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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.21 no.spe Fortaleza  2021

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v21iesp1.e10664 

ESPECIAL: PSICOLOGIA & FENOMENOLOGIA

 

Uma compreensão fenomenológico-existencial em "a redoma de vidro" de sylvia plath

 

A Phenomenological-Existential Understanding in Sylvia Plath's "The Glass Dome"

 

Una Comprensión Fenomenológico-Existencial en "La Campana de Cristal" de Sylvia Plath

 

Une Compréhension Phénoménologique et Existentielle dans « Le Dôme de Verre » par Sylvia Plath

 

 

Anderson Barbosa de AraújoI; Jéssyca Alana Oliveira PereiraII; Polyana Luz de LucenaIII

IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Doutorando em Psicologia Clínica (UNICAP)
IIEspecialista em Saúde Coletiva pela Escola de Serviço Público da Paraíba (ESPEP). Mestranda em Psicologia Clínica (UNICAP)
IIIMestre em Saúde da Família pela FACENE/FAMENE. Doutoranda em Psicologia Clínica pela UNICAP. Psicóloga da Clínica-Escola de Psicologia na UFPB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A literatura parece um caminho fecundo para as investigações teóricas da psicologia fenomenológico-existencial. Sendo assim, este estudo se propôs à compreensão de A redoma de vidro, único romance publicado da autora Sylvia Plath, que é descrita como uma das poetisas americanas mais importantes do século XX, e grande nome do movimento literário do confessionalismo. O romance, que é tido como a extensão em prosa de sua poesia, se desenvolve em torno de Esther Greenwood, uma jovem prodigiosa e bastante ambiciosa que aos 17 anos sai de sua cidade natal para um estágio em Nova York, e segue-se ao longo da história por uma profunda caminhada por dentro dos pensamentos e sentimentos conflitantes da personagem diante dos rumos de sua vida, um caminho cheio de perdas e encontros, da necessidade do suicídio e da internação psiquiátrica. Diante desse contexto e da defesa teórica de uma metodologia fenomenológica de estudo, foi realizada uma compreensão da obra, que possibilitou o desvelamento de uma série de sentidos, que, à luz de uma analítica existencial, tomando como ponto central a personagem Esther, revelou temas de interesse, sendo eles: a experiência de inautenticidade; a problemática do sentido da existência; a escolha e a náusea; e a atualização da existência frente ao movimento da consciência, temas esses que puderam ser discutidos a partir dos fenômenos de interesse presentes no romance e das reflexões teóricas existencialistas. Foi possível perceber, com isso, a relevância dessa obra de Plath para a discussão de temas relevantes no âmbito da psicologia fenomenológico-existencial, além da necessidade de novos estudos que se inclinem sobre outras temáticas pertinentes na obra e não trabalhadas neste estudo.

Palavras-chave: fenomenologia; existencialismo; Sylvia Plath; A redoma de vidro.


ABSTRACT

Literature seems to be a fruitful path for theoretical investigations of existential-phenomenological psychology. Therefore, this study aimed to understand The Glass Dome, the only published novel by Sylvia Plath, who is described as one of the most relevant American poets of the 20th century, and a great name in the literary movement of confessionalism. The novel, which is said to be the prose extension of her poetry, revolves around Esther Greenwood, a prodigious and quite ambitious young woman who at 17 leaves her hometown for an internship in New York, and follows throughout the story for a deep journey inside the character's conflicting thoughts and feelings in face of her life direction, a path full of losses and encounters, the need for suicide and psychiatric hospitalization. Given this context and the theoretical defense of a phenomenological study methodology, an understanding of the work was carried out, which enabled the unveiling of a series of meanings, which, in the light of existential analysis, taking as its central point the character Esther, revealed themes of interest, namely: the experience of inauthenticity; the problematic of the meaning of existence; choice and nausea; and the updating of existence against the movement of consciousness, themes that could be discussed from the phenomena of interest present in the novel and the existentialist theoretical reflections. With this, it was possible to see the relevance of Plath's work for the discussion of relevant themes in the scope of existential-phenomenological psychology in addition to the need for new studies that focus on other relevant themes in the work and not addressed in this study.

Keywords: phenomenology; existentialism; Sylvia Plath; The glass dome.


RESUMEN

La literatura perece un camino fértil para las investigaciones teóricas de la psicología fenomenológico-existencial. Así, este trabajo propuso comprender La Campana de Cristal, último romance publicado por la autora Sylvia Plath, que es considerada una de las poetisas más importantes del siglo XX, y gran nombre del movimiento literario del confesionalismo. El romance, que es como la extensión en prosa, se desarrolla alrededor de Esther Greenwood, una joven prodigiosa y bastante ambiciosa que a los 17 años sale de su ciudad de origen para una pasantía en Nueva York, y sigue a lo largo de la historia por una profunda caminada por dentro de los pensamientos y sentimientos conflictivos del personaje ante los rumbos de su vida, un camino lleno de pérdidas y encuentros, de la necesidad del suicidio y de la internación psiquiátrica. Ante este contexto y de la defensa teórica de una metodología fenomenológica de estudio, fue realizada una comprensión de la obra, que posibilitó el entendimiento de una serie de sentidos, que, a la luz de una analítica existencial, tomando como punto central el personaje Esther, reveló temas de interés. Son ellos: la experiencia de inautenticidad; la problemática del sentido de la existencia; la elección y náusea; y la actualización de la existencia ante el movimiento de la consciencia, temas que pudieron ser discutidos a partir de los fenómenos de interés presentes en el romance y de las reflexiones teóricas existencialistas. Fue posible percibir, con esto, la importancia de esta obra de Plath para la discusión de temas relevantes en el ámbito de la psicología fenomenológico-existencial, además de la necesidad de nuevos estudios que se dediquen a otras temáticas pertinentes en la obra y no trabajadas en este estudio.

Palabras clave: fenomenología; existencialismo; Sylvia Plath; La campana de cristal.


RÉSUMÉ

La littérature semble être une voie fructueuse pour les investigations théoriques de la psychologie existentielle-phénoménologique. Par conséquent, cette étude visait à comprendre Le dôme de verre, le seul roman publié par l'auteur Sylvia Plath, qui est décrit comme l'un des poètes américains les plus importants du 20e siècle, et un grand nom du mouvement littéraire du confessionnalisme. Le roman, qui est compris comme le prolongement en prose de sa poésie, tourne autour d'Esther Greenwood, une jeune femme prodigieuse et assez ambitieuse qui, à 17 ans, quitte sa ville natale pour un stage à New York. Tout au long de l'histoire, Esther part pour un voyage profond à l'intérieur des ses pensées et des ses sentiments contradictoires concernant la direction de sa vie, un chemin plein de pertes et de rencontres, de la nécessité du suicide et de l'hospitalisation psychiatrique. Compte tenu de ce contexte et de la défense théorique d'une méthodologie d'étude phénoménologique, une compréhension du travail a été réalisée, qui a permit de dévoiler une série de significations. Une analyse existentielle, prenant comme point central le personnage d'Esther, a révélé des thèmes d'intérêt, à savoir : l'expérience de l'inauthenticité ; la problématique du sens de l'existence ; choix et nausées; et l'actualisation de l'existence contre le mouvement de la conscience, thèmes qui pourraient être discutés à partir des phénomènes d'intérêt présents dans le roman et sur des réflexions théoriques existentialistes. Il était possible de voir, avec cela, la pertinence de ce travail de Plath pour la discussion de thèmes dans le cadre de la psychologie phénoménologique existentielle. On a pu voir aussi la nécessité de nouvelles études qui se concentrent sur d'autres thèmes pertinents dans le travail et qui non été pas traités dans cette étude.

Mots-clé: phénoménologie ; existentialisme ; Sylvia Plath ; Le dôme de verre.


 

 

A relação entre a arte, filosofia e psicologia parece muito profícua, pois é na literatura que, muitas vezes, os temas existencialistas mais diversos tomam concretude e caminhos de compreensão, além de servirem de possibilidade para reflexão sobre as práticas de um saber que fundamentalmente se assenta sobre a experiência, e a arte pode ser considerada uma dessas manifestações, como coloca Clini (2016).

É nesse sentido que Sylvia Plath, em seu único romance publicado, A Redoma de Vidro (1963/2014), parece fornecer elementos para uma compreensão fenomenológica de temas existenciais que surgem no enredo da personagem principal do romance, Esther Greenwood. Porém, muito mais que apenas peça de ficção, a obra de Plath parece um reflexo de sua própria vida. Uma relação que, além de interessar enquanto literatura, no sentido da construção da trama, também dá margem a um teor psicológico denso e de interesse aos estudos em psicologia.

Ícone da literatura confessional, seus poemas e a sua prosa parecem uma extensão de seus conflitos vivenciados, e seus personagens terminam por se confundir com a própria história de sua autora e revelar os elementos de uma vida perpassada pelos temas da paixão, do suicídio e da afirmação da vida, como colocado por Carvalho (1999).

No entanto seria apelar a um brutal reducionismo focar os elementos da compreensão de sua obra exclusivamente na temática do suicídio, tal como majoritariamente foi feito na psicologia e nas principais reflexões sobre a obra. Carvalho (1999) já apontava que, por muito tempo, foram justamente essas as análises que prevaleceram, e que pareciam buscar no texto de Plath um diagnóstico de sua personalidade e uma explicação de seus atos, como se fosse o texto uma espécie de teste projetivo, no qual o elemento do suicídio é o único foco e a partir dele que tudo se lê. Nessa direção, afirma a autora, são perdidos outros aspectos presentes no texto, em elementos existenciais e afetivos que antecedem o suicídio da própria autora e dos reflexos que isso tem na construção da personagem de seu romance.

André (2018) também levanta uma questão interessante nessa direção ao alertar que, na leitura de uma obra, se faz necessário que se evitem as esquematizações e o excruciante processo de sobrepor macroestruturas analíticas ao material investigado, uma vez que o resultado disso é certa distorção ou "amputação" do material em prol de uma adequação ao que se busca. Essa perspectiva conversa com a metodologia utilizada neste estudo.

É partindo desse pressuposto que se justifica essa pesquisa, ou seja, a escolha por focar na riqueza existencial de Sylvia Plath e do quanto isso conseguiu ser transposto para sua personagem, que traz elementos de profunda relevância para a psicologia e para a construção de uma atitude fenomenológico-existencial diante do outro, que se dá na tentativa de captação e compreensão de sentidos e na comunicação autêntica de tais percepções.

Para tal, considerar-se-á uma compreensão fenomenológica da obra enquanto metodologia de pesquisa, para, a partir desta, ser lançada uma analítica existencial enquanto método de análise, tomando como ponto central a personagem Esther Greenwood. Com isto se pretende superar "o problema Plath", em que as explicações biográficas, psicanalíticas e feministas tentavam dar conta da complexidade de sua existência a fim de encontrar as razões de seus atos.

Sem desconsiderar a relevância dessas outras análises como também pertinentes para a compreensão de temas importantes de Plath como um todo e, principalmente, de A Redoma de Vidro, este artigo pretende trazer um olhar ainda não trabalhado sobre o romance, numa abordagem compreensiva, apontando sentimentos, significados e experiências que serviram de material para reflexão à luz de temas existenciais importantes de autores como Camus, Sartre, Schopenhauer e Carl Rogers.

 

Por uma Compreensão Fenomenológica da Obra

A fenomenologia, enquanto um método de pesquisa dentro da psicologia, parece estar encontrando cada vez mais espaço como uma nova forma de olhar os fenômenos psicológicos e existenciais. Mas muito antes disso, Husserl, como fundador do movimento fenomenológico, acreditava que para se chegar à "essência" de algo seria necessário fazer uma "redução fenomenológica", por meio da qual se eliminariam os juízos condicionados histórica e culturalmente, enfatizando a intuição, em um verdadeiro transcender da consciência (Feijoo & Goto, 2017).

Feijoo e Goto (2017), seguindo a tradição filosófica fenomenológica, colocam em relevo justamente o aspecto da intencionalidade da consciência no desenvolvimento da pesquisa em fenomenologia, ao lembrar que nunca é a realidade que está sendo visada nesse método de investigação, mas aquilo que dela se sobrepõe enquanto fenômeno, relevando-se como uma ciência das essências e não dos fatos.

Mais do que o saber, portanto, o olhar fenomenológico trata da compreensão, valorizando o ser em sua singularidade, de forma a propor um novo paradigma para se pensar nas problemáticas propostas. Conta com um novo método que trata a descrição como uma busca sensível pelo ser em sua vivência. Uma redução que, como afirmam Silva e Cecchini (2015), se dá não apenas considerando o indivíduo e sua dimensão psicológica, mas numa segunda etapa eidética, em que a ênfase está na essência das coisas mesmas.

O ser, nessa perspectiva de Husserl, como trazido por Feijoo e Goto (2017), deve ser observado como muito mais amplo do que a singularidade daquilo que é ôntico, não podendo se reduzido em um ente em particular. Nesse sentido, a análise de uma obra tomada nessa perspectiva é muito mais que a análise de uma personalidade, mas a tentativa de compreensão de temas transversais da condição humana.

É partindo dessa base filosófica sobre o sentido de redução fenomenológica que podemos compreender o que Rogers (1977) chama de compreensão empática. É assumindo uma postura fenomenológica diante do outro que podemos compreendê-lo empaticamente, percebendo os significados, assim como os sentimentos que ele próprio dá ao mundo, tendo, para isso, que por "entre parênteses" os significados e os sentimentos que nós mesmos damos ao mundo. Como no trecho a seguir:

[...] viver temporariamente sua vida, mover-se delicadamente dentro dela sem julgar, perceber os significados que ele/ela quase não percebe [...] Significa deixar de lado, neste momento, nossos próprios pontos de vista e valores, para entrar no mundo do outro sem preconceitos. Num certo sentido significa pôr de lado nosso próprio eu. (p. 73)

Portanto, percebe-se a proximidade entre o que tomamos como uma atitude fenomenológica frente ao outro e o que Rogers chama de compreensão empática. Essa proximidade já havia sido ressaltada por Moreira e Torres (2013) ao afirmarem a maneira que a redução fenomenológica se processa na prática psicoterapêutica como o que comumente chamamos de empatia. Já Castelo Branco e Cirino (2017) questionam a real presença da fenomenologia na obra de Rogers e apontam um movimento "pós-rogeriano" de orientação fenomenológica em desenvolvimento no Brasil atualmente.

Tomando essas bases de referência, Feijoo e Mattar (2014) defendem a fenomenologia enquanto uma inspiração metodológica para as investigações em psicologia, valendo-se da redução fenomenológica para explicitar fenômenos psíquicos em seu mostrarse originário. No entanto, como alerta, as autoras advertem da impossibilidade de uma tradução literal do sentido da fenomenologia enquanto movimento filosófico para a ciência da psicologia. Torna-se então necessário entender que o movimento de compreensão da obra aproxima-se mais daquilo que é proposto por Rogers do que mesmo o método fenomenológico "puro" enquanto sistemática filosófica.

Feijoo (2018) não hesita em colocar essa questão da relação entre fenomenologia e psicologia enquanto método, não encerrando o tema de forma rápida e simples. Problematiza a noção originária de método como metà-hodós. Nessa direção, a autora aponta uma metodologia que "acontece", que se dá no momento em que se produz, retomando a prática de Sócrates no banquete de Platão como um exemplo de certa postura metodológica que, longe de ser ausente de rigor, não cumpre a sistematização cega que a ciência atual preconiza. Essa pesquisa sobre o livro A Redoma de Vidro também se apoia nessa concepção de metodologia como metà-hodós e pretende ir além das categorias, expondo inspirações.

Também é importante sublinhar como as pesquisas utilizando a fenomenologia se propagam no Brasil há cerca de duas décadas, variando de enfoque desde uma dita fenomenologia pura até uma antropologia fenomenológica com Edith Stein, por exemplo, em um movimento que visa resgatar a redução transcendental, em uma epoché que não pretende fragmentar mundo e fenômeno, mas tomar ambas as dimensões em seus caracteres temporais e espaciais (Barreira, 2017).

É partindo dessa defesa que, a partir do livro A Redoma de Vidro, foi possível construir uma rede de significados que puderam ser percebidos a partir da obra. Para isso, foi necessário colocar as amarras do mundo prático em suspensão e tentar compreender Esther (personagem central do livro) de maneira empática, lançando sobre sua narração um olhar fenomenológico, buscando não os fatos, mas os fenômenos.

Diante da compreensão das experiências vivas relatadas no texto, foi possível perceber sentimentos e significados importantes para discutir temas centrais do existencialismo. Sendo assim, o presente artigo se subdivide em alguns temas do existencialismo que puderam ser discutidos a partir do romance, sendo eles: a experiência de inautencidade; a problemática do sentido da existência; a escolha e a náusea; e a atualização da existência frente ao movimento da consciência.

 

A Experiência de Inautenticidade

Os sentimentos de inautenticidade são um dos aspectos que mais se manifestam na compreensão da obra. É um ponto relativamente crucial que, vez ou outra, passa de latente a manifesto e demonstra o quanto estar às voltas com quem se realmente é configurava-se como um ponto central e angustiante para Esther Greenwood.

Autenticidade, genuinidade ou transparência é uma das características que, manifestando-se como atitude na relação com o outro pode provocar mudanças de personalidade, como Rogers (1983) já havia observado em sua prática clínica, sendo nesse sentido um importante elemento imbricado na saúde mental dos sujeitos.

Essa noção, por sua vez, pode ser observada na pessoa que é real, transparente e que não se esconde em máscaras ou fachadas, mostrando-se tal como realmente se é na relação com o outro (Santos, 2004). A inautenticidade, nessa perspectiva, é então mais do que o contrário de autenticidade, mas um movimento dispendioso da subjetividade em construir uma máscara forte o suficiente para não ser percebida e poder responder às demandas do "mundo técnico". Sendo assim, pode-se observar em diversos trechos da obra a posição inautêntica da personagem.

'Meu nome é Elly Higginbottom' - disse eu. 'Venho de Chicago'. - Depois disso senti-me mais segura. Não queria que nada do que eu fizesse ou dissesse naquela noite pudesse ser ligado a mim e a meu nome verdadeiro, e ao fato de eu vir de Boston. (Plath, 1963/2014, p.22)

Já nesse início da obra é possível perceber o quanto a questão de "ser quem realmente é" é complexa para a personagem. A inautenticidade é vivida no trecho anterior tanto na experiência quanto na comunicação. O seu eu real está tão ausente na relação que lhe foi necessário mudar o nome e o endereço para que ela pudesse se afastar dele e, depois disso, sentir-se segura.

É importante firmar que, por outro lado, falar em autenticidade não é o mesmo que valorá-la como algo positivo ou negativo, mas falar de algo que diz respeito à profunda solidão humana. É nesse ponto que autenticidade e solidão convergem, uma vez que está nessa última à abertura de possibilidade necessária para um encontro autêntico do sujeito consigo mesmo. Encontro esse que, na constituição da sociedade neoliberalista moderna, parece ser cada vez mais tensionado no sentido da aniquilação (Ericksen, 2017).

Pode-se observar o que Rogers (2009) pontua sobre tendermos a retirar da consciência os elementos que abalam o conceito de Eu rígido que temos. É em uma atmosfera de aceitação, autenticidade e compreensão que geralmente esses elementos começam a integrar o Eu real e, consequentemente, a modificá-lo, o que gera o que ele vem a chamar posteriormente de momentos de movimento, provindos da tomada de consciência. Elementos integrantes de uma autenticidade distante da personagem, que, apesar de ter tudo "na ponta da língua", não parecia ter algo que fosse realmente autêntico para dizer. Como se vê no seguinte trecho:

'-O que pretende fazer depois de se formar?'. O que sempre pensei foi conseguir uma boa bolsa para um curso de pós-graduação, ou estudar na Europa, e depois talvez ser professora universitária e escrever livros de poemas, ou ser editora. Normalmente eu tinha esses planos na ponta da língua. '- Na verdade, não sei' - ouvi-me dizer. Senti um choque profundo ao dizer isso, porque no minuto em que o fiz soube que era verdade. (Plath, 1963/2014)

Contrariando todos os planos que tinha e tudo que ela pensava racionalmente, sobre o que era e queria ser, surgiu em sua consciência o fato de que ela não sabia o que queria ser e o que queria fazer do futuro. E essa profunda percepção que se aproximava cada vez mais do campo de consciência, na verdade, não era um elemento novo, como coloca Rogers (2009), mas um elemento que sempre esteve lá, sem que estivesse disposto para a consciência. Ao dizê-lo, ela toma essa consciência: "Senti um choque profundo ao dizer isso" (Plath, 1963/2014). Inevitavelmente, ela não será igual depois disso, pois seu self tende à reformulação. Como é possível observar no trecho a seguir, ainda um processo de percepção da instrumentalização do Eu.

Soava verdadeiro; reconheci isso como se reconhece uma pessoa indefinida que rodeia nossa porta por séculos a fio e, de repente, entra e se apresenta como nosso verdadeiro pai, e se parece exatamente com o conosco, de modo que sabemos que é realmente nosso pai, e aquele que a vida toda pensamos ser nosso pai é uma farsa. (Plath, 1963/2014, p. 39)

Por mais que a personagem começasse a perceber o processo no qual esteve imersa em toda a sua vida, como sugere o trecho, ela ainda não sabe que caminho seguir. A instrumentalização da vida aliena a tal ponto que os sujeitos passam a desenrolar seu projeto existencial sobre tal dinâmica, porém perceber que aquilo que sempre soou verdadeiro já não parece corresponder ao que é mais singular, e que a própria ausência de autenticidade parece ser aquilo que de mais verdadeiro soa, já se configura como os primeiros passos de um processo que se desenvolve durante toda a trama.

Saber todas as respostas sobre seus projetos futuros era, portanto, o conforto que a personagem possuía em sua existência, ao mesmo tempo em que a inevitável incompletude que tais planos provocavam, por se remeterem a algo de impróprio e impessoal, parecia fazer a base de sua culpa e melancolia.

A inautenticidade de Esther parece, então, se tornar ainda mais pungente diante do nada, caminho no qual o ser se depara entre a fronteira da liberdade de viver e a morte. É nessa fronteira que, no decorrer da obra, o suicídio surge como possibilidade na dinâmica existencial de Esther.

Em um trecho da obra, quando a personagem está no banho, ela volta a pensar sobre a questão da morte e do suicídio. A morte toma forma e, no entanto, ainda é distante aos reais desejos de seu Eu, e cortar os pulsos parece não mais que atingir ainda a superficialidade de toda uma vida de impessoalidades técnicas. Não sabendo ela quem estaria muito mais ao fundo de tal pele branca e indefesa, Esther hesita.

Mas quando chegou a hora a pele de meu pulso pareceu-me tão branca e indefesa que não fui capaz. Era como se eu quisesse cortar não a pele ou a veia azul e fina, que saltava sob o meu polegar, mas a outra coisa mais funda, mais secreta e muito, muito mais difícil de alcançar. (Plath, 1963/2014, p.137)

É possível fazer relação também com o tópico seguinte de análise, pois, como afirma Cândido (2014), é como se Esther observasse na morte uma espécie de libertação para a vida. No entanto, por estar distante de si mesma, ela sequer consegue compreender que sofrimento é esse do qual ela quer fugir. Diante da incompreensão do sentido de seu sofrimento e tomando a morte como meio e não fim, Esther chama para a questão que Camus (2010) já dizia ser a mais importante de todas: aquela sobre o sentido da vida.

 

A Problemática do Sentido da Existência

Camus (2010) já alertava em O mito de Sísifo que a questão que deveria ser tomada como central na filosofia seria justamente essa do sentido da vida, pois, para ele, mais que simplesmente de interesse teórico, refletir sobre o porquê da permanência na vida, dá conta de uma problemática da prática. Em seus termos, o autor aponta o que seriam os problemas "fúteis" da ciência moderna, contrapondo com o que para ele gera consequências práticas. As pessoas morrem por achar que a vida não vale a pena ser vivida, aponta o autor.

Vários estudos são realizados sobre a temática há muitos anos no campo da psicologia, e o construto do sentido de vida (SV) vem sendo central na logoterapia, por exemplo, desde seu surgimento. Textos recentes, como os de Noronha, Oliveira, Barros, e Moreira (2018) e Aquino, Dará, e Simeão (2016), ressaltam como a questão de SV é um ponto central na constituição subjetiva, podendo, de certa forma, a sua presença ser um "indicativo" de saúde mental. Noronha et al., (2018) ainda destacam que a dimensão do SV não é apenas individual, mas também coletiva, sendo um elemento cultural.

A questão do sentido é também crucial na análise do livro e se apresenta frequentemente na percepção da personagem de um existir vazio de significado. A experiência de viver parece fria e o mundo parece não ter nada de valor a priori. Esse fluxo de pensamento parece ir ao encontro de toda uma corrente da filosofia da existência, como em Schopenhauer, e as primeiras fases do pensamento de Nietzsche e a filosofia do absurdo de Albert Camus, por exemplo, em que o fundamento da vida distancia-se do sentido, visto ser esse mera ilusão e distante da concretude vazia e absurda (Sousa, 2012).

Segundo tal filosofia, principalmente a Schopenhaueriana (que nesse estudo é tomada como principal fonte de reflexão sobre a questão do sentido da vida), o mundo seria dominado por um impulso cego e sem sentido, que é a Vontade e, sendo assim, viver não possuiria em si mesmo qualquer significado imanente.

Giacoia Júnior (2000), ao traçar a primeira fase do pensamento de Nietzsche (segundo ele, diretamente influenciada por Schopenhauer), afirma que o filósofo defendeu em O nascimento da tragédia a necessidade de viver e aceitar plenamente esse estado vazio do existir e que o único sentido de tudo era dado pela experiência estética da música.

O vazio e a apatia diante do mundo podem ser observados na personagem logo no início do romance: "Acho que deveria estar excitada, como a maioria das outras moças, mas não conseguia reagir. Sentia-me boba e muito vazia, como um olho de um furacão deve se sentir ao mover-se apaticamente em meio ao tumulto ao seu redor" (Plath, 1963/2014, p.14).

No trecho anterior podemos observar essa característica na personagem, que se sente como o olho de um furacão, fazendo tudo aquilo que acredita que tem que fazer, mesmo que isso não lhe tenha nenhum sentido. Ela percebia que a maioria das pessoas se alegrava com isso e que as outras estagiárias em Nova York conseguiam visualizar sentido naquilo que faziam e considerar tudo como uma grande oportunidade. Porém onde se ouvia barulho a personagem encontrava apenas silêncio: "O silêncio me deixava deprimida. Não era o silêncio do silêncio. Era o meu próprio silêncio" (Plath, 1963/2014, p.28). Esse sentimento encontra "justificativa" no pensamento de Schopenhauer, tal como coloca Cândido (2014, p. 137).

Se a partir da visão de Schopenhauer a vida é um acidente, entende-se que estar nesse mundo é apenas uma ocasião e ninguém tem muita razão de ser. Viver é somente cumprir "o desejo" de vida da Vontade. Não havendo outra explicação para se passar os dias respirando; o motivo para acordar todos os dias se torna sem sentido.

Ainda segundo a autora, é possível encontrar nesse romance uma série de correlações com a filosofia de Schopenhauer, principalmente no que se refere a esse pessimismo em relação ao sentido da vida, que é apontado por ela como um primeiro elemento dessa aproximação. Outro ponto de aproximação, segundo a autora, diz respeito à própria concepção de redoma de vidro, tal como percebida por ela na obra, como aponta a autora.

A partir disso, é possível se fazer a leitura que a vida para Esther é uma redoma que a sufoca e a obriga a permanecer nesse martírio de sofrimento, do qual ela não consegue se livrar. A redoma a aprisiona, embora seja frágil por ser de vidro. É mais ou menos o que é a vida para Schopenhauer. Para ele, o ser humano se encontra numa situação sem remédio. O homem como realização objetiva da vontade, vê-se impossibilitado de escapar dela. (Cândido, 2014, p.138)

Um último aspecto que Cândido (2014) ressalta como algo que aproxima A Redoma de Vidro da filosofia de Schopenhauer é o fato de carregar forte conteúdo biográfico. Pois, segundo a mesma, Schopenhauer aponta que, por uma obra autobiográfica, é possível conhecer profundamente o outro tal como ele é, e por meio da redoma de vidro seria possível conhecer profundamente a própria Sylvia Plath.

Sousa (2012), em um estudo de análise dos elementos do pessimismo em Schopenhauer, aponta o desejo ininterrupto da vontade em satisfazer-se, sem encontrar, no entanto, elemento algum no mundo ou nas pessoas que a satisfaça. A questão do sentido da vida se esvazia na falta do próprio sentido, e há uma aproximação da vida e da tragédia.

No entanto seria ainda ilusão a resposta lógica de que, já que não há sentido na vida, deveria ser a morte a saída mais autêntica, como pensou a própria personagem, porém a vontade é um movimento perpétuo, que não termina (Sousa, 2012). A personagem ao conversar com seu namorado médico, afirma essa qualidade da vontade: "Poeira são os cadáveres que você retalha. Poeira são as pessoas que você pensa que está curando. São poeira da poeira da poeira. Para mim um bom poema dura muito mais do que centenas dessas pessoas juntas" (Plath, 1963/2014, p. 59), numa afirmação da transitoriedade dos corpos e do apaziguamento pela poesia.

Ainda discutindo a problemática do sentido da vida a partir do romance, é possível destacar que, além de vazia de sentido, a vida é percebida pela personagem como vazia de possibilidades. Roehe e Dutra (2017) afirmam que, para Heidegger, a vida seria justamente o movimento de possibilidades de ser. A vida seria mais do que a coisa, o órgão e o organismo; a vida seria instrumento e aptidão e, portanto, possibilidades. Mas, como se pode perceber no trecho seguinte, as possibilidades parecem não serem percebidas pela personagem, esvaziando assim o sentido.

Vi meus anos de vida espetados numa estrada, como postes telefônicos ligados entre si pelos fios. Contei um, dois, três... Dezenove postes telefônicos, os fios balançando no ar, e por mais que eu me esforçasse, não conseguia ver nenhum outro além do décimo nono. (Plath, 1963/2014, p. 116)

A redoma de vidro toma forma no decorrer do livro e, baseada em uma concepção de mundo desprovido de sentido e possibilidades existenciais, Esther se vê presa em uma angústia que não consegue explicar ou justificar, e distante de si o suficiente para não retomar o que seria a projeção no mundo de seu ser mais próprio. A angústia fundamental que dá título ao romance, em que os instrumentos do mundo não são suficientes para dar a ele um sentido suficientemente capaz de afastar a personagem da tragédia e do sofrimento, se apresenta no seguinte trecho:

Se ela tivesse me dado uma passagem para a Europa, ou para um cruzeiro ao redor do mundo, não teria feito nenhuma diferença para mim, porque onde quer que eu estivesse - fosse ao convés de um navio ou num café de Paris ou em Bangcoc - estaria na mesma redoma fria de vidro, cozinhando no meu próprio azedume. (Plath, 1963/2014, p.170)

 

A Escolha e a Náusea

O trecho anterior, no qual a personagem traz a sua ideia de vida como atrelada a uma ausência imanente de sentido, traz consigo também uma concepção de existência e mundo na qual o sentido da liberdade se perde. A redoma de vidro é esse "azedume", essa prisão que, muito mais do que um fato objetivo ou uma prisão factual, no sentido de uma concretude física, expressa a ideia de uma prisão subjetiva, na qual a personagem se vê privada do exercício vital da escolha e da liberdade enquanto uma ação concreta no mundo.

Estes aspectos também se tornam de suma importância para a compreensão da obra: a liberdade e a escolha. Escolher era nauseante para Esther. Tomar as rédeas de si mesma era angustiante e, ao mesmo tempo, compreensível, pois se partirmos daquilo que já foi possível perceber na personagem, dentro de sua profunda inautenticidade e da grande dificuldade de saber quem realmente era, faz-se compreensível não saber ao certo o que escolher. Um dos mais conhecidos trechos do livro expõe essa ideia com clareza, expresso na metáfora da figueira.

Vi minha vida se desenrolar diante de mim como a figueira daquele conto. Da ponta de cada ramo, um gordo figo roxo acenava e seduzia-me com um futuro maravilhoso. Um figo significava um marido e um lar feliz com filhos, outro era uma poetisa famosa, outro, uma professora brilhante, outro era E.G., a surpreendente editora, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro, Constantin e Sócrates e Átila, um bando de amantes com nomes esquisitos e profissões originais, outro ainda era uma campeã olímpica, e acima de todos esses figos havia muitos outros que eu não conseguia entender. Vi-me sentada sob essa figueira, morrendo de fome, só porque não podia decidir qual figo escolheria. Queira-os todos, e escolher um significava perder o resto; incapaz de me decidir, os figos começavam a murchar, e apodrecer, e um a um caía no chão a meus pés. (Plath, 1963/2014, p. 76)

Alguns autores clássicos do existencialismo, tal como Sartre, têm os temas da liberdade e da escolha entre os seus principais interesses. Sartre (2012), ao afirmar que estamos em uma condição ontológica do paradoxo da condenação à liberdade, também afirma, por consequência, a condenação à escolha e a responsabilidade diante delas. No entanto por diversas vezes assume-se um modo de agir perante tal condição ontológica que é denominado pelo autor como má-fé. Tal postura diz respeito a uma tentativa de negação da condição ontológica de liberdade, uma tentativa de distanciamento dessa condição necessária e inescapável.

No trecho descrito vê-se o conflito entre as possibilidades de uma existência atrelada a futuros dos mais diversos, desde o que diz respeito às escolhas profissionais, até os que dizem respeito às parcerias amorosas e, em última instância, à constituição de uma identidade enquanto sujeito singular.

Possibilidades essas que, por sua vez, pareciam distantes à personagem, distantes de seu ser mais próprio, no entanto ela se via compelida à escolha quando diz que "vi-me sentada sob essa figueira, morrendo de fome" (Plath, 1963/2014, p. 76). Escolher, de fato, configura-se, como afirma Sartre (2012), numa instância tanto passiva como ativa. Passiva, pois não escolher impele ao sujeito "morrer de fome", como estava a personagem, no sentido de haver algo que move e que é maior do que a própria onticidade do sujeito e que é da condição humana. Mas, sobretudo, é um movimento ativo de tomada de posicionamento diante de tal condição humana.

É apenas através do movimento de consciência, defesa feita por Sartre ao se distanciar das epistemologias de foco em processos inconscientes, que o sujeito pode se perceber diante dessa condição humana e se deparar com o que o autor chama de náusea. Isso diz, no final das contas, de um sujeito que não está submetido à natureza ou à realidade, mas à própria condição de ser livre (Corbiniano & Bergamo, 2016).

É por meio da náusea que o homem direciona o seu olhar para o seu próprio ser, servindo essa de intermédio para sua própria consciência, sendo o que Sartre chama de Ser para-si, sendo só assim que o ser pode transcender e questionar-se diante desse movimento de apelo do ser (Corbiniano & Bergamo, 2016).

Nesse sentido, observa-se como a angústia, proveniente da náusea, é na verdade um processo de aproximação. Um processo que permite ao homem, como permitiu à personagem Esther, haver-se diante de sua própria má-fé e das próprias escolhas e possibilidades existenciais. É podendo perceber a sua incapacidade de escolha que a personagem parece deparar-se com a náusea. É pelo desejo avassalador de "comer um figo", de direcionar sua vida a caminhos de atualização, que pode deparar-se com a angústia e só ela, por fim, agir enquanto motor da atualização.

Nesse sentido, podemos pensar a liberdade como sendo um fator central para o movimento de atualização da vida e, por isso, fator relevante no processo de saúde mental, tal como apontam Costa e Forteski (2013). Os autores defendem, a partir de uma leitura sartriana do suicídio, que o adoecimento existencial se dá justamente quando a pessoa perde a sua capacidade de liberdade de escolha diante das diversas possibilidades de sua existência.

É nessa dinâmica que podemos também tentar compreender o momento na obra que o suicídio aparece como a possibilidade de escolha para a personagem. Diante da percepção de impossibilidades, a possibilidade do suicídio enquanto um ato de liberdade permeado pelo desespero surge. Costa e Forteski (2013) chamam atenção para como a visão sartriana da vida, como marcada por uma liberdade que implica em responsabilidade, escolhas, autonomia, medo do desconhecido e do incerto, deve se aliar a uma autenticidade do ser, para só então caminhos de vida e saúde poderem se constituir enquanto possibilidades. O suicídio surgiu como possibilidade para Esther justamente quando esse processo foi falho, de certa forma.

Porém o decorrer da obra mostra como paulatinamente e devido a algumas condições, de vivências e encontros, possibilitaram para a personagem um movimento de atualização primordial para a emergência de possibilidades autênticas. Mais do que um espetáculo de otimismo, os desencadeamentos finais da obra relevaram o sofrimento de insistir na vida enquanto ato possível e na dificuldade inerente ao processo de movimento atualizante.

 

A Atualização da Existência Frente ao Movimento da Consciência

Diante de todas essas questões e aspectos trazidos à luz da compreensão, revelou-se também uma crescente tomada de consciência da personagem em uma série de questões. A morte parece ser uma dessas. O sentido do morrer parece cada vez mais tornar-se consciente para Esther no decorrer do romance, e quanto mais ela vai sendo tragada para a angústia, que era viver na redoma de vidro, ainda mais percebia a morte e o sentido que esta assumia.

A morte era um fenômeno que parecia dizer de sua relação com o mundo: a morte de seu ser mais próprio, a morte de quem ela realmente era, a morte de suas possibilidades mais autênticas de vir-a-ser. A morte também parecia dizer de seu passado e de sua história (enquanto um desenrolar presente): a morte de seu pai e as consequências que isso parecia ter em sua vida. Esses elementos entram em movimento no romance e parecem ficar claros não só para a personagem, mas também para quem empaticamente observa o enredo.

Talvez a questão em relação ao seu pai seja, de fato, uma das mais enigmáticas do livro. Parece, olhando-se de modo geral, algo sem tanta importância no início e que assume na trama dos acontecimentos o cenário secundário frente à poética do suicídio que nos salta aos olhos. Mas é possível que isso tudo esteja, de certo modo, correlacionado na grande tomada de consciência que é uma das possibilidades de se conceber o movimento de Esther em A Redoma de Vidro, no sentido em que, ao mesmo tempo em que ela era tomada por uma crescente angústia, esse mesmo sentimento a impulsionava a uma autodescoberta crescente.

O pai de Esther, assim como o de Sylvia, morreu quando ela era muito jovem, e isso parece ser algo que tem uma repercussão, na vida de ambas, muito maior do que possa parecer. Sylvia deixa isso bem claro em "Papai", um dos principais poemas de seu livro póstumo Ariel, porém Esther deixa isso velado e, no entanto, o seu pai e a morte, de um modo geral, parecem fazer parte de uma mesma sequência.

É no clima acolhedor e de aceitação com outro personagem da trama, Constantin, que ela consegue experienciar esse sentimento mesmo que não estivesse falando sobre ele. Rogers (1983) ressalta a importância da aceitação na tomada de consciência de sentimentos mais profundos. Um desses sentimentos surgiu de repente como colocado por Plath (1963/2014, p. 74): "pensei em como era estranho nunca ter me ocorrido que eu só fora feliz até os nove anos".

Nesse clima acolhedor, compreensivo e de aceitação promovido por Constantin, Esther começa a entrar cada vez mais fundo no significado de suas experiências. Nesse momento, ao andar de mãos dadas com ele na rua, lembrou-se do pai, que morrera quando ela tinha nove anos. É a primeira vez no livro que essa questão salta tão fortemente. É mais um elemento que se coloca em seu campo de consciência.

Esse elemento, ao mesmo tempo angustiante e revelador, que surge em sua consciência, pode-se pressupor, como aponta Rogers e Kinget (1977), que não é algo realmente novo, mas que provavelmente a personagem já devesse ter experimentado várias vezes de modo não consciente.

Ainda nesse trecho anteriormente citado, ela não vive essa experiência organismicamente, mas consegue avaliar a dimensão que ela toma em sua vida. Ela começou, no parágrafo seguinte ao citado, a analisar o quanto esse elemento de ser feliz só até nove anos esteve presente em toda a sua vida, sem que ela se desse conta.

Depois disso - apesar de ter sido bandeirante, das aulas de piano, das aulas de pintura em aquarela, aulas de dança e do acampamento de velejadores, todos proporcionados com muito esforço por minha mãe, e apesar da faculdade, de remar sobre o nevoeiro antes do desjejum, das tortas meio queimadas e das fagulhas de ideias novas despontando todos os dias - eu nunca mais fora realmente feliz. (Plath, 1963/2014, p. 75)

É notável o grande passo que dá nesse trecho para se aproximar cada vez mais de sua experiência, mas são só alguns capítulos à frente, em uma ida ao cemitério onde seu pai está enterrado, que ela vivencia, plenamente, esse enorme sentimento de perda que carrega. E se vê não só diante do túmulo do pai, mas talvez face a face com a finitude da vida, a sua finitude, que era antes objeto de anseio, pela via do suicídio, e era agora objeto de luto, pela morte de seu pai. A consciência de ambas as coisas é, ao mesmo tempo, reveladora e melancólica.

Cobri o rosto com um véu preto e entrei pelos portões de ferro retorcido. Achei esquisito que desde que meu pai fora enterrado naquele cemitério nenhum de nós jamais esteve lá. Minha mãe não nos deixara assistir aos funerais porque éramos crianças, e ele morrera no hospital, de modo que tanto o cemitério quanto a morte dele sempre me pareceram irreais. (...) Então lembrei que nunca chorara pela morte de meu pai. Minha mãe também não tinha chorado. Apenas sorrira e dissera que para ele a morte fora misericordiosa, porque se tivesse vivido ficaria aleijado e inválido para sempre, e não teria suportado isso, mas preferido morrer, e era o que tinha acontecido. Deitei o rosto na superfície do mármore liso e chorei minha perda sob a chuva salgada e fria. (Plath, 1963/2014, pp. 185-187)

O trecho é revelador do movimento de consciência da personagem. Consciência ao mesmo tempo de tudo aquilo que nunca pôde viver plenamente, como a percepção da concretude da morte, seja na visita ao cemitério, seja em se permitir vivenciar o sentimento de luto de forma plena, assim como a consciência daquilo que poderia viver ali naquele exato momento.

Rogers (1983) ressalta o quanto é atrelado o que ele chama de tendência atualizante ao movimento da consciência, no sentido de que só tendo o sujeito consciência de seus sentimentos que a vida tem possibilidade de seguir seu rumo, que, para o autor, é um rumo natural de desenvolvimento em prol de vias mais saudáveis e sociáveis. E é nesse sentido que, diferente de sua autora, após a vivência de tentativas de suicídio e internação psiquiátrica, na qual Esther se viu diante de uma série de facilitadores de sua experiência, que a vida parecia fluir novamente.

Esther havia passado meses no hospital psiquiátrico, com consultas semanais com a Dr.ª Nolan, e feito tratamento de choque, sentido por ela como adequado, o que não havia ocorrido no primeiro hospital psiquiátrico relatado no livro. Esther afirmava ter sentido que a redoma de vidro pairava no ar sobre ela e não mais a sufocava. A vida estava livre e poderia então seguir o seu rumo, tal como Rogers (2009) postula ao falar sobre a abertura para a experiência e o fluir da consciência. Esse fenômeno de percepção da fluidez da existência pode ser observado no trecho seguinte.

O sol, emergindo da cinzenta mortalha de nuvens, brilhava com uma claridade de verão nas encostas intocadas. Interrompi meu trabalho para olhar aquela vastidão, e me senti como se estivesse diante de uma paisagem de árvores e vegetações cobertas por uma inundação: como se a ordem natural do mundo tivesse se alterado um pouco e tudo entrasse numa nova fase. (Plath, 1963/2014, p. 216)

 

Considerações Finais

Por fim, tal como apontado nas reflexões iniciais deste artigo, verifica-se como a arte (nesse caso em específico, a literatura) se faz relevante enquanto "matéria-prima", uma vez que expõe a concretude de vivências e estados psicológicos que, por sua vez, servem de reflexão e aprofundamento teórico à psicologia, no caso de A Redoma de Vidro, por exemplo, em temas como o sofrimento psíquico e o suicídio.

No caso da psicologia fenomenológico-existencial, a literatura parece ser uma fonte extremamente significativa para esse propósito, como observado neste estudo, de modo que os recursos que ela disponibiliza remetem a compreensões e análises à luz de temas existenciais que tanto contribuem para uma leitura diferenciada do romance como enriquecem, com a inigualável força viva da experiência, a evolução dos conceitos, e ao consequente evoluir da práxis da atuação de inspiração fenomenológica e existencialista.

Os temas centrais que foram utilizados como veículo de compreensão parecem revelar como as temáticas da dimensão ontológica do ser humano, tais como a autenticidade, a liberdade, a atualização e o sentido, parecem se relacionar intimamente com a saúde mental e não podem ser negligenciados nas práticas clínicas dessa orientação, uma vez que não se trata simplesmente de discussão teórica, mas da manifestação de fenômenos de interesse e implicações clínicas.

Holanda (2016), a propósito da clínica, analisa em seu artigo como, desde a década de 1940, a fenomenologia chega ao Brasil a partir do movimento existencialista e tem feito parte da formação de psicólogos, principalmente enquanto uma perspectiva metodológica, mas também por possuírem interesses em comum em temas como consciência, interioridade, egologia e intersubjetividade, tendo, no entanto, maior impacto na área clínica.

É importante destacar que estudos como este se assentam no campo em crescente desenvolvimento no Brasil, justamente disso que vem sendo delimitado há muito tempo entre a psicologia, a fenomenologia e o existencialismo, contribuindo, de certa forma, com o que Reis, Holanda, e Goto (2016) denominam de uma psicologia autenticamente fenomenológica.

Cabe ainda destacar que as principais limitações do estudo estão em focalizar determinados aspectos pertinentes da experiência relatada no romance, em detrimento de outras tantas incontáveis dimensões, também relevantes ao conhecimento em psicologia fenomenológico-existencial.

O tema da internação psiquiátrica da personagem, que é de grande relevância dentro do romance, não foi fruto de análise mais aprofundada à luz das contribuições da teoria humanista rogeriana, por exemplo, assim como tantos outros prováveis temas não percebidos. Mas, assim como aponta Rogers (2009), não é possível abarcar a totalidade da experiência.

Aponta-se, diante disso, a necessidade de estudos futuros que procurem dar conta de aspectos não trabalhados aqui ou que aprofundem temas aqui trabalhados de forma mais descritiva e exploratória, ampliando, assim, a partir da concretude traduzida em arte, a percepção de assuntos tão preciosos às teorias e práticas da psicologia fenomenológicoexistencial.

 

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Endereço para correspondência:
Anderson Barbosa de Araújo
E-mail: andersonbarbosapsi@outlook.com

Jéssyca Alana Oliveira Pereira
E-mail: jessycaalana@gmail.com

Polyana Luz de Lucena
E-mail: luzpolyana@hotmail.com

Recebido em: 17/03/2020
Revisado em: 30/11/2020
Aceito em: 08/02/2021
Publicado online: 19/06/2021

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