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Revista Subjetividades

versión impresa ISSN 2359-0769versión On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza ene./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e11759 

ESTUDOS TEÓRICOS

 

Psicose e estabilização: caso Arthur Bispo do Rosário

 

Psychosis and stabilization: case Arthur Bispo do Rosário

 

Psicosis y estabilización: caso Arthur Bispo do Rosário

 

Psychose et stabilisation : Le cas Arthur Bispo do Rosário

 

 

Rayanne Bárbara Santos Carneiro de AlmeidaI; Suely Aires PontesII

IPsicóloga pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), especialista em Fundamentos Teóricos da Psicanálise e suas Especificidades Clínicas pela Faculdade Visconde de Cairu, técnica no Centro de Atendimento Educacional Especializado (CAEE)
IIPsicanalista, doutora em filosofia, docente do Instituto de Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Colégio de Psicanálise e do Centro de Pesquisa Outrarte: psicanálise entre ciência e arte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discorre sobre a forma como o sujeito psicótico produz respostas à invasão do real impossível de suportar, fazendo do contato com a loucura uma produção inventiva. A partir do campo teórico psicanalítico construído por Freud e Lacan, iniciamos a discussão sobre o mecanismo das psicoses, a singularidade e especificidade da fala dos psicóticos, marcando o delírio em sua lógica. E avançamos destacando como a produção de objetos pode ser um dos caminhos de estabilização na clínica das psicoses. Por meio de revisão bibliográfica e documental sobre um caso clínico específico, apresentamos a saída inventiva de Arthur Bispo do Rosário, o qual, obedecendo à injunção delirante "Está na hora de você reconstruir o mundo", produziu inúmeros objetos, o que permitiu constituir uma condição mínima de agente frente à vivência psicótica.

Palavras-chave: psicose; delírio; estabilização; Arthur Bispo do Rosário.


ABSTRACT

This article discusses how the psychotic subject produces answers to the invasion of the real impossible to bear, contacting madness and inventive production. From the psychoanalytic theoretical field built by Freud and Lacan, we started the discussion about the mechanism of psychoses, the singularity, and specificity of psychotic speech, marking the delusion in its logic. And we move forward highlighting how the production of objects can be one of the stabilization paths in the clinic of psychoses. Through a bibliographic and documental review of a specific clinical case, we present the inventive approach of Arthur Bispo do Rosário, who, obeying the delusional injunction "It's time for you to rebuild the world", produced numerous objects, which made it possible to constitute a minimum condition of an agent facing the psychotic experience.

Keywords: psychosis; delirium; stabilization; Arthur Bishop do Rosario.


RESUMEN

El presente trabajo trata sobre la forma como el sujeto psicótico produce respuestas a la invasión del real imposible de soportar, haciendo del contacto con la locura una producción inventiva. A partir del campo teórico psicoanalítico construido por Freud y Lacan, iniciamos la discusión sobre el mecanismo de psicosis, la singularidad y especificidad del habla de los psicóticos, marcando el delirio en su lógica. Seguimos enfocando cómo la producción de objetos puede ser uno de los caminos de estabilización en la clínica de las psicosis. Por medio de revisión bibliográfica y documental sobre un caso clínico específico, presentamos la salida inventiva de Arthur Bispo do Rosário, lo cual obedeciendo al pedido delirante "Es hora de que reconstruyas el mundo", produjo inúmeros objetos, lo que permitió constituir una condición mínima de agente ante la experiencia psicótica.

Palabras clave: psicosis; delirio; estabilización; Arthur Bispo do Rosário.


RÉSUMÉ

Cet article traite de la manière dont le sujet psychotique produit des réponses à l'envahissement du réel insoutenable et comment à partir du contact avec la folie, le sujet développe une production inventive. A partir du champ théorique psychanalytique construit par Freud et Lacan, nous avons développé la discussion sur 1) le mécanisme des psychoses et 2) la singularité et la spécificité de la parole psychotique, tous cela en marquant le délire dans sa logique. Et nous avançons en soulignant comment la production d'objets peut être l'une des voies de stabilisation dans la clinique de la psychose. A travers une revue bibliographique et documentaire d'un cas clinique précis, nous présentons la démarche inventive d'Arthur Bispo do Rosário, qui, en obéissant à l'injonction délirante « Il est temps pour vous de reconstruire le monde », a produit de nombreux objets, qui ont permis de constituer une condition minimale d'agent face à l'expérience psychotique.

Mots-clés : psychose ; délire ; stabilisation ; Arthur Bispo do Rosario.


 

 

Para iniciar a discussão acerca da clínica das psicoses e suas possíveis saídas inventivas partiremos do trecho da composição musical Metáfora, de Gil (1982): "Por isso, não se meta a exigir do poeta que determine o conteúdo em sua lata. Na lata do poeta tudonada cabe, pois ao poeta cabe fazer com que na lata venha caber o incabível". Afinal, o que comporta a lata? O fato é que ao poeta não cabe o estanque, tampouco a redução quanto à significação de sua produção, uma vez que ultrapassa o jogo das significações e produz enigma.

Como à poesia, também conferimos à loucura um caráter enigmático revestido por uma fala excêntrica e peculiar. É, pois, a relação entre linguagem, significação e fala que aqui interessa-nos. Em seu ensaio Édipo e a Esfinge, Agamben (2007) dirá que o que há de inquietante no enigma desaparece imediatamente quando o seu dizer é redirecionado e deixa transparecer a relação entre significado e forma. Ou dito de outro modo, quando mostra o significado escondido por detrás do enigmático significante, encontrando aí uma relação de desvelamento, manifestação ou expressão do sentido.

Embora o ensaio de Agamben siga um percurso interessante, que permite pensar diferentes formas de expressão literária, o que nos interessa como argumento é o ato de significar, cujo movimento deve ser sustentado por um sujeito e que não se encontra como sentido a priori na fórmula do enigma. Não se trata de revelar algo que se oculta na mensagem cifrada, mas de considerar que o enigma, por implicar um sujeito singular, impele à interpretação. Nesse sentido, cabe destacar que um enigma coloca-se como questão que implica sujeito.

Resumidamente, podemos afirmar que o enigma convoca a uma interpretação significante e a uma enunciação subjetiva. Como nos lembra Lacan, o enigma pode ser pensado como decifração singular de um enunciado (2005) e como semi-dizer (no sentido de que não se diz todo, sempre escapa algo), em sua relação com o mito e a história (1992). Nesse movimento, há a produção de algo novo na fala e a introdução de uma diferença na linguagem que produz curiosidade e estranheza.

Dada a importância da dimensão da fala e estrutura de discurso, Lacan destacou a particularidade de cada sujeito em sua relação com a linguagem. E indicou, seguindo os passos de Freud (1911/2010), a existência de um funcionamento linguageiro1 diferente na psicose, que se dá a ver na produção de fala de cada psicótico, em sua extrema singularidade. E, conforme alertou Lacan (1977), não devemos recuar diante desse modo de subjetivação, o que nos levou, no presente artigo, a discutir, por meio de revisão documental e de literatura, a produção do brasileiro Arthur Bispo do Rosário (para uns tido como artista plástico e para outros tido como um louco), entendido como estudo de caso. Nessa direção, buscaremos examinar a criação de objetos, sob injunção delirante, e o reconhecimento artístico de sua produção, como uma via possível para a estabilização, não nos detendo sobre o desencadear da psicose e os mecanismos psíquicos do caso em questão.

 

Psicose

O termo psicose foi introduzido em 1845 pelo psiquiatra austríaco Ernst von Feuchtersleben para substituir o vocábulo loucura (Roudinesco & Plon, 1998, p. 621) e aparece a princípio vinculado a uma concepção de perda da razão. Freud (1911/2010) seguiu um caminho distinto, buscando apontar para a racionalidade presente nos diferentes quadros de adoecimento psíquico. Nesse sentido, discutiu a loucura por meio da leitura e teorização sobre a autobiografia de um paranoico em sua reconstrução do mundo: o caso do juiz-presidente alemão Daniel Paul Schreber. Nesse contexto, Freud considerou que os fenômenos psicóticos têm um sentido, atendendo a outra ordem da razão, explicitada na autobiografia de Schreber, e que se mostra reveladora do funcionamento do inconsciente.

Muito embora Freud não tenha propriamente atendido Schreber, o psicanalista teorizou sobre os mecanismos psíquicos da psicose e advertiu quanto às dificuldades no tratamento de pacientes paranoicos. Na apresentação desse caso clínico, Freud (1911/2010) levanta algumas hipóteses sobre o processo de adoecimento psíquico e tentativas de cura, discutindo as estratégias e soluções encontradas por Schreber em seu processo de reorganização subjetiva. Cabe destacar que o argumento freudiano possibilita pensar sobre outros casos de psicose e sobre as soluções encontradas por diferentes pacientes nesta estrutura clínica, justamente pelo caráter metapsicológico de suas hipóteses.

Nesse sentido, é importante ressaltar, mais uma vez, que Freud jamais conheceu Schreber; sua análise foi possível devido ao relato autobiográfico Memórias de um Doente dos Nervos (Schreber, 1995), publicado em 1903, o qual se difundiu e obteve reconhecimento público. O fato de Freud se debruçar sobre uma autobiografia de um paciente internado em asilo e tomá-la como caso clínico aponta para a possibilidade de encontrar sentido na fala de um psicótico e a insere em uma dada ordem de razão. Uma lógica própria à psicose pode, portanto, ser apresentada e teorizada, de tal modo que, ainda hoje, o caso Schreber é um marco relevante para elaborações na clínica psicanalítica com relação à escuta de sujeitos psicóticos, bem como na direção do tratamento.

Um breve recorte histórico nos permitirá avançar nessa direção. Daniel Paul Schreber, formado em direito e de carreira jurista, provinha de uma linhagem familiar de burgueses protestantes, com forte preocupação educacional e princípios morais rígidos. Seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber, era médico ortopedista, pedagogo e construtor de alguns instrumentos ortopédicos para crianças com a finalidade de manutenção da postura ereta. Aplicava em seus filhos métodos educacionais, exercendo um controle excessivo sobre vários aspectos da vida e do corpo, inclusive, repudiando o ato masturbatório.

Conforme nos indica Marilene Carone, tradutora para o português do livro de Schreber (1995), os antepassados do famoso paranoico deixaram um legado de trabalhos intelectuais voltados para as áreas de Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais. Um legado articulado a uma linhagem familiar. Não por acaso, em todas as produções literárias do bisavô de Daniel Paul Schreber, havia a presença do mote frasal: "Escrevemos para a posteridade".

De igual modo e alinhado ao pensamento de seu bisavô, Schreber (1995) acreditava que sua produção alcançaria uma marca entre as "obras mais interessantes que já foram escritas desde que o mundo existe" (Schreber, 1995, p. 252). Isso de certo modo aconteceu, mas por intermédio de Freud, do lugar que a autobiografia de Schreber ocupou na produção teórica e clínica do psicanalista vienense, como leitura elementar acerca da psicose na perspectiva psicanalítica.

Dando seguimento aos dados biográficos de Schreber, é importante informar que, por volta dos seus 51 anos de idade, ele foi nomeado para ocupar o cargo de presidente da Corte de Apelação. Diante desta convocação, desencadeou-se sua psicose, com manifestação da ideia delirante de caráter místico e religioso: "considera-se encarregado de salvar o mundo e devolver a ele a perdida beatitude2. Mas é algo que ele só pode realizar se [antes] se transformar de homem em mulher" (Freud, 1911/2010, p. 22).

Schreber é invadido por fenômenos alucinatórios que giram em torno de um complexo delirante envolvendo dois elementos norteadores - "a transformação em mulher e o papel do redentor" (Freud, 1911/2010, p. 25). Ao discutir o mecanismo estrutural da psicose e articular o quadro clínico e a constituição da realidade, Freud apresenta o aparelho psíquico como um modelo de organização que permite transmitir e transformar afeto a partir dos investimentos das representações, tendo como função manter a excitação em seu nível mais baixo. Nesse sentido, pode-se afirmar que o sujeito psicótico, em suas vivências, é invadido por uma carga afetivamente intensa, contudo não encontra representação compatível com essa vinculação, e a rejeita (Guerra, 2007).

Na dimensão dinâmica, é necessário considerar que toda realidade é interpretada pela posição subjetiva daquele que a vivencia e que, devido a essa não inscrição da representação, o sujeito psicótico não encontra meios de significar suas vivências. Com isso, as palavras são tomadas enquanto coisas e "aquilo interiormente cancelado retorna a partir de fora" (Freud, 1911/2010, p. 22).

Nesse sentido, a realidade que importa para o psicótico é a realidade psíquica, sua vivência diante dos fatos, em uma recusa radical dos fragmentos de realidade que não se coadunam com sua interpretação. Para que o sujeito suporte este conflito psíquico advindo de elementos discordantes da realidade, os quais são difíceis de serem tolerados, produz-se o delírio. Freud (1911/2010), então, indica que o sujeito psicótico encontra a solução pela via do trabalho delirante, numa tentativa de reconstrução desse mundo:

[...] o paranoico o reconstrói, não mais esplêndido, é certo, mas ao menos de forma a nele poder viver. Ele o constrói mediante o trabalho de seu delírio. O que consideramos produto da doença, a formação delirante, é na realidade tentativa de cura, reconstrução. (Freud, 1911/2010, p. 94)

Lacan (1988), por sua vez, retoma o caso Schreber e seus escritos, apoiando-se no percurso teórico freudiano e avança com enfoque na materialidade da fala do sujeito, uma vez que "é o registro da fala que cria toda riqueza da fenomenologia da psicose, é aí que vemos todos os seus aspectos, as suas decomposições, as suas refrações" (Lacan, 1988, p. 48). Cabe acentuar que é a partir do modo operatório da fala que se integram os três registros - o (1) simbólico representado pelo significante, o (2) imaginário representado pela significação e o (3) real, efetuado na dimensão diacrônica da fala (Lacan, 1988, p. 80).

Segundo Lacan (2008), é por meio da linguagem que o inconsciente se articula e assume seu papel na construção da história do sujeito. Em diálogo com a linguística de Ferdinand de Saussure (1995), Lacan propõe uma releitura do conceito de significante, a fim de destacar que, ao sujeito, cabe "atribuir significados aos significantes que o marcaram em sua história" (Quinet, 2006, p. 7). Desse modo, Lacan desfaz a suposição de unidade do signo linguístico, divergindo, portanto, da teorização saussuriana.

De acordo com Saussure (1995), o signo linguístico "é uma entidade psíquica de duas faces [significado e significante] cujos elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro" (p. 80). A união entre significante e significado é arbitrária, sem relação natural com o referente. No entanto, tal relação não pode ser considerada aleatória, pois é imposta pela comunidade e compartilhada socialmente, de tal modo que o signo, como resultante da associação de um significante a um significado, também se mostra arbitrário. Em sua teorização, Saussure afirma que a significação é produzida pela relação entre significantes e destes com os significados, não sendo, como já dissemos anteriormente, uma questão de referência à realidade.

Lacan (1998a, p. 500), ainda que de forma não explícita, propõe ao menos duas modificações na concepção de signo proposta por Saussure (1995, pp. 80-81): (1) uma representação do signo linguístico em que significante e significado não têm pressuposição recíproca e (2) uma inversão na localização dos dois elementos, de modo a ressaltar a preeminência do significante sobre o significado. A linha que relaciona significante e significado, na representação saussuriana do signo, toma para Lacan (1998a, p. 500) o caráter de barra, separação que possibilita a circulação desses elementos de modo autônomo, mas que resiste à relação entre eles: o significante relaciona-se com outros significantes, não representando o significado.

A barra, resistente à significação, não deve, no entanto, ser considerada intransponível ou definitiva, pois isso implicaria uma impossibilidade de determinação do sentido e desconsideraria a função de comunicação. Na teoria lacaniana, a vinculação entre significante e significado se dá por meio de uma operação de enodamento ou costura, a capitonnage3. O recurso à noção de point de capiton4 (Lacan, 1998a, p. 506) visa responder ao questionamento sobre a determinação do sentido, tendo sido formulado por Lacan em função de sua experiência com pacientes psicóticos, cuja fala parece desconsiderar o enlace usual entre significante e significado.

Dito de modo mais claro: o caráter frágil da ligação entre significante e significado, ligação "[...] sempre fluida, sempre prestes a se desfazer" (Lacan, 1988, p. 296), dá-se a ver no discurso psicótico, de modo que, para pensar a prática clínica, se fez necessário ir além da ideia saussuriana de um corte que uniria o significante e o significado, ao mesmo tempo em que determina a ambos.

A noção de point de capiton visa, portanto, destacar que a organização em cadeia permite a contextualização e consequente circunscrição da significação por meio da "articulação entre significantes", mais do que por sua relação com o significado. E tal modo de conceber a relação entre significante, sujeito e significado permite considerar a especificidade dos casos de psicose como modos singulares de relação com o Outro, entendido como tesouro de significantes. Assim, pela via do endereçamento do sujeito ao Outro se tornará possível o reconhecimento dos quadros de psicose, em sua especificidade linguageira.

Dito isto, faz-se necessário compreender que o sujeito é constituído pelo Outro, representante da linguagem e lugar que situa a cadeia de significantes, o que possibilita afirmar que o "inconsciente é o discurso do Outro" (Lacan, 1998b, p. 18). Na psicose há uma peculiaridade no modo como o sujeito lida com a realidade, a partir da relação com o Outro, lugar que é atravessado pela ordem simbólica. Ou seja, enquanto para o neurótico o Outro é da ordem da falta, barrado pelo significante da castração, para o psicótico o Outro é absoluto, ao qual o sujeito está submetido, e que, portanto, carece de uma inscrição do significante da lei (Quinet, 2006).

Tal significante diz respeito à travessia dos três tempos do Édipo5, em que, no processo de simbolização, ocorre a intervenção de um terceiro, nomeado por Lacan como Nome-do-Pai. Tanto na psicose quanto na neurose, o Outro é o tesouro dos significantes. A diferença encontrada na psicose é o fracasso da metáfora paterna, em decorrência da não inscrição da lei. Assim ocorre a foraclusão6, efeito provocado pela não inscrição do Nome-do-Pai, que terá como consequência o Outro presentificado e invasivo, existindo um apelo ao simbólico com a formação do delírio (Quinet, 2006).

Neste sentido, destaca Lacan (1988), o que é recusado na ordem simbólica surge no real, o qual não pode ser reduzido à realidade concreta, mas é justamente o que a excede. É a coisa sobre a qual não se tem como dizer, ou seja, o que não encontra significante suficiente que o estanque o nomeie. Nesse contexto, Lacan considera o delírio como um mecanismo fundante da psicose que revela a forma como o sujeito responde aos fenômenos intrusivos: aquilo que não foi inscrito no simbólico ganha sentido por meio do delírio.

Logo, o delírio deve ser julgado em primeiro lugar como um campo de significação. E mesmo diante de uma fala com ausência dialética e, grosso modo, aparentemente sem sentido, a produção delirante é o que possibilita condições de circunscrição e organização da significação, fruto do processo da irrupção sofrida pelo sujeito e que visa restabelecer ligações com o meio circundante. Assim, Lacan reitera Freud e afirma que há uma lógica no delírio que fornece condições para que o sujeito se organize diante da invasão7: "o delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais não o organiza" (Lacan, 1988, p. 253).

No que concerne ao modo como cada sujeito faz a leitura da realidade, Guerra (2007) afirma, em consonância com Freud (1924/1996b), que na neurose as exigências pulsionais recalcadas são substituídas pela via da fantasia, já na psicose, o que é rejeitado da realidade é substituído pelo delírio. Desse modo, a divergência entre as estruturas se assenta no modo singular como cada sujeito encontra uma tentativa de restabelecer a realidade, e não no rompimento.

Apesar de Lacan ter se baseado nas premissas freudianas, há que se pôr em relevo seus avanços acerca da prática clínica das psicoses, sobretudo, quando diz respeito às soluções singulares encontradas por cada sujeito para lidar com a invasão psicótica. Nesse sentido, tendo em vista o trabalho em torno das psicoses, Guerra (2007) aponta dois momentos da trajetória lacaniana: (1) a preocupação estruturalista norteada pela primazia do simbólico, em torno da ausência do Nome-do-Pai, articulada à metáfora delirante; e (2) a articulação entre Real, Simbólico e Imaginário, a partir dos modos de amarração entre os três registros.

Diante do apresentado, indicamos que a forma como o sujeito psicótico produz respostas ao que retorna desde fora, fazendo do contato com a loucura uma produção inventiva e que ainda se encontra na linguagem, é o ponto no qual nos apoiaremos neste trabalho para pensar os diferentes modos de estabilização nas psicoses. Trata-se do direcionamento vislumbrado por Lacan ao propor um tratamento possível para as psicoses: um modo de estar no mundo em sua singularidade radical. Será, portanto, a partir das saídas encontradas por Arthur Bispo do Rosário que discutiremos o tema.

Nascido no interior de Sergipe, ex-marinheiro, ex-pugilista, interno durante 50 anos (entre 1939 e 1989) na Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, diagnosticado como esquizofrênico-paranoide, Arthur Bispo do Rosário reconstruiu o mundo a partir dos materiais e objetos que encontrava em seu cotidiano, obedecendo à injunção delirante de reconstruir o mundo. A composição de suas produções atendia ao comando imperativo do seu delírio de natureza mística e da ordem do sagrado. Alegava ser um enviado de Deus, encarregado da reconstrução de tudo o que existia na Terra, em miniaturas e bordados, a ser apresentado a Deus no dia do Juízo Final.

Neste sentido, propomos com este artigo apresentar o lugar da produção de objetos como um dos caminhos pertinentes de estabilização na clínica das psicoses a partir da revisão bibliográfica e documental sobre Arthur Bispo do Rosário, entendido como estudo de caso. A intenção é discutir, a partir do enlace entre o campo teórico psicanalítico de Freud e Lacan, as saídas inventivas de Arthur Bispo do Rosário e propor como hipótese que aí se produz uma reconstituição de uma significação do mundo. Desse modo, podemos perguntar: os fios azuis de pano enredam quais possíveis tecituras?

 

Psicose e Estabilizações

Acompanhando o percurso psicanalítico acerca do modo como cada sujeito responde aos fenômenos intrusivos da psicose, faz-se necessário destacar que Freud (1911/2010) já afirmava que o mecanismo delirante é uma tentativa de reconstrução do mundo. Assim, enfatiza que não se deve afirmar que o paranoico retirou completamente seu interesse do mundo externo, pois "cogita razões para as mudanças, é incitado a elaborar explicações pela impressão que dele recebe" (Freud, 1911/2010, p. 99).

Deste modo, a construção freudiana fornece contribuições inaugurais à leitura teórica posterior sobre as soluções encontradas pelos psicóticos. Assentado no registro da fala e da linguagem para pensar a clínica das psicoses, Lacan permite identificar três possibilidades diferentes de estabilização: a metáfora delirante, a passagem ao ato e a escrita (Guerra, 2007).

Se Freud (1911/2010) considera o mecanismo da psicose como um retorno daquilo que foi abolido internamente, Lacan (1998b), por sua vez, utilizará o termo foraclusão para nomear essa não inscrição, a carência do significante Nome-do-Pai. Dessa forma, para que possamos apreender esta falência do Nome-do-Pai, é imprescindível fazer referência ao complexo de Édipo em sua função estruturante da constituição subjetiva.

No primeiro tempo do Édipo, o Outro é usualmente a mãe, uma vez que a criança se encontra na posição de identificação ao desejo da mãe e dela recebe a incidência dessa lei. Nota-se que neste momento a lei da mãe é onipotente, o que é possível pela equivalência simbólica, em que a criança está identificada imaginariamente ao falo (Quinet, 2006).

O segundo tempo é marcado pela brincadeira infantil do fort-da, descrito por Freud (1920/1996a), em que a criança utilizava-se do carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dela. No jogo, ao arremessar o carretel para a borda da cama, desaparecendo, a criança articulava o som 'o-o-ó'. Quando puxava o objeto para si, saudava o reaparecimento pronunciando o som 'da'. Freud (1920/1996a) afirma, então, que esse jogo representava o aparecimento e surgimento da mãe, quando a mesma se ausentava.

Para metaforizar o lugar de ausência da mãe, quando a criança terá que lidar com a dialetização de ser ou não ser o falo, se faz necessária a interferência de um terceiro que introduza a interdição. Nessa operação, o Nome-do-Pai corresponderá a uma função significante que permitirá a entrada da criança na ordem simbólica. Com essa intervenção da instância paterna, o Outro se constitui para o sujeito como lugar da lei em substituição ao falo como objeto de desejo da mãe. Neste momento, há a inscrição da castração simbólica, diante de um Outro barrado e não mais absoluto (Quinet, 2006).

No terceiro tempo do Édipo ocorre também uma dialetização, em que se coloca em questão ter ou não ter o falo. Esta mudança de posição declara a entrada do sujeito na ordem simbólica, uma vez que ocorrerá a inclusão do significante do Nome-do-Pai em sua função na relação com o Outro. É nesse ponto que incidirá a lei, e que, consequentemente, o sujeito estará submetido a lidar com a castração simbólica, com a falta e com o seu desejo (Quinet, 2006). Ora, a qual sujeito estamos a nos referir nesse processo, então?

Esta operação diz respeito ao modo de funcionamento do neurótico, em que a instauração de uma ordem faltante no Outro se produz. Na psicose, isso ocorre de modo distinto, pois é justamente neste processo que ocorrerá o fracasso da metáfora paterna, em função da elisão do falo, colocando em xeque todo o sistema significante. Tal fracasso é desencadeador essencial na psicose, fazendo com que o sujeito seja possuído pela linguagem e objeto de gozo do Outro (Quinet, 2006).

Portanto, na psicose, uma nova realidade é construída a partir da certeza; uma certeza delirante com uma atribuição subjetiva, uma vez que o Outro não é barrado, e sim consistente. Isso implica que, para o sujeito, nada é por acaso, sempre existindo uma razão, uma verdade constituída e constituinte. "Trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau: significação da significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação" (Lacan, 1998b, pp. 544-545).

É essencial levar em consideração que a relação estabelecida entre o sujeito psicótico e a realidade se estrutura a partir do significante, não por uma suposição de saber ao Outro, mas por assumir um lugar de certeza. Segundo nos indica Quinet (2006), de modo sucinto e preciso, "no primeiro tempo, há identificação do sujeito com o faloimaginário; no segundo tempo, há queda dessa identificação e, noterceiro tempo, reconstituição delirante de ser o objeto para o Outro (Quinet, 2006, p. 54). Essa reconstituição implica uma vivência sustentada na certeza.

Neste contexto, a dimensão da linguagem, presentificada na cadeia do delírio, permite certa organização psíquica, fornecendo ao psicótico uma condição mínima de agente produtor de uma verdade. Conforme destacado por Lacan (1988), o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente e objeto, cujo vivido delirante possibilitará um dado modo de organização subjetiva.

Com relação às mensagens que chegam ao sujeito em decorrência da invasão do real, o psicótico será acometido por uma desorganização da cadeia significante e assim se dará "início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante" (Lacan, 1998b, p. 584). Nesse sentido, o advento da metáfora delirante, como produtora de significação, provoca como efeito a circunscrição dos fenômenos angustiantes produzidos pela invasão do real, funcionando como uma suplência ao Nome-do-Pai foracluído.

A recusa fálica, ou melhor, a não inscrição desse significante no simbólico, possibilita uma nova articulação significante para o sujeito. E, uma vez que está fora do domínio da simbolização, retornará a partir do real. Sendo assim, a metáfora delirante se impõe como uma forma organizadora para isso que invade o sujeito. A metáfora delirante permite a produção de um significado sobre a existência do sujeito, o que possibilita um rearranjo no campo da linguagem, de modo a promover a função da palavra como um terceiro termo entre o Outro e o sujeito nos quadros de psicose.

No caso Schreber, vemos que ele construirá a certeza de sua transformação em mulher para copular com Deus a fim de criar uma nova raça. Ora, o delírio tem justamente por função produzir um saber sobre a existência, por meio de uma estrutura narrativa presentificada em relação à realidade. Portanto, "o delírio é a formação imaginária que dá forma à realidade de cada sujeito a partir da costura simbólica do real, constituindo assim um modo de defesa do sujeito contra o impossível a suportar" (Quinet, 2006, p. 57). Este modo de defesa permite, então, uma estabilização do remanejamento dos significantes, encontrando aí uma tentativa de localização do gozo no Outro pela via do trabalho delirante.

O sujeito psicótico, portanto, pode vir a lidar com o gozo invasivo por outros meios, sendo um desses modos a criação de objetos, como um modo de trabalho que atende à injunção delirante e dá ao psicótico, em um mesmo gesto, uma posição ativa de produção. Nessa direção, apresentaremos a seguir o caso de Arthur Bispo do Rosário, psicótico interno na Colônia Juliano Moreira e figura pública conhecida pela produção artística, que, seguindo uma injunção delirante, produziu inúmeros objetos, fazendo da certeza delirante um movimento inventivo.

 

Bispo e suas Tecituras

Meireles (1994), em seu poema Reinvenção, escreve: "[...] a vida só é possível reinventada". Para Arthur Bispo do Rosário, tratava-se de um dever e uma missão: reconstruir o mundo para apresentar a Deus no dia do Juízo Final. Incumbido desta tarefa, o interno nº 01662 da Colônia Juliano Moreira, alojado no Pavilhão 10 do Ulisses Viana, trabalhou exaustivamente na fabricação de objetos, tais como faixas, bandeiras, quadros, colagens, miniaturas, vitrines (Hidalgo, 1996).

Arthur Bispo do Rosário produziu mais de mil obras a partir dos objetos encontrados ou negociados em seu cotidiano. Para muitos, tais objetos configuravam-se enquanto inservíveis, para ele eram matéria-prima que resultaria em seu registro aqui na Terra. Para além do registro de sua passagem, seu trabalho atravessou as paredes da colônia, repercutindo pelo mundo afora, o que fez com que as produções de Bispo fossem reconhecidas no universo da arte e retirassem seu criador do anonimato da colônia psiquiátrica.

Esta saída do anonimato, mais precisamente a partir dos anos de 1980, deu-se em função de dois acontecimentos. O primeiro momento foi a exibição em programa televisivo da matéria de Samuel Wainer Filho, realizada na Colônia Juliano Moreira, acerca da situação precária do manicômio, que denunciou a forma desumanizada como os internos eram tratados, sobretudo, pelas intensas dosagens de neurolépticos, uso de lobotomia e eletrochoque. No meio do horror apresentado pela reportagem, um foco de luz revela o morador do quarto-forte, Arthur Bispo do Rosário e, em rede nacional, seu universo é exibido (Hidalgo, 1996).

O segundo acontecimento, também ocorrido no mesmo ano, em 1982, diz respeito à filmagem realizada pelo psicanalista e cineasta, Hugo Denizart, encarregado pelo Ministério da Saúde de documentar as atrocidades existentes naquele espaço. A câmera acompanha os olhares e corpos, bem como segue os diferentes ângulos de uma arquitetura asilar inóspita. No entanto, "Bispo não cabia nessa paisagem de opressões psiquiátricas seculares" (Hidalgo, 1996), destoando da paisagem. Após tentativas sucessivas, Bispo permitiu a entrada de Hugo Denizart em seu quarto-forte, o que culminou no registro do filme O Prisioneiro da Passagem - Arthur Bispo do Rosário exibido em congressos, debates e encontros no Brasil e na Europa (Hidalgo, 1996).

Desta forma, pela proporção do sucesso alcançado, o nome de Bispo seguiu para além das barreiras do manicômio. Tal divulgação pública e midiática produziu um reconhecimento artístico de suas produções. A exemplo disto, citamos o curador crítico de arte, Frederico de Morais, o qual organizou uma exposição das produções de Bispo no Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro em 1993, reunindo quase oitocentas obras (Hidalgo, 1996). Bispo foi considerado como um dos grandes artistas contemporâneos brasileiro e suas obras foram comparadas aos trabalhos de Duchamp, Arman, César, Andy Warhol8, entre outros ícones canônicos das artes (Seligmann-Silva, 2007).

Seria ele um artista? Ele recusava esse status e dizia: "não faço porque quero, é uma obrigação". Afinal, alegava ser um enviado de Deus e as suas mãos eram guiadas pelas vozes: "eu escuto uma voz, e é essa voz que me obriga a fazer tudo isso". Então, como surgiu tal missão? Às vésperas do Natal em 1938 e após 48 horas de peregrinação, com aproximadamente 27 anos de idade, Arthur Bispo do Rosário apresentou-se no Mosteiro de São Bento anunciando ser "o juiz dos vivos e mortos, o Cristo" (Hidalgo, 1996).

Quando questionado sobre sua história, respondia: "um dia eu simplesmente apareci". Dizia ser um enviado dos céus, ordenado por anjos e encarregado de construir um novo mundo. A sua aparição enquanto Cristo assinala seu pertencimento ao divino, quando provavelmente se desencadeia a psicose, como sustentação de uma posição delirante diante do real impossível de suportar. Desse modo, seu ato de apresentação diante dos frades marca uma ruptura. Não tem retorno: Arthur Bispo do Rosário é agora, sempre em tempo presente, o filho de Deus, distinto dos outros homens pela cruz luminosa que marca suas costas e pela missão de reconstruir o mundo.

Depois da anunciação, o seu destino foi primeiramente o Hospital Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro, sendo diagnosticado como esquizofrênico paranoico, por apresentar delírios de natureza mística e da ordem do sagrado. Um mês depois, foi encaminhado para a Colônia Juliano Moreira, onde ocorreu sua transformação - "eu sou o rei dos reis".

Fruto do imperativo delirante, transformado em rei, deveria reconstruir o mundo. Em função disto, pedia aos funcionários que o trancassem em uma cela, pois "quanto menos comunicação do lado de fora, melhor", dizia. Recusava-se a participar dos ritos coletivos, pouco se alimentava, sua preferência era por frutas e água com açúcar. Entre idas e vindas, permaneceu na Colônia até sua morte, transformando a "casa-forte" em seu ateliê, ou melhor, santuário.

Escravo de um ofício, sua missão era recriar o mundo, sendo os momentos mais produtivos do delírio aqueles que coincidiam com a sua transformação: "eu não tenho noção de nada, eu não tenho tino. Tudo de acordo com o que ele manda que eu faça. Faça isso, faça aquilo. Sou obrigado a fazer. Obrigado porque eu fui escravo, né?" (Hidalgo, 1996). Com agulha e linha, Bispo navegava tecendo um novo mundo. Dentre as produções, uma marca - os tecidos bordados com agulha e linha em panôs, estandartes, fardões, objetos recobertos por linhas azuis, desfiados do uniforme da Colônia.

Inicialmente, em função da falta de recurso, Bispo desmanchou sua vestimenta azul, a fim de reaproveitar a linha. De acordo com Hidalgo (1996), tais objetos foram classificados pelos críticos de arte como O.R.F.A (Objetos Recobertos por Fios Azuis). As diferentes matérias-primas estavam direcionadas para a construção de seu universo por meio da reutilização de fios em seus bordados, placas com nomes de ruas e objetos que remetem a um contexto rural, como um moinho, amassador de pilão, foice, enxada, entre outros.

Seus trabalhos se matizavam entre justaposições de objetos e bordados. Nessas tecituras, destacamos o "manto da apresentação", bordado por ele em boa parte da sua existência, a ser apresentado ao criador no dia do Juízo Final. No avesso do manto constavam nomes das pessoas as quais salvaria e levaria para esse novo mundo. No dia do Juízo Final, além da vestimenta do manto, deveria também empunhar uma bandeira, a fim de que pudesse ser reconhecido como rei dos reis (Hidalgo, 1996).

Para além dos fios azuis, suas confecções empreendiam de maneira detalhada e reordenada uma lógica estética. Ele produzia peças a partir de utensílios do seu cotidiano, como garfos, garrafas, colheres, canecas de alumínio, entre outros. Estas construções eram nomeadas por ele como "vitrines" e se referiam a conjuntos de objetos integrados por um mesmo elemento. Análoga a esta composição, cabe citar as faixas de misses, as quais Bispo preencheu com elementos da geografia do mundo, contendo cidades, principais acidentes geográficos e pontos turísticos (Quinet, 2006).

Apoiado em seu delírio e a par com suas invenções, Bispo reordenava o mundo a partir do entrelaçamento de elementos místicos e signos do que tinha vivenciado, em um gesto que reafirma o delírio como uma interpretação situada por uma emergência de produção de sentidos para o sujeito (Miller, 1995). A exemplo disto, em um dos seus estandartes, escreveu o seu percurso desde o reconhecimento por anjos, incluindo nomes de lugares, ruas, praças, enfim, pontos geográficos localizados no Rio de Janeiro.

Outra peça merece destaque: uma embarcação decorada com bandeiras de países, bandeirolas, organizadas por cores e emblemas, o que nos permite supor que seja proveniente do seu passado enquanto sinaleiro-chefe da Marinha. Assim, essa temática se repete em várias obras: armadas de guerra com torpedeiros, veleiros, caravelas, barquinhos a vela. Talvez um "lugar da obra que Bispo inventou para não naufragar no gozo mortífero que o invadia" (Quinet, 2006, p. 228). Para além das embarcações, havia bordados contendo navios e nomes de ex-colegas. Outro elemento de seu histórico remoto, dessa vez como pugilista, surge por meio de uma reprodução em miniatura retratando o ringue de treino de boxe e um saco de lona (Hidalgo, 1996).

A produção de diferentes objetos, que articulavam sua história de vida, a revelação delirante e sua missão a serviço de Deus, teve caráter estabilizador para Bispo ao produzir uma significação para o mundo que parecia se desfazer, mas que poderia ser registrado e salvo no dia do Juízo Final. Nesse sentido, um efeito estabilizador se produz em que se localiza a angústia, reduzindo seu nível e, assim, favorecendo a vida e as relações (Garcia, 2011, como citado em Corpas & Vieira, 2012, p. 416), ainda que mantenha sua face delirante por produzir-se em resposta à missão recebida. Bispo emergiu, por meio da produção de objetos, como criador do mundo.

O que estava em questão em sua fabricação de peças e articulação escrita, bordada nestas mesmas peças, era a realização do inventário do universo a pedido de Deus. Os objetos eram listados, classificados, enumerados, catalogados, conjugados a partir do que a voz lhe impunha. Nesta perspectiva, a tais representações eram atribuídas novos sentidos de endereçamento ao Outro, estando destinadas a Deus. "Em outros termos, o Outro do endereçamento não é a civilização, e sim Deus, para quem se propõe a apresentar todas as coisas da Terra" (Quinet, 2006, p. 234).

A identidade sagrada assumida por Bispo, o Cristo, compõe o efeito estabilizador ao articular o imperativo delirante advindo de Deus e os objetos manufaturados como um modo de endereçamento ao Outro. Por meio da reconstrução de sentidos e produção de novas significações, "coisificando a linguagem e literalizando as coisas" (Quinet, 2006, p. 229), Bispo obteve certa fixação de seu lugar no mundo. Assim, em um mesmo gesto, a produção dos objetos, a serem salvos no dia do Juízo Final, dava a Bispo seu lugar junto a Deus, um lugar único no mundo, em sua radical singularidade.

 

Considerações Finais

Compreendemos, a partir da transmissão de Lacan, que a linguagem nos humaniza e nos constitui como sujeitos, de diferentes maneiras. Na experiência analítica, por meio do recurso à fala, torna-se possível reconhecer o lugar de endereçamento produzido pelos diferentes modos de constituição subjetiva, o qual permitirá a distinção das estruturas psíquicas, pois é na relação do ser falante com a linguagem e no modo pelo qual o sujeito se apropria da história, que algo se estrutura.

Com relação à estrutura dos casos de psicose, os fenômenos da fala se apresentam como efeito da relação entre o sujeito e o Outro absoluto. Assim, ao articular os registros simbólico e imaginário o psicótico pode vir a constituir uma perspectiva singular de apropriação subjetiva, pela via da metáfora delirante, que circunscreve, de certo modo, fragmentos de real. Tal construção permite reconhecer que o delírio, enquanto estrutura narrativa, se atualiza a partir do modo como cada sujeito interpreta sua realidade, fixando um sentido que define o mundo e o lugar do sujeito nesse mundo.

Para além da produção do delírio, a clínica das psicoses nos direciona a reconhecer diferentes maneiras de estabilização, visto que "a psicose é uma questão de sujeito, pois ela assim mesmo nos conduz aos confins de sua produção" (Miller, 1996), em sua diversidade de modos de estar no mundo. O que nos cabe, portanto, é reconhecer e validar os recursos utilizados pelos sujeitos diante de um Outro absoluto, os quais permitirão uma localização do gozo e uma defesa frente à invasão do Outro.

A produção de objetos de Arthur Bispo do Rosário nos permite afirmar que o delírio não pode ser considerado a única manifestação psicótica de produção de sentido, visto que a foraclusão é passível de ser apaziguada em seus efeitos sob formas que não se limitam exclusivamente à elaboração delirante. A produção de objetos parece aqui ter feito função ao articular sentido do mundo, endereçamento e significação de um lugar único para Bispo.

Contudo, uma questão merece ser destacada: o efeito apaziguador foi sustentado pelo endereçamento ao Outro, em que seu propósito de construção estava sob a ordem de uma injunção delirante. Desse modo, o trabalho de produção de objetos de Bispo do Rosário se escreve como missão, mantendo-se em íntima associação com o delírio; há aí uma forma de organização e localização do gozo que permite um novo arranjo subjetivo, conferindo-lhe um lugar no mundo, endereçado ao Outro sob a forma de sua produção.

Nesse sentido, a via de produção de objetos em sua circulação e reconhecimento social se apresenta como uma das possibilidades de direção do trabalho analítico, como um modo possível de estabilização nos quadros de psicose, ao levar em consideração a promoção da construção do enlaçamento social. É importante destacar que, no final da sua existência, mesmo internado na Colônia Juliano Moreira, Bispo não era mais submetido a qualquer tratamento psiquiátrico específico. É nesse sentido que supomos que a estabilização da psicose, no caso de Arthur Bispo do Rosário, passa pela produção de objetos e reconstrução do mundo, bem como pelo reconhecimento obtido, inicialmente no espaço interno da Colônia e, posteriormente, no universo cultural de período.

É preciso sublinhar que o reconhecimento artístico ocorreu quase no final da sua existência devido à realização da primeira exposição das obras de Bispo na Escola Artística do Parque Laje, no Rio de Janeiro, em outubro de 1989, organizado pelo crítico de arte Frederico de Morais (Birman, 2017). Não obstante fosse considerado artista por muitos, seu trabalho de artesão não se inscrevia propriamente no campo da arte, uma vez que seu registro estava implicado na ordem do sagrado, da mística e da religião e não dialogava com a produção artística de período. Para ele tratava-se de agir produzindo objetos, sendo movido exclusivamente por obediência às vozes, o que demarca uma nova configuração de sentidos em sua passagem no mundo. Arthur Bispo do Rosário inventou um lugar para si no mundo; ou, dito de forma mais precisa, inventou um mundo no qual tivesse lugar.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rayanne Bárbara Santos Carneiro de Almeida
E-mail: rayannebarbara4@gmail.com

Suely Aires Pontes
E-mail: suely.aires7@gmail.com

Recebido em: 17/10/2020
Revisado em: 15/05/2021
Aceito em: 29/06/2021
Publicado online: 29/04/2022

 

 

1 Um modo de funcionamento da e na linguagem.
2 Termo de cunho religioso que se refere à bem-aventurança.
3 Termo usado em estofaria, referindo-se à operação de costura que fixa elementos. É utilizada por Lacan para referir-se à operação que vincula significante e significado, não sendo necessariamente estável.
4 Conhecido como ponto de estofo é o resultado da operação de capitonnage.
5 Discussão sustentada por Lacan em Lacan, Jacques. Seminário 5: As Formações do Inconsciente (1957/1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
6 Termo do direito utilizado por Lacan para referir-se a um elemento que, embora presente, não pode ser considerado no processo; não tem, por conseguinte, efeito na operação.
7 O delírio tem uma lógica que organiza o sujeito. Quem se encontra desorganizado é o sujeito, por ser assaltado por vivências que não compreende; quando tais vivências são incluídas na lógica do delírio ganham sentido e podem ser significadas pelo sujeito.
8 Os artistas plásticos aqui referidos vinculam-se a diferentes escolas, mas tem em comum a radical criatividade do processo artístico. A comparação mais usual se dá entre Marcel Duchamp e Bispo em função da obra "Roda da Fortuna", de autoria deste último, a qual mostra semelhança formal com "Roda de Bicicleta" de Duchamp.

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