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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza sept./dic. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e9704 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

A tensão acerca da aplicação da fenomenologia: Jaspers e a psicopatologia fenomenológica

 

The Tension over the Application of Phenomenology: Jaspers and Phenomenological Psychopathology

 

La Tensión acerca de la Aplicación de la Fenomenología: Jaspers y la Psicopatología Fenomenológica

 

La Tension sur l'Application de la Phénoménologie : Jaspers et la Psychopathologie Phénoménologique

 

 

Victor Luis Clavisso PortugalI; Adriano Furtado HolandaII

IMestrando em Filosofia na Georg-August Universität Göttingen
IIDoutor em Psicologia. Professor Associado da Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Do fato de que Husserl e o movimento fenomenológico preocuparam-se em fundamentalmente oferecer uma ciência transcendental que buscasse rigorosamente identificar as estruturas da experiência bem como a natureza do conhecimento, não surpreende que também outras disciplinas se interessassem em conhecer e aplicar algumas de suas propostas e resultados. Este debate, que desde os primórdios da fenomenologia já toma forma, hoje é atualizado em discussões tanto na psicopatologia fenomenológica contemporânea bem como no campo de pesquisa qualitativa que faz algum uso da fenomenologia. O presente artigo busca primeiramente apresentar a tensão existente ao longo do movimento fenomenológico acerca da possibilidade, validade e utilidade da fenomenologia fora da filosofia fenomenológica. Em seguida, argumentamos que, a partir dos exemplos de Jaspers e da corrente de psicopatologia fenomenológica clássica e contemporânea, é possível oferecer motivos suficientes para justificar tanto a possibilidade de um uso não-filosófico da fenomenologia, bem como sua proficuidade. Não cremos que os propósitos primordiais da filosofia fenomenológica sejam os de estabelecer e fornecer um framework para as várias outras disciplinas; entretanto, uma concepção mais compreensiva da ciência fenomenológica e de seu debatido histórico mostra que seus resultados e possibilidades apresentam-se frutíferos para as ciências, as quais hoje se contrapõem às diversas formas de reducionismo em diversos campos do conhecimento.

Palavras-chave: fenomenologia aplicada; psicopatologia fenomenológica; Karl Jaspers; movimento fenomenológico.


ABSTRACT

Given that Husserl and the phenomenological movement were fundamentally concerned with offering a transcendental science that rigorously sought to identify the structures of experience as the nature of knowledge, it is not surprising that other disciplines were also interested in knowing and applying some of their proposals and results. This debate, which has taken shape since the beginnings of phenomenology, is now updated in discussions both in contemporary phenomenological psychopathology and in the field of qualitative research that makes some use of phenomenology. Firstly, this article seeks to present the tension that exists throughout the phenomenological movement about the possibility, validity, and usefulness of phenomenology outside of phenomenological philosophy. We then argue that, from the examples of Jaspers and the current of classical and contemporary phenomenological psychopathology, it is possible to offer sufficient reasons to justify both the possibility of a non-philosophical use of phenomenology, as well as its usefulness. We do not believe that the primary purposes of phenomenological philosophy are to establish and provide a framework for the various other disciplines; however, a more comprehensive conception of phenomenological science and its historical debate shows that its results and possibilities are fruitful for the sciences, which today oppose the various forms of reductionism in different fields of knowledge.

Keywords: applied phenomenology; phenomenological psychopathology; Karl Jaspers; phenomenological movement.


RESUMEN

El hecho de que Husserl y el movimiento fenomenológico se preocuparon fundamentalmente en ofrecer una ciencia transcendental que buscara identificar rigurosamente las estructuras de la experiencia y también la naturaleza del conocimiento, no sorprende que otras asignaturas también se interesaran en conocer y aplicar algunas de sus propuestas y resultados. Este debate, que desde el inicio de la fenomenología ya toma forma, hoy es actualizado en discusiones tanto en la psicopatología fenomenológica contemporánea como en el campo de la investigación cualitativa que utiliza la fenomenología de alguna forma. El presente artículo busca primeramente presentar la tensión existente a lo largo del movimiento fenomenológico acerca de la posibilidad, validad y utilidad de la fenomenología fuera de la filosofía fenomenológica. En seguida, argumentamos que, a partir de los ejemplos de Jaspers y de la cadena de psicopatología fenomenológica clásica y contemporánea, es posible ofrecer motivos suficientes para justificar tanto la posibilidad de un uso no-filosófico de la fenomenología, como también su utilidad. No creemos que los propósitos primordiales de la filosofía fenomenológica sean los de establecer y proveer un 'framework' para tantas otras asignaturas; sin embargo, una concepción más comprensiva de la ciencia fenomenológica y de su debatido histórico muestra que sus resultados y posibilidades se presentan fructíferos para las ciencias, las cuales se contraponen hoy a las distintas formas de reduccionismo en distintos campos del conocimiento.

Palabras clave: fenomenología aplicada; psicopatología fenomenológica; Karl Jaspers; movimiento fenomenológico.


RÉSUMÉ

Puisque Husserl et le mouvement phénoménologique étaient fondamentalement soucieux d'offrir une science transcendantale qui cherchait rigoureusement à identifier les structures de l'expérience bien que la nature de la connaissance, il n'est pas surprenant que d'autres disciplines se soient également intéressées à connaître et à appliquer certaines de leurs propositions et résultats. Ce débat, qui a déjà pris forme depuis les débuts de la phénoménologie, est aujourd'hui mis à jour dans les discussions pas seulement chez la psychopathologie phénoménologique contemporaine, mais aussi chez le champ de la recherche qualitative, qui fait un certain usage de la phénoménologie. Cet article cherche d'abord à présenter la tension existante - tout au long du mouvement phénoménologique - concernant la possibilité, la validité et l'utilité de la phénoménologie en dehors de la philosophie phénoménologique. Ensuite, on soutien que c'est à partir des exemples de Jaspers et du courant de la psychopathologie phénoménologique classique et contemporaine qu'il est possible d'offrir des raisons suffisantes pour justifier, à la fois, la possibilité d'un usage non philosophique de la phénoménologie et, aussi, de sa fécondité. On ne croit pas que les buts premiers de la philosophie phénoménologique soient d'établir et de fournir un cadre aux diverses autres disciplines ; cependant, une conception plus globale de la science phénoménologique et de son historique montre que ses résultats et ses possibilités sont féconds pour les sciences, qui s'opposent aujourd'hui aux plusieurs formes de réductionnisme dans différents domaines de la connaissance.

Mots-clés: phénoménologie appliquée; psychopathologie phénoménologique; Karl Jaspers; mouvement phénoménologique.


 

 

Os últimos anos têm demonstrado um crescente interesse em antigos debates dentro da pesquisa em fenomenologia, desde acerca da "natureza" do que é propriamente fenomenológico, ou o que confere esse "título" a algum movimento, método, autor(a) ou escola, passando pelo que qualifica e caracteriza a utilização do termo, e quais os pré-requisitos, pré-suposições e consequências que ele evoca quando interpretado em relação à disciplinas não-filosóficas (Finlay, 2009; Morley, 2010; Zahavi, 2019). Essas questões têm, entretanto, acompanhado o movimento fenomenológico desde sua fundação (Spiegelberg, (1965). Apesar das diferenças individuais entre vários autores do movimento fenomenológico (digamos entre Husserl, Edith Stein e Max Scheler, por exemplo) é possível depreender como características gerais, um pensamento inovador e prolífico que buscou estabelecer uma filosofia crítica, rigorosa e minuciosa que oferecesse uma contraposição a qualquer tipo de reducionismo da consciência, do conhecimento e da vida humana, a exemplo do naturalismo filosófico e do psicologismo lógico que se mostravam também, à época, em crescente popularidade. Caracterizações mais específicas, entretanto, começam a despertar as próprias tensões dentro desse movimento. Exemplos dessas tensões também se referem ao uso do método fenomenológico, bem como à possibilidade da fenomenologia informar, auxiliar ou prover às várias ciências - estas assentadas em um solo não-transcendental - insights, contribuições e propostas para um melhor desenvolvimento e estabelecimento de seus próprios trabalhos (Carel, 2011; Zahavi, 2010). Trata-se, então, de uma dupla tensão, cujos pólos reservam para si mesmos tensões internas. Referente às tensões que se configuraram nas duas primeiras décadas do século XX em relação à nova posição por parte de Husserl em suas Ideen I, em 1913, bem como as críticas do círculo de Göttingen (caracterizado pelo primeiro grupo de alunas e alunos de Husserl na Universidade de Göttingen que, apesar de seus variados interesses, trabalharam juntos em torno de uma filosofia fenomenológica) frente à chamada "virada transcendental". Tal virada transcendental que, em termos gerais se dava, de um lado, a partir da adoção por parte de Husserl de uma nova fase de sua ciência fenomenológica, que por sua vez assumia compromissos transcendentais através do método de Epoché e reduções que clamava por descobrir um novo campo de investigações, a saber, o da consciência pura, tal dimensão que seria capaz de prover o solo fundacional - intuitivamente dado - para uma ciência que almeja ser Prima Philosophia. Por outro lado, no entanto, observa-se uma interpretação demasiada unilateral dessa nova fase de Husserl a partir da ótica de seus alunos, que temiam uma virada "idealista" contrária àquela - causa de seu interesse pela fenomenologia - iniciada treze anos antes pelas "Investigações Lógicas" (C.f. Husserl, 1968, p. 113; Stein, 1965, p. 174).

No que se refere à possibilidade de um uso da fenomenologia fora da filosofia, i.e., no outro polo da tensão, identificamos no movimento da psicopatologia fenomenológica uma série de importantes desenvolvimentos na sua produção contemporânea (Messas, Tamelini, Mancini, & Stanghellini, 2018). Afirmamos, entretanto, que tal movimento tem sua origem com o psiquiatra alemão Karl Jaspers, o qual não se caracteriza "apenas" como o ponto de partida da psicopatologia fenomenológica, mas também inaugura, de forma sistemática, um "uso" da fenomenologia fora da filosofia, bem como a possibilidade de relação entre a psicopatologia e a fenomenologia, que servirá de modelo para outros autores do movimento. O caráter "originário" de Jaspers, assim, não tem apenas valor histórico, mas também revela sua atualidade e o necessário retorno à sua obra em psicopatologia, que, embora de menor tamanho quando comparada ao seu trabalho em filosofia, possui um caráter pioneiro e uma importância inigualável para o que viria a ser o movimento de psicopatologia fenomenológica (Jaspers, 1963, 1973). Essa atualidade é revelada através de trabalhos contemporâneos que se dedicam ao seu pensamento e suas consequências para a psicopatologia fenomenológica atual (Busche, & Fuchs, 2017; Fuchs, Breyer, & Mundt, 2014; Fulford et al., 2013; Stanghellini et al., 2019; Stanghellini & Fuchs, 2013). Algumas dessas referências poderiam já fornecer fortes justificativas para um trabalho acerca da atualidade e importância de Jaspers; porém, somado a isso, é possível ver na produção brasileira apenas poucos trabalhos que se debruçam sobre a obra Jaspersiana. Destes, há textos dispersos que buscam ou comentar especificamente a obra de Jaspers (Correa, 2011; Ferrari, 2018; Messas, 2014; Nardi, Freire, Machado, Silva, & Crippa, 2013; Rodrigues, 2005), ou mencionar a importância de seu pensamento e obra (Moreira, 2016; Spremberg & Araújo, 2018; Tamelini & Messas, 2017). Tais textos em solo brasileiro, embora raros, são, em sua maioria, de muita qualidade. Dessa forma, um texto que trabalhe com a psicopatologia de Jaspers inserindo-a no contexto da discussão entre uso da fenomenologia fora da filosofia é, em nossa opinião, uma contribuição ao parco interesse acerca do autor em solo brasileiro.

Frente à já referida tensão entre a filosofia fenomenológica, de um lado em sua acepção "original", e do outro em seu uso a partir de disciplinas não-filosóficas, o presente trabalho busca estabelecer reflexões acerca da possibilidade do segundo a partir de dois exemplos que, como buscamos argumentar, sejam interessantes e muito pouco explorados para compreender a fenomenologia para além de sua acepção estritamente filosófica. Primeiramente apresentamos, a partir de considerações da obra de Husserl, argumentos que avançam a distinção entre fenomenologia e outras ciências, entendendo seu caráter primordialmente filosófico e transcendental, bem como algumas consequências dessa distinção para o diálogo com outras disciplinas não-filosóficas. Em um segundo e terceiro momento, oferecemos dois exemplos de usos da fenomenologia que entendemos obter sucesso e proficuidade no que se refere a um diálogo entre fenomenologia enquanto filosofia, bem como suas possibilidades de contribuição fora dela, a saber, respectivamente: 1) o projeto psicopatológico de Jaspers, considerando sua importância histórica como autor pioneiro na relação entre fenomenologia e psicopatologia e; 2) a psicopatologia fenomenológica contemporânea, que não apenas resgata autores como Jaspers, mas que também possui suas próprias propostas, diferenças e problemas específicos em comparação com os psicopatologistas do início do século. Desejamos, através disso, prover fundamentos suficientes para enfatizar e defender a possibilidade daquilo que alguns autores têm chamado "esclarecimento mútuo" entre fenomenologia e outras disciplinas; o argumento aqui proposto admite que a fenomenologia é, primordialmente, uma ciência transcendental; porém, afirmarmos que constranger suas possibilidades e consequências para as diversas disciplinas não-filosóficas parece ser um erro na compreensão da própria fenomenologia e de sua relevância para a filosofia e para as ciências que buscam fundar-se de forma rigorosa. O uso da fenomenologia em disciplinas não-filosóficas, embora difira de seu uso original, pode, de fato, constituir de base para a psicopatologia através de suas ferramentas conceituais e framework próprio.

 

A Tensão entre a Filosofia Fenomenológica e seu Uso Não-Filosófico

Seria difícil contrapor-se à ideia de que a fenomenologia enquanto empreendimento filosófico se mostrou acima de tudo uma empreitada transcendental. Embora Husserl (1975) tenha já nos primeiros tomos de suas "Investigações Lógicas", de forma pioneira, i) avançado na defesa da fundamentação da lógica, com o exemplo da matemática, enquanto ciência pura formal e autônoma, através da recusa de uma fundação psicologista na qual leis lógicas são entendidas enquanto "psicologia prática", bem como ii) fornecido análises para um "trabalho prévio" ao "esclarecimento" (Aufklärung) fenomenológico, e assim epistemológico, dos fundamentos dessa lógica (C.f. Husserl, 1975, pp. 23; 43; 173 e 256); foi a partir da já mencionada "virada transcendental", marcada a partir da publicação de suas Ideen I, que fica mais clara sua intenção em estabelecer um projeto sistemático, o qual, através da execução da epoché e de redução fenomenológicas, pudesse oferecer fundamentos seguros para sustentar tanto um trabalho filosófico, executado de forma séria e rigorosa que pudesse clamar o título de "filosofia primeira", bem como de tornar-se o fundamento das ciências que, por sua vez, deveriam posteriormente desenvolver-se a partir do que foi conquistado neste trabalho inicial e fundamental (C.f. Bernet, Marbach, & Kern, 2016, pp. 56-62; Husserl, 1950, pp. 72-73)1.

Esta virada, que marca uma época de debates e novas pesquisas, revela o esforço de Husserl em clamar por uma nova postura, isto é, uma nova atitude de caráter fenomenológico que pudesse neutralizar sua atitude oposta, a atitude natural. Segundo Husserl, a última refere-se ao modo irreflexivo que se exerce na experiência empírica cotidiana, na qual experienciamos a realidade "como se" o mundo estivesse simplesmente disponível de antemão para nós, sem que tivéssemos qualquer contribuição na formação do(s) sentido(s) do mesmo. Não fosse suficiente o fato dessa atitude não ter o rigor epistêmico que o autor via como necessário, ela também se encontra na base das ciências empíricas desde a Modernidade - principalmente a partir de Galileu e sua "matematização da natureza" (C.f. Husserl, 1954, pp. 18-21; Husserl, 1976, pp. 65-66). Husserl contrapõe-se firmemente ao naturalismo, isto é, a já mencionada crença naïve de que o mundo encontra-se simplesmente aí, existente com todo seu sentido, mesmo sem uma consciência humana que o signifique; por sua vez, a filosofia naturalista (que crê ser a única possibilidade da implementação de uma filosofia científica) caracteriza-se não apenas pela naturalização das coisas do mundo, como também pela naturalização da própria consciência, dos ideais, das ideias e das normas absolutas (C.f. Husserl, 1911, p. 295). Frente à recusa de Husserl em permanecer nessa atitude (e consequentemente em negar tal filosofia e as ciências que se baseiam nela), que por definição não pode realmente compreender ou justificar seus próprios fundamentos, é necessário então assumir e desenvolver a já mencionada atitude fenomenológica até que se obtenha um livre horizonte, i.e., até que se explore o novo campo de investigação composto por fenômenos transcendentais purificados, um campo a partir do qual a fenomenologia poderia novamente reclamar a ideia de filosofia primeira (C.f. Husserl, 1976, pp. 5; 65-69; 105-109; 122). A partir dessa diferenciação se origina a caracterização da fenomenologia enquanto ciência eidética (Wesenwissenschaft), isto é, uma ciência que se ocupa de leis eternas e indubitáveis, em contraposição às outras ciências de fatos (Tatsachenwissenschaft) (C.f. Husserl, 1976, pp. 20-23). Desse modo, após a aplicação rigorosa do método acima exposto, em conjunto com uma autorreflexão sistemática, se reconhece que a aparição do mundo (Seiende) não é mais visto como tendo um ser em si independente, mas sim como tendo a realização de seu sentido apenas enquanto constituído a partir do campo da subjetividade transcendental (Husserl, 1950, pp. 116-117; Husserl, 1976, p. 106), isto é, aquele campo da consciência pura, acessada após a realização do método fenomenológico (C.f. Husserl, 1976, p. 99).

Embora o significado exato disso seja tema de debate, é possível afirmar que Husserl de fato afirmou sua fenomenologia enquanto, primordialmente, uma filosofia de caráter transcendental. Husserl afirma que, embora Kant tenha garantido ao termo "transcendental" seu uso corrente (vide Kant, 1968, pp. 11-12), o fenomenólogo o emprega de modo mais abrangente, tal qual característico em Descartes e na filosofia moderna, a saber, enquanto o motivo da questão acerca da origem última de toda a formação de conhecimento, isto é, das implicações do conhecedor sobre si mesmo em sua vida cognoscente (C.f. Husserl, 1954, pp. 100-101). Em Husserl, sabemos, esta fonte carrega o título de "Ego" que, com sua vida cognoscente, relaciona-se com o mundo, cujo ser verdadeiro é apenas reconhecido através das estruturas do primeiro; tal ego é, a partir do "retorno" inspirado por Descartes, identificado com a subjetividade transcendental enquanto o solo último e apodítico para qualquer fundamentação de uma filosofia radical (C.f. Husserl, 1950, pp. 58; 99). Isso se relaciona de forma clara à ideia de ciência rigorosa, a qual não poderia tomar outra forma que não fosse a de uma ciência eidética que tivesse um solo absoluto (aquele dos fenômenos tomados intuitivamente, porém agora purificados através do novo método empregado), isto é, um "início absoluto" (Husserl, 1911; Ströker, 1987, p. 57). Por fim, mesmo que Husserl tenha, em alguns momentos de sua obra, afirmado, por exemplo, a possibilidade de se fundar uma própria psicologia fenomenológica ou psicologia intencional (Husserl, 1954; 1962), a qual, ainda dentro da atitude natural, investigaria exclusivamente as estruturas puras da consciência e da subjetividade, isto é, uma psicologia "purificada", resta ainda a possibilidade de que essa tarefa não teria um valor em si, mas seria pelo contrário apenas um outro modo de atingir a fenomenologia transcendental (C.f. Kern, 1962, pp. 322-323).

A partir dessa primeira conclusão, qual seja, que a fenomenologia, em sua acepção original, a partir de Husserl, é um empreendimento transcendental, cujos objetivos referem-se muito mais à busca pelos fundamentos da possibilidade do conhecimento, evocando desta forma e através de um método específico um necessário retorno às estruturas mais essenciais da consciência pura, a qual poderia servir de base para erigir uma filosofia primeira, é notável como tanto seu círculo de alunos em Göttingen, bem como outros influentes autores do movimento fenomenológico não demonstraram em mesma medida interesse no projeto transcendental husserliano, nem compartilharam suas aspirações de prover um fundamento transcendental das ciências. Assim, tem-se como consequência que "uma objeção usual à preocupação metodológica de Husserl com a Epoché e a redução tem sido aquela em que, uma vez que nenhum de seus sucessores fenomenológicos fez muito uso de ambas, nenhuma poderia ser considerada essencial e indispensável ao filosofar fenomenológico" (Zahavi, 2017, p. 66).

O breve histórico supracitado deveria possibilitar identificar certa tensão dentro do movimento fenomenológico, mas também algo intrínseco à fenomenologia em si, isto é, se é de fato legítimo, e caso seja, se mostra-se possível e interessante um uso, aplicação, ou diálogo entre a fenomenologia com outros campos que não o filosófico. Dessa forma, poderia a fenomenologia operar para além de sua agenda transcendental, i.e., ultrapassar as fronteiras da filosofia e contribuir com outras disciplinas como a psicologia, psiquiatria, sociologia, antropologia, etc.? Deveria ser desconsiderada qualquer tipo de possibilidade referente a uma contribuição da fenomenologia para com essas disciplinas e áreas do conhecimento "mundanas"? Isto é, aquelas que não se mostram purificadas pelo método fornecido pela fenomenologia (a favor de tal recusa, poderia ser também questionado se não teria a própria realização da Epoché e das reduções a função de neutralizar a tese geral instanciada pela atitude natural, e consequentemente também todas as ciências - de fato - que nela se apoiam (vide Husserl, 1976, principalmente os §§ 47 e 49); poderia ela oferecer, para além de seus esclarecimentos transcendentais, uma série de ferramentas conceituais úteis, interessantes e robustas capazes de auxiliar tais disciplinas na contraposição a diversos tipos de reducionismo (como o psicologismo, o cientificismo, o realismo naïve), bem como desenvolver melhores propostas para lidar com fenômenos como transtornos mentais, entrevistas clínicas, análise de fenômenos sociais e etc.?

Tais questionamentos - e suas respostas - têm sérias consequências tanto para a literatura em filosofia fenomenológica, como para seu uso em disciplinas não-filosóficas. Essa temática tem sido atualizada nas últimas décadas, principalmente em discussões referentes aos diferentes métodos em pesquisa qualitativa possibilitada por abordagens de natureza "fenomenológica" com autores como Giorgi, van Manen, Paley e outros (Morley, 2010; Zahavi, 2019). Finlay (2009), por exemplo, denota a variedade de métodos ditos "fenomenológicos" em pesquisa, bem como suas próprias tensões internas acerca do que é considerado fenomenológico, ou mesmo em vista das características dos métodos propostos, por exemplo, se estes devem possuir um caráter apenas descritivo dos fenômenos que se apresentam, ou se também devem incluir algum tipo de atividade interpretativa. É visível, entretanto, que alguns dos autores e autoras que buscam trabalhar no campo da fenomenologia creem ser necessário buscar assemelhar seus métodos nas disciplinas não-filosóficas com aqueles utilizados na filosofia fenomenológica. Zahavi (2019) oferece uma contraposição ao modo segundo o qual tais pesquisas em fenomenologia aplicada tem sido até então conduzidas; o autor aponta para interpretações dessas publicações que considera errôneas no que se refere ao uso da fenomenologia: muitos pesquisadores qualitativos teriam tentado utilizar certo tipo de método que, de fato, foi proposto por Husserl como essencial e necessário para os propósitos particulares da fenomenologia transcendental; entretanto, no que se refere às disciplinas não-filosóficas, a necessidade e a possibilidade da realização do "mesmo" método, executado nos "mesmos" moldes, torna-se altamente discutível. A saída, para o autor, é voltar-se para o século de produtivas e frutíferas pesquisas e trabalhos que o movimento fenomenológico vem executando nas áreas da psicopatologia e psicologia experimental. O questionamento de Zahavi é enfático: o que produziu resultados mais inovativos e influentes, a abordagem dos psicólogos e psiquiatras fenomenológicos, ou as abordagens de Giorgi e seus colegas dentro da pesquisa qualitativa? (C.f. Zahavi, 2019, p. 13). No plano de fundo dessa discussão se revela a tese de que é possível promover o chamado "mútuo esclarecimento" entre fenomenologia e as outras disciplinas, na qual as contribuições caminhariam em ambas as direções (Gallagher & Zahavi, 2012; Zahavi, 2010).

Sigamos esse apontamento para defender junto a Spiegelberg a seguinte afirmação: embora possam ter de fato havido "empréstimos" da filosofia fenomenológica ao campo das ciências (principalmente das que se ocupam do estudo da mente), que não contaram com fortes alicerces teóricos, os "bons exemplos" da relação entre psicopatologia e fenomenologia deveriam ter reafirmado aos céticos de que de fato "há conexões demonstráveis entre a filosofia fenomenológica e as ciências, como a psicologia e a psiquiatria. Ainda, deveria ter demonstrado que a fenomenologia é mais do que uma mera teoria filosófica, e que a mesma pode ter abrangentes consequências para as ciências humanas" (Spiegelberg, 1972, p. 359). O desenvolvimento da supracitada relação não é apenas importante devido ao seu valor histórico, mas também por novamente revelar que a fenomenologia não se limita "apenas" a esclarecimentos filosóficos transcendentais, apesar de essa ser sua principal raison d'être. Soma-se a isso que, embora a fenomenologia seja "normalmente descrita como um tipo de investigação transcendental, [...] as fronteiras entre transcendental e empírico podem tornar-se turvas" (Carel, 2011, p. 35). Ainda com respeito às múltiplas possibilidades de operação, dentro e a partir da ciência fenomenológica, em contato com outros campos do conhecimento, a fenomenologia:

[...] também oferece análises detalhadas de vários aspectos da consciência, incluindo a percepção, imaginação, corporificação, memória, experiência de si, temporalidade, [...] a fenomenologia aborda problemas que são cruciais para o entendimento da real complexidade da consciência, sendo mesmo capaz de oferecer um framework conceitual para um entendimento da mente que é de considerável maior valor do que alguns dos vários modelos atuais em voga nas ciências cognitivas. (Zahavi, 2010, p. 8)

A partir dessa consideração acerca da possível riqueza das análises da fenomenologia; que compreendem tanto sua empreitada transcendental (atividade principal da filosofia fenomenológica), bem como sua possibilidade em informar atividades não-filosóficas; vemo-nos forçados a analisar exemplos de sucesso no movimento fenomenológico, através dos quais a fenomenologia, dentro e junto da psicopatologia, vem desenvolvendo-se. Deparamo-nos, então, com o desenvolvimento do movimento de psicopatologia fenomenológica ou psicopatologia informada fenomenologicamente que, desde sua origem no começo do século XX, através de Jaspers, Minkowski, Binswanger, Boss, Blankenburg e outros(as) (Beumont, 1992; Spiegelberg, 1972), a partir de um uso explicitamente não-filosófico da fenomenologia, chega ao fim do século como movimento estabelecido, com discussões internas relevantes e contraposições robustas à psicopatologia mainstream (Parnas, Sass, & Zahavi, 2013; Tamelini & Messas, 2017).

 

Jaspers e a Relação entre Fenomenologia e Psicopatologia

No confuso cenário da ciência psicopatológica do início do século XX, Jaspers decide cursar medicina, pois queria reconhecer "[...] o que era possível; a medicina abria, assim me parecia, a mais ampla área da totalidade das ciências naturais e dos humanos enquanto objetos" (Jaspers, 1977, p. 11). Após doutorar-se, Jaspers encontra um estado da arte da disciplina confuso, não integrado, contraditório, e sem clareza acerca de qual é seu objeto de estudo, bem como qual método que deveria ser empregado para investigá-lo (Fuchs, 2014; Häfner, 2015; Mundt, 2013). O cenário poderia ser caracterizado por uma cisão: "A psiquiatria não possuía nem uma língua comum, nem um ancoramento conceitual análogo ao papel da patofisiologia em relação com a medicina clínica." (Jablensky, 2013, p. 239). De um lado estavam aqueles que afirmavam que os transtornos mentais se realizavam exclusivamente a partir de alterações físicas no corpo do paciente (transformando a psicopatologia muitas vezes em neurologia), enquanto outros interpretavam o mental de forma dogmática e totalizante, na qual a própria psique seria capaz de gerar uma aberração em seu funcionamento. Não havia, de todo, nem uma reflexão metodológica acerca dos diversos métodos de acesso à vida mental, nem mesmo uma consideração às características fenomenológicas do que era apresentado pelos pacientes (Fuchs, 2014).

Frente a esse cenário, Jaspers buscou ir às raízes da problemática dos fenômenos psíquicos, procurando identificar tanto como seria possível seu acesso, bem como o melhor método para lidar com o complexo amálgama de sintomas psíquico-patológicos que sofrem influência de tantas dimensões psíquicas, sociais, biológicas e mesmo espirituais (Mundt, 2013). Jaspers propõe uma psicopatologia marcada por uma consideração à transcendência humana, isto é, a qualidade una do humano em ser um sistema aberto complexo, um "ser em um mundo próprio", algo inesgotável mesmo para as ciências até então desenvolvidas, moldando-se e formando um sentido para além de si mesmo (Jaspers, 1973, p. 11; Mundt, 2013). Sua principal obra em psicopatologia, a Psicopatologia geral, provê o tom com relação ao principal objeto da psicopatologia, em que afirma que o psiquiatra, como profissional, lida com indivíduos, isto é, com o ser humano em sua totalidade. O objeto da psicopatologia, então, são os eventos psíquicos realmente conscientes de caráter psicopatológico, que revelam como os indivíduos vivenciam, bem como suas condições, causas e modos pelos quais são expressos: é o ser humano em seu estar-doente (Kranksein), na medida em que for um estar-doente mental e condicionado mentalmente (C.f. Jaspers, 1973, pp. 2; 5-6). A tarefa da Psicopatologia geral é, segundo Jaspers, configurar o todo através de esclarecimento, ordenamento e formação. "Ela tem de esclarecer o conhecimento nos tipos fundamentais dos fatos e na multiplicidade dos métodos, sumarizá-lo em ordens naturais, e finalmente trazê-lo à autoconsciência em todos formativos do humano." (Jaspers, 1973, p. 34).

Seu desafio refere-se, então, à formulação de uma ciência psicopatológica que tenha em sua consideração uma compreensão abrangente da vida humana, que de fato considere suas facetas neurobiológicas, porém sem interpretá-las exclusivamente enquanto aquilo no que consiste a vida humana, reconhecendo, adicionalmente, a importância da dimensão experiencial e única dos sujeitos em sofrimento (Berrios, 1992). A psicopatologia deveria, desse modo, ser uma disciplina robusta, que combinasse a objetividade própria do rigor científico, ao passo que também reconhecesse a experiência intrinsecamente subjetiva dos pacientes, cuja objetividade é dada "apenas" através de certas manifestações da vida mental (C.f. Beumont, 1992; Jaspers, 1973, p. 5). Considerando que a ciência de base deverá ser tal psicopatologia geral, à psiquiatria resta, em contrapartida, estabelecer-se enquanto "expertise", como prática que requer treino e contato com o outro, informando-se e utilizando-se da psicopatologia para desenvolver-se (Jaspers, 1973, p. 32).

Para o estudo da supracitada dimensão da experiência, Jaspers vê na fenomenologia um método lógico concreto de caráter informativo para a disciplina e pesquisa em psicopatologia. Com relação à utilização da fenomenologia no campo psicopatológico, Spiegelberg (1972) comenta que já havia antes de Jaspers (porém pós-Investigações Lógicas) representantes do campo psiquiátrico como Wilhelm Weygandt e Robert Gaupp, que consideravam necessária a atenção à experiência humana. Ainda, em 1912, foi lançado o Zeitschrift für Pathopsychologie, com co-editores como Henri Bergson, Hugo Münsterberg, Oswald Külpe e mesmo Max Scheler. Seus resultados não são, entretanto, tão expressivos quanto os de Jaspers no que se refere à formulação de uma nova relação entre psicopatologia e fenomenologia. Para isso, Jaspers aproxima-se das obras iniciais de Husserl, a saber, os dois tomos das Investigações lógicas, buscando algo que poderia ser transportado para a experiência psicopatológica. O modo pelo qual Jaspers interpretou a fenomenologia husserliana não foi, entretanto, o modo pelo qual Husserl mesmo buscou desenvolver sua ciência dos fundamentos, nem naquela época, nem em sua obra tardia. Jaspers, na Psicopatologia geral, aponta que a fenomenologia é um método utilizado na "reflexão científica" para: i) inicialmente apreender fatos individuais através da eliminação, limitação, diferenciação e descrição de certos fenômenos vividos, de modo a, posteriormente, trazê-los à tona de forma conceitual e ii) analisar as conexões a partir do entendimento e esclarecimento (respectivamente Verstehen e Erklären), na qual, após a coleta dos fragmentos referidos anteriormente, busca-se estabelecer conexões das qualidades individuais, bem como suas condições e possíveis emergências dadas conjuntamente (C.f. Jaspers, 1973, pp. 22-24). Jaspers afirma na Psicopatologia geral que a fenomenologia tem a tarefa de intuitivamente nos evocar os estados mentais que os pacientes realmente vivem, considerando-os "segundo suas relações de afinidade, limitá-los e diferenciá-los tanto precisamente quanto possível e prová-los com Terminis firmes" (Jaspers, 1973, p. 47). Em resumo, diz Jaspers em sua autobiografia: "Tomei como método a fenomenologia de Husserl, antes chamada descritiva, retendo-a sob resistência de seus outros desenvolvimentos acerca da Wesenschau (visada das essências). Ao descrever as aparições à consciência e o que os pacientes viviam internamente, ela provou-se possível e frutífera." (Jaspers, 1977, p. 23). Faz-se importante salientar que a recusa posterior de Husserl frente à "psicologia descritiva" revela também um distanciamento de sua nova empreitada epistemológica em contraste com Brentano. Enquanto a psicologia descritiva buscava prover esclarecimentos acerca das doações (Gegebenheiten) da experiência interna, através de um método intuitivo realizado a partir dos sujeitos empíricos, isto é, determinados espaço-temporalmente, as análises fenomenológicas "puras" de Husserl, por sua vez, suspendiam todo tipo de hipótese na qual houvesse uma dependência de ordem psicofísica das vivências psíquicas em conjunto com a determinação existencial da natureza física.

Em suma, a fenomenologia é para Jaspers um método adicional para a prática intuitiva (no sentido fenomenológico) da vivência direta do paciente, permitindo que o psicopatólogo reconheça o idêntico na multiplicidade (Jaspers, 1973, p. 48). Observam-se aqui sérias divergências com o que a fenomenologia, mesmo nas Logische Untersuchungen (LU), originalmente propunha, a exemplo: 1) a recusa de Jaspers frente a Wesenschau husserliana (a intuição das essências ou abstração ideativa é um método que constitui a base da fenomenologia enquanto possibilidade de intuição originária das doações dos fenômenos à consciência, possibilitando que as descrições realizadas possam referir-se não apenas a fatos empíricos, i.e., psicológicos, mas a relações necessárias, isto é, enquanto a mais alta categoria eidética, mesmo independente do conhecimento fático (C.f. Husserl, 1976, pp. 13-17); 2) o fato de que Jaspers considera a fenomenologia como uma subdisciplina dentro da macrodisciplina configurada pela psicopatologia (Wiggins & Schwartz, 1997), algo incabível numa acepção de fenomenologia enquanto ciência eidética fundamental; 3) a fenomenologia entendida enquanto método "empírico" de investigação da experiência dos pacientes, sendo que tal método poderia ser entendido somente de forma problemática enquanto "fenomenológico" em uma acepção mais forte do termo (C.f. Jaspers, 1973, p. 47); e 4) a interpretação Jaspersiana da fenomenologia enquanto psicologia descritiva, a qual Husserl logo na segunda edição de suas Investigações lógicas prontamente modificou (C.f. Jaspers, 1973, p. 47; Stanghellini & Fuchs, 2013). É evidente, a partir disso, que os pressupostos tomados por Jaspers, bem como seus objetivos, não são os mesmos da fenomenologia Husserliana.

[...] a tarefa primária da fenomenologia consiste em prover uma taxonomia básica de fenômenos psicopatológicos. Jaspers vê, portanto, a fenomenologia como a performance de uma atividade preparatória (Vorarbeit) para a ciência psicopatológica: ela fornece à psicopatologia seu vocabulário elementar, i.e., definições das diferentes classes de estados mentais patológicos. (Wiggins & Schwartz, 1997, p. 21)

Entretanto, mesmo com essa clara divergência por parte de Jaspers, a relação com a fenomenologia tem consequências diversas em sua psicopatologia. O entendimento (Verstehen), por exemplo, é uma das estratégias de Jaspers para buscar aproximar-se, mesmo indiretamente, dos estados mentais do paciente; esse movimento se daria através de uma relação empática construída clinicamente. Este termo tomado do pensamento de Droysen e posteriormente de Dilthey marca uma divisão que se tornaria clássica no solo alemão do final do século XIX, a saber, aquela entre Verstehen (Entendimento) e Erklärung (Explicação). Enquanto as ciências naturais estariam preocupadas com observações cuidadosas, buscando, através da experimentação, regras gerais que revelassem um possível modelo causal, ao deparar-se com a dimensão mental, mostrar-se-iam de difícil realização, algo necessário na ciência psicopatológica: "Entender durante o curso de uma vida como o paciente se entende e como se dá seu modo de autocompreensão é um fator do maior desenvolvimento mental." (Jaspers, 1973, p. 251). Jaspers "diferenciou entendimento estático (fenomenologia), focado nas experiências subjetivas dos pacientes, e entendimento genético (hermenêutica), i.e. interpretação das narrativas mais extensivas do paciente, tomando em conta sua dinâmica e complexidade" (Kapusta, 2014, p. 171). Assim, Jaspers buscou priorizar a psicopatologia como ciência compreensiva a partir de seu objeto, a saber, a consciência humana em seus estados psicopatológicos (Spitzer & Uehlein, 1992). Isso marca a própria divisão que situa a ciência psicopatológica em seu estudo sobre a tensão da humanidade tanto em sua concepção natural quanto espiritual. "Sempre que o objeto estudado é o humano e não o humano enquanto espécie animal, percebemos que a psicopatologia, segundo sua essência, torna-se não apenas um tipo de forma da biologia, mas também ciência humana." (Jaspers, 1973, p. 31).

Com esse novo direcionamento de pesquisa em psicopatologia, Jaspers busca rejeitar quaisquer reducionismos que a ciência natural pudesse impor tanto aos processos mentais, quanto, consequentemente, aos transtornos dos mesmos (Fuchs, 2014). Jaspers, 1973, p. 4) enfatiza a recusa à "servidão" da psicopatologia frente à neurologia. Há aqui uma crítica direta a Wilhelm Griesinger, segundo o qual "transtornos psíquicos são transtornos cerebrais". A origem desses processos e eventuais transtornos seria, para estas visões reducionistas, o substrato biológico, isto é, o cérebro. Jaspers ironicamente chama essas concepções de Hirnmythologien (mitologias do cérebro) (Fuchs, 2014; Häfner, 2015; Jaspers, 1963). Afinal, Jaspers já considerava que quanto mais a neurologia avança, mais o mental (das Seelische) retrocede (Jaspers, 1973, p. 4). Em contraposição a estas propostas, Jaspers considerava que mesmo nos transtornos mentais haveria certas características e particularidades cuja explicação seria igualmente impossível de ser reduzida a uma lista de sintomas, muito menos uma lista de caráter exclusivamente biológico. Trata-se de uma compreensão da consciência humana no esteio dos movimentos vitalista e fenomenológico, isto é, enquanto "vivência", enquanto um devir de natureza holística, marcada pela noção de "totalidade", ou do "todo" (das Ganze) da humanidade (C.f. Jaspers, 1973, pp. 25-26). Tal dimensão consciente, enquanto "fenômeno da alma", não pode nunca ser completamente tomada como objeto, senão em suas expressões perceptíveis no mundo através da linguagem, de expressões corpóreas e do comportamento (C.f. Jaspers, 1973, pp. 8-10; 38). Mundt (2013) afirma que tal tratamento da consciência está relacionado com uma concepção de humanidade que vai além do conhecimento científico (entendido em sua forma reducionista quando aplicado aos transtornos mentais), e além mesmo da razão. Se busca conceber, aqui, a natureza da humanidade em sua integralidade, enquanto existência. É dessa noção abrangente da integralidade da existência humana que Jaspers abdicará de tomar em consideração apenas um método exclusivo para a pesquisa em psicopatologia. De modo intelectualmente humilde, e por isso visionário, Jaspers afirma ser impossível apreender completamente a "realidade"; sendo esta apenas perspectiva, o conhecimento derivado dela é de alguma forma sempre particular, o que necessariamente impede uma absolutização (Verabsolutierung) do conhecimento parcial. Daí resulta o fato de que Jaspers se permite apropriar de todos os métodos, de modo a não colocá-los uns contra os outros (biologia contra ciências humanas, alma contra cérebro, nosologia contra fenomenologia); uma vez que "da absolutização derivam os preconceitos" (Jaspers, 1973, p. 30). Isso se liga à compreensão de Jaspers acerca da essência do humano, em sua percepção sempre "em aberto, i.e., sua antecipação e esperança por um contexto mais compreensivo além de nossa percepção, bem como uma concepção de certeza fundada em nós mesmos, mesmo que isso necessite fé" (Mundt, 2013, pp. 80-81). A dimensão do mental, para Jaspers concebida a partir de um eterno esforço de compreensão, não pode e isso é uma consequência da própria natureza dessa dimensão - ser completamente concluída, embora muitos métodos a abordem. Não há, assim, nenhum conceito básico que permita completamente compreendê-la, nem uma teoria que dê conta da totalidade de sua real existência objetiva: "Nós devemos, então, como cientistas, manter a mente aberta para todas as possibilidades empíricas, e manter-nos vigilantes contra a tentação de reduzir a existência humana a um denominador comum." (Jaspers, 1973, p. 6).

Como pudemos observar, embora o uso que Jaspers realiza da fenomenologia possa ser visto como algo estranho para a fenomenologia ortodoxa, esta é entendida e estendida para além dos limites da filosofia, contribuindo não apenas com um desenvolvimento de um método específico para uso em psicopatologia, mas também a partir de ferramentas conceituais e um framework que permite estabelecer uma oposição às interpretações reducionistas da consciência humana feita pela psicopatologia de sua época. O psicopatólogo enquanto profissional deve reconhecer, de diferentes formas, a impossibilidade de compreender totalmente seu objeto de pesquisa, algo realizado apenas a partir do constante comprometimento em buscar livrar-se de suas crenças a priori (C.f. Jaspers, 1973, pp. 13-18), se permitindo realizar um movimento de entendimento de si e do outro. Ele(a), entretanto, não faz filosofia, e Jaspers estava bastante consciente disso, pois posteriormente escreve que a relação entre filosofia e ciência não é uma segundo a qual o estudo filosófico encontra sua aplicação na ciência, mas uma relação na qual o filosofar causa uma certa atitude (Haltung) que é necessária à ciência, isto é, através da imposição de limites e de condução interna, problemas que podem levar a ciência à busca desenfreada de conhecimento. "O psicopatólogo não precisa preocupar-se com a filosofia porque ela o ensinará algo positivo para sua ciência, mas sim porque ela abre espaço para suas possibilidades de conhecimento." (Jaspers, 1973, p. 40). O(a) psicopatólogo(a), pois, não é um(a) fenomenólogo(a) no sentido filosófico forte do termo, mas utiliza-se da fenomenologia para seus propósitos específicos.

 

Psicopatologia Fenomenológica Contemporânea

Se Jaspers deu os passos iniciais em direção a uma relação mais profícua e compreensiva entre fenomenologia e psicopatologia, os diversos caminhos que surgiram posteriormente expandiram, e atualmente desenvolvem cada vez mais, uma proximidade entre essas áreas. É possível ver esse desenvolvimento já em um período próximo da produção de Jaspers, com autores como Ludwig Binswanger e sua Daseinsanalyse (mais conectado no início, embora não inteiramente, à analítica heideggeriana do Dasein), EugèneMinkowski (com interesse mais evidente em Husserl e Max Scheler), Viktor Emil von Gebsattel e sua antropologia psiquiátrica, Ernst Kretschmer com sua psicopatologia multidimensional, e mesmo Kurt Schneider, que viria a ser um dos mais representativos herdeiros do pensamento de Jaspers na Europa (Häfner, 2015; Spiegelberg, 1972). Não obstante, esse é apenas um lado do desenvolvimento do que eventualmente poderia ser chamado de abordagem, ou utilizando a expressão jaspersiana do texto de 1912, "direcionamento de pesquisa" fenomenológica na psicopatologia, seja ele mais direcionado à psiquiatria ou psicologia (Jaspers, 1963). É possível posteriormente perceber um intenso desenvolvimento, principalmente no final do século XX, de um corpo cada vez maior de trabalhos e pesquisas que se utilizam da fenomenologia e de seus autores e autoras clássicos para desenvolver e articular seus conhecimentos acerca da dimensão psicopatológica; tais contribuições contemporâneas, por exemplo, "começaram a explorar como a fenomenologia pode iluminar a experiência corporificada da enfermidade. Eles elaboram em cima de uma miríade de escritos fenomenológicos, percorrendo de Husserl a Merleau-Ponty, Sartre, Gurwitsch e Heidegger" (Carel, 2011, p. 35). No que se refere ao uso da fenomenologia por esse movimento, é possível ser afirmado que, assim como Jaspers, estes fazem um uso também ortodoxo da mesma, embora a utilizem de forma muito mais complexa, rica e precisa do que o autor alemão. Entretanto, compartilham da crença de que não se faz aqui filosofia fenomenológica, senão um uso da, ou mesmo um diálogo com a mesma. Em seguida apresentamos algumas consequências deste diálogo, que devem ser lidos a partir do pano de fundo da fenomenologia.

Dentro das propostas contemporâneas em psicopatologia informada fenomenologicamente, é possível analisar algumas características comuns, como o seu próprio desenvolvimento a partir do descontentamento e do reconhecimento de uma crise da psiquiatria mainstream (Tamelini & Messas, 2017). Essa psiquiatria - que, com as devidas proporções remetem ao desenvolvimento do legado de autores como Wilhelm Griesinger e Kraepelin -, por sua vez caracterizou-se e foi influenciada principalmente por uma epistemologia positivista e behaviorista, informada especialmente pelo positivismo lógico (vide "Die wissenschaftliche Weltauffassung. Der Wiener Kreis", o manifesto do Círculo de Viena, que concentra de forma bastante clara suas pressuposições, as quais iriam décadas depois ser integradas mesmo na psicopatologia, em Carnap, Hahn, e Neurath (1929), no qual a observação empírica, a anti-metafísica e o comprometimento com a lógica são considerados as únicas fontes válidas de conhecimento (Parnas et al., 2013). Contudo, no presente contexto referente ao desenvolvimento do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) III na década de 80, a psiquiatria adotou uma posição fortemente marcada pelo fisicalismo, pelo reducionismo biológico, e pelo objetivismo. Mayes e Horwitz (2005) chegam a considerar o "sucesso" da nova edição do manual em virtude da 1) adoção da medicalização, isto é, do empréstimo do modelo diagnóstico da medicina geral para a psiquiatria; 2) da defesa de um modelo que advoga por "[...] classificações com objetividade, verdade e razão" (Mayes & Horwitz, 2005, p. 250); e 3) da utilização de categorias e diagnósticos baseados em sintomas visíveis e mensuráveis para a definição de transtorno mental. Entretanto, ao contrário do caráter "ateórico" pregado desde o DSM-III, é possível observar, nesse pensar psiquiátrico, pressuposições subjacentes acerca do que é consciência, da linha entre normalidade e patologia; bem como diversos comprometimentos ontológicos com relação à existência humana entendida exclusivamente enquanto evento neurobiológico ou consequência epifenomenal do mesmo, e epistemológicos, referentes aos modos de acesso ao sofrimento dos pacientes (a partir de dados visíveis através do comportamento ou mesmo informações obtidas por exames neurológicos de imagem). "Para a psiquiatria na qual a biologia é mais importante que a experiência humana fundamental, corresponde uma psicopatologia que não se importa com a experiência vivida, atenta apenas a comportamentos e síndromes." (Tamelini & Messas, 2017, p. 167).

Portanto, é a insatisfação com essa nova abordagem psiquiátrica, assim como o retorno aos psiquiatras e filósofos(as) do movimento fenomenológico, que trazem à tona discussões acerca tanto do objeto da psicopatologia, bem como dos melhores métodos de acessá-lo. Em tais discussões, "filósofos de convicções tanto analítica quanto fenomenológica - todos argumentam (de vários modos), que qualquer estudo sério da mente ou 'psique' necessita envolver uma consideração da consciência, da subjetividade, ou da perspectiva em primeira pessoa" (Parnas et al., 2013, pp. 273-274). Essa psicopatologia informada pela fenomenologia repensa os erros cometidos pelos modelos reducionistas na psiquiatria (e também nas ciências cognitivas), afirmando mais do que nunca a necessidade de "[...] tratar a mente como fundamentalmente inseparável da existência de nossa experiência subjetiva, de sua corporificação biológica, e de sua situação em um mundo sociocultural" (Froese, 2011, p. 114). Como uma ciência sistemática das experiências subjetivas e de seus diversos modos de constituição, a fenomenologia leva em conta os sujeitos e suas ações corporais implícitas, sua continuidade temporal, ou seus significados perceptuais (Fuchs, 2015): a consciência não é mais um objeto do mundo, mas apresenta uma forma e uma estrutura experiencial, compreendida enquanto manifestação do pensamento, da percepção e dos sentimentos; refere-se a uma vivência, uma realidade vivida presente para o próprio sujeito e para o mundo (Parnas et al., 2013). A consciência, em seu fluxo temporal constante, é por sua vez organizada a partir de certas estruturas, a exemplo da intencionalidade, temporalidade, corporificação e intersubjetividade que se dão apenas a partir de um enraizamento: ela se mostra como corporificada, compreendida principalmente a partir da divisão entre o corpo vivido (Leib), e corpo físico "objetual" (Körper). Disso segue que o corpo se mostra enquanto um inseparável ponto de partida da experiência e existência humana como um ser-no-mundo, que "embora não percebido, opera em toda ação e interação com os outros, sem requerer atenção explícita" (Fuchs & Schlimme, 2009, p. 571). Tais reflexões acerca da compreensão da vida e da experiência enquanto corporificadas, encontradas tanto na obra de Husserl quanto na de Merleau-Ponty, são expostas de forma enfática por Fuchs em seu Ecology of the Brain: "Em termos de nossa existência, as características duais da vida evocam a qualidade contraditória de nosso relacionamento próprio, no qual espontaneidade e reflexividade, liberdade e necessidade, mente e corpo, e cultura e natureza estão sempre em desacordo umas com as outras" (Fuchs, 2018, p. 282, tradução nossa), a natureza do corpo vivido que somos, e do corpo físico que temos, não podem, segundo o autor, "[...] nunca serem reconciliadas uma com a outra. A ambiguidade do humano resiste a todas as tentativas de resolução a uma unidade homogênea" (Op. cit).

Tal estudo da dimensão psicopatológica exige para esses autores(as), necessariamente, uma integração necessária entre várias disciplinas; se trata aqui, principalmente, das contribuições da filosofia, da psiquiatria, da psicologia, das ciências cognitivas, da biologia, entre outras. Apenas tal integração poderia, com todas suas limitações de acesso e compreensão, aproximar-se de um estudo sério e rigoroso da consciência, em toda sua complexidade. A ideia de que a psiquiatria por ela mesma seria responsável (e capaz) por oferecer respostas a problemas empíricos é negada, uma vez que "uma parte central de seu funcionamento também envolve problemas conceituais e epistemológicos. Similar às outras ciências, a psiquiatria estabelece uma série de pressuposições sobre a natureza da realidade, do status da consciência, e o processo de investigação científica" (Parnas et al., 2013, p. 274). Não deveria então haver exclusividade da psiquiatria em estudos psicopatológicos. Depreende-se daí a necessária contribuição da filosofia, a qual, a partir de sua abordagem cética e preocupada com a dimensão conceitual, pode contribuir e prever possíveis compreensões errôneas tanto em questões metodológicas quanto conceituais (Fuchs, 2010).

Tais são as características dessa nova tendência contemporânea em psicopatologia, a saber, o uso da fenomenologia enquanto parte integrante de suas ferramentas no que se refere a 1) conceitos específicos, como aquele da consciência, corpo e suas estruturas, da dualidade perspectiva característica da corporeidade e da percepção, e da impossibilidade de compreender como se dão os conflitos psicopatológicos a partir de uma interpretação exclusivamente biológica da existência humana; 2) um método específico, que de modo algum pretende ser o mesmo da fenomenologia enquanto empreendimento filosófico, mas que ainda resguarda a necessidade de i) manter-se aberto, buscando deixar de lado prejuízos ao se deparar com certos fenômenos, e ii) buscar estabelecer uma descrição minuciosa de certas alterações ou transtornos, buscando criar uma compreensão dos mesmos a partir de suas características frequentes (podemos dizer aqui a "essência" - em um sentido fraco do termo - de uma certa experiência) utilizando-se do arsenal conceitual da fenomenologia; bem como 3) o necessário diálogo entre disciplinas de modo a compreender o fenômeno psicopatológico de forma mais completa. Tais características apontam para certo uso da fenomenologia que não clama utilizar dos mesmos métodos dela enquanto filosofia fenomenológica, mas que, em contrapartida, utiliza alguns de seus resultados que se mostram altamente interessantes para a pesquisa em psicopatologia. A seguinte citação resume tal relação frutífera:

Enquanto projeto sistemático das estruturas da experiência subjetiva, a fenomenologia também pode ser considerada a ciência fundadora para a psicopatologia. Apesar de metodicamente suspender quaisquer suposições acerca de explicações causais, ela provê um rico framework para a análise da subjetividade e seus distúrbios nos transtornos mentais, assim também conduzindo a hipóteses testáveis acerca dos mecanismos neurobiológicos subjacentes. (Fuchs, 2010, p. 547)

 

Considerações Finais

O presente artigo buscou iniciar com o desenvolvimento da fenomenologia enquanto empreendimento transcendental iniciado por Husserl, caminhando através das tensões entre a filosofia fenomenológica transcendental e as possibilidades de seu uso fora da filosofia, em direção a dois exemplos bastante profícuos e que demonstram que tal conexão e uso da fenomenologia em um contexto não filosófico. Ambos os exemplos demonstram uma continuidade no que se refere ao uso da fenomenologia que se mostra profícua nos dois polos de pesquisa, e que revela um desenvolvimento do pensamento psicopatológico frutífero até os dias atuais. Embora o principal objetivo da fenomenologia de fato seja marcado por seu caráter transcendental, antinaturalista, antipsicologista, o qual apenas com um método específico - aquele da epoché e da redução - poderia atingir um novo campo de investigação que possibilitasse uma fundação apodítica da filosofia, i.e., uma que retornasse às coisas mesmas e ao mundo-da-vida (Lebenswelt) enquanto fundamento de todas as ciências e da filosofia, e embora isso seja verdadeiro para a pesquisa em filosofia, cremos ter apresentado que se torna bastante questionável se tal método deve necessariamente ser utilizado no contexto não-filosófico. Entretanto, como argumentamos, não apenas cremos que a fenomenologia pode ser muito interessante para as diversas outras disciplinas que se informam a partir dela, como também apontamos para exemplos que julgamos qualificados em sua utilização.

Destacamos, assim, que Jaspers de forma alguma fez um uso ortodoxo do método fenomenológico; pelo contrário, rejeitou características essenciais do que poderia ser considerada ortodoxia fenomenológica, mesmo em sua fase inicial. Porém, mesmo assim, utilizou-se dela de forma profícua no que se refere à apreciação das descrições internas da experiência, ao caráter inesgotável da subjetividade, e da necessidade de descrever as experiências buscando neutralizar preconceitos frente a seus pacientes. Este uso extrafilosófico da fenomenologia também é, apontamos, identificado na psicopatologia fenomenológica contemporânea que, insatisfeita com o paradigma atual em psicopatologia, faz um uso ainda mais rico de autores do movimento fenomenológico; este movimento, também, não afirma fazer um uso da fenomenologia que se assemelhe àquele da filosofia, mas antes se utilizam de seu framework conceitual e seus resultados para seus próprios propósitos.

Por fim, não cremos numa "redução" da fenomenologia à ciência, nem entendemos que o objetivo da fenomenologia enquanto filosofia fenomenológica não seria exatamente aquele para o qual foi originalmente pensada, qual seja, de estabelecer uma contraposição epistemológica crítica a partir de um retorno transcendental à consciência em relação com o mundo: isso permanece verdadeiro para uma filosofia transcendental, que deve ser realizada apenas enquanto fenomenologia. Entretanto, em favor da riqueza e das várias consequências da fenomenologia para todas as demais ciências, ela toca temas (consciência, corpo, subjetividade, volição, atenção) que podem oferecer grandes contribuições às disciplinas não-filosóficas. Não é acidental que Husserl, ao receber o trabalho de Jaspers em psicopatologia, cumprimentou o mesmo e sua "reforma fenomenológica de psiquiátrica": não era de total importância que Jaspers não entendesse profundamente de fenomenologia, pois ela leva a problemas filosóficos dos mais profundos; essencial é, segundo Husserl, conhecer em detalhe os problemas da psicologia (em um sentido abrangente do conceito) e a necessidade de uma análise fenomenológica que deixe radicalmente de lado todas suas mitologias psicofísicas, valendo-se apenas do que é trazido em pura intuição (C.f. Jaspers, 2016, pp. 374-375). Finalmente, no esteio do que foi previamente argumentado, cremos que o retorno ao rico histórico da relação entre fenomenologia e psicopatologia e psiquiatria, em conjunto com a atualização acerca da pesquisa contemporânea em fenomenologia aplicada, pode oferecer modos de contrapor-se, hoje, aos diferentes tipos de reducionismo da consciência, da existência humana e sua consequências, bem como oferecer proposições que façam um uso diverso (porém correto, rigoroso e minucioso) da ciência fenomenológica.

 

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Endereço para correspondência:
Victor Luis Clavisso Portugal
E-mail: victor.portvgal@gmail.com

Adriano Furtado Holanda
E-mail: aholanda@yahoo.com

Recebido em: 22/11/2019
Revisado em: 06/02/2020
Aceito em: 06/02/2021
Publicado online: 10/01/2022

 

 

1 Vide carta de Husserl a Georg Misch datada de 1930, na qual Husserl afirma que seu interesse, já na época da publicação das Ideen I voltou-se não à lógica formal, mas sim à "[...] fundamentação sistemática de uma doutrina da subjetividade transcendental, e exatamente enquanto intersubjetividade" (Husserl, 1994, p. 282, tradução nossa).

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