Memória, registro e subjetividade: escritas de professoras1
Memory, record and subjectivity: teachers’ writings
Cleide NébiasI
Universidade São Marcos. Programa de Pós-Graduação em Psicologia
]]>
RESUMO
o objetivo deste artigo é relatar sobre o valor das narrativas retrospectivas, a partir de uma experiência de registros pessoais de situações vividas por um grupo de professoras. Os questionamentos propostos para as atividades de registro buscavam provocar reflexões sobre situações vividas, relacionando-as às suas perspectivas profissionais. Os registros produzidos Memórias foram analisados a partir das contribuições teóricas de Vygotsky, Bakhtin, Bosi, Ratner e Rubinstein.
Palavras-chave: Escrita, Formação, Ação-reflexão, Metacognição, Emoção.
ABSTRACT
this paper argues for the value of retrospective narratives. It is based on an experience of personal records of situations lived by a group of teachers. We have set several questions in order to provoke reflections on actually experienced situations so that they could record and relate them to their professional perspectives. The final record, called Memories, has been analyzed making use of the theoretical perspectives of Vygotsky, Bakhtin, Bosi, Ratner and Rubinstein.
Keywords: Writing, Formation, Action-reflection, Subjectivity, Metacognition, Emotion.
]]> Sim, sou eu mesmo, tal qual resultei de tudo... Quando fui, quando não fui, tudo isso sou... Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma... (Fernando Pessoa)
Introdução
No universo literário, expressivos escritores (Elias Canetti, Louis Althusser, Zélia Gatai, Pedro Nava, Garcia Marques, Graciliano Ramos, entre outros) fizeram de suas autobiografias obras preciosas e registro de época e de espaço, com seus valores e costumes.
Mas essas obras parecem resultar principalmente da necessidade de esses autores revisitarem suas lembranças, porque quem escreve sobre si tem condições de se conhecer melhor, uma vez que o registro, na forma de narrativa retrospectiva, permite a organização do pensamento, o resgate da memória e a reflexão sobre as histórias pessoais e condutas presentes.
Elias Canetti, prêmio Nobel de Literatura, menciona em sua autobiografia um episódio sobre sua formação de leitor literário e futuro escritor:
Alguns meses depois de meu ingresso na escola, aconteceu algo solene e excitante que determinou toda a minha vida futura. Meu pai me trouxe um livro (...). Tratava-se de As mil e uma noites, numa edição para crianças (...). Falou-me, de forma animadora e séria, de como era lindo ler. Leu-me uma das histórias; tão bela como esta seriam também as outras histórias do livro. Agora eu deveria tentar lê-las, e à noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando eu acabasse de ler esse livro, ele me traria outro. Não precisou dizê-lo que duas vezes, e embora na escola começasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o maravilhoso livro, e todas as noites tinha algo para contar. Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro e não tive que interromper minha leitura um dia sequer (1987, p. 50).
Já Zélia Gattai relembra seu ingresso na escola com uma narrativa que, ao entrelaçar o privado com o público, inclui uma geração de escolares:
]]> Um dia ouvi mamãe combinando com papai a minha ida para a escola (...). Eu estava com quase oito anos; havia aprendido todas as letras do alfabeto (...). Lia frases inteiras. Já está na hora mamãe dizia e repetia. Já passou até da hora. Dona Carolina mandou um recado ontem, quer saber se vamos deixar a menina continuar analfabeta para o resto da vida (...).
Realmente, ela não tinha pensado que passara o tempo de matricular sua filha na escola. A menina era tão sabida, aprendia com facilidade, sem ninguém ensinar... Quanto mais tarde fosse à escola, melhor: menos tempo de escravidão entre quatro paredes, de humilhações e castigos corporais aplicados pelas professoras, hábito da época: bolos nas mãos, puxões de orelhas, joelhos sobre grãos de milho ou de feijão atrás de uma porta (...). Havia o exemplo de Olguinha: no primeiro dia em que foi à escola assistiu ao espancamento de um colega. No dia seguinte recusou-se a voltar. Não queria arriscar, não estava disposta a suportar brutalidades. Havia um ano que dona Josefina pelejava para que a menina retornasse aos estudos, sem resultado. Olga começava a suar frio, sempre que falavam em escola, entrava em pânico. Cláudio também regressara várias vezes da aula, de orelhas vermelhas, joelhos inchados. Com Tito, acontecera chegar em casa trazido pelo servente da escola, seguro pela orelha (...).
Minha professora não batia nos alunos nem os punha de joelhos sobre o milho ou feijão; tentava manter a disciplina da classe utilizando-se de réguas mantinha sobre a mesa pelo menos uma dezena de réguas, todas enfileiradas que atirava na cabeça da criança faltosa, com uma técnica muito especial: segurava numa das pontas da régua, fazia pontaria e... jamais errava o alvo (2000, p. 300-304).
Na Educação e na Psicologia, os estudos sobre memória, por meio de relatos orais e escritos, de histórias pessoais e coletivas, têm possibilitado a compreensão das condutas dos sujeitos e dos grupos que as produzem. Nessas ciências também têm-se adotado as narrativas retrospectivas, para que os seus próprios autores reflitam sobre si mesmos.
No caso de professores, recuperar suas histórias tem como objetivo entender a construção de suas subjetividades e o sentido das permanências e das mudanças de suas práticas profissionais; mudanças e práticas que encontram pontos comuns quando essas histórias são socializadas, tornando-se histórias coletivas da profissão de professor.
Este texto trata de uma experiência com um grupo de professoras que realizaram registros pessoais de situações escolares vividas na infância e na adolescência, e de situações profissionais vividas ao longo da carreira. O objetivo é descrever e explicar o valor das narrativas retrospectivas como recurso metodológico de reflexão sobre a construção da subjetividade e da intersubjetividade: quem são esses professores e como construíram suas experiências profissionais, uma vez que suas práticas sintetizam um conjunto de componentes, que não incluem apenas os conhecimentos aprendidos durante a formação e o percurso profissional, mas também as próprias experiências escolares e familiares; experiências estas datadas, localizadas e marcadas por situações positivas e negativas.
Tratar de memória significa relacioná-la a outros aspectos da vida do sujeito, importantes para a própria existência e permanência da memória. Para Bosi, “a memória permite a relação do corpo presente com o passado, e ao mesmo tempo interfere no processo ‘atual’ das representações (...). A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (1994, p. 46)”. Lembrar e recordar é buscar significados da constituição de quem somos hoje; é também uma contribuição importante para a compreensão de nossas condutas.
Na teoria sócio-histórica de Vygotsky, a memória é abordada como um dos processos mentais superiores, que devem ser estudados como processos em movimento e em mudança, desenvolvidos e motivados pela interação social humana e, portanto, variando histórica e culturalmente. Essas variações ocorrem a partir dos conhecimentos, dos valores e das condutas organizadas socialmente, ou seja, a base dos processos de memória está na vida social do indivíduo.
]]> Pesquisas sobre os processos de memória (...) confirmam a discussão sóciohistórica de que eles, como todos os processos psicológicos, alicerçam-se na vida social real das pessoas. Não abrangem uma função mental isolada, mas dependem do conteúdo daquilo com que as pessoas lidam e da maneira socialmente estruturada pela qual lidam (Ratner, 1995, p. 82).
Para Oliveira (2001), a possibilidade de retenção e conservação de algo, bem como a possibilidade de reprodução pela memória, estão diretamente ligadas ao sistema de ações sociais a que a matéria está incorporada. No entanto, a autora destaca que embora os processos da memória sejam socialmente construídos e entendidos com base nas relações sociais, eles são particulares do sujeito, porque se realizam em seu pensamento e em suas ações e no modo pelo qual entram em relação com a pessoa que os retém, conserva ou reproduz. É o sujeito que reconstrói seu passado, moldando-o subjetivamente, mesmo que essa não seja a intenção.
Se a memória é resultante da mediação da vida social interiorizada, nessa mediação a linguagem verbal desempenha importante papel, uma vez que é a base do pensamento e se torna elemento principal na memória do adulto. No processo de reconstrução do passado a linguagem mobiliza o pensamento, e conteúdos que pareciam esquecidos são recordados. É interessante destacar que esses conteúdos, segundo Catani et al (1966), alternam ou têm a prevalência de uma memória concreta cronologias, acontecimentos cotidianos, lugares e nomes ou de uma memória abstrata acontecimentos mundiais, gerais.
Rubinstein (1967), descrevendo os processos que envolvem a memória, afirma que eles se constituem em processos específicos (retenção, recordação, reconhecimento, reprodução), nos quais o raciocínio acompanha a linguagem de modo complexo, e às vezes até contraditório.
Por outro lado, aquilo que não consegue configurar-se verbalmente não se reconstrói, perde-se na memória “uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece na sombra” (Vygotsky, 1984, p. 131).
É importante considerarmos, também, que na mobilização da memória para a reconstrução do passado, outros processos mentais superiores estão presentes, uma vez que a memória está sempre impregnada pela emoção, pela imaginação, pela atenção e pelo interesse.
Dando voz às professoras
A experiência aqui relatada fez parte de um programa de educação continuada desenvolvido pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, em parceria com três universidades do mesmo estado duas universidades públicas e uma confessional , entre julho de 2001 e dezembro de 2002. O programa graduou para o magistério das séries iniciais aproximadamente seis mil e quinhentos professores efetivos e estáveis da rede pública estadual, com longa experiência docente, mas até então com formação de magistério de nível médio.
O programa, planejado e desenvolvido pelos parceiros, definiu entre as modalidades metodológicas a escrita de Memórias pelos alunosprofessores, ou seja, relatos auto-biográficos de formação. Essa atividade foi incluída em onze momentos que marcavam o início ou encerramento dos temas de conteúdo abordados durante a formação.
]]> O objetivo das atividades de escrita foi a constituição de registros de memórias individuais e coletivas sobre os mesmos objetos, as mesmas matérias, provocando reflexões sobre situações vividas, permitindo aos alunos-professores refletirem sobre suas práticas.Após um primeiro momento, no qual se discutiu o sentido dessas atividades, os alunos-professores, a partir de imagens, músicas, poesias, crônicas, vídeos, perguntas, eram convidados a escrever. As escritas foram desde a vida escolar e familiar até a formação e prática docente, e incluíram: o ingresso na escola; os professores e colegas que tiveram; como aprenderam a ler e contar; as aulas das diferentes disciplinas; as avaliações; como se viam em diferentes momentos; como eram vistos pelas professoras, pelos colegas e pelos pais, contrapostas às primeiras experiências como professor; e as reflexões sobre as situações e emoções atuais. Assim, por exemplo, ao se submeterem à prova escrita sobre o conteúdo do primeiro módulo do Programa e receberem os resultados da avaliação, propôs-se uma atividade de Memórias. Para essa atividade adotou-se como recurso a ilustração de uma cena, na qual o desenhista e ilustrador americano Norman Rockwell se auto-retrata em uma tela, ao mesmo tempo em que se olha no espelho. Presos à tela há esboços de si e cópias de auto-retratos de pintores famosos (Van Gogh, Picasso, Rembrandt). A ilustração mostra o artista de costas, sua imagem refletida no espelho e na tela, evidenciando a diferença entre elas, já que ele se pinta mais jovem. Na atividade era solicitado aos alunos-professores o deslocamento de seu papel de professor para suas recordações de aluno avaliado, contrapostas às reflexões sobre seu papel atual e as situações de avaliação que propõe a seus alunos. As instruções foram: como me vejo como avaliador; como fui e como sou avaliado; como avalio os meus alunos.
Os relatos escritos de cada aluno-professor foram organizados e reunidos em um “album”.
Para o presente artigo foram analisadas as produções consentidas das Memórias de cinco professoras, escolhidas entre outras porque expressam o grande envolvimento nas escritas. Seus álbuns continham registros escritos e fotos atuais alternados com escritos e fotos antigas. Os relatos enredam histórias pessoais de avós, pais, irmãos, namorados, maridos, filhos e netos com suas histórias escolares e profissionais. Retiramos alguns excertos, que a nosso ver, atendem ao objetivo proposto, organizando-os em categorias conforme segue.
Memória e emoção
Os acontecimentos passados são retidos de formas distintas porque são marcados pelo sentido emocional a eles atribuído. Esse sentido pode estar no passado ou nas situações atuais especiais. É possível reter melhor o material de tom emocional mais significativo que o material emocionalmente indiferente.
Naquela época a escola servia lanche só às sextas-feiras, era chá com bolinhos fritos. Penso que se fechar os olhos, chego a sentir o cheiro do chá e dos bolinhos... (Tina).
Lembro-me de muitas revistas e livros que circulavam em minha casa. Meus pais sempre gostaram de ler e tenho três irmãos mais velhos que já estavam na escola. Recordo que tentava ler o desodorante Cashemire Bouquet toda vez que estava no banheiro, e ler a marca da geladeira Westinghouse. Curiosamente esses nomes eram de origem estrangeira e difíceis de serem lidos, mas mesmo assim eu conseguia ler... Fui estimulada à leitura pela minha família. Lia livros de histórias bíblicas, revistas, periódicos, gibis etc. Sentava num cantinho lá de casa, no quintal, no sofá, na cama, e lia. Não consigo me lembrar de minha professora me estimular a ler e não sei se ela gostava de ler (Nadir).
]]> De modo geral eu me sentia tranqüila e segura em dias de provas. Eu sempre fui muito diligente em relação às minhas obrigações, prestava atenção às aulas, participava, tive bons professores, e sabia o que esperavam de mim, inclusive nas avaliações. Tive boas lembranças de avaliações (Tina).
Para Rubinstein (1967), um acontecimento que perde sua atualidade e permanece como passado é facilmente esquecido. No entanto, o excerto abaixo mostra que se ele provoca dor, pode ser negado, mas não esquecido.
Permaneci durante nove anos na escola em que escolhi trabalhar. Com a reorganização, a escola ficou atendendo alunos de quinta a oitava série. Então fui escolher classe... Este capítulo me recuso a escrever... (Sara).
Rubinstein também afirma que:
Ao relembrar, se nos parece que o esquecido nos ocorre, extraímos e comprovamos, a partir destas funções e conexões, se nos ocorre o que queríamos recordar, baseados na maneira como o reproduzido na memória se adapta a tais conexões. Identificamos o reproduzido com a memória do buscado ou o rechaçamos, porque não é o que queríamos recordar. Para isso nos apoiamos extensamente em um determinado contexto de significados, do qual parte a recordação (1967, p. 327-328).
Não imaginei que uma das etapas para a conclusão do curso seria resgatar do subconsciente o meu passado e, conseqüentemente, relatá-lo a alguém desconhecido, que automaticamente, e talvez sem intenção nenhuma, me julgaria de forma errônea. Não adianta lamentar. Só resta pensar e escrever. Como é difícil lembrar, e mais difícil ainda escrever. As idéias se confundem e poucas coisas da minha infância na escola são lembradas. Sei de coisas que a minha mãe contou, que acredito deixaram marcas em mim e fugiram do meu consciente. Foram apagadas ou escondidas no subconsciente (Mirtes).
Passado e Presente
]]> A recordação envolve alto grau de consciência porque implica em que a pessoa tome o passado como passado (Rubinstein, 1967). Por sua vez, os acontecimentos do passado não são lembrados de forma cristalizada. Eles podem ser reconstruídos e re-significados muitas vezes e com visões novas, reais e imaginárias. Seus rearranjos, suas reconstruções, orientam as ações presentes.Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado (...). A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão agora à nossa disposição no conjunto das representações que povoam nossa consciência atual (Bosi, 1994, p. 55).
Terminei o curso ginasial em 1975 e já tinha resolvido que faria o curso Magistério; hoje sei que era realmente o que eu queria e não me arrependo por ter optado em ser professora... Às vezes fico pensando como é difícil pedir a alguém, com apenas quinze anos, que decida o que é melhor; hoje sei que tomei a decisão certa em ser professora, mas na época não tinha noção do que realmente significava ser professora (Tina).
A escrita das Memórias provocou várias reações em mim também, assim como em todas as colegas, algumas foram boas de se escrever e outras não, por mexer com algumas coisas tão bem guardadas no inconsciente, porém considero que só me fez bem no final, pois pude mudar o meu olhar para algumas situações e superar algum sentimento, como por exemplo, um rancorzinho que tinha da minha professora da segunda série do primário. Hoje vejo que ela até me fez bem, pois me mostrou a professora que “nunca” quis e nem quero ser para meus alunos (M. Ângela).
Aos 34 anos de vida sei que ainda poderei acumular muitas vivências que se tornarão memórias, mas escrever as que já vivi foi para mim um desafio. No entanto, eu senti que o processo de escrita das Memórias foi muito interessante, não só pelo fato de recordar vários detalhes que não julgava serem tão importantes, mas em especial pela oportunidade de evocar fatos do passado sob um prisma diferente, com a visão que tenho hoje, misturando emoções com críticas (Nadir).
Realizar este trabalho de Memórias, no qual pude reviver momentos da minha vida, foi muito significativo. Tive oportunidade de refletir sobre muitos acontecimentos da minha vida e foi muito interessante ver como mudei durante este percurso, e como diz o poeta: “o importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam” (Guimarães Rosa) (Tina).
O enredamento entre passado e presente, também foi expresso como passado de tristes lembranças e um presente no “contrapelo”; isto porque a maioria das professoras freqüentou a escola em um período no qual a concepção tradicional de educação marcava as práticas pedagógicas. Hoje as contestações a essa concepção, quer pela experiência lembrada, quer pelas reflexões possibilitadas pelos novos conteúdos científicos, provocam posturas distintas em relação às experienciadas.
A partir das lembranças que tenho das aulas de matemática, como aluna, posso dizer que minhas experiências sempre foram negativas e muitas vezes significaram uma baixa da auto-estima. Um dos motivos que me levaram a optar pelo curso do Magistério foi a ausência de Matemática. Noto muita diferença entre o ensino de matemática que tive como aluna e o que proponho, agora, na situação de professora, que é a Matemática sem medo (M. Ângela).
]]> Durante uma prova de Matemática a professora achou que eu estava colando (imagine, se nem podíamos nos mexer na cadeira), me bateu na cabeça e o meu nariz começou a sangrar... Este fato serviu como exemplo de como hoje agir com os meus alunos (Mirtes).As memórias acordaram fatos da minha vida escolar que estavam dormindo faz tempo. Até relembrando tudo, me fez entender porque sou tão preocupada com o lado humano dos meus alunos, não quero que nenhum fique sem minha atenção, é porque foi o que me faltou na escola: aquelas professoras todas tradicionais, apenas “davam” a matéria (M. Ângela).
A minha professora alfabetizadora foi a dona Tahís, com a cartilha “Caminho Suave”, e no término desta, ganhamos o livro “Sodré”... No meu tempo de escola, minhas professoras não nos incentivavam a outros tipos de leitura além do livro didático... o professor deve despertar nos alunos o gosto pela leitura através dos contos, das histórias infantis, dos provérbios, dos assuntos da atualidade e levá-los ainda ao contato com a escrita nos diferentes contextos... (Nadir).
A prova nessa época era algo excludente mesmo, e muito traumática... Essa forma tão arbitrária não leva a lugar nenhum, a não ser deixar marcas em sua trajetória como aluno. Avaliação escolar, para mim, sempre foi angustiante, pois me sinto horrível quando estou sendo “testada”, como se fosse uma fórmula. Esta situação (a avaliação no Programa) não se assemelha a situações anteriores de avaliação que passei, porque hoje me sinto mais madura, e com isto mais segura (Sara).
As professoras pesquisadas relataram, principalmente, acontecimentos do passado, vividos na escola como situações negativas. São poucos os registros que tomam no presente a mesma direção do passado.
Eu sempre que penso em mim como aluna de Matemática, tenho boas lembranças de bons professores e de aprendizado sem dificuldades. Acredito que em função disso gosto de ensinar Matemática aos meus alunos (Nadir).
Recordar e escrever Memórias. Há construção de novos sentidos?
Para Rubinstein, o tempo pode tornar a reprodução dos acontecimentos mais completa e perfeita do que no período imediatamente após os mesmos. Esse autor chama de reminiscência a forma de reconstrução do passado, que se caracteriza por ser melhorada com o tempo. A reminiscência é uma memória mais completa, marcada pelo aperfeiçoamento que o tempo lhe impõe. Apresenta-se com mais facilidade quando seu conteúdo traz uma sucessão de acontecimentos, é submetida a um plano lógico, é do interesse e do domínio do sujeito. Nesse sentido, os acontecimentos da própria vida estão bastante sujeitos às reminiscências, uma vez que podem ser organizados em seqüências lógicas ou cronológicas e apresentam interesse por expressarem a própria história do indivíduo, e por isso são de seu inteiro domínio (Oliveira, 2001).
]]>O trabalho de Memórias permitiu que eu me olhasse no espelho de forma que eu enxergasse o interior do meu eu, e também fazer uma reformulação em alguns conceitos, que hoje me fazem mais “bonita” (M. Ângela).
Os acontecimentos surgem na nossa memória, porém transcrevê-los fica mais complicado quando não temos esse hábito. No entanto, o fato de buscar o passado e trazê-lo para o presente, me faz repensar e reconstruir muitas imagens e idéias através do amadurecimento da nossa própria expectativa de vida (Mirtes).
Ao final, os alunos-professores foram solicitados a opinarem sobre o programa, e em relação às Memórias alguns assim se expressaram:
]]>Esse curso tem sido muito bom para mim... por me fazer pensar sobre coisas passadas, em escolhas que fiz, no que vivi e que até hoje me marcam.
Tanta coisa importante para a gente estudar, e tem que ficar perdendo tempo com estas memórias.
Relembrar machuca muito.
Eu gostei porque eu gosto de ler e de escrever, e principalmente porque eu gosto de relembrar o passado: você deixa registrado e também vê o quanto você cresceu. Você vê, por exemplo, não parece a mesma pessoa que escreveu as minhas Memórias 1 e 5. A forma que eu estava escrevendo estava diferente. E eu falei: “Eu não vou refazer, vou deixar assim. Quem ler, vai ver assim, diferente”.
Menina, eu preciso ver onde minhas memórias andam. Eu vim me soltar agora, fazer redação... eu tinha medo... Faço agora, aqui... Hoje vim pensando no caminho: “Por que a gente guarda mais as coisas ruins do que as boas?”.
A dúvida não respondida
Os escritos individuais dessas professoras e a história coletiva da vida escolar, possível de ser construída a partir dos registros e das discussões que provocaram entre os alunos-professores, permitem-nos afirmar que suas histórias escolares são, predominantemente, negadas como práticas pedagógicas adequadas. Seus escritos expressam um desejo de superarem os problemas identificados e de atuarem com competência e afetividade. Suas práticas caminham nesta direção?
Referências Bibliográficas
BOSI, E. (1994). Memória e sociedade: lembranças de velhos. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
CANETTI, E. (1987). A língua absolvida. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
CATANI, D.; BUENO, B.; SOUSA, C.; SOUZA, M.C. (1996). Memória e autobiografia: formação de mulheres e formação de professoras. Revista Brasileira de Educação. mai-ago. São Paulo: ANPEd. (2): 61-76. [ Links ]
GATTAI, Z. (2000). Anarquistas, graças a Deus. 30. ed. Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
OLIVEIRA, M.H.P. (2001). Lembranças do passado: a infância e a adolescência na vida de escritores brasileiros. São Paulo: EDUSF. [ Links ]
RATNER, C. (1995). A psicologia sócio-histórica de Vygotsky: aplicações contemporâneas. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
RUBINSTEIN, S.L. (1967). Princípios de psicologia general. México: Grijalbo. [ Links ]
VYGOTSKY, L. (1984). A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Endereço para correspondência
Cleide Nébias
Rua dos Miranhas, 240 Alto de Pinheiros
5434-040 São Paulo/SP
Tel.: (11) 3813-5997 ]]>
E-mail: cleide.nebias@smarcos.br
recebido em 15/08/05
versão revisada recebida em 28/11/05
aprovado em 13/12/05
Notas
I Doutora em Ciências da Comunicação (ECA/USP); Professor a do Programa de Pós-graduação em Psicologia (Universidade São Marcos).
1 Pesquisa financiada pela Universidade São Marcos.