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Revista Subjetividades

Print version ISSN 2359-0769On-line version ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.spe Fortaleza  2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21iesp1.e9445 

ESPECIAL: PSICOLOGIA & FENOMENOLOGIA

 

O fenômeno da intersubjetividade na relação psicoterapêutica1

 

The Intersubjectivity Phenomenon in the Psychotherapeutic Relationship

 

El Fenómeno de la Intersubjetividad en la Relación Psicoterapéutica

 

Le Phénomène de l'Intersubjectivité dans la Relation Psychothérapeutique

 

 

Gisella Mouta FaddaI; Vera Engler CuryII

IPsicóloga. Doutora e Mestra em Psicologia pela PUC-Campinas. Especialista em Psicoterapia Humanista/Fenomenológico/Existencial (FUMEC-BH) e, também, em Psicopatologia Fenomenológica (FCM/Santa Casa-SP)
IIPsicóloga. Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Coordenadora do Programa Stricto Sensu em Psicologia na mesma Universidade

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma investigação teórica sobre a constituição do fenômeno da intersubjetividade, considerado como uma passagem do eu ao outro, a partir dos princípios da antropologia fenomenológica de Edmund Husserl. É discutida, também, a relevante contribuição da filósofa e psicóloga alemã Edith Stein, discípula de Husserl, sobre a experiência empática. O conceito desenvolvido por Stein sobre a empatia fenomenológica, que pode ser traduzida, também, como "intropatia" ou "entropatia", possibilita um olhar sui generis acerca do encontro com o outro. A qualidade desse encontro é de suma importância quando consideramos a relação entre psicoterapeuta e cliente no contexto da clínica psicológica humanista, orientada pelos princípios da abordagem centrada na pessoa, desenvolvida pelo psicólogo norte americano Carl Rogers. As implicações entre subjetividade e intersubjetividade são analisadas num movimento de interlocução criativa entre a filosofia fenomenológica e a psicologia clínica humanista, objetivando contribuir para uma aproximação entre dois campos que se afetam mutuamente ao se apropriarem da experiência humana a partir de ênfases complementares, estrutura universal e concretude singular.

Palavras-chave: psicologia clínica; abordagem centrada na pessoa; psicoterapia; intersubjetividade; fenomenologia.


ABSTRACT

This article presents a theoretical investigation on the constitution of the phenomenon of intersubjectivity, considered as a passage from the self to the other, based on the principles of Edmund Husserl's phenomenological anthropology. The relevant contribution of the German philosopher and psychologist Edith Stein, a disciple of Husserl, on the empathic experience is also discussed. The concept developed by Stein about phenomenological empathy, which can also be translated as "intropathy" or "entropathy", allows a sui generis look at the encounter with the other. The quality of this encounter is of paramount importance when we consider the relationship between psychotherapist and client in the context of the humanistic psychological clinic, guided by the principles of the person-centered approach, developed by the North American psychologist Carl Rogers. The implications between subjectivity and intersubjectivity are analyzed in a movement of creative dialogue between phenomenological philosophy and humanistic clinical psychology, aiming to contribute to an approximation between two fields that affect each other by appropriating human experience from complementary emphases, universal structure, and singular concreteness.

Keywords: clinical psychology; person-centered approach; psychotherapy; intersubjectivity; phenomenology.


RESUMEN

Este trabajo presenta una investigación teórica sobre la constitución del fenómeno de la intersubjetividad, considerado como un paso del yo al otro, a partir de los principios de la antropología fenomenológica de Edmund Husserl. También se discute la relevante contribución de la filósofa y psicóloga alemana Edith Stein, discípula de Husserl, sobre la experiencia empática. El concepto desarrollado por Stein sobre la empatía fenomenológica, que puede ser traducida, también, como "intropatía" o "entropatía", permite una mirada sui generis acerca del encuentro con el otro. La calidad de este encuentro es de gran importancia cuando consideramos la relación entre psicoterapeuta y cliente en el contexto de la clínica psicológica humanista, orientada por los principios del enfoque centrado en la persona, desarrollada por el psicólogo norte americano Carl Rogers. Las implicaciones entre subjetividad e intersubjetividad son analizadas en un movimiento de interlocución creativa entre la filosofía fenomenológica y la psicología clínica humanista, objetivando contribuir para un acercamiento entre dos campos que afectan mutuamente al adueñarse de la experiencia humana a partir de énfasis complementares, estructura universal y realidad singular.

Palabras clave: psicología clínica; enfoque centrado en la persona; psicoterapia; intersubjetividad; fenomenología.


RÉSUMÉ

Cet article présente une recherche théorique sur la constitution du phénomène d'intersubjectivité, considéré comme un passage de soi à l'autre, à partir des principes de l'anthropologie phénoménologique d'Edmund Husserl. La contribution pertinente de la philosophe et psychologue allemande Edith Stein, disciple de Husserl, sur l'expérience empathique est également discutée. Le concept développé par Stein sur l'empathie phénoménologique, que l'on peut aussi traduire par « intropathie » ou « entropathie », permet un regard sui generis sur la rencontre avec l'autre. La qualité de cette rencontre est d'une importance primordiale lorsque l'on considère la relation entre psychothérapeute et client, dans le contexte de la clinique psychologique humaniste guidée par les principes de l'approche centrée sur la personne. Ce ci a été développée par le psychologue nord-américain Carl Rogers. Les implications entre subjectivité et intersubjectivité sont analysées dans un mouvement de dialogue créatif entre philosophie phénoménologique et psychologie clinique humaniste, en visant à contribuer à une approximation entre deux domaines qui s'affectent en s'appropriant l'expérience humaine à partir d'une attention complémentaire, une structure universelle et d'une concrétude singulière.

Mots-clés: psychologie clinique; approche centrée sur la personne; psychothérapie; intersubjectivité; phénoménologie.


 

 

A clínica psicológica é constituída a partir do desenvolvimento de uma relação intersubjetiva entre o psicólogo e a(s) pessoa(s) que o procura(m) para uma intervenção específica, tal como a psicoterapia, seja por vontade própria, seja pela imposição de outros, como dos pais ou responsáveis legais. A constituição desse tipo de relação interpessoal tem sido amplamente discutida pela psicologia por ser reconhecida como um elemento crucial no processo de crescimento e de amadurecimento do ser humano, ainda que seja concebida - e nomeada - distintamente por autores filiados às diversas teorias psicológicas.

Na vertente da psicologia humanista, essa relação está embasada na construção de um vínculo afetivo, que se desenvolve a partir de algumas atitudes do psicoterapeuta que facilitam ao cliente aproximar-se de seus sentimentos, ideias e fantasias, num movimento de reconhecimento e aceitação de si mesmo, o qual lhe possibilita conhecer-se autenticamente em um contínuo processo de reintegração pessoal. Entretanto, ao invés de acentuarmos as possíveis nuances desse tipo de vínculo com seus dinamismos próprios, nos propomos a retomar uma questão anterior que subjaz esse tipo de relação, ou, melhor dizendo, que a constitui de um ponto de vista ontológico, a intersubjetividade. Para esclarecer esse tema, recorreremos à fenomenologia clássica de Edmund Husserl (1859-1938) e de sua discípula, a filósofa e psicóloga Edith Stein (1891-1942).

Iniciamos pela compreensão da subjetividade como se manifesta no próprio ser humano concreto, de forma a compreender as proposições de Husserl em relação à definição de abertura ao outro, ou seja, a alteridade. Em seguida, descrevemos o trajeto que remete o eu em direção ao outro, entendendo que a alteridade nada mais é do que "o resultado de um percurso" (Ales-Bello, 2014a, p. 20) possibilitado pela experiência empática. Na sequência, tratamos das implicações entre subjetividade e intersubjetividade no contexto relacional da clínica psicológica, num movimento de interlocução criativa entre a filosofia fenomenológica e a psicologia clínica humanista.

Husserl discute o tema da intersubjetividade, mais especificamente, no segundo volume da obra Idee per una fenomenologia pura e per una filosofia fenomenologica (Husserl, 2002b) e também em Meditações cartesianas (Husserl, 2013). Entretanto, após a sua morte, foram descobertas quase duas mil páginas não publicadas que haviam sido escritas por ele, no período de 1905 a 1935, exclusivamente sobre esse tema (Ales-Bello, 2012). Esse material foi, posteriormente, reunido e organizado em três volumes para a série Husserliana (volumes XIII [1905-1920], XIV [1921-1928] e XV [1929-1935]), intitulados como Zur phänomenologie der intersubjectivität (Para uma fenomenologia da intersubjetividade, em uma tradução livre), sem ter havido, até o momento, tradução para outras línguas, à exceção da língua francesa, em que uma parte desse material foi traduzida sob o título Sur l'intersubjectivité (Husserl, 2011).

As considerações fenomenológicas realizadas ao longo deste artigo estão baseadas principalmente nas obras: (1) Idee per una fenomenologia pura e per una filosofia fenomenologica (vol. 2) e (2) Meditações cartesianas (Husserl, 2002b e 2013, respectivamente); (3) Il problema dell'empatia (Stein, 1998); e (4) textos escritos por comentaristas acerca da obra Zur phänomenologie der intersubjectivität, mais especificamente, aqueles de autoria da filósofa italiana Angela Ales-Bello. A intenção deste trabalho não é, evidentemente, abarcar todos os aspectos teóricos elaborados por Husserl ao longo de décadas, mas sim explicitar pontos fundamentais, que nos conduzam ao entendimento do fenômeno da intersubjetividade, à luz da fenomenologia clássica.

 

A Subjetividade em Husserl: a Consciência, o Eu e as Vivências

O que é o ser humano adulto? Na busca por respostas, Husserl fez uma experiência direta, imediata, ou seja, voltou-se para seu horizonte interno - sua própria subjetividade - e iniciou uma análise qualitativa utilizando a descrição e a reflexão acerca do fenômeno em questão. O "retorno às coisas mesmas" é um retorno às fontes intuitivas que destacam o "sentido" ou "essência" do fenômeno, em contraposição ao conhecimento obtido por meio da noção dos fatos existentes, como o fazem as ciências objetivas (Husserl, 2002a, 2002b).

O propósito de Husserl ao fazer tanto a suspensão de juízos (epoché) quanto as reduções (eidéticas e transcendental) sobre os fatos existentes foi descobrir algo novo, précientífico, em uma esfera précategorial que abarcasse tanto o sentido quanto o horizonte da vida humana no mundo, isto é, o mundo da vida (Lebenswelt). A essência de algo se refere as suas características próprias, que podem ser tanto de fatos empíricos existentes quanto de fatos não existentes, como aqueles relativos às fantasias.

Ao realizarmos a epoché e assumirmos uma atitude fenomenológica, surge a questão: como podemos nos perceber imersos nesse mundo? Primeiramente, é importante destacar que o ato de perceber deve ser entendido no contexto fenomenológico. Vincenzo Costa, no prefácio da obra de Husserl intitulada Lezioni sulla sintesi passiva (Costa, 2016, p. 19), aponta a complexidade do termo percepção, que inclui, primeiramente, as sensações sensíveis que servem de base para a constituição de algo uno. Costa exemplifica referindo-se a vários modos possíveis para se perceber uma flor (ver, tocar, cheirar), que se integram e formam a flor como uma coisa em si mesma. Em segundo lugar, a percepção de algo é sempre uma percepção firmada em um "campo de percepção" (Husserl, 2012, p. 132), é algo que se destaca no meio de outras coisas. Em terceiro, "a percepção refere-se somente ao presente. Mas é de antemão visado que este presente tem atrás de si um passado infinito e à sua frente um futuro aberto" (Husserl, 2012, p. 38, grifo do autor). Assim, a percepção sugere sínteses que subjazem a uma unidade de sentido.

Segundo Ales-Bello (2014a), cada um de nós está vivenciando, neste exato momento, várias ações das quais temos consciência e que podemos diferenciar e definir. Temos consciência de que vemos, ouvimos, pensamos e assim por diante. Essa constatação perceptiva envolve uma intencionalidade da consciência enquanto consciência de alguma coisa, ou seja, há uma relação intencional entre a consciência e algo. Então, quando digo "eu vejo", significa que estou visando (ou tendendo) a um "visto", "eu percebo" a um "percebido", "eu penso" a um "pensado".

A estrutura ver-visto, perceber-percebido, pensar-pensado, indica o que Husserl denominou de estrutura noético-noemática. O "momento noético" representa a intencionalidade ou o sentido da coisa, enquanto o "conteúdo noemático" é a coisa percebida em seus diversos modos de aparição (visto como tal, percebido como tal, pensado como tal) (Husserl, 2002a, p. 225). Podemos afirmar que a noese aponta (visa intencionalmente) ao noema, que, por sua vez, "preenche" a forma (o sentido) com aquela vivência intencional.

Com isso, Husserl pretendeu indicar que a nossa consciência é sempre em relação a alguma coisa e que pode ser verificada quando nos damos conta dessa coisa. A relação entre sujeito (eu) e objeto (mundo interno ou externo) é intencional, sem existir uma separação clara entre eles. Na investigação da subjetividade, Husserl descreve um sujeito que está em relação com os objetos (Ales-Bello, 2004), então, somos, ao mesmo tempo, um "sujeito para o mundo" e "objeto neste mundo" (Husserl, 2012, pp. 146-147). Quando se diz, eu vejo, eu percebo, eu penso, remete-se aos atos de consciência que estão sendo vivenciados pelo "eu".

Ales-Bello (2012, 2014a) esclarece que, ao longo da história da filosofia, vários termos foram usados para designar o ser humano, a depender de qual aspecto era posto em destaque, a saber: pessoa, indivíduo, sujeito, eu, si, existente. O vocábulo sujeito, usado por Husserl a partir de sua análise antropológica das vivências, mostra um ser capaz de refletir sobre si mesmo, aberto aos outros, às coisas e ao mundo a partir de sua vida intencional. Ademais, significa ter "uma atitude personalista nos confrontos com o mundo", em que se assume "uma atitude avaliativa e ética" (Ales-Bello, 2012, p. 156).

Todavia devemos distinguir entre o "eu" e a "consciência", uma vez que, para Husserl, a "consciência não é autoconsciência" (Ales-Bello, 2012, p. 142). Quando expressamos o pronome pessoal eu, exprimimos a nossa autoconsciência de modo direto. A consciência é esse dar-se conta que nos acompanha em cada vivência intencional, em cada ato singular, e que não se limita a um território ou zona (Ales-Bello, 2004, 2014a).

O eu é a marca da subjetividade da pessoa que se forma por meio de suas experiências. Nesse sentido, o eu é o sujeito da experiência e se apresenta em dois níveis: um próprio e outro estrutural. O próprio refere-se à singularidade - ao eu empírico (que também foi mencionado por Husserl como "eu psicológico" ou "homem real") -, que se mostra a partir das emoções e pensamentos, enfim, por meio de conteúdos e do modo como cada pessoa posiciona-se no mundo a partir daquilo que vivencia. O estrutural diz respeito à universalidade - ao eu puro -, que indica a nossa estrutura universal enquanto seres humanos. Dito de outra forma, aquilo que é comum a todos nós (Husserl, 2002b, 2013). Ales-Bello (2014a, p. 16) esclarece que "um remete ao outro e o eu puro é a condição do conhecimento sobre o eu empírico", o que nos possibilita termos consciência tanto de nós mesmos quanto dos outros.

Porém, o que resta ao eu puro? A resposta parece simples, todavia é um ponto fundamental e original nas descobertas de Husserl. Resta aquilo que temos de mais constitutivo enquanto seres humanos: o território das vivências puras da consciência, também nomeadas como atos. As vivências referem-se a "uma atividade do sujeito tomada no momento em que ele se mostra", "é aquilo que estou vivendo" (Ales-Bello, 2012, p. 121), isto é, as vivências retratam todas as operações realizadas pelo ser humano, em que cada vivência doa o seu sentido ou essência. É importante esclarecer que o sentido é evidenciado por nós quando nos colocamos em relação com a coisa, com o mundo ou com a realidade. Não se trata de construir, imaginar ou mesmo projetar um sentido, mas sim nos deixarmos "guiar por algo para buscar seu sentido" (Ales-Bello, 2012, p. 112). Desse modo, todo conhecimento possui a relação como princípio.

Se alguém diz "casa", cada um de nós recorda ou imagina uma construção específica que lhe é pessoal, mas a essência da casa - um lugar de refúgio, um lugar onde habitamos - possui um sentido que é compartilhado por todos. Assim, o objeto visado, mesmo não estando presente na nossa percepção, apresenta uma essência que permanece a mesma enquanto um sentido universal. Vamos supor que crescemos em um lar violento ou com muitas desavenças, do qual queremos escapar. Ainda assim, conhecemos o sentido puro de casa e podemos entender quando outra pessoa menciona a palavra casa.

A vivência que nos coloca em contato direto e imediato com o mundo é a percepção, considerada a mais importante. Foi a partir da percepção que Husserl iniciou a sua investigação regressiva sobre o ser humano que o conduziu à uma distinção em relação às outras vivências, como a recordação, a empatia, a imaginação, a fantasia, a avaliação, a tomada de decisão, entre outras.

Com isso, tornou-se possível distinguir as vivências pertencentes ao corpo físico animadas por uma dimensão psíquica e aquelas referentes ao que ele chamou de espírito. Para a fenomenologia de Husserl, "espírito" expressa a dimensão dos atos voluntários, dos juízos de valor e das questões éticas, não se confundindo com algo místico no sentido religioso. Assim, a análise fenomenológica do ser humano indica três dimensões que estão entrelaçadas - corpo, psique e espírito - e que nos propomos a analisar na relação com o mundo, imanente ou transcendente.

 

A Constituição do Eu

Iniciamos pelo corpo. O corpo não é apenas um corpo físico, é um corpo próprio, um corpo vivo (Leib), tanto como órgão de percepção que efetivamente percebe o mundo circundante quanto como um corpo que possui a sua própria subjetividade a partir de como é afetado pelas sensações.

O corpo vivo se constitui, portanto, originariamente de maneira dupla: de um lado é coisa física, matéria, tem sua extensão que inclui suas qualidades reais, a cor, a suavidade, a dureza, o seu calor e outras qualidades materiais similares; por outro lado, eu estou nele, e eu tenho sensações "nele" e "dentro" dele. O calor no dorso da mão, o frio nos pés, as sensações de toque nas pontas dos dedos. (Husserl, 2002b, p. 148, grifos do autor)

Na constituição do corpo vivo, Husserl (2002b) faz uma distinção entre sensação tátil e sensação visual. Sem o tato, não seria possível termos as sensações localizadas que nos indicam a delimitação do nosso corpo em relação ao mundo circundante. Mais precisamente, a sensação de tocar algo e ser tocado e a dupla sensação corporal quando tocamos o nosso próprio corpo. Todas essas sensações táteis permitem a constituição do nosso esquema corporal. Husserl usou como exemplo o fato de uma mão poder tocar a outra mão, mas um olho (por exemplo, o olho direito) não poder olhar para o outro olho (esquerdo), de modo a gerar essa dupla sensação que só pode ser obtida pelo tato. Podemos fazer essa mesma análise em relação à visão para os outros sentidos.

Indo um pouco além, identificamos que os dados provenientes das sensações corpóreas nos fornecem impressões sensoriais que Husserl denominou de sentimentos sensíveis. Quando tocamos algo ou algo nos toca, podemos sentir prazer, dor, cócegas e sensação "de bem-estar que traspassa e preenche todo o corpo, (ou) de um malestar geral ocasionado por uma indisposição corpórea" (Husserl, 2002b, pp. 154-155). As sensações exercem, assim, uma função constitutiva para os sentimentos sensíveis, aos quais reagimos, mas também implica em nossa sensibilidade ao entrar em contato com o mundo transcendente.

Essa dupla face a sensibilidade ao mundo exterior e as reações possui uma estrutura valorativa que começa no corpo, por exemplo, ao buscarmos o que nos dá prazer ou nos afastarmos daquilo que nos causa dor (Husserl, 2002a, Husserl, 2006). Ales-Bello (2004, 2012) esclarece que esse território foi denominado por Husserl como "base hilética", em que a palavra hyle, proveniente do grego, significa matéria. É um novo tipo de materialidade (Husserl, 2002b) decorrente dos dados sensíveis - que estão fora de nós - e das impressões sensoriais - que estão dentro de nós.

É uma materialidade que serve para dar às coisas o sentido intencional que Husserl (2002a) denominou como morphé, vocábulo grego que designa forma. "Com efeito, esses conceitos de matéria e forma se impõem a nós quando nos presentificamos quaisquer intuições claras ou valorações claramente efetuadas, atos de prazer, volições etc." (Husserl, 2006, p. 194). Que implicações isto traz ao nosso cotidiano? Significa, a título de exemplo, que podemos escolher espontaneamente pintar a parede da cor branca porque a avaliamos positivamente, ao invés de pintá-la com a cor vermelha, à qual podemos dar um significado de ataque. Não estamos acostumados a perceber, a dar importância a isso; é uma atitude natural de simplesmente escolher. O que Husserl tenta nos mostrar é que a escolha não é aleatória, pois há uma estrutura valorativa que a sustenta, uma conexão entre o físico e o psíquico que está em um plano intencional do sentido (Ales-Bello, 2004).

Quando são percebidas, as coisas entram nas atividades da consciência e passam a fazer parte das funções intencionais ativas, que, por sua vez, formam os juízos perceptivos. Assim, "a inteira consciência de um homem está de um certo modo ligada ao seu corpo vivo através de sua base hilética" (Husserl, 2002b, p. 155). Isto significa dizer que a consciência registra as sensações do corpo vivo. Por tudo isso, o corpo vivo "é uma base fundamental dos dados reais da psique e do eu" (Husserl, 2002b, p. 159).

A psique é descrita por Husserl (2002b) como uma unidade que está ligada ao corpo vivo e, por isso, é dependente de circunstâncias. A saber: do "fisiopsíquico" (o autor prefere usar esse termo ao invés de psicofísico, pois a psique depende do corpo vivo para se constituir); do "idiopsíquico", em que os estados psíquicos são interdependentes; e das "relações intersubjetivas".

O "fisiopsíquico" é considerado de qualidade inferior por se referir aos dados sensíveis, às impressões sensoriais e ao instinto, enquanto que o "idiopsíquico" é superior por remeter a uma modificação motivada por si mesma, como acontece nas "associações, hábitos, memória", e também, por convicções e vontade (Husserl, 2002b, p. 139). Ambos constituem o sujeito psíquico, também denominado como "eu psíquico".

A terceira dependência circunstancial da psique compete às "relações intersubjetivas", seja com uma única pessoa, seja com uma comunidade de pessoas, de instituições sociais, Estado, Igreja etc., em que o eu mantém a sua individualidade. Husserl (2002b, p. 144) concluiu que o eu psíquico e o eu pessoal referem-se ao mesmo eu.

Cabe ressaltar que "cada vivência deixa atrás de si certas disposições e cria uma certa novidade na realidade psíquica" (Husserl, 2002b, p. 136) em um continuum, um fluxo imanente das vivências psíquicas, em que as anteriores repercutem na atual e assim por diante. Dessa forma, o eu se constitui na unidade da história (Husserl, 2013, p. 114).

Em suma, a dimensão psíquica envolve as tendências, impulsos, reações de atração (simpatia) e repulsão (antipatia) e as tomadas de posição espontâneas. Por estar interrelacionada ao corpo, a dimensão psíquica é subordinada a ele. Enquanto a dimensão espiritual é a sede dos atos voluntários, dos atos livres e de tomadas de posição conscientes, ou seja, é motivada. E é essa dimensão espiritual que mais caracteriza o ser enquanto humano (Ales-Bello, 2014a).

 

A Intersubjetividade em Husserl: a Consciência do Outro, o Outro Eu e a Vivência Empática

"O eu como pessoa, não exige, talvez, um eu na forma do tu, (. . .) que por sua vez também é um eu?" questiona Husserl (2002b, p. 314). O autor conclui que quando o eu encontra a si mesmo como pessoa, torna possível encontrar os outros também como pessoas, "como sujeitos egológicos e como companheiros", mas isso se deve a uma mudança de atitude, um percurso que devemos fazer do eu ao outro. Em vista disso, na quinta meditação da obra Meditações cartesianas, Husserl (2013, p. 129) discute quais seriam as possibilidades de chegarmos até outros eus, como podemos conhecer seus estados de ânimo e qual o sentido desse "outro que é".

Considerando o horizonte exterior, outro eu pode surgir no nosso campo de percepção e, portanto, mostrar-se a nós. Nesse momento, ocorre a primeira peculiaridade desse percurso, a "apreensão analogizante", em que percebemos que o nosso corpo próprio aqui é semelhante àquele corpo próprio ali. Ocorre, então, uma apercepção que assemelha. Cabe esclarecer que "apercepção não é inferência, não é um ato de pensamento" (Husserl, 2013, p. 149).

Indo mais fundo, Husserl (2013) identificou que essa apreensão do outro é decorrente de associações que acontecem na já mencionada esfera hilética da subjetividade. Realiza-se, então, uma síntese passiva de associação (e não de identificação), em que elementos distintos ("eu" e o "outro eu") são associados como semelhantes, o que produz um emparelhamento. Esse emparelhamento, outra peculiaridade do percurso, ao se tornar consciente, destaca-se das outras coisas que estão no campo de percepção. Em resumo, quando outro eu entra em nosso campo de percepção, ocorre o emparelhamento do nosso eu e do outro eu em decorrência das associações que acontecem na passividade da consciência e que fundam a apercepção por semelhança.

Toda e qualquer apercepção em que apreendemos de um lance e captamos de um modo notório objetos pré-dados - por exemplo, os objetos pré-dados no mundo quotidiano - e em que compreendemos, sem mais, o seu sentido com os seus horizontes, remete intencionalmente a uma instituição originária em que se constituiu, por vez primeira, um objeto com um sentido semelhante. (Husserl, 2013, p. 149, grifo do autor)

Nessa circunstância, apreendemos o sentido do corpo do outro por uma transferência de sentido semelhante, ou seja, apreendemos, no presente vivo, o seu sentido que foi fundado em experiências anteriores com outros. A fim de esclarecer esse ponto, Husserl (2013, p. 149) deu o exemplo de quando uma criança - que já aprendeu a ver as coisas - vê, pela primeira vez, alguém usando uma tesoura e compreende a sua finalidade. Posteriormente, ao ver tesouras em outras situações, ela capta o seu sentido de modo imediato, pois a criança faz uma transferência por semelhança entre o sentido daquela tesoura primeira e da atual.

Assim, coisas que se assemelham remetem imediatamente àquele sentido já constituído na primeira vez e que pode até instituir um novo sentido "mais rico". Todavia há dois modos pelos quais a apercepção se origina: aquele devido a si próprio e que constitui um sentido, assim como aquele devido ao outro e que também se constitui um sentido, mas que pode desdobrar em um novo sentido, abrindo um horizonte de sentido, como no exemplo dado acima (Husserl, 2013, pp. 149-150).

Ainda que possamos apreender o outro por uma transferência de sentido semelhante, não se configura como um eu duplicado, pois nunca poderemos ter uma percepção interna do outro em modo originário, como fizemos ao investigar a subjetividade própria. Este é um dos motivos pelos quais conseguimos fazer a distinção entre o nosso corpo, que está na esfera primordial e, portanto, diretamente acessível e original, e o corpo do outro, que está na esfera transcendental e que nos é apresentado, mas sem que esteja diretamente acessível a nós.

Portanto, o primeiro passo para acessar a subjetividade do outro começa na base hilética da corporeidade. A partir do momento em que o outro surge para nós, captamos o seu corpo como um corpo semelhante e, concomitantemente, diverso do nosso por meio do emparelhamento contrastante. Husserl (2002b, 2013) observou, ainda, que quer estejamos prestando atenção em nós, quer não, o nosso corpo se destaca para nós em primeiro lugar, antes do corpo do outro. Percebemos o mundo a partir do nosso corpo, perto, longe, acima, abaixo, direita, esquerda, pois é a nossa referência, o nosso ponto-zero de orientação no mundo.

Nesse percurso em direção ao outro eu, em que ocorrem as associações e as apercepções de semelhança, o aqui e ali marcam uma natureza espacial importante do nosso corpo em relação ao corpo do outro. Podemos mudar de lugar, trocando o aqui por ali e, ainda assim, permaneceremos com o nosso corpo e também com o psiquismo próprio. Assim, passamos para um segundo momento na constituição do outro, em que o reconhecemos como um ser humano que tem reações psíquicas análogas às nossas. De acordo com Husserl (2013), isso possibilita novas compreensões do outro e, consequentemente, uma abertura para novas associações.

 

A Vivência da Empatia

O ato de dar-se conta dos outros e daquilo que estão vivenciando é uma vivência muito particular denominada empatia. Trata-se de uma experiência imediata do outro na qual é possível conhecê-lo não apenas corporalmente pela apercepção de semelhança, mas também sua interioridade, seja psíquica, seja espiritual. Trata-se de um reconhecimento do outro como pessoa, como eu mesmo sou. A vivência empática é responsável por nos instruir e por garantir que possamos ter uma vida em comum com outras pessoas. Instrução tanto sobre nós mesmos quanto sobre os outros, uma vez que o mundo se constitui na dimensão intersubjetiva, o que também nos possibilita ter uma vida em comum em que podemos nos comunicar com os outros e nos conhecer (Husserl, 2002b, 2012).

A palavra empatia foi traduzida do alemão Einfühlen, cujo núcleo - fühlen - refere-se a sentir. É um sentir o outro (imediato) que se encontra antes de qualquer pensar (reflexão, interpretação) sobre o outro (Ales-Bello, 2014a), porém pode-se encontrar em alguns textos de Husserl traduzidos para o português a palavra entropatia, ou mesmo, intropatia (como no caso das Meditações cartesianas). A opção por esses dois termos serve mais para diferenciar o significado atribuído pela fenomenologia em relação a outras teorias ou, ainda, para diferenciar do significado mais simples e, por vezes, confuso, que o termo empatia adquiriu nos últimos anos. Entretanto, neste texto, seguimos utilizando a tradução empatia por ser a que mais se harmoniza com a língua portuguesa, escrita e falada, resguardando o seu significado mais próximo do proposto por Husserl em suas obras.

Do ponto de vista fenomenológico, podemos começar caracterizando a empatia como um ato intuitivo de dar-se conta daquilo que o outro sente, de sentir aquilo que o outro está sentindo (Ales-Bello, 2012, 2014a). Entretanto é um ato especial de "sentir", do qual destacamos alguns pontos que consideramos mais relevantes a partir de um exemplo dado por Edith Stein.

Edith Stein, que foi discípula de Husserl no início do século XX, investigou minuciosamente a vivência da empatia em sua tese de doutorado Il problema dell'empatia, defendida em 1916, quando estava com apenas 25 anos. Nessa obra, Stein (1998, pp. 71-72) cita o caso hipotético de um amigo que perdeu um irmão e, ao escutarmos sua história, podemos compreender que ele está vivendo uma dor, ainda que não tenhamos perdido o nosso irmão ou mesmo que não tenhamos um irmão. Eis a primeira característica da empatia: é a via para compreender aquilo que o outro está vivendo. Mas como conseguimos fazer isso? Através da doação de sentido das vivências puras da consciência, sem levar em conta um conteúdo em particular.

Nesse momento, entramos na segunda característica, a não originariedade. O sentido da vivência da dor, assim como de todas as outras vivências puras, existe em todos nós e é originária, todavia a perda do referido irmão é um conteúdo particular do nosso amigo e não podemos senti-la diretamente. Husserl, já no primeiro capítulo da obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (2006, p. 34, grifo do autor), afirma que:

Temos experiência originária de nós mesmos e de nossos estados de consciência na chamada percepção interna ou de si, mas não de outros e de seus vividos na "empatia". "Observamos o que é vivido pelos outros" fundados na percepção de suas exteriorizações corporais. Essa observação por empatia é, por certo, um ato intuinte, doador, porém não mais originariamente doador.

Em síntese, apenas conseguimos captar diretamente, na originariedade, as nossas próprias vivências, com seus sentidos e conteúdos. Entretanto, por sermos capazes de acessar o sentido da vivência pura da dor, conseguimos compreender a vivência do nosso amigo sem nunca termos vivido o seu conteúdo, que nos é inacessível. Não sendo possível, portanto, apreendermos a intensidade, a forma ou mesmo a qualidade daquilo que ele está vivendo (Ales-Bello, 2012).

Alguns anos após Husserl (2006, p. 34) ter escrito que a empatia é fundada na percepção das exteriorizações corporais do outro, Stein (1998) aprimorou o conceito ao afirmar que, ainda que possamos perceber a face de dor do nosso amigo, ou mesmo o tom da sua voz e as suas palavras, estas são apenas reflexos da vivência da dor e não podem ser confundidas com a experiência empática do outro. Podemos sentir de várias maneiras. Esse sentir está além do visível que percebemos, pois abrange também o invisível, aquilo que vemos a partir da interioridade, de dentro (Manganaro, 2014). Nessa questão, precisamos ter a sensibilidade para distinguir entre o que é a experiência do nosso amigo na sua percepção interna, o que é a percepção física dos seus traços que acompanham a sua experiência, e o que é a nossa experiência sobre a experiência do nosso amigo - esta última, a empatia (Savian, 2014).

Nesse contexto, Stein (1998) identifica três graus ou níveis de empatia. Em primeiro lugar, percebemos "o surgimento da vivência" - por exemplo, quando, no caso hipotético, o amigo vem até nós e percebemos que tem algo diferente nele. Depois, vem "a sua explicitação preenchedora [de sentido]" - quando nos damos conta de que o nosso amigo vive uma dor. E por fim, "a objetivação compreensiva da vivência explicitada" - quando compreendemos a vivência da dor do amigo em seu próprio mundo (Stein, 1998, p. 78).

Ales-Bello (2014a) esclarece que o passo final para que a alteridade seja plenamente alcançada por nós acontece quando reconhecemos que o outro, além de ter uma vida psíquica similar a nossa, também tem uma vida espiritual como a nossa, isto é, com a possibilidade de realizar os mesmos atos espirituais. Entretanto nem todos percorrem todo o arco dos graus da empatia. Frequentemente, nos fixamos nos dois primeiros, sem alcançar o último, que é o da relação empática propriamente dita, conforme observação de Stein (1998).

 

A Experiência Intersubjetiva na Relação Psicoterapêutica

Para Husserl (2017, p. 376), a potencialidade do ser humano desde o nascimento realiza-se na relação entre um eu e um tu, ou seja, na relação afetiva que se desenvolve por meio da "conexão eu-tu" entre a criança e a mãe. A relação é o terreno fértil no qual podemos nos desenvolver enquanto humanos.

Sabemos que a qualidade do encontro de pessoa a pessoa é um elemento essencial na clínica de orientação humanista, mais especificamente na abordagem centrada na pessoa, desenvolvida pelo psicólogo norte americano Carl Rogers (Rogers, 1992, 1997, 2012; Rogers & Rosenberg, 1977; Rogers, Wood, & O'Hara, 1983). Como podemos compreender a relação que se estabelece na psicoterapia entre o terapeuta e o cliente a partir dos fundamentos da fenomenologia husserliana? Ou ainda: como podemos fazer uma interlocução entre as vivências puras do eu transcendental e as vivências que ocorrem na relação psicoterapêutica entre os eus empíricos do terapeuta e do cliente?

A proposta filosófica de Husserl pretendeu ser também uma psicologia pura e, por meio dela, torna-se possível percorrer o campo do potencial humano. Com a proposta psicológica desenvolvida por Carl Rogers para a prática clínica, podemos percorrer o campo da realização que é passível de acontecer apenas nas relações humanas concretas. Esses dois autores, cada um em sua respectiva área de conhecimento, propuseram um método específico para alcançar uma compreensão sobre o ser humano. Husserl priorizou um olhar para a estrutura que constitui o sujeito; Rogers, um olhar para a singularidade que caracteriza a pessoa e que se atualiza a partir das relações intersubjetivas.

Para Rogers (1997), a visão de homem está alicerçada em uma tendência direcional ao crescimento, à atualização do potencial individual, a partir das vivências com outras pessoas que lhe são significativas. A estruturação do self individual é um processo constituído, portanto, a partir das relações com outras pessoas. Nessa perspectiva, Rogers (2012, p. 38) afirma que o cliente, como pessoa humana, possui "vastos recursos para a autocompreensão e para modificação de seus autoconceitos, de suas atitudes e de seu comportamento autônomo. Esses recursos podem ser ativados se houver um clima interpessoal, passível de definição, de atitudes psicológicas facilitadoras". É justamente esse "clima facilitador de crescimento" (Rogers, 2012, p. 38) que o terapeuta almeja gerar na relação com o cliente no encontro terapêutico. Esse objetivo pode ser concretizado se o terapeuta for percebido pelo cliente como outro significativo ao longo da relação. Assim, o acontecer clínico é um fenômeno intersubjetivo por definição.

 

A Relação Terapeuta-Cliente como um Fenômeno Intersubjetivo

A relação terapêutica é, essencialmente, um modo específico de encontro doador de sentido a partir de sensações, percepções, emoções e sentimentos. Merece destaque a noção de sentimento, que, para Rogers, abrange tanto a experiência afetiva propriamente dita como a sua simbolização, ou seja, aquilo que é apreendido no contexto vivido, imediato, e sua posterior elaboração. Exemplificando, a frase "sinto-me triste por não ser capaz de amar a minha esposa" corresponde a uma unidade emocional-cognitiva indivisível de certas experiências, tais como são vividas no momento presente (Rogers & Kinget, 1977). Assim, podemos dizer que a noção de sentimento, para a teoria centrada no cliente, corresponde a uma integração das três dimensões constituintes do ser humano propostas por Husserl.

O objetivo da psicoterapia rogeriana é motivar, subjetivamente, o cliente a atualizar suas vivências, de modo a poder tomar decisões pessoais com autonomia. Essa autonomia - que se aproxima do conceito de saúde mental ou congruência - implica na capacidade da pessoa de assumir sua própria individualidade e, paradoxalmente, ser capaz de conviver com outras pessoas de maneira autêntica, condizente com seus próprios valores. Trata-se, então, de uma retomada do outro pelo cliente a partir de uma visada a si mesmo. A presença ativa do terapeuta com uma intencionalidade de consciência voltada para perceber e compreender o cliente, buscando deixá-lo à vontade, sem ameaças externas, para interagir com suas angústias e incongruências, torna-se possível, porque ele próprio dispõe-se a estar em contato consigo mesmo, de maneira autêntica e congruente com suas vivências imediatas.

Mas, antes disso, como o terapeuta dispõe-se a essa abertura ao outro? A partir de uma aceitação desprovida de condicionantes, ou seja, dispõe-se a estar com o cliente apreciando-o por "semelhança", um não eu que sou capaz de abstrair como universal, mas que se torna singular pela via da compreensão empática. Então, a despeito do viés positivista das hipóteses teóricas propostas por Rogers, sua originalidade foi ter intuído, a partir da experiência clínica, que a sua presença e intencionalidade, manifestadas por meio de certas atitudes, constituíam-se em elementos vividos pelo cliente na relação que o estimulavam a uma imersão corajosa em sua própria subjetividade.

Stein (1999), p. 80) afirma:

A percepção de uma coisa faz com que desperte em mim a confiança na sua existência; o conhecimento de um estado de coisas cria em mim uma convicção de sua efetiva consistência, a capacidade de captar as qualidades positivas de uma pessoa desperta em mim a admiração por ela.

Na relação terapêutica, portanto, um contato se estabelece entre um eu e um tu, de maneira a integrar as dimensões que constituem os seres humanos, isto é, corpo, psique e espírito.

Quando dois seres humanos se olham, um eu está de frente a um outro eu. Pode acontecer um encontro na porta [da sua alma] ou na sua interioridade. Quando é um encontro na interioridade, então o outro eu se torna um tu. (Stein, 2013, p. 109)

Em um encontro desse tipo, as diferenças são postas de lado, abrindo espaço para o acontecimento de uma transformação, então algo inteiramente novo surge, seja da parte de um deles ou de ambos (Ales-Bello, 2014b). Isso acontece em qualquer relação cujo objetivo seja favorecer o desenvolvimento saudável de alguém, "seja como psicoterapeuta, professor, conselheiro religioso, orientador, assistente social, psicólogo clínico" (Rogers, 1976, p. 103), seja entre "pais-filhos, líder e grupo, administrador e equipe" (Rogers, 2012, p. 38). Para tanto, certas condições são necessárias, sendo uma delas a compreensão empática.

 

A Compreensão Empática na Relação Psicoterapêutica

O psicólogo mobiliza sua atenção em direção ao outro, buscando suspender os próprios juízos - ainda que o cliente já traga um diagnóstico pronto sobre si mesmo e manifeste essa certeza como parte do problema -, para, empaticamente, compreender o cliente e o que se passa com ele. Não se trata de analisar ou avaliar, mas sim de uma compreensão e aceitação que despertem no outro a possibilidade de vivenciar algo novo acerca de si mesmo, de forma a modificar seus autoconceitos, ampliando a capacidade de integrar experiências imediatas, num movimento que promoverá uma reorganização do próprio self num processo contínuo de experienciação - vivência e simbolização. Fenomenologicamente falando, a potencialidade de ser quem se é já existe e, ao realizar-se, a pessoa torna-se consciente de si num sentido amplo. Nesse processo relacional, a pessoa do psicólogo também é afetada. "Se estou verdadeiramente aberto para a maneira pela qual a vida é sentida por outra pessoa - se posso trazer o seu mundo para o meu - corro o risco de ver a vida à sua maneira, de ser modificado" (Rogers, 1976, p. 108).

Na prática clínica, muitas vezes o cliente comunica fragmentos, fala sobre vários assuntos ou nada fala, e o psicólogo busca compreender o mundo íntimo do seu cliente, busca compreender o nexo daquilo que o cliente está tentando expressar, aquilo que está vivendo. O cliente quer comunicar-se, porém, na maioria das vezes, não o consegue apenas por meio da linguagem. Ou ainda: as palavras do cliente "transmitem uma mensagem, e o tom de voz transmite outra, completamente diferente" (Rogers, 2012, p. 6).

Diante desse obscurecimento, o psicólogo volta-se para esse aspecto de fundo das sensações e percepções e procura torná-lo claro para si e para o cliente. Nesse percurso, pode fazer perguntas para explicitar melhor a experiência e, assim, ir se aproximando do sentido daquilo que está sendo vivenciado pelo cliente, até que ocorra um preenchimento - uma compreensão da vivência. A esse respeito pode-se fazer um paralelo com os níveis da experiência empática propostos por Stein (1998), em que, ao ocorrer essa "explicitação preenchedora" (segundo grau da empatia), o psicólogo não está mais voltado ao estado de ânimo do outro, e sim ele próprio se torna o sujeito da experiência que vivencia em si o estado de ânimo do outro e, quando alcança a compreensão da experiência do cliente (terceiro grau), então pode ajudá-lo a clarear (nomeando) aquilo que antes estava obscuro.

É um movimento estritamente relacional entre duas pessoas, durante o qual uma percebe algo na outra, depois vivencia em si mesma e, finalmente, retorna ao outro com uma compreensão acerca dessa vivência. É um movimento de vai e vem: o outro eu (o sujeito-cliente da vivência empatizada) - o eu (o sujeito-psicólogo que empatiza) - o outro eu (o sujeito-cliente da vivência empatizada).

Cabe esclarecer que o limite empático da não identificação permanece e possibilita ao psicólogo discernir o que é dele e o que é do outro. Todavia nem sempre essa distinção é tão imediata em um encontro clínico e o "como se" - tão presente nos textos de Rogers sobre a compreensão empática - pode se tornar obscuro. Um exemplo disso ocorre quando o psicólogo, centrado em seu cliente, sente tédio durante o atendimento, algo que não entende, pois não estava com sono, não estava cansado, mas ouvir o cliente provocou-lhe tédio. O tédio é do psicólogo ou ele captou empaticamente do cliente? Ao se perguntar - o que é isso que estou sentindo? -, o psicólogo passa, então, a observar mais a si mesmo na relação com o outro. A vivência do tédio vai se tornando mais clara, e percebe que, sim, o tédio é a essência daquilo que o cliente está vivenciando e que foi captado por ele na relação. Pode, ainda, dar-se conta de que o tédio é uma sensação sua que emergiu na interação com o cliente.

O psicólogo "pode comunicar sua compreensão do que o cliente conhece vagamente, e pode, também, expressar o que percebe sobre a vivência do cliente, mas de que este não está plenamente consciente" (Rogers, 1976, p. 107), presentificando, assim, aquilo que se apresentava "ao fundo", na fala do cliente. Nesse movimento, é possível ao terapeuta sentir o outro, apreender a essência daquilo que está sendo vivenciado pelo cliente e que pode não lhe ser claro. Pela via da compreensão empática, o psicólogo pode sentir o que se passa, pode escutar sem sequer ouvir a voz do cliente, pois "o nosso corpo sente 'de dentro'" (Manganaro, 2014, p. 27).

Porém não é sempre que a compreensão da vivência do cliente torna-se clara ao psicólogo e, "embora a exatidão dessa compreensão seja muito importante, a comunicação da intenção de compreender também é útil" (Rogers, 1976, p. 108). Isso significa que o psicólogo se importa com o cliente, demonstra o quanto ele é merecedor de ser compreendido e tem valor como pessoa. Esse tipo de empatia é mobilizado a partir de um movimento intencional de aceitação incondicional do cliente pelo terapeuta, permitindo ao primeiro aproximar-se de si mesmo (afinal, o psicólogo já se aproximou dele) e, assim, "(. . .) aprender, mudar e desenvolver-se".

Ranieri e Barreira (2012, p. 28) alertam para a "possibilidade de obscurecimento do fenômeno empático", na medida em que se transforma a vivência empática em algo passível de um "treinamento técnico" de acesso ao outro, para fins "terapêuticos ou analíticos". Empatizar, no sentido fenomenológico, possui o caráter imediato e natural, portanto não pode ser planejado ou antecipado. Justamente por ter esse caráter, na maior parte do tempo, não nos damos conta que estamos sentindo empatia. Esses autores esclarecem que "o que é possível é evidenciar a empatia" (Ranieri & Barreira, 2012, p. 15), para tornar claro o processo para o psicólogo.

Entretanto Rogers (1976, p. 108), décadas antes da ideia contemporânea de se pretender ensinar empatia por meio de um treinamento técnico, escreveu sobre o "treinamento de sensibilização", que faz mais sentido se levarmos em conta o significado da vivência da empatia para a fenomenologia. Prestar mais atenção àquilo que se sente, que se percebe, permite ouvir com mais sensibilidade o outro, percebendo com mais facilidade "os sentidos sutis que a outra pessoa exprime em palavras, gestos e postura, fazendo ressoar mais profunda e livremente em seu íntimo a significação dessas expressões" (Rogers, 1976, p. 109). A sensibilização seria como um acordar dos sentidos, da percepção, da atenção que pode estar adormecida em meio à vida apressada e turbulenta que caracteriza as sociedades contemporâneas.

 

A Autenticidade e a Aceitação Incondicional na Relação Psicoterapêutica

Retornamos, agora, a outras duas condições propostas por Rogers como atitudes instauradoras de um clima facilitador ao crescimento psicológico do cliente num processo terapêutico: a congruência ou autenticidade do psicólogo e sua aceitação incondicional do cliente. Essas condições formam uma tríade de atitudes, dinâmica e interdependente.

Autenticidade significa uma congruência entre aquilo que a pessoa expressa e aquilo que vivencia internamente, ser o que se é na relação com o outro. A busca por autenticidade pelo psicólogo é mais um processo do que um estado. Sob a luz da fenomenologia de Stein, seria uma formação da personalidade autêntica "que se atualiza genuinamente no decorrer de uma biografia" (Coelho & Barreira, 2018, p. 347), em que a pessoa, em meio a outras relações intersubjetivas, é responsável por essa formação (Stein, 2013).

Por outro lado, na prática clínica, a autenticidade pode ser mal compreendida, levando a falsas conclusões, tal como "ser autêntico, muitas vezes, passa a significar apenas seguir as próprias sensações ou movimentos do desejo, desconsiderando outros aspectos éticos que estão envolvidos em cada escolha" (Coelho & Barreira, 2018, p. 345). Em um contexto clínico, caso o psicólogo assuma uma determinada atitude para apenas representar um papel, afastando-se daquilo que realmente está vivenciando, o cliente imediatamente percebe, através da vivência da empatia, mesmo que de forma vaga, que tem algo suspeito, algo em que não pode confiar. Uma questão se sobressai: você abriria a sua interioridade a alguém que transmite uma fachada, que usa uma máscara? Muito provavelmente, não. A pessoa também permaneceria na superficialidade, sem ir ao encontro de sua interioridade (Rogers, 1976). Em nossa experiência clínica, constatamos que, quanto mais o psicólogo é capaz de ser autêntico, mais sinaliza ao cliente que ele pode fazer o mesmo, abrindo espaço para que também o cliente possa formar sua personalidade autêntica.

A terceira condição, a consideração positiva incondicional, aproxima-se daquele sentimento que os pais têm quando apreciam seus filhos pelo que eles virão a ser, uma vez que os pais são capazes de perceber a potencialidade antes mesmo de sua realização. É como se já apreciassem a semente antevendo a árvore que os filhos poderão tornar-se um dia. Rogers (1976, 2012) descreve esse tipo de consideração ou aceitação positiva como uma forma de amor, uma amor que não exige condições, um ágape, e não um amor possessivo ou romântico.

Assim, estimar ou amar e ser estimado e amado são experiências que promovem crescimento. Uma pessoa que é amada compreensivamente, e não possessivamente, desabrocha e desenvolve seu eu próprio e único. A pessoa que ama de modo não possessivo enriquece a si mesma. (Rogers, 2012, p. 14)

Em termos fenomenológicos, há dois aspectos que se desdobram desse sentimento de aceitação do psicólogo para com seu cliente. Primeiro, a aceitação envolve o não julgamento sobre os comportamentos do cliente que podemos relacionar com a epoché. O outro diz respeito à própria formação da pessoa, citada anteriormente. Quando o cliente percebe essa aceitação por parte do terapeuta, encontra ânimo ou motivação para seguir com confiança no seu processo de tornar-se si mesmo, em acordo com a exigência do seu núcleo pessoal de uma vida vivida nas três dimensões (Stein, 2013). Nesse sentido, a aceitação incondicional precisa estar em íntima conexão com a autenticidade vivenciada pelo terapeuta ao estar em um encontro clínico; caso contrário, seria apenas uma fachada. No que tange à atitude de congruência ou autenticidade, aproxima-se da noção de subjetividade, proposta por Husserl, como sendo constituinte do eu.

Rogers (2010, p. 98) conclui que:

Podemos dizer, com alguma certeza, que um relacionamento caracterizado por um alto grau de congruência ou autenticidade do terapeuta; por uma sensível e acurada empatia por parte do terapeuta; por um alto grau de consideração, respeito e apreço pelo cliente por parte do terapeuta; e pela ausência de condicionalidade em sua consideração, terá alta probabilidade de ser uma relação terapêutica eficaz.

Desse modo, entendemos que a intersubjetividade é um elemento potente de aproximação entre a fenomenologia clássica de Husserl e Stein e a abordagem centrada na pessoa, desenvolvida por Carl Rogers.

 

Considerações Finais

O eu, esse elemento identificador do ser humano, constitui-se na relação com o tu desde a mais tenra infância. No texto sobre a criança, Husserl (2017) delineia a importância da primeira empatia proveniente da "conexão eu-tu" e que marca a passagem do bebê para se tornar uma criança. Fazendo um paralelo com o crescimento psicológico, também é necessário que a pessoa escolha abrir-se para a relação psicoterapêutica com o psicólogo quando as circunstâncias da vida lhe estiverem desfavoráveis.

No processo de tomar a si mesmo pela mão e caminhar pela estrada do autoconhecimento, a pessoa dá-se conta da sua experiência pessoal. Todavia não é qualquer caminho que lhe serve, mas sim aquele que corresponda ao seu núcleo pessoal. Quando esse caminhar não é possível sozinho, que a pessoa possa ter a ajuda de um psicólogo que seja como um sherpa (guia de uma tribo no Nepal para escalar o Himalaia), um guia - com certas características especiais - para facilitar sua jornada, como tão bem escreveu Bowen (2004).

Assim, algumas reflexões decorrentes das noções propostas pela fenomenologia podem contribuir para lançar luz sobre o acontecer da clínica psicológica. Uma delas é que, por meio do conhecimento acerca da estrutura do ser humano e das vivências puras, é possível perceber que o psicólogo acessa as vivências puras para compreender o mundo vivido pelo cliente, isto é, faz uso do conhecimento da universalidade para facilitar sua compreensão sobre a individualidade de cada cliente.

Outra contribuição é a suspensão de juízos, a epoché, que possibilita a retirada das várias barreiras de conteúdos e de eus inautênticos até que o psicólogo possa chegar ao eucentro autêntico, o núcleo pessoal, último da constituição humana, uma vez que "a epoché liberta precisamente o olhar" (Husserl, 2012, p. 195). Esse centro único individual tem uma potência que pode (e deveria) ser realizada, entretanto são necessárias condições para tanto.

Uma das mais importantes contribuições envolve a vivência da empatia, que, por si só, nos dá a possibilidade de compreender, a partir de nós, aquilo que o outro sente, aquilo que ele vivencia, mas sem nos perdermos nesse percurso. Todavia, nas relações psicoterapêuticas, é necessário um passo a mais, um ato voluntário de abertura ao outro, uma intencionalidade e disponibilidade de apoiar o eucliente no processo terapêutico, um apoio que o sustente no seu percurso de autoconhecimento.

A possibilidade de crescimento psicológico faz-se presente ao cliente (e, também, ao psicoterapeuta) no processo de relacionar-se com outro que o aceita autenticamente, confirmando-o como pessoa via compreensão empática e, dessa forma, estimulando-o a tornar-se disponível a um encontro intencional, voluntário, consigo mesmo. O psicólogo, por sua vez, dispõe-se, intencionalmente, a promover um encontro no qual seja possível ao cliente vivenciar suas potencialidades e limites num processo relacional que o impele a uma atenção a si mesmo, ou seja, uma imersão em suas próprias vivências torna-se possível a partir de um modo de relacionar-se posto em movimento pelo terapeuta.

Assim, pode-se afirmar que a originalidade da abordagem centrada no cliente - mais tarde, modificada pelo próprio Rogers para pessoa -, consistiu em enfatizar a centração no outro como um percurso a guiar os atos do psicoterapeuta, num movimento intencional da sua consciência em direção à pessoa do cliente. As atitudes do terapeuta durante a relação psicoterapêutica facilitam a manifestação do potencial humano para o crescimento psicológico do cliente. Congruência ou autenticidade, compreensão empática e consideração positiva incondicional nada mais são do que um retorno intencional do terapeuta a sua própria subjetividade, buscando apreender suas sensações, sentimentos e ideias para que possa voltar-se ao outro num percurso de vai e vem muito semelhante ao proposto por Husserl e explicitado ao longo deste artigo. Assim, "um ouvir criativo, ativo, sensível, acurado, empático, imparcial, é algo (. . .) imensamente importante numa relação" (Rogers, 2012, p. 9).

O determinismo inerente à proposição rogeriana de uma tendência direcional ao crescimento e desenvolvimento psicológico não implica em imobilidade existencial, mas sim numa compreensão de que o ser humano se constitui enquanto singularidade num processo de vir a ser que o impele, inexoravelmente, a uma busca por autocompreensão, motivada por vivências intersubjetivas. Assim, o processo de relacionar-se com outras pessoas implica, paradoxalmente, encontrar-se consigo mesmo, num movimento de autoconstituição que possibilita a convivência com outros homens, ou seja, enseja a formação da vida em comunidade numa acepção fenomenológica.

A esse respeito, Ales-Bello (2017) enfatiza que tanto Husserl quanto Stein desenvolveu a ideia de que uma comunidade caracteriza-se pelo fato de seus membros assumirem responsabilidades recíprocas, ou seja, o projeto coletivo deve ser útil para o conjunto de pessoas e também para cada uma delas individualmente. Rogers, por sua vez, a partir da década de setenta do século XX, dedicou-se a facilitar e analisar "encontros de comunidade" propostos com o objetivo de possibilitar aos participantes uma experiência criativa de convivência social. Refletindo sobre sua própria experiência em um desses encontros, Rosenberg (Rogers & Rosenberg, 1977, pp. 131-132) faz a seguinte reflexão:

A identidade do indivíduo é uma individualidade social, e talvez deva ser reconstruída após os estragos que sofreu em guerras mundiais e locais, em terremotos de avanço tecnológico e muitos outros golpes que lhe foram deflagrados. É possível que esta reconstrução encontre um terreno bastante favorável num tipo de sociedade cujo tamanho inicial seja menos aterrador que nossas macro-comunidades. Uma tal vivência social poderia ser estabelecida, senão em caráter permanente, em "laboratórios" onde as pessoas viriam para se desenvolver e elaborar novas formas de estrutura e convivência para a sua sociedade.

Rosenberg (Rogers & Rosenberg, 1977, p.132) conclui que a abordagem centrada na pessoa é um caminho possível "na tentativa de encontrar as muito necessárias novas formas do viver social".

 

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Endereço para correspondência:
Gisella Mouta Fadda
E-mail: gisella.fadda@gmail.com

Vera Engler Cury
E-mail: vency2985@gmail.com

Recebido em: 14/05/2019
Revisado em: 22/12/2019
Aceito em: 20/07/2020
Publicado online: 19/06/2021

 

 

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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