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Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.3 Fortaleza sept./Dec. 2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21i3.e11181 

DOSSIÊ: RESILIÊNCIA E DEFICIÊNCIA

 

Processos de resiliência em estudantes universitários com deficiência

 

Resilience Processes for Graduate Students with Disabilities

 

Procesos de Resiliencia en Estudiantes Universitarios con Discapacidad

 

Processus de Résilience chez les Étudiants Universitaires Handicapés

 

 

Isabela Samogim SantosI; Alex Sandro Gomes PessoaII; Ariane Rico GomesIII; Letícia Yuki de Araújo FurukawaIV

IMestre em Educação pela Universidade do Oeste Paulista. Especialista em Docência para o Curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio: Enfermagem pela Unoeste
IIDocente vinculado ao Departamento de Psicologia (DPsi) e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (PPGPsi-UFSCar). Pesquisador no Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV)
IIIDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSCar. Pesquisadora vinculada ao Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV)
IVMestranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisadora vinculada ao LAPREV/UFSCar

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A inclusão de pessoas com deficiência no ensino superior foi uma conquista histórica e repercutiu em dimensões políticas, sociais e psicológicas deste segmento. Este artigo teve por objetivo verificar como a inserção no ensino superior auxilia a promoção de resiliência de estudantes universitários com deficiência. Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e com recorte transversal. O trabalho de campo ocorreu em duas universidades (uma pública e outra privada), de uma cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo. Após a definição dos critérios de inclusão, foram recrutados sete participantes, sendo cinco com deficiência visual e dois com deficiência física. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e reflexivas, com todo o material integralmente transcrito e, posteriormente, submetido à análise de conteúdo. Os resultados foram sistematizados em torno de cinco categoriais: a) afirmação identitária e não-vitimização; b) possibilidade de nutrir projetos de vida; c) diferença e reciprocidade; d) experiências de altruísmo; e) participação social, senso crítico e reivindicação de direitos. A pesquisa evidenciou que o acesso à universidade repercutiu de forma positiva na vida dos participantes, impulsionando-os à manutenção e/ou construção de projetos de vida, na promoção do bem-estar e na descoberta de novas possibilidades de existência, antes pouco vivenciadas.

Palavras-chave: resiliência; deficiência; ensino superior.


ABSTRACT

The inclusion of people with disabilities in higher education was a historic achievement, and had repercussions on the political, social and psychological dimensions of this segment. This article aimed to verify how insertion in higher education helps promote resilience for graduate students with disabilities. The fieldwork took place at two universities (one public and one private) in a medium-sized city from São Paulo state, Brazil. After defining the inclusion criteria, seven participants were recruited, five with visual impairment and two with physical impairment. Semi-structured and reflexive interviews were conducted, and all the material was fully transcribed and subsequently submitted to content analysis. The results were systematized around five categories: a) identity affirmation and non-victimization; b) possibility of nurturing life projects; c) difference and reciprocity; d) experiences of altruism; e) social participation, critical sense and claiming rights. The research showed that access to the university had a positive impact on the participants' lives, encouraging them to maintain and / or build life projects, to promote well-being, and to discover new possibilities of existence, previously little experienced.

Keywords: resilience; disability; higher education.


RESUMEN

La inclusión de personas con discapacidad en la enseñanza superior fue una conquista histórica y repercutió en dimensiones políticas, sociales y psicológicas de esta línea. Este trabajo tuvo el objetivo de verificar cómo el ingreso en la enseñanza superior auxilia la promoción de resiliencia de estudiantes universitarios con discapacidad. El estudio es de tipo cualitativo, exploratorio y con recorte transversal. El trabajo de campo ocurrió en dos universidades (una pública y otra privada), de una ciudad de medio porte en el interior del estado de São Paulo. Tras definir los criterios de inclusión, fueron reclutados siete participantes (cinco con discapacidad visual y dos con discapacidad física). Fueron realizadas entrevistas semiestructuradas y reflexivas, con todo el material integralmente transcrito y, luego, sometido a análisis de contenido. Los resultados fueron sistematizados en cinco categorías: a) afirmación de identidad y no-victimización; b) posibilidad de nutrir proyectos de vida; c) diferencia y reciprocidad; d) experiencia de altruismo; e) participación social, sentido crítico y reivindicación de derechos. La investigación evidenció que el acceso a la universidad repercutió positivamente en la vida de los participantes, impulsándoles a la manutención y/o construcción de proyectos de vida, en la promoción de bienestar y en la descubierta de nuevas posibilidades de existencia, antes poco vividas.

Palabras clave: resiliencia; discapacidad; enseñanza superior.


RÉSUMÉ

L'inclusion des personnes handicapées dans l'enseignement supérieur est une réalisation historique et a des répercussions sur les dimensions politiques, sociales et psychologiques de ce segment. Cet article visait à vérifier comment l'insertion dans l'enseignement supérieur contribue à favoriser la résilience des étudiants universitaires en situation de handicap. Il s'agit d'une étude qualitative, exploratoire et transversale. Le travail de terrain s'est déroulé dans deux universités (une publique et une privée), dans une ville de taille moyenne à l'intérieur de l'État de São Paulo, au Brésil. Après avoir défini les critères d'inclusion, sept participants ont été recrutés, cinq avec une déficience visuelle et deux avec un handicap physique. Des entretiens semi-structurés et réflexifs ont été réalisés, avec tout le matériel entièrement transcrit et ensuite soumis à une analyse de contenu. Les résultats ont été systématisés autour de cinq catégories : a) affirmation identitaire et non victimisation ; b) possibilité de nourrir des projets de vie ; c) différence et réciprocité ; d) expériences d'altruisme ; e) la participation sociale, la pensée critique et la revendication des droits. La recherche a montré que l'accès à l'université avait un impact positif sur la vie des participants, les encourageant à maintenir et/ou construire des projets de vie, favorisant le bien-être et découvrant de nouvelles possibilités d'existence, qu'ils n'avaient pas expérimentées auparavant.

Mots-clés: résilience; handicap; l'enseignement universitaire.


 

 

A resiliência pode ser definida como um fenômeno psicológico associado à superação do estresse e das adversidades (Masten, 2014; Rutter, 1999; Yunes, 2003) e que "implica em tentar transformar os momentos de traumas e situações complexas em novas perspectivas" (Assis, Pesce, & Avanci, 2006, p. 57). Segundo Rutter (1999) e Masten (2014), resiliência pode ser vista como um conjunto de processos sociais e intrapsíquicos, que acontece em certo período, com combinações benéficas ao indivíduo e favorecedoras do desenvolvimento saudável, apesar da exposição a fatores de risco significativos.

Embora não haja consenso na definição do termo, resiliência tem sido associada ao desenvolvimento positivo dos indivíduos diante das adversidades. Contudo, de acordo com Luthar, Cicchetti, & Becker (2000), ainda persiste uma confusão nos modelos explicativos, que a definem como um processo psicológico dinâmico ou como atributo fixo, como se fosse uma capacidade inata. Nesta segunda corrente, os discursos apontam para resiliência centrada no indivíduo, relacionado a predisposições intrínsecas, desvalorizando aspectos culturais e comunitários (Yunes, 2006). Mais recentemente, tanto no Brasil quanto nos estudos internacionais, pesquisadores passaram a reconhecer a relevância de caracterizar os fatores de proteção que estão associados ao processo de superação de adversidades e enfrentamento de eventos estressores. Desse modo, enfraqueceu-se a ideia de resiliência como atributo fixo, como se as pessoas tivessem características naturais ou herdadas biologicamente, tornando-as mais ou menos resilientes (Pessoa & Koller, 2020).

Também em contraposição a esta perspectiva inatista, Ungar (2008 propôs a compreensão de resiliência numa perspectiva socioecológica, considerando aspectos culturais e contextuais como determinantes para o enfrentamento e superação das adversidades. A partir de diversos estudos interculturais, o autor constatou que o indivíduo não "nasce resiliente", mas extrai do contexto histórico e cultural recursos necessários para a manutenção da saúde mental, positividade pessoal e outros elementos associados ao fortalecimento subjetivo (. Assim, pode-se afirmar que a resiliência é um processo dinâmico e se dá nas interações entre a pessoa em desenvolvimento, seu ambiente e nas situações de seu entorno e deve ser compreendida a partir de diferentes variáveis, como: idade, nível de desenvolvimento psicológico, marcadores de gênero, variáveis culturais, qualidade nos relacionamentos interpessoais, entre tantos outros aspectos (. Na mesma direção, afirma que:

[...] resiliência não é um atributo que nasce com o sujeito, mas sim uma qualidade que nasce da relação da pessoa com o meio em que ela vive; e que pode fortalecê-la para superar as dificuldades e violências vividas. Desta forma, a resiliência pode ser trabalhada e estimulada por qualquer grupo social ou instituição escolar, comunidades, profissionais e famílias (Assis, 2005, p. 7)

Portanto, a resiliência não pode ser individualizada e centrada exclusivamente no indivíduo. Pelo contrário, deve-se reconhecer que os recursos sociais disponíveis às populações em situação de risco são fundamentais para uma trajetória de superação de situações adversas (Pessoa, Coimbra, Murgo, Breda, & Baker-Lewton, 2018; Pessoa, Coimbra, Noltemeyer, & Bottrell, 2017). Somando a esta compreensão contextual da resiliência, existem outros conceitos adjacentes a este construto psicológico que precisam ser levados em consideração, como por exemplo, os fatores de risco e proteção.

Sobre os fatores de risco, Poletto e Koller (2011) e Pessoa e Coimbra (2020) esclarecem que se referem a eventos que expõem o indivíduo ao desenvolvimento de problemas emocionais, físicos e comportamentais. Trata-se de variáveis (pessoais, relacionais ou contextuais) que aumentam a probabilidade do surgimento de problemas comportamentais ou adaptativos. Possuem variações significativas a partir do tempo de exposição, dos significados culturais e dos sentidos pessoais atribuídos ao evento estressor (Yunes, 2003). Para que a situação seja considerada como estressora, e, portanto, se constituir como um fator de risco, a percepção do indivíduo frente ao evento deve ser levada em consideração. Isso porque uma mesma situação (ou fator entendido como estressor) pode ser percebida de forma diferente pelas pessoas, sendo caracterizada como adversidade para um e insignificante para outro (Yunes, 2003). Com o avanço da produção científica na área, foi constatado que não existem situações de riscos universais e que o impacto dos fatores de risco possui ampla variabilidade, que dependem, sobremaneira, dos significados culturais e pessoais atribuídos ao evento estressor.

Por outro lado, os fatores de proteção são condições que contribuem para o desenvolvimento saudável das pessoas, impulsionando-as ao crescimento social e pessoal. São definidos como variáveis que diminuem a probabilidade de um resultado negativo frente um evento estressor, contribuindo para uma resposta positiva por intermédio da manutenção da autoestima, da autoeficácia e de positividade pessoal (Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). Espaços como a escola, centros comunitários, postos de saúde, redes de apoio social, entre outros, podem se configurar como espaços protetivos pela convivência saudável, por possibilitar aprendizagens, desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais. No entanto, tal como já mencionado em relação aos fatores de risco, a percepção do indivíduo e a qualidade das interações são aspectos fundamentais para a concretização de ambientes protetivos (Poletto & Koller, 2011).

 

As Universidades e a Promoção de Resiliência para Pessoas com Deficiência

Apesar de se constituir como um tema promissor e necessário, poucos textos científicos articulam os temas resiliência e deficiência. Trata-se de uma lacuna que merece mais investimentos da comunidade científica. A partir de um levantamento assistemático da produção nesta área (Santos, 2018), pode-se constatar que poucos estudos empíricos foram realizados sobre esta temática, sobressaindo investigações que abordaram o papel do professor como agente que pode contribuir na promoção de resiliência para pessoas com deficiência.

A trajetória de exclusão e segregação das pessoas com deficiência os coloca em desvantagem social em diversas esferas sociais, constituindo-se como um fator de risco significativo. Todavia, tal como alertado por Santos e Pessoa (2019), a deficiência, por si só, não deveria ser considerada um fator de risco, mas sim as ações excludentes e de não equiparação de oportunidades que expõem estes grupos a situações de vulnerabilidade. Defende-se, portanto, que as pesquisas sobre resiliência voltadas para as pessoas com deficiência devem compreender os fatores de risco como as variáveis ambientais que inviabilizam práticas inclusivas ou produzem sofrimento psíquico. Em contrapartida, os fatores de proteção são pessoas, lugares, instituições ou práticas que promovem a inclusão, produzem o bem estar e promovem resiliência para as pessoas com deficiência.

Em razão da inabilidade da sociedade em promover práticas genuinamente inclusivas às pessoas com deficiência, os fatores de risco se manifestam em situações como: dificuldades de locomoção, ausências nos espaços escolares pela incapacidade de mobilidade e/ou acesso aos recursos pedagógicos, isolamento social, entre outros (Santos & Pessoa, 2019). Já em relação aos fatores de proteção, destacam-se as características pessoais do indivíduo que interferem em sua percepção frente a situações diversas, ter suporte social da família e amigos e, certamente, a presença de uma rede de proteção fortalecida (Santos & Pessoa, 2019).

De acordo com a literatura, os processos de resiliência de pessoas com deficiência também podem ser influenciados pelo tipo de deficiência. Quando a deficiência é mais perceptível, as atitudes excludentes podem ser mais intensas, expondo as pessoas a fatores de risco ainda mais potentes (Cardoso & Sacomori, 2014; Domellof, Hedlund, & Odman, 2014). Em contrapartida, as relações interpessoais têm importante papel na vida da pessoa com deficiência, pois favorecem a coesão e o sentimento de pertencimento ao grupo (Santos & Pessoa, 2020). Quando estes relacionamentos propiciam a participação em práticas culturais reconhecidas pela família e comunidade, são favorecidas as estratégias de fortalecimento subjetivo e, consequentemente, potencializam a promoção de resiliência (Libório, Castro, Ferro, & Souza, 2015; Resende & Gouveia, 2011).

Apesar de não ser um argumento consensual (Pessoa & Koller, 2020), as instituições educativas têm sido apontadas pela literatura como um dos espaços mais potentes para a promoção de resiliência em pessoas com deficiência. Para Libório (2009), as instituições educativas podem se configurar como um espaço protetivo, uma vez que oportuniza a participação social, a mobilidade de classes, a integração a práticas formativas e o senso de pertencimento. Em concordância, Catusso (2007) e Santos e Pessoa (2020) afirmam que as escolas e as universidades podem ser protetivas para as pessoas em virtude de contribuir, por meio das ações dos seus professores e dos relacionamentos entre pares, para o desenvolvimento do senso identitário, do estabelecimento de relacionamentos positivos, da promoção da justiça social e da apropriação do conhecimento científico e filosófico historicamente construído pela humanidade.

Apesar destas indicações gerais sobre os fatores de risco e proteção de pessoas com deficiência e sua articulação com os contextos educativos como espaços promotores de resiliência, considera-se necessário investigar estas relações a partir dos diferentes níveis de escolarização, ou seja, da educação infantil ao ensino superior. Entretanto, não foram encontradas publicações que versassem especificamente sobre processos de resiliência em estudantes universitários com deficiência (Santos, 2018). Ou seja, as pesquisas concentram-se, majoritariamente, no ensino fundamental e médio.

As hipóteses norteadoras desta investigação afirmam que as pessoas com deficiência que acessavam o ensino superior demonstravam processos de resiliência, pois, apesar de todas as dificuldades e infortúnios (impostos pela sociedade e não pela deficiência) conseguiam ingressar em uma instituição de alto prestígio social (Santos & Pessoa, 2019). Sabe-se que, no Brasil, as universidades são instituições elitistas e excludentes, e que impede o acesso de um grande contingente de pessoas. Assim, apesar de todas as barreiras econômicas e atitudinais, estudantes com deficiência têm acessado estas instituições, demonstrando recursos sociais e subjetivos de enfrentamento ao preconceito e à exclusão.

O número de estudantes com deficiência no ensino superior tem aumentado consideravelmente. Segundo dados divulgados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI, (2016), e o Censo da Educação Superior demonstra que, entre 2003 e 2015, o número de estudantes com deficiência passou de 5.078 para 33.475, representando um crescimento de 559%. Todavia, a pesquisa de Orr & Goodman (2010) revela que os índices de evasão desta população são preocupantes, o que está associado a dificuldades em relação à permanência estudantil.

Ainda assim, em pesquisas realizadas com estudantes universitários com deficiência, ficou demonstrado que, mesmo diante de algumas dificuldades, os mesmos apresentavam determinação para a conclusão do curso, além de relações interpessoais positivas, envolvimento em atividades comunitárias e discursos de empoderamento após o ingresso no ensino superior. Os participantes mencionaram professores cuja influência mudou significativamente sua visão de vida, a participação social e o engajamento acadêmico (Orr & Goodman, 2010; Santos & Pessoa, 2020).

Parte-se da hipótese que as universidades, quando realmente se constituem como espaços inclusivos, podem se configurar como instituições que colaboram para a produção do conhecimento, na valorização do convívio social e de trocas que sejam benéficas para todos os estudantes, com ou sem deficiência. Além disso, nestes espaços as pessoas com deficiência podem criar metas que fortaleçam os projetos de vida e possibilitem a exploração das potencialidades (Santos & Pessoa, 2019. No entanto, torna-se necessário identificar os fatores de proteção presentes neste nível de ensino que podem estar associados aos processos de resiliência de estudantes com deficiência. Portanto, levando estes aspectos em consideração, o objetivo deste artigo apresenta-se ao verificar como a inserção no ensino superior auxilia a promoção de resiliência de estudantes universitários com deficiência.

 

Método

Este artigo foi elaborado a partir da dissertação de mestrado da primeira autora (Santos, 2018). Trata-se de um estudo empírico, com abordagem qualitativa e com delineamento transversal. Em termos do referencial epistemológico adotado, a pesquisa fundamentou-se na abordagem socioecológica da resiliência (Porcelli, Ungar, Liebenberg, & Trépanier, 2014; Ungar, 2008 e da educação inclusiva (; ; .

A abordagem qualitativa foi escolhida por revelar percepções do sujeito que não podem ser quantificadas, pois se referem a conteúdos pessoais. Além disso, tal abordagem preza pela compreensão das crenças, valores e atitudes, dando ênfase nas relações a partir da realidade, permitindo a utilização de técnicas analíticas que geram interpretações a partir do ponto de vista dos próprios participantes (Crouch & McKenzie, 2006).

Instituição e Participantes

A pesquisa foi realizada em duas universidades localizadas numa cidade de médio porte do interior do estado de São Paulo, sendo uma pública e outra privada. Inicialmente, as universidades foram consultadas sobre possíveis registros informatizados de estudantes com deficiência. Como ambas as instituições não dispunham de um sistema para o registro e acesso a dados dos estudantes com deficiência, procedeu-se com o contato por e-mail, com os coordenadores de curso de graduação das duas universidades. Assim, por intermédio deste canal de comunicação, foram explicitados os objetivos e procedimentos que seriam adotados na investigação. Esperou-se o retorno sobre as matrículas dos estudantes com deficiência que poderiam ser contatados para, eventualmente, participarem do estudo. Após o retorno, iniciou-se a coleta de dados.

No período de abril a fevereiro de 2017, foram enviadas três mensagens a 54 coordenadores de cursos de graduação. Ao final, apenas nove coordenadores responderam e se prontificaram a colaborar com a investigação. A partir dos diálogos estabelecidos com os coordenadores, foram identificados oito estudantes com deficiência, que estavam regularmente matriculados em cursos de diferentes áreas do conhecimento. Após o convite, sete estudantes aceitaram participar, sendo cinco deles vinculados à instituição privada e dois provenientes da universidade pública. A Tabela 1 apresenta os dados sociodemográficos dos participantes:

Instrumentos

Os instrumentos utilizados foram as i) entrevistas semiestruturadas e ii) a entrevista reflexiva. O roteiro de entrevistas semiestruturadas foi constituído por questões elaboradas a partir de temas que se relacionavam com o objetivo do estudo, portanto, estavam circunscritos à vida acadêmica, aos fatores de proteção e aos processos de resiliência associados à universidade, como, por exemplo: Como é a relação com seus colegas de curso?; Quando você tem desafios na universidade, como você lida com essas situações?; Quem são as pessoas que mais lhe auxiliam na universidade para que você permaneça no curso?.

Após a condução das entrevistas semiestruturadas, procedeu-se com a realização das entrevistas reflexivas. A entrevista reflexiva consiste no engajamento entre entrevistador e entrevistado - e sua elaboração e compreensão coletiva de conteúdos subjetivos (Pessoa, Harper, Santos, & Gracino, 2019). Mais do que relatar suas experiências, os entrevistados, com o suporte dos entrevistadores, têm a oportunidade de compartilhar os significados da realidade que os cercam e dos eventos de suas próprias vidas, sem que isso seja feito de forma arbitrária pelo entrevistador (Yunes, 2003). Desse modo, é imprescindível que os entrevistados sejam engajados no processo de reflexibilidade sobre as experiências, o que significa que eles próprios precisam validar os conteúdos que emergiram e auxiliar nas interpretações feitas pelos entrevistadores. A reflexibilidade tem "o sentido de refletir a fala de quem foi entrevistado, expressando a compreensão da mesma pelo entrevistador e submeter tal compreensão ao próprio entrevistado, que é uma forma de aprimorar a fidedignidade" (Szymanski, 2000, p. 197).

Procedimentos

A partir de entrevistas individuais (inicialmente) com os participantes, todos os encontros ocorreram nas próprias universidades (em dias e horários agendados pelos estudantes), com duração média de 50 minutos cada. Como mencionado anteriormente, todo o conteúdo foi gravado em equipamento digital e, posteriormente, transcrito na íntegra. O material foi submetido a uma pré-análise, conduzida de forma independente pela pesquisadora, seu orientador e integrantes do grupo de pesquisa - que tinham familiaridade com a temática da resiliência.

No decorrer das entrevistas, novas perguntas se fizeram necessárias, constatando a necessidade do aprofundamento de certos temas - anteriormente vistos de forma superficial e indevidamente explorados devido a incertezas da pesquisadora. Este material compôs o roteiro de questões que foi empregado nas entrevistas reflexivas (um detalhamento deste procedimento pode ser encontrado em Pessoa et al. (2019). Cabe salientar que nem todos os participantes foram convidados para a participação nas entrevistas reflexivas. Em alguns casos, as entrevistas iniciais geraram dados suficientes para a compressão do objeto de estudo. Por fim, em consonância com os princípios da educação inclusiva, cabe destacar que a pesquisadora responsável pela coleta de dados se certificou de todas as necessidades dos participantes, adaptando os recursos quando necessário.

Análise dos Dados e Confiabilidade

Os dados provenientes das entrevistas foram analisados por meio da análise de conteúdo de Bardin (2011). Todo o material transcrito, incluindo as entrevistas semiestruturadas e reflexivas, passaram por três etapas: 1) pré-análise: consistiu na leitura exaustiva e flutuante das estruturas textuais, objetivando a familiaridade com o material, reorganização das ideias trazidas pelos participantes e anotações dos pesquisadores sobre temas considerados de "maior relevância", levando em consideração o objeto de investigação; 2) exploração do material: elaboração de códigos e agrupamento de sentenças e discursos que apresentavam similaridades semânticas e proximidade em termos dos conteúdos evocados; 3) tratamento dos resultados: elaboração de temáticas e categorias analíticas que respondessem às questões de pesquisa, contrastando com a literatura da área e por meio de inferências a partir dos dados obtidos.

Em termos de confiabilidade, o material foi analisado pela pesquisadora e seu orientador, além de ser inspirado na técnica proposta por Adistie, Lumbantobing, e Maryam (2020). Inicialmente, o material foi analisado de forma independente, sendo as discrepâncias sanadas por consenso, após a retomada de elementos contidos na literatura. Em seguida, os excertos e suas correspondências, em termos de temáticas produzidas, submeteram-se para análise de juízes, composta por uma banca de pesquisadores vinculados ao grupo de pesquisa coordenado pelo segundo autor deste artigo. Todos os juízes possuíam experiência na temática da resiliência, tendo realizado estudos nesta área. A concordância dos juízes foi superior a 90%, o que indica adequação e pertinência no manejo dos dados e confiabilidade intra-área (Adistie et al., 2020).

Questões Éticas

Antes do trabalho de campo ser iniciado, o projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com seres humanos, da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), com CAAE1 61304216.8.0000.5515. Foram seguidas todas as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), em suas resoluções 466/2012 e 510/2016. Após aprovação, foram realizados os contatos com as instituições, solicitando autorização para realização da pesquisa e contato com os participantes. Ainda em relação aos preceitos éticos, somente a pesquisadora e seu orientador tiveram acesso à identidade dos participantes. Sendo assim, estas informações serão omitidas no artigo, visando à preservação a integridade dos participantes que participaram voluntariamente e sem nenhum tipo de bonificação. Todas as informações obtidas, incluindo as gravações e transcrições, serão descartadas após cinco anos da coleta de dados.

Resultados e Discussão

Cinco categorias emergiram do processo analítico: a) afirmação identitária e não-vitimização; b) possibilidade de nutrir projetos de vida; c) diferença e reciprocidade; d) experiências de altruísmo; e) participação social, senso crítico e reivindicação de direitos. Em conjunto, elas revelam aspectos importantes sobre como as universidades, as práticas pedagógicas que nela se estruturam e os relacionamentos interpessoais podem contribuir para a promoção de processos de resiliência. Além disso, os resultados evidenciaram que o acesso à universidade repercutiu de forma positiva na vida dos participantes, impulsionando-os à manutenção e/ou construção de projetos de vida, na promoção do bem-estar e na descoberta de novas possibilidades de existência, antes pouco vivenciadas.

Afirmação Identitária e Não-Vitimização

Esta temática demonstrou que as universidades possibilitaram a afirmação positiva da identidade dos estudantes com deficiência, na medida em que deslocaram o olhar das supostas fragilidades e passaram a reconhecer atributos positivos em si próprios. Na Tabela 2, é possível notar que a rotina na universidade possibilitou que os estudantes com deficiência explorassem suas potencialidades em diferentes dimensões, desde as questões acadêmicas até nos relacionamentos interpessoais.

Além disso, é importante frisar que em alguns excertos ficou evidenciado que as dificuldades que os participantes possuem não estão necessariamente associadas à deficiência. Trata-se de problemas corriqueiros que qualquer estudante de ensino superior pode se deparar. Exatamente por isso, pode-se verificar em seus discursos mudanças identitárias entre o antes e após o ingresso no ensino superior.

Day e Wadey (2016) sugerem que após um evento adverso ou estressor (como adquirir uma deficiência), os processos de resiliência ocorrem a partir de cinco dimensões: a) percepção de mudanças pessoais; b) qualidade nos relacionamentos interpessoais; c) mudanças na filosofia existencial; d) alterações nas prioridades de vida; e) manutenção das crenças e espiritualidade. É possível afirmar, por intermédio desta primeira temática, que ao ingressarem nas universidades, os estudantes com deficiência demonstram mudanças significativas na sua autoimagem e passam e valorizar suas capacidades, o que está diretamente associado às quatro primeiras dimensões de resiliência mencionadas pelos autores supracitados.

A não-vitimização encontrada nos relatos dos participantes se associa à resiliência na medida em que os estudantes com deficiência conseguem estabelecer uma compreensão não deturpada sobre si. Na literatura internacional, esse comportamento tem sido associado com a autodeterminação (self-determination) e refere-se à conduta autônoma, aos comportamentos autorregulados, ajustamento psicológico diante dos fatos e capacidade de organizar ações que sejam exequíveis (Shogren & Shaw, 2016; Wehmeyer, 2006). Assim, os dados sugerem que as universidades possibilitam a elevação das expectativas dos estudantes com deficiência e viabiliza recursos para que se expressem de forma autêntica, reconhecendo suas potencialidades a partir de parâmetros realísticos e não fatalistas.

Possibilidade de Nutrir Projetos de Vida

A pesquisa revelou que a universidade, e mais particularmente alguns professores, são capazes de motivar e nutrir os projetos de vida dos estudantes com deficiência. Todos os participantes relataram, enfaticamente, os benefícios de estar dentro de um espaço educativo como a universidade, capaz de contribuir com a consolidação de perspectivas futuras. Além disso, também pode ser notado, na Tabela 3, a descrição de alguns episódios de descrédito por parte de alguns profissionais, especialmente ex-professores que os desencorajaram em algumas situações.

Foi relatado, ainda, o anseio por carreiras de prestígio social, como a docência no ensino superior - o que exigirá dos participantes o ingresso em níveis ainda mais elevados de escolarização (como cursos de mestrado e doutorado) - bem como salientaram o desejo de ingressar em carreiras ligadas ao funcionalismo público. É interessante notar que os participantes reconhecem que estas metas ou novos projetos de vida são permeados por desafios, mas, ao mesmo tempo, seus discursos evidenciam ações práticas e o engajamento para torná-los realidade.

O anseio por estabilidade financeira e independência, possibilitado pela aquisição de um diploma de nível superior, também foram conteúdos que emergiram inúmeras vezes nas falas dos participantes e que se associa aos processos de resiliência. Em nenhum momento os participantes apontaram a deficiência com a impossibilidade de realização dos projetos de vida. Ao contrário, acreditam que o processo formativo que estão engajados no ensino superior permitirá tais conquistas. A deficiência deixa de ser um obstáculo e o conhecimento adquirido nesse nível de educação colabora para que os participantes não tenham uma visão depreciativa de si.

Segundo Bolton, Praetorius, e Smith-Osborne (2016), o senso de independência e autonomia é um fator relevante para a resiliência. As respostas dos participantes evidenciaram que a universidade possibilitou uma visão ampliada das possibilidades de inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, permitiu a ampliação para a tomada de decisões e organização de projetos pessoais. Em outras palavras, as habilidades adquiridas na universidade permitem que os estudantes com deficiência identifiquem recursos e estratégias que permitam a materialização de projetos futuros.

As experiências tidas na universidade, tanto positivas quanto negativas, permitiram a construção de projetos de vida sólidos e conscientes das dificuldades. Similarmente, alguns conteúdos pedagógicos e o encorajamento constante de alguns docentes do ensino superior auxiliaram no desenvolvimento e manutenção de projetos de vida dos estudantes com deficiência, o que se assemelha aos achados da investigação de Silva, Santos, e Leal (2019). Em uma análise de 50 artigos revisados por pares sobre fatores que promovem a resiliência, Marriott, HamiltonGiachritsis, e Harrop (2014) identificaram que relacionamentos positivos com professores, alto desempenho acadêmico, forte desempenho educacional e uma orientação positiva no futuro contribuem para o desenvolvimento da resiliência, o que está em consonância com as constatações do presente estudo.

Diferença e Reciprocidade

Observa-se, na fala dos participantes, que a convivência com a diferença, especialmente entre estudantes com e sem deficiência, é benéfica, pois permite aos envolvidos identificar as particularidades e potencialidades do outro, através do estabelecimento de relações permeadas por reciprocidade. As relações entre pares vividas no ambiente universitário foram capazes de fortalecer os estudantes, o que robustece a defesa da educação inclusiva das pessoas com deficiência em todos os espaços sociais e níveis de escolarização.

Na percepção dos participantes, depois de os conhecerem, os outros estudantes deslocaram o foco de atenção para aquilo que era entendido como deficitário e patológico, e passaram a reconhecer as potencialidades e habilidades que eles (pessoas com deficiência) possuíam. Relataram que, após as experiências cotidianas, os colegas de faculdade verbalizaram mudanças na compreensão do que é a deficiência e das implicações dela na vida das pessoas. É importante reforçar que os estudantes com deficiência passaram, de acordo com os entrevistados, a serem mencionados como referência de superação pelos colegas. O convívio com a diferença, a partir de relacionamentos mais horizontalizados e permeados pela reciprocidade, mostrou-se de grande importância para estudantes do ensino superior com e sem deficiência.

 

Tabela 4

 

Para Libório et al. (2015), a resiliência de pessoas com deficiência está intimamente ligada à inclusão e diminuição de barreiras atitudinais2, sendo favorecida ou enfraquecida de acordo com a qualidade das relações interpessoais estabelecidas. Nos relatos dos participantes ficou evidente a importância da inclusão em atividades cotidianas e acadêmicas, que permitiu que os estudantes com deficiência e seus pares passassem a reconhecer, reciprocamente, os atributos e qualidades.

A inserção em grupos sociais e o estabelecimento de relacionamentos horizontalizados favorecem a participação social, bem como tiram o foco da deficiência e salientam as potencialidades dos indivíduos (Catusso, 2007; Santos & Pessoa, 2020). Familiares, amigos, professores e comunidade passam a ter um papel fundamental, uma vez que legitimam as qualidades das pessoas com deficiência. O convívio com a diferença e os relacionamentos baseados na reciprocidade é benéfico para todos os estudantes - com ou sem deficiência - e certamente indicam relacionamentos interpessoais de qualidade e que se associam à promoção de resiliência (Gilligan, 2000).

Experiências de Altruísmo

Também foi observado, na fala de todos os participantes, experiências de altruísmo possibilitadas pelo convívio nas universidades. Os estudantes demonstraram uma postura colaborativa, política e de empatia para outras pessoas com deficiência que podem viver situações ainda mais desafiadoras do que eles próprios. Quando questionados sobre a acessibilidade, por exemplo, sempre se colocavam no lugar do outro e demonstravam inconformismo pelas inadequações das universidades para receberem as pessoas com deficiência.

Apesar de se sentirem parcialmente contemplados pelas adaptações nos espaços da universidade e nas atividades que ocorrem no contexto de sala de aula, elaboraram críticas em relação às dificuldades que percebiam que outros colegas com deficiência possuíam por não terem os recursos adaptados ou o direito à acessibilidade garantida. Essas críticas estão associadas a uma postura altruísta e revelam engajamento político e o desejo de mudanças substanciais para a efetivação de uma sociedade inclusiva.

A possibilidade de colocar-se no lugar no outro e de reivindicar direitos coletivos, portanto, que extrapolem as conquistas no âmbito individual, é compreendida como algo benéfico a todas as pessoas com deficiência e podem estar relacionados a expressões de resiliência comunitária. As experiências de altruísmo são relacionadas com ações humanizadas que, no caso desta pesquisa, foram evidenciadas pelo senso de coletividade presente nos discursos dos participantes.

 

 

Tabela 5

 

Post (2005) e Soosai-Nathan (2015) indicam que o altruísmo promove a saúde física e mental das pessoas, fortalecendo o bem-estar. Atitudes altruístas também são apontadas como um dos fatores de proteção associados à resiliência (Bolton et al., 2016; Lay & Hoppmann, 2015). Essas atitudes são evidenciadas nas falas que demonstram empatia dos estudantes com a acessibilidade de outras pessoas com deficiência e no auxílio aos colegas. É interessante notar que, por vezes, ficam mais atentos com a inacessibilidade do outro do que com a sua própria. Tal empatia vivenciada por pessoas com deficiência já foi observada também no estudo de Lia e Abela (2016).

Soosai-Nathan, Negri, e Fave (2013) descreveram inúmeras implicações psicológicas e sociais derivadas de sentimentos positivos, incluindo o altruísmo, que podem mediar o impacto negativo de situações desafiadoras ou conflitantes. Na mesma direção, Pessoa et al. (2017) pontuaram que "a capacidade de se colocar no lugar do outro e se opor a práticas de injustiça social pode indicar força pessoal e, portanto, pode estar associada à resiliência" (p. 17, tradução nossa).

Participação Social, Senso Crítico e Reivindicação de Direitos

A autonomia e a capacidade para a tomada de decisão foram, por muito tempo, direitos negados às pessoas com deficiência. Consideradas incapazes de tomar suas próprias decisões, eram despejadas em espaços de segregação e isolamento. Esta pesquisa revelou, contudo, que o engajamento no ensino superior e nas atividades pedagógicas propostas viabilizou a conquista desse direito. Os estudantes se mostraram capazes de decidir, opinar e discutir sobre questões relativas à sua própria formação acadêmica e sobre preceitos da educação inclusiva.

Os relatos evidenciaram a participação em diversos espaços, incluindo atividades obrigatórias e optativas dentro da rotina das universidades. Demonstram questionar estruturas arbitrárias, baseadas em condutas autoritárias e pouco democráticas, além de manifestarem um senso de criticidade às barreiras atitudinais e arquitetônicas, que impossibilitavam a inclusão das pessoas com deficiência.

Para a realização de diversas atividades, consideradas mais simples ou complexas, como ir sozinho até a universidade ou reivindicar direitos, o ingresso na universidade mostrou-se imprescindível. Com o propósito de concluir o curso de graduação, os estudantes com deficiência afirmam que passaram a realizar algumas tarefas que antes não se sentiam capazes. Além disso, sentem-se empoderados, na medida em que passaram a receber reconhecimento e notoriedade no ingresso do ensino superior. Se no Brasil o acesso às universidades é destinado apenas para uma camada privilegiada da população, oriunda de classes sociais mais abastadas, essa tarefa passa a ser duplamente desafiadora para estudantes com deficiência provenientes da classe trabalhadora.

 

Tabela 6

 

Gonçalves (2019) ressalta que a inserção de estudantes com deficiência no ensino superior, por si só, já é uma forma de luta e reivindicação de diretos, pois favorece a implantação de políticas públicas e a acessibilidade. Os relatos dos estudantes apontam que as universidades fortaleceram a participação social, senso crítico e reivindicação de direitos dos estudantes. Ungar et al. (2007) afirmam que o senso de justiça social é um elemento central para a promoção de resiliência. A capacidade de criticar dinâmicas sociais marcadas pela exclusão e segregação revela habilidades de resistir e se opor a estruturas opressoras. Portanto, a manifestação de resiliência também se dá na possibilidade de pessoas com deficiência lutarem pelos seus direitos, manifestarem indignação e reivindicarem em diversas instâncias sociais, inclusive na universidade.

 

Considerações Finais

O objetivo deste artigo foi verificar como a inserção no ensino superior auxilia a promoção de resiliência de estudantes universitários com deficiência. Os dados evidenciaram que a inserção no nível superior se associa a processos de resiliência porque auxiliam os estudantes com deficiência a terem uma compreensão mais realística e não deturpada de suas potencialidades, nutrem os projetos de vida, permite o estabelecimento de relações interpessoais baseadas na reciprocidade, estimulam experiências de altruísmo e desenvolvem um senso crítico que se expressa na reivindicação de direitos sociais.

Nesse sentido, advoga-se para o fortalecimento de medidas e ações que intensifiquem a inserção desta população no ensino superior. Assim, se realizada de maneira integral, a inclusão das pessoas com deficiência na universidade pode indicar o fortalecimento subjetivo e a manifestação dos processos de resiliência desse grupo. Os dados provenientes desta investigação ilustram inúmeras condições (subjetivas, relacionais e materiais) que exemplificam como as universidades podem promover resiliência, desde que suas ações estejam pautadas em princípios éticos e inclusivos.

Dessa forma, dada a natureza desta investigação, os achados deste estudo não podem ser generalizados. Outra limitação é o fato de não terem participado estudantes com outros tipos de deficiência, limitando-se a informações provenientes de pessoas com deficiência visual e física. Assim sendo, a metodologia empregada poderia ser replicada com outros grupos, o que poderia refutar, reiterar ou complementar os achados desta investigação. Similarmente, recomenda-se o desenvolvimento de pesquisas com enfoque quantitativo, com delineamento longitudinal e a partir de estudos de casos, abordando tais opções metodológicas que podem trazer elementos não explorados com profundidade neste artigo.

 

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Endereço para correspondência:
Isabela Samogim Santos
E-mail: isamogim@hotmail.com

Alex Sandro Gomes Pessoa
E-mail: alexpessoa@ufscar.br

Ariane Rico Gomes
E-mail: arianerico@estudante.ufscar.br

Letícia Yuki de Araújo Furukawa
E-mail: leticia.yuki.a.furukawa@gmail.com

Recebido em: 23/06/2020
Revisado em: 21/03/2021
Aceito em: 18/09/2021
Publicado online: 02/02/2022

 

 

1 Certificado de Apresentação de Apreciação de Ética.
2 Barreiras atitudinais se referem a posturas e atitudes, individuais ou coletivas, que contribuem para a manutenção da discriminação ou preconceito contra uma pessoa ou grupo de pessoas em determinado espaço social.

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