de sintomas.

O diagnóstico multiaxial foi considerado por Dunker e Kyrillos Neto (2001) como o último resquício de uma base psicanalítica, pois levava em conta fatores psicossociais e ambientais. Esse diagnóstico passou a ser substituído, na atual edição (DSM-5, de 2014), por um diagnóstico dimensional (Resende, Pontes, & Calazans, 2015). O novo modelo insere uma variedade de transtornos mentais em um continuum. Os transtornos mentais, que anteriormente eram vistos de modo isolado, passaram a ser entendidos como graus diferentes num mesmo limiar, sendo a possibilidade de predição de transtornos o principal produto dessa mudança.

O caráter preditivo do DSM-5 carrega o ônus de contribuir para tratamentos medicamentosos desnecessários e com consequências que podem derivar deles, a exemplo do estigma social (Resende et al., 2015). A universalização desse modelo pressupõe ainda uma hierarquia do médico e de seu discurso sobre os demais profissionais da saúde mental (Resende et al., 2015). Mudanças nas modalidades de entrevista fazem com que os sintomas sejam categorizados de acordo com padrões predefinidos no manual (Dunker & Kyrillos Neto, 2001). A dimensão clínica é substituída pela atividade estandardizada de aplicação de protocolos e entrevistas igualmente estandardizadas (Gori, 2005).

Pensando nisso, temos que o aumento no número de transtornos tornou-se exponencial. A primeira versão do DSM possuía na época 182 categorias diagnósticas (Dunker, 2015), enquanto a quinta, a mais recente, chega a ter mais de 400 (APA, 2014). Esse aumento tem múltiplas causas. Uma delas é a diluição das antigas categorias diagnósticas "interpretativas", como a neurose e a psicose (Dunker, 2015). Logo, doenças que outrora eram classificadas sob o grande leque de histerias, hoje podem ser classificadas como inclusas no "espectro histérico", entre elas as dismorfias corporais e os transtornos alimentares (Costa & Lang, 2016).

Para Silva Júnior (2016), a forma como os sintomas e categorias psicopatológicas é interpelada depende de como as próprias expressões do sofrimento estão historicamente condicionadas. Para tanto, é necessário analisar de que maneira um dado discurso se organiza socialmente e com que recursos linguísticos o sujeito narra sua própria trajetória. A sociedade é pautada, atualmente, por uma ideologia neoliberal, de maneira que o discurso está intrinsecamente ligado a questões econômicas próprias do neoliberalismo.

Por outro lado, e dentro da lógica liberal, tudo é passível de tornar-se mercadoria, quando o mercado faz a lei. O marketing farmacêutico trata de captar consumidores, transformando uma ética que é do cuidado em mera prestação de serviço (Gori, 2005). As estratégias encontradas são diversas: 1) potencializar a importância que uma doença possui naquela sociedade, promovendo sua divulgação e "conscientização"; 2) mudar a conceituação de uma doença que já existe para minimizar a discriminação que assola os sujeitos acometidos, tal como a mudança da expressão "impotência viril masculina" para "disfunção erétil"; ou 3) criar uma nova doença que atenda às necessidades ainda não exploradas no mercado, como a criação do transtorno disfórico pré-menstrual, cujo remédio prescrito é o Safarem, nova roupagem dada ao Prozac (Silva Júnior, 2016). Ou seja, assiste-se à emergência de um movimento global uma nova forma do capitalismo, em que o foco da clínica desloca-se do tratamento e da cura para o polo do aprimoramento humano. Assim, a indústria química cria e propagandeia substâncias não para tratar ou curar determinadas mazelas, senão para aprimorar performances.

 

O Fim do Sistema DSM?

Faz-se necessário frisar que o futuro do sistema DSM é incerto e que, provavelmente, ele não será o núcleo de um novo paradigma para a psiquiatria. Aliás, pode-se, inclusive, flertar com especulações em torno do futuro da psiquiatria. O National Institute of Mental Health (NIMH), instituto fomentador de pesquisas na área da psiquiatria nos EUA, há algum tempo vem fazendo duras críticas e questionando à validade diagnóstica do DSM (Pondé, 2018). O órgão, por fim, anunciou que não irá mais financiar futuras edições do manual (Teixeira, 2015).

Thomas Insel, ex-diretor do NIMH, defende que "o diagnóstico do DSM é baseado no consenso sobre agrupamentos de sintomas clínicos [...]. No resto da Medicina, isto seria equivalente a criar sistemas diagnósticos baseados na natureza da dor no peito ou na qualidade da febre" (Insel, 2013 apud Teixeira, 2015, p. 164). A partir dessa declaração, pode-se dizer que parte dos problemas de confiabilidade e validade do DSM se deve à sua escassez de recursos etiológicos, uma vez que a origem dos sintomas, no exemplo dado por Insel, não constitui um fator diagnóstico.

O DSM segue sendo utilizado por boa parte da comunidade psiquiátrica e pode levar, ainda, algum tempo para se tornar completamente obsoleto. No entanto, alguns autores, como Laurent (2013), já anunciam "o fim de uma época". Diante de tantas críticas e organizações que lutam contra a classificação, será preciso que outro sistema diagnóstico, ou outra racionalidade, consiga visibilidade suficiente para tomar o seu lugar.

O NIMH tem trabalhado no projeto Research Domain Criteria (RDoC), que desponta como o possível sucessor do DSM. Para os entusiastas do RDoC, o modelo diagnóstico clássico - que associa a etiologia e a nosologia das síndromes - deveria ser abolido. O RDoC propõe uma associação de signos, sintomas, endofenótipos e biomarcadores (Brunoni, 2017), baseada nos eixos cognição, emoção e comportamento, que integra ciência cognitiva, neuroimagem, genética e outras variantes (Laurent, 2013; Teixeira, 2015).

O RDoC parece seguir uma mesma tendência ateórica, com a base cognitiva e distanciamento da psicanálise detectáveis no DSM desde a sua terceira edição. Segundo Brunoni (2017), o sistema RDoC se interessa pela etiologia dos transtornos mentais, o que possibilita uma comparação entre o momento atual e a transição entre o paradigma das enfermidades mentais e o das grandes estruturas psicopatológicas. Assim sendo, se as estruturas foram uma tentativa de retorno à unidade após a explosão no número de enfermidades do paradigma anterior, seria o sistema RDoC uma tentativa de retorno à etiologia pouco visada na era dos manuais DSM? O fim do DSM e a transição para o RDoC reabrem a possibilidade de resposta às síndromes: serão enfim classificadas como o quarto paradigma psiquiátrico ou continuarão resumidas a mais um discurso genérico?

 

Considerações Finais

A retrospectiva histórica feita por Lantéri-Laura (2000) demonstra que é possível pensar que as psicopatologias não são dados naturais, porquanto são construídas; e que essa construção se dá por um processo de invenção, criação, composição ou elaboração dos sintomas e de suas nomenclaturas ao longo do tempo. A invenção não constitui uma operação epistêmica regida por uma regra (Bunge, 2001), o que depõe a favor da ideia de construção.

A psicopatologia é diacrônica e mutável, pois o valor das categorias diagnósticas muda a cada novo paradigma. Enquanto algumas doenças simplesmente desapareceram, a criação (ou branding) de outras, associada a uma demanda mercadológica medicamentosa, tende a transformar sofrimentos, que antes eram compartilhados e ordinários, em categorias diagnósticas.

A principal dificuldade (e vulnerabilidade) da psiquiatria em relação às outras disciplinas médicas é que os signos que designam os sintomas psíquicos não são fixos (Silva Júnior, 2016). O trabalho do psiquiatra não passa apenas pela tradução das expressões não especializadas trazidas pelo paciente, mas por uma fixação de signos que em geral são polissêmicos (Lantéri-Laura, 2000). Essa polissemia implica a diversidade de significados passíveis de ser atribuídos a cada termo.

As narrativas construídas hoje, primeiro nomeiam esses sofrimentos, para em seguida apresentar-lhes uma causa e solução (Silva Júnior, 2016). A banalização ocasionada por tais tendências visa à desvinculação entre o sofrimento psíquico e seu contexto histórico-social, levando a uma diminuição da responsabilidade do sujeito sobre sua própria condição. Se os sentidos estão em estado de suspensão, a culpa agora recai sobre o corpo: "não estou doente, meu corpo é que está". Assim, tende-se a pensar mais de acordo com uma visão funcionalista-descritiva das patologias mentais, que poderia ainda ser definida como antiessencialista e relacional. Antiessencialista, por não estar fundada numa natureza ou essência; e relacional, por entender que existem expressões e relações sociais que não podem ser separadas desse diagnóstico. Dessa forma, talvez esta visão forneça alternativas que possam estar à raiz da formação de um novo paradigma para o trato com as mazelas do humano.

 

Referências

American Psychiatric Association (APA). (1952). DSM-I, Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Washington: APA.         [ Links ]

American Psychiatric Association (APA). (2014). DSM-5, Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Brunoni, A. R. (2017). Beyond the DSM: Trends in psychiatric diagnoses. Archives of clinical psychiatry, 44(6), 154-158. DOI: 10.1590/0101-60830000000142        [ Links ]

Bunge, M. (2001). Invención. In Diccionario de filosofía(p. 115, M. D. G. Rodríguez, Trad.). Ciudad de Mexico: Siglo Veintiuno.         [ Links ]

Costa, D. S., & Lang, C. E. (2016). Histeria ainda hoje, por quê? Psicologia USP, 27(1), 115-124. DOI: 10.1590/0103-656420140039        [ Links ]

Dunker, C. I. L. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Dunker, C. I. L., & Kyrillos Neto, F. (2001). A psicopatologia no limiar entre psicanálise e psiquiatria: Estudo comparativo sobre o DSM. Vínculo, 8(2). Link        [ Links ]

Gori, R. (2005). La psychopatologie en questions aujourd'hui. Cliniques mediterranéennes, (71), 41-57. DOI: 10.3917/cm.071.0041        [ Links ]

Kuhn, T. S. (1998). A estrutura das revoluções científicas. (5ª ed., B. V. Boeira & N. Boeira, Trads.). São Paulo: Perspectiva. (Originalmente publicado em 1962)        [ Links ]

Lantéri-Laura, G. (2000). Ensayo sobre los paradigmas de la psiquiatría moderna (D. G. Gómes, J. Terré & J. Lázaro, Trads.). Madrid: Tricastela.         [ Links ]

Laurent, E. (2013). Fin d'une époque. Lacan Quotidien, 319. Link        [ Links ]

Organização Mundial de Saúde (OMS) (Org.). (1993). Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas (D. Caetano, Trad.). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Pondé, M. P. (2018). A crise do diagnóstico em psiquiatria e os manuais diagnósticos. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, 21(1), 145-166. DOI: 10.1590/1415-4714.2018v21n1p145.10        [ Links ]

Ramos, F. A. C. (2010). Jean-Pierre Falret e a definição do método clínico em psiquiatria. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, 13(2), 293-306. DOI: 10.1590/S1415-47142010000200010        [ Links ]

Resende, M. S., Pontes, S., & Calazans, R. (2015). O DSM-5 e suas implicações no processo de medicalização da existência. Psicologia em revista, 21(3), 534-546. DOI: 10.5752/P.1678-9523.2015V21N3P534        [ Links ]

Roudinesco, E. (1988). A Batalha dos cem anos: História da psicanálise na França. Vol. 2 (1925-1985) (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Silva Júnior, N. (2016). Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico: Novos modos de subjetivação. Stylus. Revista de psicanálise, 33, 227-239. Link        [ Links ]

Teixeira, P. M. (2015). DSM I, II, III, IV, 5 (1952-2013). Revista portuguesa de medicina geral e familiar, 31, 164-165. DOI: 10.32385/rpmgf.v31i3.11522        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Ana Carolina do Rosário Correia
E-mail: ana.correia@ip.ufal.br

Charles Elias Lang
E-mail: charles.lang@ip.ufal.br

Recebido em: 10/05/2019
Revisado em: 09/05/2021
Aceito em: 10/05/2021
Publicado online: 10/01/2022

 

 

1 Conjunto de textos nos quais constam todas as informações conhecidas sobre a medicina tal como era praticada durante o século V na Grécia Clássica (Lantéri-Laura, 2000). Segundo a teoria humoral, presente no Corpus Hippocraticum, as enfermidades estariam relacionadas a perturbações no equilíbrio dos humores (discrasia) e a saúde, relacionada ao restabelecimento desse equilíbrio (eucrasia).
2 O termo síndrome será tomado aqui como sinônimo de transtorno mental, observadas as aproximações dos dois conceitos. Segundo a CID-10 (Organização Mundial de Saúde [OMS], 1993, p. 5), um transtorno mental é "um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecíveis, associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais".

Creative Commons License