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versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.22 no.1 Fortaleza jan./abr. 2022

http://dx.doi.org/10.5020/23590777.rs.v22i1.e11462 

RELATOS DE PESQUISA

 

Estrabismo infantil: reflexos na construção do olhar

 

Children's strabismus: reflections on the construction of the look

 

Estrabismo infantil: reflejos en la construcción de la mirada

 

Strabisme des enfants : reflets dans la construction du regard

 

 

Erika Gomes dos AnjosI; Marisa Amorim SampaioII; Maria do Carmo CamarottiIII; Ana Rodrigues FalboIV; Edilene Freire de QueirozV

IMédica, Especialista em Oftalmologia (Conselho Brasileiro de Oftalmologia). Mestra em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Membro da Sociedade Brasileira de Oftalmopediatria e Estrabismo
IIPsicóloga. Pós-Doutorado em Psicologia Clínica. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
IIIPsicóloga e Psicanalista. Mestra em Saúde Materno Infantil. Membro da Coordination Internationale entre Psychotherapeutes Psychanalystes s'occupant de personnes avec Autisme e do Réseau International d'Etude sur la Psychopathologie et la Psychanalyse de L´Infans
IVMédica Pediatra. Doutora em Saúde Pública. Coordenadora do Comitê de Desenvolvimento Docente da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS). Docente permanente do Mestrado Profissional em Educação para o Ensino na Área de Saúde
VPsicóloga e Psicanalista. Doutorado em Psicologia Clínica e Pós-doutorado pela Universidade de Aix-Marseille I. Professora titular da Universidade Católica de Pernambuco e membro do colegiado do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Psicanálise defende a importância do olhar como um canal propiciador às trocas relacionais pais-filho, uma construção afetiva que tem impactos à constituição subjetiva do bebê. O acolhimento ao filho também se dá pelo olhar materno e paterno, que banha seu corpo de afetos, permitindo que as necessidades infantis sejam atendidas ou não, conforme a interpretação dos agentes da especularização sobre os sinais do bebê. Do ponto de vista da mãe, o olhar do bebê evoca experiências afetivas em si mesma, como angústia, prazer e gratificação. Embora a função do olhar possa ser construída mesmo sem o suporte da visão, argumentamos que um desalinhamento visual pode impactar as trocas relacionais, alertando sobre a importância do olhar, enquanto construção, para a constituição subjetiva do bebê. Este artigo desenvolve reflexões sobre a construção do olhar em díades mãe-bebê no contexto do estrabismo infantil. Foram entrevistadas cinco mães de bebês estrábicos, com idade entre seis e doze meses. As mães se deram conta da alteração visual, sobretudo, na amamentação. Apesar do impacto psíquico, com sentimentos de culpa, frustração e ansiedade, a maioria não se paralisou diante da angústia e buscou apoio. Aparentemente tiveram pouco ou nenhum espaço de escuta junto aos profissionais de saúde, embora tenham sentido alívio da ansiedade a partir de consultas com esclarecimentos e possibilidades de tratamento. Ainda que esta pesquisa não indique elementos de cunho etiológico, o estrabismo pode envolver uma dimensão psíquica nas trocas iniciais que não deve ser negligenciada. Estimula-se que profissionais envolvidos com a primeira infância escutem as ambivalências maternas e paternas nas trocas com o bebê, buscando observar a qualidade da interação pelo olhar, que indica o clima afetivo do par/tríade, base para a integração infantil.

Palavras-chave: relações mãe-criança; estrabismo; olhar; função especular; psicanálise.


ABSTRACT

Psychoanalysis defends the importance of looking as a channel that promotes parent-child relational exchanges, an affective construction that impacts the subjective constitution of the baby. The child's welcoming is also given by the maternal and paternal look, which bathes their body with affection, allowing the child's needs to be met or not, according to the interpretation of the agents of specularization about the baby's signs. From the mother's point of view, the baby's gaze evokes affective experiences in herself, such as anguish, pleasure, and gratification. Although the function of looking can be constructed even without the support of the vision, we argue that a visual misalignment can impact relational exchanges, warning about the importance of looking, as a construction, for the subjective constitution of the baby. This article develops reflections on the construction of the look in mother-baby dyads in the context of childhood strabismus. Five mothers of cross-eyed babies, from six to twelve months old, were interviewed. Mothers noticed the visual change, especially during breastfeeding. Despite the psychic impact, with feelings of guilt, frustration, and anxiety, most did not become paralyzed in the face of anguish and sought support. They seem to have little or no space for listening to health professionals, although they felt relief from anxiety from consultations with clarification and treatment possibilities. Although this research does not indicate elements of an etiological nature, strabismus may involve a psychic dimension in the initial exchanges that should not be neglected. Professionals involved with early childhood are encouraged to listen to maternal and paternal ambivalence in exchanges with the baby, seeking to observe the quality of the interaction through the look, which indicates the affective climate of the pair/triad, the basis for child integration.

Keywords: mother-child relationships; strabismus; looking; specular function; psychoanalysis.


RESUMEN

El psicoanálisis defiende la importancia de la mirada como un canal propiciador de intercambios en la relación padre-hijo, una construcción afectiva que tiene impactos en la constitución subjetiva del bebé. La acogida al hijo también ocurre por la mirada materna y paterna, que baña su cuerpo de afectos, permitiendo que las necesidades infantiles sean atendidas o no, según la interpretación de los agentes de la especulación sobre señales del bebé. Del punto de vista de la madre, la mirada del bebé evoca experiencias afectivas en ella misma, como angustia, placer y gratificación. Aunque la función de la mirada pueda ser construida mismo sin el soporte de la visión, argumentamos que una desalineación visual puede impactar los intercambios de relación, alertando sobre la importancia de la mirada, mientras construcción, para la constitución subjetiva del bebé. Este trabajo desarrolla reflexiones sobre la construcción de la mirada en par madre-bebé en el contexto del estrabismo infantil. Fueron entrevistadas cinco madres de bebés estrábicos, con edad entre seis y doce meses. Las madres se dieron cuenta de la alteración visual, sobre todo, en el amamantamiento. A pesar del impacto psíquico, con sentimientos de culpa, frustración y ansiedad, la mayoría no se paralizó ante la angustia y buscó apoyo. Aparentemente tuvieron poco o ningún espacio de escucha junto a los profesionales de salud, aunque tengan sentido alivio de la ansiedad a partir de consultas con aclaraciones y posibilidades de tratamiento. Aunque esta investigación no indique elementos de naturaleza etiológica, el estrabismo puede envolver una dimensión psíquica en los intercambios iniciales que no debe ser desatendida. Se estimula que profesionales involucrados con la primera infancia escuchen las ambivalencias maternas y paternas en los intercambios con el bebé, buscando observar la calidad de la interacción por la mirada, que indica el clima afectivo del par/tríade, base para la interacción infantil.

Palabras clave: relación madre-niño; estrabismo; mirada; función especular; psicoanálisis.


RÉSUMÉ

La psychanalyse défend l'importance du regard comme canal facilitant les échanges relationnels parent-enfant, une construction affective qui impacte la constitution subjective du bébé. L'accueil de l'enfant passe aussi par le regard maternel et paternel, qui baigne son corps d'affection, permettant de répondre ou non aux besoins de l'enfant, selon l'interprétation des agents de spéculation sur les signes du bébé. Du point de vue de la mère, le regard du bébé évoque des expériences affectives en lui-même, telles que l'angoisse, le plaisir et la gratification. Bien que la fonction de regarder puisse être construite même sans le support de la vision, nous soutenons qu'un désalignement visuel peut impacter les échanges relationnels, mettant en garde sur l'importance du regard, en tant que construction, pour la constitution subjective du bébé. Cet article développe des réflexions sur la construction du regard dans les dyades mère-bébé en contexte de strabisme infantile. Cinq mères de bébés avec strabisme, âgées de six à douze mois, ont été interrogées. Les mères ont remarqué le changement visuel, en particulier pendant l'allaitement. Malgré l'impact psychique, avec des sentiments de culpabilité, de frustration et d'anxiété, la majorité ne s'est pas paralysée face à l'angoisse et a cherché du soutien. Apparemment, ils n'avaient que peu ou pas d'espace pour écouter les professionnels de la santé, même s'ils se sentaient soulagés de l'anxiété des consultations avec des éclaircissements et des possibilités de traitement. Bien que cette recherche n'indique pas d'éléments de nature étiologique, le strabisme peut impliquer une dimension psychique dans les échanges initiaux qu'il ne faut pas négliger. Les professionnels de la petite enfance sont invités à écouter l'ambivalence maternelle et paternelle dans les échanges avec le bébé, en cherchant à observer la qualité de l'interaction par le regard, qui indique le climat affectif du couple/triade, base de l'intégration de l'enfant.

Mots-clés : relations mère-enfant ; strabisme ; regarder ; fonction spéculaire ; psychanalyse.


 

 

A Psicanálise reconhece a importância das primeiras interações na vida do bebê, que é base para o seu desenvolvimento psíquico. Como parte dessas, o olhar adquire função estruturante e está no âmago da subjetivação. O bebê recebe algo de um outro, é capturado e se vê espelhado no olhar materno, expressão do desejo da mãe, perpassado pela função paterna, podendo desenvolver a primeira experiência de alteridade (Queiroz, 2007).

Freud escreveu vários artigos abordando a questão da visão (1910/1996a, 1913/1996c e 1915/1996e), colocando-a como crucial na compreensão psicopatológica, também associada à castração. Reconheceu que o olhar possui atributos próprios e está carregado de energia pulsional. Assim, para o recorte deste artigo, focaremos na especularização por meio do olhar, que marca a diferença entre o ver como atributo do olho e o olhar como ação da pulsão. Em As pulsões e seus destinos (1915/1996e), Freud remete à pulsão no indivíduo e para o indivíduo, bem como à vinculação com aspectos biológicos deste, utilizando-os como apoio.

Lacan (1964-65/2008a) acrescentou as pulsões escópica e invocante. A passagem do somático para o psíquico, no caso da pulsão escópica, ocorre à semelhança das outras pulsões (orais e anais), sendo a escópica uma das categorias da pulsão. Atribuiu ao olhar "um estatuto ontológico na constituição do ser humano, como paradigma da formação do Eu" (Queiroz, 2007, p. 56). Lacan afirma que "não é fácil definir o que é um olhar. Esta chega a ser uma questão que pode muito bem sustentar e devastar uma existência" (1968-69/2008b, p. 245). Em seu emblemático texto sobre o estádio do espelho (Lacan, 1949/1998), o sujeito aparece inicialmente como parte do campo do Outro, assujeitando-se a este para poder se fazer alteridade. Envolto na dialética de ver e ser, de assujeitar-se e perceber-se como objeto do desejo do Outro, poderá conquistar a imagem total do seu corpo que precede o sentimento de unidade do Eu. Lacan apresenta a ideia de fascínio exercida pelo duplo: o bebê inicialmente antecipa a sua unidade corporal pela identificação com a imagem do humano semelhante. O primeiro esboço do Eu é, portanto, fruto dessa experiência de antecipação, que tem como protótipo o encontro do bebê com sua imagem no espelho.

Há que se acrescentar a esse fascínio a problemática relacional: "esta satisfação narcísica só se completa a partir do olhar do outro, do terceiro para o qual a criança se volta para confirmar a imagem que reconhece no espelho" (Motta & Rivera, 2005, p. 671). Compreende-se a complexa e dialética função do espelho: o outro é importante ao bebê para que possa ter acesso a algo dele mesmo; porém, esse jogo também o remete ao engano: ao visível e ao invisível.

Winnicott (1967/1975), apesar de admitir a influência do texto de Lacan (1949/1998) sobre o estádio do espelho, não deu destaque aos componentes eróticos dessa experiência. Remeteu à reciprocidade do olhar materno para o bebê e deste para sua mãe, enquanto desfrutam de uma experiência de mutualidade, por isso reconheceu e valorizou a importância da mãe da realidade externa em seu papel precoce junto ao bebê.

No texto de 1967, Winnicott abordou o papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil: "o precursor do espelho é o rosto da mãe. Desejo referir-me ao aspecto normal disso e também à sua psicopatologia" (p. 153). Portanto, uma vez que o bebê vê a si mesmo quando olha o rosto da mãe, para que alcance uma integração corporal, é preciso que descubra que vê não só o rosto da mãe, mas especialmente o seu olhar. O modo como o olhar se desenvolve na trama interacional é fundamental ao desdobramento da vida psíquica, pois se as trocas ocorrerem suficientemente bem o bebê descobrirá o seu self e será capaz de existir e sentir-se real (existir como si mesmo).

Winnicott (1967/1975, p. 154) questiona e pondera: "o que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo. (...) A mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha com o que ela vê ali" (Itálico do autor). Essa passagem de Winnicott foi-nos particularmente inspiradora. Uma das autoras deste artigo é médica oftalmologista e costuma impactar-se com relatos de pais de bebês com dificuldades oculares, tais como: "não sei se ele me vê", "não sei para onde ele olha" e "não sei como olhá-lo". Assim, apresentamos ao leitor reflexões advindas de uma pesquisa que buscou compreender as particularidades afetivas da interação entre a mãe e seu bebê estrábico.

Do ponto de vista da mãe, o olhar do bebê evoca experiências afetivas em si mesma, como angústia ou, adversamente, gratificação. Embora a função do olhar possa ser construída mesmo sem o suporte da visão, pois o olhar, "longe de assegurar a possibilidade da visão, é o que não deixa ver o objeto porque o atravessa" (Queiroz, 2007, p. 56), admitimos a possibilidade de que desvios visuais, como o estrabismo infantil, possam impactar as trocas relacionais entre a mãe (ou o agente de especularização) e o filho. Destarte, este artigo desenvolve reflexões sobre a construção do olhar em díades mãe-bebê no contexto do estrabismo infantil.

Sob o ponto de vista da Medicina, o estrabismo pode ser definido como qualquer desvio do alinhamento ocular; ocorre quando os olhos não estão simétricos em relação ao objeto que é focalizado. Está presente em cerca de 1,5 a 5,7% de todas as crianças, e sua patogenia e hereditariedade ainda não são totalmente conhecidas. Costuma ser apontado como idiopático, sem causa conhecida; e na infância, momento em que se processa o amadurecimento visual, pode resultar em prejuízo grave para a visão (Bicas, 2003).

Apesar do carater idiopático do estrabismo, Winnicott (1944/1978) sugere que deve ser pesquisado do ponto de vista psicológico: "tenho boas evidências de que o estrabismo pode ter uma causa puramente psicológica (...). Quando se trata, no entanto, de descrever os mecanismos em si não me encontro em terreno seguro" (Itálico do autor; p. 193).

A função do olhar pode ser construída mesmo sem o suporte da visão. Entretanto, o tempo de descoberta da limitação visual pode trazer consequências para a relação mãe-bebê, alertando sobre a importância do olhar, enquanto construção, para a constituição subjetiva da criança (Parlato-Oliveira, 2016). Se o olhar é o primeiro objeto de desejo e pode ser concebido como um objeto inicial, que transiciona entre a mãe e o bebê (Queiroz, 2007), argumentamos que o estrabismo pode impactar no desenvolvimento do olhar, nas interações precoces e quiçá na subjetivação infantil. Advertidas por Winnicott, nossa intenção não foi enveredar nos tortuosos caminhos da etiologia desse desvio ocular, porém desenvolver reflexões sobre a construção do olhar em díades mãe-bebê no contexto do estrabismo infantil.

O acolhimento ao bebê vem por meio do olhar materno/parental, que banha seu corpo de erotismo e, assim, as necessidades da criança podem ser atendidas ou não, conforme a interpretação que os agentes da especularização fazem dos sinais corporais do bebê (Parlato-Oliveira, 2016). Dificuldades nas trocas especulares podem estar relacionadas a entraves no processo de subjetivação. É preciso, então, que haja um olhar de investimento que entre no campo do desejo do Outro, pois não ser olhado nos transforma em puro corpo (Queiroz, 2007).

A litertura médica indica que além dos efeitos funcionais do estrabismo, tais como o desalinhamento dos olhos e a percepção de profundidade binocular, tem-se também o impacto psicossocial tanto nos pais quanto na criança, que é variável em função do meio sócio-cultural-econômico, do nível de conhecimento e da atitude dos pais (Singh et al., 2017).

Crianças e adultos estrábicos costumam sofrer problemas psicossociais e emocionais, como baixa autoestima, preconceito social negativo, intimidação escolar, aumento da ansiedade social, relações interpessoais frágeis e problemas de oportunidade de trabalho (Ribeiro et al., 2014). Akay et al. (2005) avaliaram o perfil psicológico de mães de filhos estrábicos, assim como sua relação com a criança e o funcionamento familiar; e concluíram que o estrabismo gera efeitos adversos em suas vidas e nas relações familiares, ilustrados pelos altos índices de ansiedade na escala de Beck nas mães, além de escores inferiores na avalição geral da qualidade de vida destas, e do alto nível de conflito na família.

A busca por referências atuais abordando a questão do estrabismo - sob o referencial psicanalítico, nos portais e bases de dados Periódicos CAPES, BVS Brasil, Pubmed, PsycNet e Redalyc - não identificou nenhum trabalho, o que reforça a importância de pesquisas exploratórias sobre esse tema. Portanto, com base na literatura psicanalítica sobre a importância da função especular na construção relacional, e nos escassos trabalhos da área médica abordando o impacto emocional do estrabismo tanto nos pais quanto na criança, este artigo desenvolve reflexões sobre a construção do olhar em díades mãe-bebê no contexto do estrabismo infantil.

 

Método

A pesquisa de mestrado (apoiada por bolsa da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que deu origem a este artigo, foi de natureza qualitativa. Buscou uma compreensão da interação entre mãe e bebê estrábico, apoiada em pressupostos teórico-metodológicos da Psicanálise. Destacam-se a relevância dos aspectos subjetivos e intersubjetivos no campo e na compreensão das relações (Diniz, 2018).

Foi utilizada a amostragem proposital para a escolha dos participantes, que foram indicados por oftalmologistas especialistas em estrabismo, previamente informados sobre a pesquisa. Participaram do estudo cinco duplas de mães e seus filhos com estrabismo, com idade entre seis e doze meses. Foi escolhido o recorte de idade entre seis e 12 meses, pois, nesse período, é esperado que a relação mãe-bebê já esteja mais estruturada, bem como aos seis meses é comum que o diagnóstico de estrabismo já tenha sido estabelecido. Foram incluídos bebês com esodesvio (desvio convergente), por ser o tipo de estrabismo mais frequente, e excluídos os que apresentassem qualquer outra alteração física ou comorbidade clínica. Sem ocorrência de perdas e desistências, a saturação norteou, em seus aspectos empíricos e afetivos (Fontanella & Magdaleno, 2012), a parada na inclusão de novos participantes.

Após a obtenção e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com seres Humanos da Universidade Católica de Pernambuco (Parecer número 2.451.814, CAAE de número 80253317. 4. 0000. 5206), o campo empírico foi desenvolvido no período entre janeiro e abril de 2018. As entrevistas foram realizadas individualmente, na casa das participantes, com o intuito de deixá-las menos ansiosas, já que o tema poderia trazer algum desconforto. Cada entrevista foi gravada e transcrita da maneira mais fiel possível, norteada por roteiro abordando: A) A construção da função materna e da parentalidade (gravidez - aspectos emocionais do casal; parto e primeiras interações da mãe/família com o bebê; significado da criança no psiquismo materno durante a gestação e puerpério); B) Os significados e interações (mãe-bebê-família; da mãe com os profissionais de saúde - pediatra, oftalmologista); C) Os aspectos relacionados à função materna imaginada e desenvolvida (questões sobre a amamentação, introdução alimentar e brincadeiras); D) As motivações e dificuldades nesse processo (especialmente ligados ao estrabismo e seu tratamento).

Devido à natureza sutil dos fenômenos, buscou-se realizar a observação livre das mães e bebês, contextualizando as narrativas maternas, com anotações incluídas em diário de campo. Para a análise da observação, foram utilizados os eixos dos indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (IRDI): suposição de sujeito (SS), estabelecimento da demanda (ED), alternância entre presença e ausência (PA), função paterna (FP), desenvolvidos a partir da teoria psicanalítica de orientação lacaniana e winnicottiana, bem como com base em construtos de autores como Spitz (Kupfer et al., 2010).

O IRDI é um instrumento validado, utilizado para compreender sinais relacionais do bebê (ente zero e 18 meses de idade) com seus pais e foi elaborado para que pediatras e outros profissionais de saúde pudessem incluir essa observação no cotidiano de sua prática clínica, para detectar a tempo os problemas de desenvolvimento e risco psíquico, inserindo alguns indicadores na Caderneta da Criança do Ministério da Saúde, reformulada em 2006.

A construção do corpus e a análise exploraram o material explícito das entrevistas, contextualizadas pelas observações, bem como do material "implícito", que necessitou da capacidade de reverie da pesquisadora. Tal capacidade pode ser compreendida com base na reverie proposta por Bion (1962/1991), adaptada para o campo da pesquisa (Fontanella & Magdaleno, 2012): permanecer em atitude de poder receber, acolher, para então, na análise do material construído no campo, decodificar, significar, nomear as suas próprias angústias e aquelas supostas dos sujeitos de pesquisa (compreensão dos fenômenos transferenciais vividos no campo), interpretadas como material "desintoxicado" (fruto de reflexões sobre os aspectos intersubjetivos do campo e da tensão entre objetividade e subjetividade).

A análise também explorou os eixos do IRDI que nortearam a compreensão da observação, identificados em sua ausência ou presença nas narrativas das mães. Desse modo, a presença desses indicadores sugere que a interação mãe-bebê estaria ocorrendo de modo adequado.

 

Resultados e Discussão

As cinco duplas de mães e bebês residiam na Região Metropolitana do Recife, todas de classe socioeconômica média. A idade das mães variou entre 28 e 38 anos de idade, e os bebês tinham entre seis e 12 meses de vida; dois do sexo masculino e três do sexo feminino. As mulheres eram casadas; duas eram primíparas e as outras três tinham um filho (20 anos, dois anos, e um ano e meio). Todas tinham plano de saúde, o que provavelmente facilitou o acesso aos médicos especialistas. As duplas estão representadas por nomes fictícios, para preservação da privacidade dos participantes (Tabela 1).

Construção da Maternidade na Adversidade

As mulheres descreveram a gestação como tranquila; os cinco bebês nasceram a termo (entre 37 e 42 semanas). No processo de acolhimento ao filho, identificamos transformações em suas representações maternas, bem como modificações de ordem simbólica e prática, tal como casar e reduzir a carga de trabalho, buscando se adequar às necessidades do filho. Essa construção, que parecia tranquila, foi modificada com a desconfiança e a descoberta do estrabismo, abrindo um abismo difícil de ser compreendido e simbolizado.

"Quando ela confirmou mesmo que ele tinha estrabismo, foi um choque pra mim... me senti profundamente triste, fiquei sem chão." (Simone).

O diagnóstico de alteração física pode impactar a interação, e as mães podem manifestar sentimentos como raiva, culpa, negação, desespero e frustração (Mannoni, 1985/1999). Nesta pesquisa, corroborando com Mannoni, percebeu-se a presença de fortes sentimentos de culpa, impactando a mulher em seu narcisismo.

"Me senti culpada por isso e fui avaliar se eu poderia ter causado isso nele." (Pietra).

"Me sinto um pouco culpada por isso que tinha acontecido com ela, embora eu tenha ficado trabalhando na minha cabeça que isso não tem nada a ver com nenhuma conduta minha. Mas, mesmo assim, é uma coisa difícil." (Valéria).

"Eu podia ter feito algo de errado que atrapalhou a formação dela. Aí veio a culpa." (Ananda).

"A gente sabe que essas coisas podem ser hereditárias, pode ser algum remédio que a gente toma, então, a gente começa logo a se sentir culpado. (...) Só comecei a ter mais cuidado quando eu já sabia que tava grávida. Achei que pudesse ser algo que fiz antes disso, e me senti culpada. Se eu não estava me prevenindo, isso podia acontecer. De certa forma, foi minha culpa, né? Como se tivesse culpa daquilo que estava ocorrendo." (Simone).

Apontar-se como culpada poderia funcionar como expiação (penitência), sendo a culpa encobridora de um enigma e, ao mesmo tempo, denunciadora de um desejo impossível de se fazer face; quiçá um desejo por não querer o filho. Ao mesmo tempo, denota a onipotência materna de achar que tudo que acontece com o bebê decorre do seu desejo. De certo modo, isso tem valor de verdade, mas sem intencionalidade. Assim, é interessante observar que, nesses comentários, não há referência à contribuição da herança paterna, ficando a mãe no plano de "única culpada"; e, apesar da dor, culpar a si mesma poderia abrandar a inquietação que sentiam. Desse modo, talvez a culpa tenha representado um modo de proteger o filho, evitando demonstrar outros sentimentos (como raiva) mais difíceis, já que, segundo a nossa sociedade, o que se espera delas é que sejam sempre amorosas e que culpem a si mesmas, jamais ao filho.

Ananda, Pietra e Valéria, sendo profissionais de saúde, teoricamente tinham o entendimento de que não eram "culpadas" pelo estrabismo. Entretanto, as três se colocaram como mães, deixando de lado as explicações científicas, recorrendo à ordem do irracional. Outro sentimento narrado com frequência foi o de frustração e até mesmo o de desgosto.

"Eu fiquei com medo porque fiz indução da ovulação." (Pietra - médica).

"Na verdade, eu me senti um pouco frustrada... frustrada porque quando a gente sonha com nosso filho, imagina que ele vem perfeito, e aí eu fiquei um pouquinho incomodada quando eu vi aquele olhinho dela um pouquinho torto." (Valéria).

"Fui inventar de fazer umas fotos dele. Foi uma dificuldade pra escolher uma que tivesse com o olho mais ou menos. Depois, nem senti mais vontade de fazer o álbum de 02 meses. (...) Dá até um desgosto quando vejo que ele veio assim." (Paula).

Lidar com a frustração pareceu implicar essas mulheres numa tarefa árdua: reencontrar seus pedaços para que pudessem se devotar aos cuidados com o bebê, identificar-se com ele, senti-lo como fruto seu e amá-lo com devoção. Até que pudessem se doar ao filho e receber o que dele vinha, precisaram olhá-lo com suas imperfeições, admitindo as suas próprias. Desse modo, como conviveram com a falta real, reatualizada com a deficiência visual?

"Pra engravidar foi meio difícil. Eu já vinha tentando, mas tive dois abortos. E quando veio, ele veio assim com esse olho... (Silêncio) Eu fiz o quarto dele todo arrumadinho, mas dá até um desgosto quando vejo que ele veio assim. (...) Tô vivendo um dia de cada vez, porque tá sendo muita coisa ao mesmo tempo. Ele com o olho assim... (Silêncio)." (Paula).

"É uma coisa meio diferente. Eu praticamente não amamentei, mas quando tentei, eu achava estranho olhar pra ela, e não tinha certeza se ela tava me olhando. Até pensei que ela pudesse ser cega. Mas eu notava que um olhinho estava certo e olhava." (Simone).

Será que, para Simone, a dificuldade para amamentar ocorreu pelo confronto com aspectos aflorados no encontro com a imperfeição do bebê? Será que achou estranho o seu olhar para o bebê ou não conseguia se ver desejada por este? Como posto por Winnicott (1967/1975), ao olhar para o filho, a mãe reflete seu próprio humor, a rigidez de suas defesas, sua angústia ou satisfação.

O olhar liga-se à primeira experiência de alteridade: ao olhar o filho, a mãe "devolve ao bebê o próprio eu (self) deste" (Winnicott, 1967/1975, p. 161). Há que se compreender a reciprocidade das interações: o olhar do bebê contribui para que a mãe não o reduza a um funcionamento meramente fisiológico, tomando-o como ser de interação. Se a mãe não se vê capturada pelo olhar do filho, este se reconhece fora do seu campo afetivo. Eis o questionamento de uma paciente de Winnicott (1967/1975, p. 160): "Não seria horrível se a criança olhasse para o espelho sem que nada visse?". Nessa mesma seara, Stern (1990/1991, p. 27) mostra a desistência dos adultos com relação ao investimento na criança quando esta não os olha:

Imagine-se segurando seu bebê de seis semanas de idade em seus braços. Vocês estão face a face. Você deseja brincar, mas sua garotinha está extasiada pelo ponto onde sua testa e seus cabelos se encontram. Você, desejando que ela olhe em seus olhos, sorri e tenta desviar seu olhar. Mas seu sorriso não obtém sucesso. Você - como a maioria dos pais -, continua tentando desviar a atenção da filha daquele ponto. Você pode fazer caretas ou mesmo embalar seu bebê, esperando que este movimento desprenda seu olhar dali, onde seus cabelos começam. Muitos pais interpretam essa aversão do olhar como uma real rejeição, e podem até mesmo desistir de tentar fazer contato ocular por algum tempo.

Com base em Spitz (1965/1988), pontuamos o interesse do bebê pela testa, olhos e nariz do rosto humano, posteriormente reconhecido como a mãe. Spitz corroborou a tese de Winnicott quanto à importância do olhar para o desenvolvimento da comunicação do bebê, e ressaltou o impacto constitutivo do olhar mútuo. Nesse aspecto, o primeiro organizador psíquico - a reação de sorriso/sorriso recíproco - revela o interesse do bebê pelas trocas com o rosto humano/o outro (o reconhecimento do outro materno marca a entrada no segundo organizador: a angústia do oitavo mês).

Spitz (1957/1998) também observou o modo como essas trocas pelo olhar moldam e estão relacionadas ao comportamento do bebê no afastar-se da mãe ou retomar o contato com esta, experimentando autonomia e independência do ambiente materno. A trama do olhar, portanto, será fundamental à aquisição do terceiro organizador psíquico: o aceno da cabeça indicando o "não". Segundo Gomes (2016, p. 25), o interjogo relacional "do ver e ser visto, reconhecer e ser reconhecido nos olhos e pelos olhos do ambiente materno" se expande:

Essa autonomia e independência são constituídas pela aprendizagem do significado do "não" na experiência subjetiva do bebê, seja por meio do afastamento do olhar, seja por gestos e expressões, ou ainda por meio de determinadas entonações vocálicas entre os quatro e sete meses de idade, o que faz com que a criança comece a dimensionar o significado do "não" e do "sim". (Gomes, 2016, p. 22)

Medeiros e Salomão (2012), ao pesquisarem crianças deficientes visuais, identificaram que, passada a etapa inicial de surpresa, os pais manifestam o desejo incessante de garantir o melhor tratamento aos filhos. As mães de nossa pesquisa, de forma semelhante, demonstraram preocupação em garantir o tratamento de forma precoce para desenvolver a visão e para evitar que os filhos fossem discriminados no futuro, sofrendo bullying.

"Minha mãe sempre me disse, e eu tento aplicar isso na minha vida: que cada filho tem suas particularidades. Cada filho é único, e devemos amá-los e apoiá-los como eles são. Esse conselho me ajuda a lidar com as diferenças deles. Mas tenho medo de ele sofrer bullying na escola..." (Pietra).

"Isso daí pode ser resolvido e eu tô fazendo tudo que eu posso, e vou continuar fazendo tudo o que eu posso." (Valentina).

As narrativas nos remeteram ao temor de que os filhos fossem notados em sua deficiência, que sofressem discriminação de uma sociedade que, em muitos casos, não aceita o diferente e prega padrões estéticos normatizados. Acrescido a isso, parecia haver também o temor de exposição a olhos vistos de suas próprias "falhas", por não serem capazes de produzir um filho perfeito. O modo de lidar com a deficiência dependerá do lugar que o inconsciente materno reserva ao pequeno ser, bem como da leitura que o filho fará do fantasma materno para definir seu destino (Queiroz, 2007). Procurar pelo tratamento o mais rápido possível pareceu amenizar as angústias maternas de que os filhos poderiam encontrar quando ingressassem na escola, o que também foi visto como uma antecipação angustiante.

"O pai fica preocupado e sempre que eu vou colocar uma foto ele diz assim, 'ó, escolhe uma que Mariana não esteja com o olhinho torto.'" (Valéria).

"Mas eu quero resolver logo isso (...). Porque se ela vai pro colégio assim... eu tenho certeza que os coleguinhas vão ficar mangando dela. Então, ela vai ficar sofrida pra um negócio que eu tô tentando resolver, sabe?" (Ananda).

A referência à foto mostra que, antes mesmo da preocupação com o bullying, há a preocupação de esconder a "castração" da criança, e também a dos pais, que não se sentiram capazes de gerar um filho perfeito. Esse ponto foi evidenciado na condução da pesquisa, pois as mães não permitiram e/ou restringiram que fossem filmadas com os seus bebês.

Esta pesquisa pretendia analisar aspectos interacionais mãe-bebê via observação da dupla, que seria filmada após a entrevista. No entanto, as mães traziam narrativas carregadas de angústia, com uma suposta demanda reprimida de fala sobre si. E, ainda que em algumas entrevistas o bebê estivesse junto à mãe e à pesquisadora, todas foram unânimes quanto ao incômodo em se deixar filmar com o filho. Das cinco participantes, uma se negou a fazer o vídeo, alegando que o filho estava dormindo; outra autorizou uma breve filmagem de 36 segundos, porém não conseguiu interagir "normalmente", dizendo estar intimidada com a filmagem; as outras três preferiram (elas mesmas) fazer o vídeo e enviar para a pesquisadora. Os três vídeos enviados tinham menos de um minuto; os bebês curiosamente apareciam sentados de lado, de modo que só conseguíamos ver o rosto deles lateralmente. As mães que enviaram o vídeo mostraram a preocupação de que este material não fosse divulgado, sob a afirmativa de que não gostariam que observassem qualquer alteração ocular em seus filhos. O fato de os vídeos mostrarem os bebês de lado, impedindo-nos de ver sua face, sugere uma atitude protetiva, além da solicitação para não divulgação.

"Quando perguntei se poderia fazer uma filmagem, pra ver uma brincadeira entre eles, Ananda perguntou se alguém mais veria o vídeo. Disse que não queria que vissem o vídeo pra não ficarem julgando a filha dela. (...) Chamou-me a atenção Valéria dizer que preferia me enviar um vídeo de brincadeira em outro momento. (...) Recebi um vídeo bem curto, no qual Valéria brinca com Adão, mas ele é filmado apenas de lado, mal consigo ver os olhos dele." (Diário de campo).

Um bebê que apresenta alguma deficiência pode despertar angústia ante a fantasia dos pais de serem incapazes de gerar um ser perfeito, bem como representar a concretização de um mundo interno imperfeito, sentimento que desperta dor, o que também pode dificultar a vinculação (Amiralian, 1997). Paula fez referência ao filho como "o menino", ou seja, de modo impessoal, o que talvez denote a sua dificuldade de aceitação do filho ou certo distanciamento dele: "(...) o menino não é bonito".

Paula deixou transparecer, de um modo contundente, sua raiva e frustração, o que impactou a pesquisadora, levando esta a refletir sobre os sentimentos dessa mãe, isto é, se estariam ligados à expectativa de ofertar ao marido um filho tão perfeito e bonito quanto o outro que ele tinha de relacionamento anterior. Desse modo, em que lugar parecia estar esse bebê? Talvez como um objeto a ser ofertado em uma competição, estimamos. Assim, com base em nossa leitura da transferência, Paula parecia projetar na pesquisadora o impacto que sentira com a descoberta da imperfeição do filho/de si mesma. Como o outro olharia seu filho/a si mesma: um menino feio ou um bebê com potencial para ser amado/uma mulher a ser amada?

"Paula repetiu mais de uma vez o quão bonito era o filho do primeiro casamento do seu marido, chegando a mostrar fotos." (Diário de campo).

Essa mãe desejava constituir uma família que julgava "ideal" e um filho que parecesse com o pai. As altas expectativas parecem ter sido frustradas com o nascimento de um filho tão diferente do esperado e Paula acabou associando a crise do seu casamento ao estrabismo. "A gente está quase se separando e parece que até piorou depois do filho. Mas também ele olha e vê que o menino não é bonito, acho que ele se importa com isso.".

Safra (2004) situa o nascimento como um acontecer que vai muito além de um dado biológico. Esse "muito além" só será possível se o bebê contar com a necessária presença de um anfitrião que funcione como presença e como uma situação histórica, que permita ao filho criar o inédito a partir do que já existe para ele na novela familiar. Questionamos: o que o estrabismo revelaria de indícios relacionais daqueles que agenciam a especularização que recebem o bebê e marcam o seu corpo com o olhar? Percebe-se, então, que o filho de Paula parecia destinado a atestar um casamento e um reconhecimento materno. Poder-se-ia questionar sobre o desejo de maternidade em Paula e os possíveis desdobramentos para o bebê, que chegou sem poder ocupar o lugar de "sua majestade, o bebê" (Freud, 1914-15/1996d), frustrando a mãe em seu narcisismo.

Para essa mãe, a descoberta do estrabismo parece ter sido tão dolorosa que foi necessário o olhar de um terceiro - o fotógrafo - para atestar no olho diferente algo que lhe parecia difícil admitir. Imenso foi o seu choque com a constatação de imperfeição do filho, justo em um ensaio fotográfico, sonho que almejava antes mesmo do bebê nascer.

"Ele veio assim com esse olho... (Silêncio) Eu fiz o quarto dele todo arrumadinho, mas dá até um desgosto quando vejo que ele veio assim... (...) Quando fui escolher as fotos de um mês, não tinha uma que prestasse. Dá até um desgosto quando vejo que ele veio assim." (Paula).

Olhares/Não Olhares para a Mãe e para o Bebê

Como as famílias tinham plano de saúde, o acesso aos médicos não foi difícil. Todos os bebês haviam passado por seis a oito consultas com o pediatra, assim como realizaram, posteriormente, três a quatro consultas com oftalmologista. Já na maternidade, esses bebês foram submetidos ao teste do olhinho com o pediatra; em nenhum dos casos, o estrabismo foi aventado nesse momento.

Curiosamente, nas cinco duplas entrevistadas, foram as mães que evidenciaram o desvio ocular. Quatro delas observaram o estrabismo no momento da amamentação. Suas narrativas sugerem que os pontos observados e discutidos pelos médicos nas consultas, tanto com oftalmologistas quanto com os pediatras, se limitavam à saúde física e ocular dos bebês (a alteração oftalmológica e o tratamento necessário). Estima-se que as mulheres não levaram às consultas sua angústia, ambivalências ou dificuldades para interagir com o filho. Pareceu-nos que houve pouco, ou até mesmo nenhum, espaço para serem ouvidas sobre questões emocionais da maternidade e sobre a relação com o bebê.

Constata-se, então, que as experiências que essas mulheres tiveram com os pediatras foram diversas: em dois casos as mães foram encaminhadas ao oftalmologista; nos outros três, as observações maternas foram, em graus diferentes, aparentemente desvalorizadas. Dois pediatras orientaram esperar mais um tempo para a avaliação oftalmológica e, em um caso, parece ter ocorrido desconsideração para com a queixa materna, o que causou desconfiança na mãe.

"Perguntei: 'Doutora, o pescocinho dela tá troncho. Ela tem problema no pescoço?' Mas aí ela disse: 'Eu já tinha anotado aqui que ela tinha o olho tortinho'. Ela não me disse. Acho que se ela tivesse me dito eu lembraria porque mãe lembra dessas coisas. Se ela tivesse me dito talvez não eu não tivesse ficado tão preocupada." (Ananda).

"Infelizmente, hoje em dia a gente sabe que os médicos mal olham pra gente, mal têm tempo, são muitos pacientes pra serem atendidos, e a gente que tá com uma criança que a gente jura que tem uma coisa diferente, a gente quer atenção, quer que nosso filho seja bem examinado, (...) quer entender o que tá acontecendo." (Valéria).

"Ela foi direta (pediatra), me encaminhou logo e disse que não tinha notado, mas que isso precisava ser visto por um médico especializado. O oftalmologista, quando deu o diagnóstico, me senti extremamente triste e estava sozinha, como sempre." (Simone).

Mediante diferentes critérios, as mulheres julgaram como bom atendimento: quando houve conforto verbal direcionado a si; atendimento via consulta de encaixe; boa consulta para o filho, com exame minucioso; uso de esclarecimentos quanto à etiologia (com destaque à característica idiopática), às possibilidades de tratamento e/ou à possibilidade de correção do defeito ocular. Cogitamos que talvez tenham se libertado, em parte, do sentimento de culpa e da ansiedade quanto ao prognóstico, pois era comum receberem notícias tranquilizadoras. Os esclarecimentos pareciam dar conta do aspecto fisiológico da alteração oftalmológica e também tinham a intenção de mostrar às mães que elas não eram culpadas pelo estrabismo, auxiliando-as, de algum modo, a olhar para seus filhos com esperança e aceitação.

"Eu me senti bem acolhida sim, perguntei muitas coisas pra oftalmologista, porque eu estava ansiosa e com medo, mas ela respondeu com muita calma e paciência." (Pietra).

"A oftalmologista foi uma mãe pra mim, porque ela foi explicar que eu não tinha culpa, e que estrabismo não a era pior coisa do mundo. Mas a pessoa toma um choque! Mas quando a oftalmo explicou você entende que como mãe não tem culpa de nada disso." (Simone).

"A oftalmologista esclareceu o problema, disse que ela não ia precisar usar óculos, mas ia precisar usar tampão. (...) Ela foi super atenciosa, falou comigo direitinho, me explicou, esclareceu minhas dúvidas, (...) fiquei mais tranquila, menos ansiosa." (Valéria).

Sendo assim, embora as consultas aliviassem em termos objetivos, pareciam persistir afetos pouco trabalhados ou sequer abordados, a exemplo das longas narrativas de algumas dessas mulheres, que traziam sentimentos de tristeza, medo, culpa, ansiedade e também dúvidas. Apesar dos elogios das mães aos oftalmologistas, em nenhum momento de suas narrativas comentaram que tiveram espaço para falar sobre suas ansiedades e receios em relação ao diagnóstico, ou para tratar de sua relação com o filho. As mães não tiveram encaminhamento para consultas de Psicologia; talvez a dimensão para além do biológico fosse tão distante da prática médica que sequer fora considerada.

Outro aspecto que merece destaque foi o fato de que pareciam sobrecarregadas com os cuidados voltados para os filhos, sendo comum irem sozinhas às consultas. Via de regra, as mães não só são vistas como responsáveis pelo cuidado destinado às crianças, mas também enquanto detentoras do saber relativo ao filho, o que pode lhes trazer sentimento de sobrecarga e responsabilidade.

"Ninguém é melhor para cuidar do filho do que a mãe. (...) Eu fico sobrecarregada, mas... fazer o quê? Tem que ser assim. Ela precisa de mim." (Ananda).

"No geral, eu fui sozinha mesmo. Meu marido nunca me acompanhou, nem na primeira gestação, nem nessa segunda. (...) Mas quando ela disse que ela tinha estrabismo, eu chega fiquei sem ar. E pra variar eu estava sozinha." (Simone).

Diferente de Ananda e Simone, Valéria parece ter tido importante apoio de seu marido, que fez questão de estar com ela na consulta com o oftalmologista, fato que facilitou o recebimento da notícia do estrabismo.

"Fernando (marido) sempre fez questão de ir comigo, porque até acho que ele falando de médico pra médico melhora as coisas e tudo fica mais explicado, e também porque eu, como mãe, fico tendo umas ansiedades, e ele como pai parece que é mais tranquilo." (Valéria).

Assim como os pediatras, os oftalmologistas pareciam privilegiar as questões orgânicas, em detrimento da interação pais-bebê, dimensão essencial para o desenvolvimento psíquico e constituição subjetiva da criança. Assim, fica o questionamento: não seria um equívoco esquecer ou não abordar a outra parte fundamental da relação - a mãe/os pais /a interação - com o bebê? Ao longo de sua obra, Winnicott abordou diversas vezes a importância de um ambiente favorável ao bebê, proporcionado pelos pais e apoiado por pessoas como o médico, para que se desenvolva de modo psiquicamente saudável.

O médico deveria ser capaz de dar à mãe o direito de se preocupar e, quando possível, dizer-lhe: 'Compartilhe a responsabilidade comigo, venha me ver de vez em quando'. (...) Não se deve perder de vista (...) o lado físico do tratamento do estrabismo, seja de que tipo for. Não estou, é claro, desprezando ou criticando o lado físico, mas sim chamando atenção para o lado psicológico. (Winnicott, 1944/1978, p. 191; 194)

Apesar de supostamente perceberem os anseios das mulheres, tentando tranquilizá-las, a atuação dos profissionais parecia seguir o modelo em vigor, o que geralmente é esperado para uma consulta médica: orientar, oferecer apoio instrumental para que as possibilidades de tratamento sejam concretizadas. Porém, ainda que fundamentais, essas dimensões são insuficientes quando falta disponibilidade para ouvir o outro (Schraiber, 2011). É necessário haver envolvimento, escuta e participação ativa, o que permitirá colocar os recursos técnicos existentes a serviço dos sucessos práticos almejados. "Muitas vezes, cuidar é, basicamente, ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho." (Figueiredo, 2009, p. 127).

O cuidado, como o diálogo entre o conhecimento técnico-científico e os pressupostos e expectativas dos sujeitos, na busca por respostas adequadas às necessidades e demandas de saúde, está identificado aos sucessos práticos. O êxito técnico aponta para uma resposta assistencial que se reduz a protocolos padronizados da ação, uma técnica resumida a instruções do como proceder, retirando a potência reflexiva e a criatividade. Assim, há o risco de tomar os sujeitos apenas em suas dimensões de corpo-organismo (Schraiber, 2011).

Um Bebê para além dos Olhos

A pesquisa havia proposto analisar a interação mãe-filho, apontando o caminho que as famílias percorreram desde o diagnóstico, os investimentos sobre o bebê, no corpo e no olhar deste, ou a falta desses. Como já descrito, respeitamos o momento das mães e optamos por não filmar e/ou aplicar instrumentos que remetessem diretamente à observação do bebê. Utilizamos os indicadores do IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil) como suporte para analisar a interação de modo indireto, indícios do desenvolvimento da relação mãe-filho nas narrativas maternas e nos momentos interativos ao longo dos encontros (antes e durante as entrevistas, desenvolvidos nas casas das famílias).

Paula causou estranheza ao falar do filho, podendo-se pensar em uma equivalência entre o estrabismo e o bebê, de modo que ela não conseguia dizer nada mais para além do fato do problema nos olhos dele. A deficiência era o que parecia ser o foco do investimento e não o bebê como sujeito. Ao ser questionada sobre como poderia descrever o filho, eis a resposta: "E eu sei lá... (...) Ele com o olho assim... (Silêncio).".

A entrevista com Paula mobilizou a pesquisadora, que se deu conta do quanto ela parecia precisar de ajuda, já que respondia com a voz baixa, entristecida, bem como sequer levantou-se ao longo de cerca de uma hora para checar o bebê no quartinho.

"Após a entrevista, entrei em contato com Paula para marcarmos novo encontro, no qual eu sugeriria uma ajuda psicológica. Telefonei, mas ela se negou a me encontrar novamente. Quão grande foi a minha surpresa quando, depois de 20 dias, recebi uma ligação dela, dizendo que gostaria de fazer uma nova entrevista, em suas palavras 'começando do zero.'" (Diário de campo).

No segundo encontro, com Antônio aos seis meses e meio, e com sua mãe fazendo terapia, por conta própria, sem que houvesse recebido indicação de algum dos médicos, Paula citou que o bebê só deixa de chorar quando vai para o braço dela.

"O pai dele pega, a avó, ninguém adianta pra ele. Enquanto eu não pego, ele não para (de chorar). (...) Ele está se desenvolvendo bem. Ele é esperto. Ele só para de chorar quando eu pego ele... Eu olho para ele, pois, mesmo com esse olho tortinho, eu sei que está me olhando." (Paula - segundo encontro).

"Fiquei me questionando se isso (o bebê parar de chorar apenas em seus braços) poderia ser uma forma dele finalmente conseguir a atenção, o olhar materno, bem como ela se implicar de modo diferente com o filho. Apesar da dificuldade inicial na aceitação do bebê, foi possível perceber o seu esforço para ultrapassar o desalinhamento ocular do estrabismo. Observei que Paula passou a usar o manhês. Parecia haver a construção/reconhecimento de uma demanda, com a mãe capaz de olhá-lo, dizendo entender do que ele precisava, talvez obtendo prazer nas trocas." (Diário de campo - segundo encontro).

"Durante a entrevista, Antônio estava na sala, e passou a maior parte do tempo nos braços de Paula. No macacão de Antônio estava escrito: "Fofinho da mamãe". Observei que durante a entrevista, ele tentou chamar a atenção da mãe com gritos e grunhidos. Paula respondeu ao chamado em manhês, dirigindo-se a ele: 'Cadê o lindo de mainha?' Ele sorriu bastante, deu gargalhadas. (...) Peguei Antônio em meus braços e o coloquei estrategicamente de costas para sua mãe. Ele não chorou, mas se virou, quase se jogando pra trás, procurando por ela. Fez isso repetidas vezes, até Paula pegá-lo em seus braços." (Diário de campo - segundo encontro).

Antônio reagiu quando a mãe se dirigiu a ele, gargalhando com a resposta de Paula, apontando o estabelecimento da demanda (ED). O eixo ED, advindo do IRDI, permite que as manifestações do bebê se enlacem em uma trama afetiva que possibilita sua transformação em apelo endereçado (Kupfer et al., 2010). Ao perceber a ausência da mãe, Antônio a procurava. Paula, notando sua procura, acabava por pegá-lo em seus braços. Pareceu-nos, nesse segundo encontro, que a mãe se apropriara de seu filho, investindo emocionalmente nele. Talvez o desalinhamento ocular já não significasse tanto, com um bebê significando mais.

O olhar da mãe para o filho reflete como espelho, desnuda as sensações e emoções que sente e transmite ao bebê, enquanto agenciadora da especularidade (Parlato-Oliveira, 2016). É mediante esse olhar, daquilo que o rosto dela espelha quando o olha, que o bebê passará a ver a si próprio (Winnicott, 1967/1975). O rosto de Paula parecia espelhar algo diferente: não mais a Paula da profunda decepção, nem mais o bebê sem significado. Se antes talvez ele não recebia nada ou quase nada da mãe, estimamos que Antônio pôde, então, receber de volta indícios de sua capacidade criativa, de seu potencial para a integração.

Refletimos também sobre o olhar de terceiros atuando como auxiliar a Paula e à sua interação com Antônio, lembrando que o marido não parecia querer entrar nessa relação. Talvez o olhar do fotógrafo, a escuta e o apoio oferecidos pela psicóloga, e até mesmo o espaço de reflexão propiciado pela situação de pesquisa, tenham favorecido e sustentado o olhar da mãe sobre si mesma e sobre o seu bebê, facilitando, de algum modo, o desempenho da função materna.

A percepção das mães de que o bebê requer algo delas esteve presente também no discurso das demais mulheres. O mesmo ocorreu no segundo momento de participação de Paula, ilustrando a suposição de sujeito (SS) e o estabelecimento da demanda, eixos norteadores do IRDI, sugerindo que a relação mãe-bebê estava sendo construída com base em sinais positivos.

Ananda foi além do olhar físico, enxergando em Melissa um sujeito que demandava algo dela. Acolheu esse lugar, declarando que conhecia o que sua filha precisa "só pelo olhar". A ação de olhar, diferente da envolvida no ver, liga-se a um afeto (Queiroz, 2007). A antecipação materna tem o corpo como suporte: é a partir do que o bebê exprime pelo próprio corpo e seu apelo - um chamado sem palavras - que serão colocados em andamento o desejo e a demanda.

"Ela precisa de mim, e ninguém é melhor para cuidar do filho do que a mãe. Eu cuido dela e sei do que ela precisa, só de ela me olhar." (Ananda).

"Melissa está com um chocalho na mão e parece chamar a atenção da mãe, que está empenhada em conversar comigo. Se Ananda demora a falar com a filha, ela faz barulhos cada vez mais altos com o chocalho; a mãe se apressa em falar com ela, porém tomada entre a filha e a pesquisadora." (Diário de campo).

Observa-se também a busca de Melissa por sua mãe, convocando-a por meio do chocalho, ilustrando o eixo presença e ausência (PA): há troca de olhares entre a mãe e a criança (esperado até os quatro meses); a criança procura ativamente o olhar da mãe (esperado até os oito meses) (IRDI). Nesse contexto, a mãe olha para o bebê quando ele sinaliza com um som. Os bebês parecem encontrar um caminho para capturar o olhar da mãe, como Melissa pelo chocalho, Antônio pelo choro e Alice pelo grito.

"Alice, que estava num quadrado, fica nas pontas de pés e tenta chamar sua mãe. (...) 'O que você quer, princesa?', pergunta a mãe. Alice fica em silêncio e, assim que a mãe se vira para mim, ela a chama novamente através de gritos, balançando os brinquedos nas mãos. Simone comenta: 'ela só quer que eu fique com ela.'" (Diário de campo).

Entretanto, alternar presença e ausência não foi uma construção que veio sem ambivalência para as mães, que confessaram resistência quanto à ideia de retorno ao trabalho. Ananda foi a única que, na época da pesquisa, não tinha retornado ao emprego (a filha tinha nove meses). Em seu discurso, parecia pedir desculpas à criança, usando diminutivos, remontando ao início não planejado, acentuado pelo estrabismo, questionando a si mesma sobre o futuro que apareceu como aposta.

"Eu queria dizer que amo minha filha. Sei que começou meio atrapalhado [começou troncho], porque foi meio sem planejar e ela nasceu com o olhinho assim tronchinho, ficou com o rostinho meio tronchinho, mas eu acho que vai dar certo." (Ananda).

Para Simone, o desalinhamento ocular pareceu dificultar inicialmente o encontro dos olhares: "Eu tinha dúvida se ela tava me olhando... (...) É mais difícil perceber aquela troca que a gente espera ter, não sabe quando ela está olhando. (...) Eu me esforço pra olhar pra ela e ver se ela tá me vendo". A mãe procurava o investimento de Alice, a participação ativa do bebê, exemplificando que a interação ocorre de modo bidirecional, pois a mãe também precisa do olhar de reconhecimento e de troca por parte do filho. Entretanto, assim como apontado por Parlato-Oliveira (2016), o olhar pode ser construído mesmo sem o suporte da visão. Em outra passagem, Simone percebeu a interpelação da filha - "Me chama e procura do mesmo jeito" - supondo um sujeito e estabelecendo a demanda, a despeito do estrabismo.

"(...) Ela é esperta do mesmo jeito, me chama e procura do mesmo jeito" (Simone).

"Não é um olhinho diferente que vai impedir nada, e, além do mais, ela tá se desenvolvendo muito bem, (...) é muito, muito esperta." (Valentina).

As mães falaram com facilidade sobre a alimentação dos bebês. Os cinco já aceitavam alimentação semissólida e sólida, e elas eram capazes de apontar as preferências alimentares e de brincadeiras, o que sugere que estava ocorrendo o estabelecimento da demanda e a inserção na ordem familiar.

"Ela come muito do que a gente come. (...) Ela gosta de maçã e de banana, mas cospe quando eu coloco melão. Ela come bem, puxou à mãe (risos)" (Ananda).

"Ela gosta também de ficar batendo essas peças grandes do Lego uma na outra. É o que ela mais gosta." (Valéria).

Os bebês dormiam em seus próprios quartos, a pedido dos maridos. Já diferenciavam também o dia e a noite, bem como tinham sinais da comunicação oral (balbucios ou primeiras vocalizações). Podemos entender que a introdução alimentar, as vocalizações (apesar de não ser possível afirmar se em todos os casos eram endereçadas), o respeito ao ciclo circadiano e a própria "lei" imposta para as crianças dormirem em seus quartos funcionavam como indícios da função paterna (FP), segundo os eixos do IRDI.

É possível concluir que os indicadores do IRDI, sugeridos para a faixa etária, estavam presentes, indicando que a relação mãe-bebê se estabelecia de modo positivo. Acreditamos que, apesar da dificuldade inicial no contato olho a olho, as díades ultrapassaram o aspecto visual, compreendendo que o olhar está para além da capacidade de ver, embora tenha o olho como órgão de sustentação. O olhar se liga ao tato, pois ambos têm uma mesma origem celular (Queiroz, 2007). Olhar, voz, tato e odor são objetos parciais que ativam o circuito pulsional.

Por fim, apresentamos um dado curioso: além do fato de que nos cinco casos foram as mães que inicialmente perceberam o estrabismo, quatro delas, com exceção de Paula, destacaram essa percepção no momento da amamentação, por volta dos três ou quatro meses do bebê. Nesse período, o bebê passa a sustentar o pescoço e a buscar por objetos, aproximando as mãos da linha média; é comum também fixar o olhar na mãe durante a alimentação, capturado pelo seu olhar, pois é o olhar da mãe que, no primeiro instante, atrai e fixa o olhar do bebê (Queiroz, 2007). Sabemos, desde Freud (1910/1996a, 1912/1996b, 1913/1996c), que uma das grandes preocupações do homem é não ficar cego, pois qualquer afetação da visão produz efeitos importantes na constituição da subjetividade, afinal a subjetivação se dá na relação especular (Lacan, 1949/1998). Portanto, o estrabismo infantil, como nos casos aqui analisados, pode envolver uma dimensão psíquica importante que não deve ser negligenciada.

 

Considerações Finais

Foram desenvolvidas reflexões sobre o olhar enquanto construção afetiva, com elementos que sugerem a sua participação na constituição subjetiva do bebê. As mães expressaram angústia, ansiedade, culpa e frustração diante do diagnóstico de estrabismo. A culpa pareceu representar uma tentativa de proteção ao filho, evitando o florescimento de outros sentimentos (como raiva) talvez mais difíceis de serem significados. O desejo de reparação apareceu direta e indiretamente, pois elas se mostravam empenhadas no tratamento, sobretudo da forma mais rápida possível, talvez em uma suposta diminuição do "dano" que sentiram ter causado ou estarem nele implicadas.

O modo como as mães lidaram com a ansiedade e com seus sentimentos negativos quanto ao estrabismo foi facilitado pelo acolhimento do especialista em oftalmologia, o qual parecia limitado à tentativa de aplacar a ansiedade materna via informações objetivas (esclarecimentos sobre o diagnóstico e as possibilidades de tratamento). Apesar desse acolhimento, as mães pareceram não encontrar espaço para falar sobre seus sentimentos com os profissionais de saúde, os quais possivelmente remeteram apenas às questões orgânicas, sem dedicar o olhar às dificuldades emocionais da mãe e da díade em interação.

Analisando as narrativas maternas com base no IRDI, observamos que os indicadores específicos por faixa etária, que apontam para os eixos da subjetivação infantil, estavam presentes, sugerindo que o desenvolvimento parecia positivo para a idade. Há que se valorizar nas consultas de pediatras e oftalmologistas os marcadores subjetivos e intersubjetivos na compreensão do estrabismo, a exemplo do IRDI, instrumento de fácil manejo pelos profissionais de saúde, voltando-se para a construção psíquica do olhar, escutando também as angústias e ambivalências maternas e paternas. Estimula-se que profissionais envolvidos com a primeira infância escutem esses relatos, buscando observar a qualidade da interação que indica o clima afetivo do par/tríade, base para a integração infantil. Porém, caso haja a ausência desse olhar, que possam indicar um profissional que atue com saúde psíquica.

O que a mãe parece buscar no olhar do bebê está ligado ao lugar que o seu inconsciente reserva para ele, tal como agenciador da especularidade. E, ainda que esta pesquisa não indique elementos de etiologia, o estrabismo pode envolver uma dimensão psíquica nas trocas iniciais que não deve ser negligenciada.

A epistemologia psicanalítica evidencia a impossibilidade de trazer respostas conclusivas, porém apresenta reflexões advindas dos relatos construídos e da relação transferencial desenvolvida em campo. Situamos, então, que o olhar é signo de um desejo que permanece uma incógnita. Assim, os resultados são conclusões provisórias produzidas pela diversidade de modos como as vivências singulares, constituintes da experiência subjetiva e da intersubjetividade que situou pesquisador e sujeitos.

Por fim, novos estudos podem explorar de modo longitudinal a compreensão da singularidade da interação desenvolvida no contexto do estrabismo, ponto que identificamos como limitação desta pesquisa.

 

Referências

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Edilene Freire de Queiroz
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Recebido em: 04/09/2020
Revisado em: 22/12/2021
Aceito em: 09/02/2022
Publicado online: 29/04/2022

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