Pré-Natal Psicológico: perspectivas para atuação do psicólogo em Saúde Materna no Brasil
Prenatal Psychology: perspectives for psychologist practice in Maternal Health in Brazil
Alessandra da Rocha Arrais1,I; Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira de Araujo2,II
ISecretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, DF, Brasília
IIUniversidade de Brasília, DF, Brasília
RESUMO
No cenário brasileiro contemporâneo, é crucial propor e avaliar programas destinados ao acompanhamento pré-natal de gestantes. Sendo assim, o presente artigo relata uma modalidade de intervenção psicoeducativa realizada no âmbito hospitalar. Denominada Pré-Natal Psicológico (PNP), trata-se de uma prática – complementar ao pré-natal biomédico – voltada para o atendimento psicológico das gestantes, a qual também estimula a integração de seus familiares nos cuidados desenvolvidos ao longo do ciclo gravídicopuerperal. Notadamente, as ações envolvem encontros grupais temáticos (por exemplo: preparação para maternidade e prevenção da depressão pós-parto). Inicialmente organizado na esfera pública, o PNP é um programa de baixo custo que tem sido avaliado positivamente por usuários e profissionais. Experiências no setor privado também vêm sendo conduzidas, as quais revelam a amplitude desse programa. Em suma, uma descrição detalhada das sessões do PNP visa oferecer subsídios para a atuação do profissional de psicologia que integra uma equipe multiprofissional no campo da Saúde Materna.
Palavras-chave: pré-natal; intervenção; saúde materna; psicologia hospitalar; psicoeducação.
ABSTRACT
In the Brazilian scenario, it is crucial to propose and assess programmes aimed at prenatal care of pregnant women. A modality of psycho-educational intervention called Psychological Prenatal (PNP) is reported in this article. It concerns a service – complementary to the clinical prenatal – related to the psychological care of pregnant women, which also encourages integration of their families into the care given throughout the pregnancy and postpartum cycle. Actions involve thematic group meetings (e.g.: preparation for maternity and prevention of postnatal depression). PNP is a low cost programme that has been positively assessed by users and professionals, which was initially organised within the public sector. Experiences within the private sector that reveal the amplitude of the programme have also been carried out. A detailed description of PNP sessions aims at providing elements for the performance of the psychologist who is part of a multi-professional team in the field of Maternal Health.
Keywords: prenatal; intervention; maternal health; health psychology; psychoeducation.
]]> Introdução
Na atualidade, ainda que conhecimentos biomédicos e tecnológicos sejam usualmente empregados ao longo da experiência da maternidade, as vivências desencadeadas – desde a concepção até os meses subsequentes ao parto – revestem-se de intensos e contraditórios afetos sustentados por crenças pessoais, familiares, sociais e culturais. De fato, a medicalização tende a ser progressiva nessa etapa do ciclo vital, particularmente quando se projetam repercussões tanto para a mulher quanto para o futuro bebê. Cabe realçar que ameaças suscitadas por variadas causas, incluindo-se aquelas relacionadas a condições sanitárias básicas, continuam a se perfilar, mesmo que inúmeros danos e agravos tenham sido superados no campo da Saúde Materna. No cenário brasileiro contemporâneo, os diferentes níveis de governança confrontam-se com as possíveis consequências advindas da contaminação viral na população de gestantes: investiga-se a associação do vírus Zika com a microcefalia dos fetos e ainda não se analisaram suas inflexões no setor da Saúde da Criança, durante a próxima década. Então, ao desafio humano de fecundar, gerar e fazer desenvolver, se sobrepõem outros conflitos e sofrimentos, uma vez mais naturalizados por limitações psicossociais. Persiste como meta crucial da área propor e avaliar programas destinados ao acompanhamento pré-natal de mulheres que engravidaram, notadamente no que concerne às usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) e seus familiares. Assim, este artigo focalizará os programas executados, dando ênfase às ações propostas pelo "Pré-Natal Psicológico".
Políticas e programas em Saúde da Mulher no Brasil
No Brasil, em uma revisão sobre políticas e programas desenvolvidos pelo Ministério da Saúde desde o Estado Novo, Cassiano, Carlucci, Gomes e Benneman (2014) reconheceram como marco significativo a implementação, na década de 1980, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), no qual se destacavam ações voltadas para os períodos do pré-natal, parto e puerpério. Porém, em função dos seus limites, foi lançado em 2000 o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) com o propósito de oferecer um acompanhamento mais centrado nas necessidades das gestantes. Para essas autoras, deve ser igualmente citada a Lei no. 11.108, de abril de 2005, que assegura à parturiente a presença de um acompanhante. Chamam atenção ainda para:
Acompanhamento pré-natal: intervenções para o cuidado integral da mulher
]]> Programas sistemáticos de acompanhamento durante a gestação e o puerpério são essenciais para consolidação e aprimoramento das políticas de saúde no setor. Organizadas na atenção básica ou em centros especializados, tais intervenções precisam ser difundidas e compartilhadas no território nacional para análise, avaliação e adaptações às exigências locais e temporais. No Distrito Federal, oficinas socioeducativas são desenvolvidas com mulheres residentes em um setor habitacional da Ceilândia (DF), classificado como aglomerado subnormal em razão das precárias condições sociais e sanitárias. Esse trabalho de acompanhamento em nível comunitário conta com a participação de mulheres dos movimentos sociais para sensibilização e adesão de gestantes com acesso restrito a serviços qualificados. Grupos de orientação são organizados com o objetivo principal de garantir a participação ativa e o "empoderamento" das mulheres grávidas (Barbosa, Araujo, & Escalda, 2015).Nas unidades de saúde, amplia-se a oferta de serviços em consonância com as diretrizes atuais. Todavia, muitas ações privilegiam a dimensão biológica, perpetuando um modelo tradicional de atendimento, em que aspectos psicossociais não são suficientemente tratados. Diante das limitações decorrentes dessa modalidade de pré-natal, a equipe de psicologia de uma maternidade privada de Brasília implantou um programa de cuidado integral em 2006. Desde então, foram realizados 13 grupos de gestantes com número diferenciado de sessões e de participantes. Progressivamente, essa proposta foi estendida a comunidades carentes e gestantes de alto risco, sendo executada em postos de saúde, maternidades públicas e hospitais universitários da cidade e do entorno (Arrais, Cabral, & Martins, 2012; Arrais, Mourão, & Fragalle, 2013; Bortoletti, 2007).
Denominado Pré-Natal Psicológico (PNP), esse acompanhamento prevê grupos psicoeducativos sobre gestação, parto e pós-parto, os quais propiciam suporte socioemocional, informacional e instrucional. O programa mais longo contabilizou 21 sessões semanais e o mais breve cinco sessões quinzenais. Uma média de seis a sete sessões mostrou-se adequada para cumprir seus propósitos. A duração das sessões variou de duas a cinco horas. A frequência de participação das gestantes oscilou de uma a 18 sessões, dependendo da especificidade e disponibilidade de cada grupo. A seguir, serão detalhados elementos primordiais da estruturação e do funcionamento desse programa.
Pré-Natal Psicológico: possibilidades para atuação com gestantes e seus familiares
Trata-se de um programa aberto, ou seja, novas adesões podem ser feitas no decorrer de uma sessão. Não se estabelece número limitado de sessões: as gestantes podem participar durante o período que desejarem ou até o nascimento do bebê. Cada sessão semanal dura em torno de duas horas e focaliza temas e objetivos específicos, indicados pela equipe ou gerados pelo grupo. No que diz respeito à fase de gestação, os grupos possuem uma composição heterogênea. Pais e avós são convidados a participar para conscientização acerca da importância dos familiares. Nessa ocasião, dificuldades, dúvidas e expectativas são discutidas. Adotam-se técnicas de dinâmica de grupo, aulas expositivas e debates. Os participantes não arcam com gastos adicionais, pois esse atendimento está incluído na rotina de cuidados da equipe. Para realização das sessões, são necessárias cadeiras adequadas para gestantes. Em local apropriado, costuma-se armazenar: folders para divulgação do programa, colchonetes, bola fisioterapêutica, equipamentos audiovisuais, materiais educativos (ex.: cartazes, revistas, jogos, cartilhas, livros, vídeos e DVDs) e materiais de consumo (ex.: cópias de material impresso, papéis, lápis, cola, tesoura e lanches adequados para gestantes). De acordo com as características dos grupos, desenvolvem-se os temas. Para tanto, incentiva-se a participação ativa das gestantes no processo grupal. Com base no modelo de Afonso (2003), cada sessão é ordenada a partir dos seguintes parâmetros: tema gerador, objetivos, recurso instrumental, procedimentos e tarefa para casa. É importante explicitar que a sequência dos encontros apresentada neste artigo é ilustrativa, pois os grupos imprimem seu próprio ritmo de evolução.
Sistematização e planejamento do PNP
1º Encontro
Temas geradores: criando laços de identificação, contrato de grupo e parto.
Objetivos: promover contato inicial entre participantes, gerando integração e pertencimento grupal. Propiciar acolhimento e conhecer as expectativas em relação ao grupo. Discussão das expectativas e dos medos em relação ao parto.
]]> Recursos instrumentais: dinâmica de integração. Reprodução de filme.Procedimentos:
2º Encontro
Temas geradores: tipos de parto, dor e plano de parto.
Objetivos: acolhimento de novos participantes. Firmar contrato com o grupo.
Recursos instrumentais: utilização de textos e vídeos, colchonetes, data show.
Procedimentos:
3º Encontro
Tema gerador: a construção da maternidade e da paternidade.
Objetivos: levantar e questionar preconceitos, mitos e crenças relacionados à maternidade e paternidade. Refletir sobre a importância da qualificação do papel dos pais na maternidade. Fornecer esclarecimentos adicionais sobre gestação.
]]> Recurso instrumental: técnica de recorte e colagem.Procedimentos:
4º Encontro
Tema gerador: a participação das avós: a maternagem transgeracional.
Objetivos: refletir sobre as mudanças ocorridas na maternidade de uma geração para outra. Observar a interação das gestantes com suas mães/sogras. Esclarecer quanto à participação das avós.
Recursos instrumentais: folhas e canetas.
Procedimentos: apresentação das avós e estabelecimento dos grupos de avós e de gestantes em ambientes distintos.
Grupo das avós
Grupo com gestantes
Tarefa para casa: preencher ficha "O que nunca me contaram sobre ser mãe" e ler o texto produzido, discutindo-o com as respectivas avós.
5º Encontro
Tema gerador: depressão Pós-Parto (ou Depressão Periparto).
]]> Objetivos: identificar o grau de conhecimentos das mães e sua capacidade de reconhecer sintomas. Divulgar mais informações.Recurso instrumental: técnica de associação de ideias sobre a maternidade e depressão.
Procedimentos:
6º Encontro
Tema gerador: preparação para o pós-parto.
]]> Objetivos: reforçar competências maternas para cuidados do bebê.Orientações sobre amamentação. Esclarecer e orientar sobre sexualidade após o parto.
Recursos instrumentais: bonecos, roupas de bebê, seios de pano e conchas para amamentação.
Procedimentos:
7º Encontro
Tema gerador: avaliação do trabalho e encerramento.
Objetivos: autoavaliação de cada gestante. Avaliação do programa vivenciado. Despedida dos participantes do grupo.
Recursos instrumentais: Lanche.
Procedimentos:
Evidentemente, essa programação básica pode ser adaptada ao público-alvo. Aliás, frente ao crescimento da demanda, algumas iniciativas já foram empreendidas em contextos de atendimento variados, tais como: hospitais públicos, com uma população de baixa renda e pouca escolaridade; hospitais e/ou consultórios particulares; com gestantes de alto risco (por exemplo, em casos de Doença Hipertensiva Específica da Gestação (DHEG), diabetes, incompetência ístimo cervical e cardiopatias); com vítimas de violência sexual e incesto; em casos de gestação de risco habitual; e com mulheres que manifestam depressão e ansiedade gestacional.
Tendo em conta o cenário atual, entende-se que esse acompanhamento é imprescindível para que as gestantes e os membros da sua rede social desenvolvam estratégias destinadas ao enfrentamento dos estressores socioambientais e emocionais. Em síntese, o suporte socioemocional, informacional e instrucional fomentado pelo PNP pode contribuir para o bemestar das usuárias, além de favorecer a avaliação de sintomas de ansiedade e de depressão. Tal como apontado na literatura especializada, ações grupais – inclusive aquelas institucionalizadas na área de saúde – revelam-se "continentes" para vivências paradoxais, permitindo ressignificações e manifestação de desejos de maternidade diversos (Araujo & Negromonte, 2010; Azevedo & Arrais, 2006; Cruz, Simões, & Faisal-Cury, 2005; Klein & Guedes, 2008).
Ao se avaliar o PNP, a partir dos relatos feitos pelas participantes dos grupos já concluídos, verifica-se uma percepção bastante favorável. Seguemse alguns trechos ilustrativos (nomes fictícios são aqui empregados para preservar o sigilo de suas identidades):
"Aqui vocês puderam me ajudar, me aconselhar. Se não fosse vocês, eu acho que não teria dado conta só. Nos momentos bem difíceis da minha vida me ajudou sim, bastante mesmo" (Sofia).
"Durante a gestação se eu tivesse passado aqui sozinha, sem o apoio de vocês, sem alguém pra conversar, me acalmar, me ajudar, eu não tinha conseguido" (Francisca).
"Sempre depois que eu conversava com vocês, eu me acalmava, eu conseguia pensar e me centrar, e lembrar que eu estava aqui não por mim, mas pelo meu filho. Foi ótimo eu ter vocês!" (Maria das Dores).
]]>Considerações finais
O PNP é um programa de baixo custo que pode ser desenvolvido nos setores público e privado. Associando-se às práticas biomédicas de acompanhamento, possibilita um cuidado integral à mulher e ao seu bebê, prevenindo doenças e promovendo saúde. Desse ponto de vista, defende-se a qualificação contínua das equipes especializadas, notadamente em relação às dificuldades inerentes à maternidade, além daquelas desencadeadas por transtornos físicos ou psíquicos. Certamente, em razão da sua formação, o profissional de psicologia tem um papel central no desenvolvimento desse trabalho.
Referências
Afonso, L. (2003). Oficinas em dinâmica de grupo na área da saúde. Belo Horizonte: Edições do Campo Social. [ Links ]
Arrais, A. R., Cabral, D. S. R., & Martins, M. H. F. (2012). Grupo de pré-natal psicológico: Avaliação de programa de intervenção junto a gestantes. Encontro: Revista de Psicologia, 15(22), 53-76. [ Links ]
Arrais, A. R., Mourão, M. A., & Fragalle, B. (2013). O pré-natal psicológico como programa de prevenção à depressão pós-parto. Revista Saúde e Sociedade, 22(3), 251-264. [ Links ]
Araujo, T. C. C. F., & Negromonte, M. R. O. (2010). Equipe de saúde: vinculação grupal e vinculação terapêutica. In M. H. P. Franco (Ed.), Formação e rompimento de vínculos: o dilema das perdas na atualidade (pp. 73-100). São Paulo: Summus. [ Links ]
Azevedo, K. R., & Arrais, A. R. (2006). O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-parto. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(2), 269-276. [ Links ]
Barbosa, L. M. M., Araujo, T. C. C. F., & Escalda, P. (2015). Tecnologias sociais em saúde: contribuições para redução da mortalidade materna e infantil em Ceilândia, DF. In M. I. Gandolfo, M. I. Tafuri, & D. S. Chatelard (Eds.). Psicologia Clínica e Cultura Contemporânea 2 (pp. 360-376). Brasília: Technopolitik. [ Links ]
Bortoletti, F. F. (2007). Psicologia na prática obstétrica: abordagem interdisciplinar. Barueri, São Paulo: Manole. [ Links ]
Cassiano, A. C. M., Carlucci, E. M. S., Gomes, C. F., & Benneman, R. M. (2014). Saúde materno infantil no Brasil: evolução e programas desenvolvidos pelo Ministério da Saúde. Revista do Serviço Público, 65(2), 227-244. [ Links ]
Cox, J., & Holden J. (2003). Perinatal mental health: A guide to the Edinburgh Postnatal Depression Scale (EPDS). London: Royal College of Psychiatrists, Gaskell. [ Links ]
Cruz, E. B. S., Simões, G. L., & Faisal-Cury, A. (2005). Rastreamento da depressão pós-parto em mulheres atendidas pelo Programa de Saúde da Família. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, 27(4), 181-188. [ Links ]
Klein, M. M. S., & Guedes, C. R. (2008). Intervenção psicológica a gestantes: Contribuições do grupo de suporte para a promoção da saúde. Psicologia: Ciência e Profissão, 28(4), 862-871. [ Links ]
1 Psicóloga Hospitalar da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), Docente do Programa de Mestrado Profissional da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS) da FEPECS/SES-DF, Pesquisadora da Fundação de Apoio à Pesquisa do DF (FAPDF), Doutora pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-Doutoranda no Programa de Psicologia Clínica e Cultura (UnB). E-mail: alearrais@gmail.com. ]]> 2 Professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, Doutora pela Université de Paris X - Nanterre, Pós-Doutora pela Unesco (França) e Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: araujotc@unb.br.
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