Do construtivismo à figuração do desvario pulsional: Ivan Serpa no CCBB*
From constructivism to the figuration of drive disorder: Ivan Serpa at CCBB
Del constructivismo a la figuración del trastorno del impulso: Ivan Serpa en CCBB
Du constructivisme à la figuration du trouble de la pulsion: Ivan Serpa au CCBB
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Psicanalista. Profa. do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ). Bolsista de produtividade do CNPq e da Funadesp. E-mail: betty.fuks@gmail.com
Não é sempre que o Rio de Janeiro tem o privilégio de expor a obra de um filho pródigo considerado, no Brasil e no exterior, um dos maiores artistas plásticos da modernidade. Nascido no bucólico bairro do Méier, o jovem Ivan Serpa encontrou no Museu de Arte Moderna, no início da metade do século XX, um espaço hospitaleiro ao desejo de criação artística e de transmissão. O MAM, marco da arquitetura moderna brasileira, de hospedeiro, aos poucos, também se tornou hóspede da genialidade de Serpa que, como professor da escola de Artes do museu, criou ateliers e cursos livres de pintura, além de uma escolinha de artes para crianças.
Foi nessa atmosfera criativa e abençoada pelo esplendor da baía de Guanabara e pela exuberância dos jardins de Burle Marx espraiados ao longo do Aterro do Flamengo, que o pintor, desenhista e gravurista soube transmitir a muitos de seus jovens alunos, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Franz Weissmann e Aluízio Carvão, o amor à arte. Todos eles alcançaram um lugar expressivo na vanguarda artística brasileira do século XX. Mas a verdade é que os frutos da transmissão atravessam as gerações. No século XXI, algumas das crianças que tiveram a sorte de frequentar as aulas de Serpa no museu, tornaram-se artistas plásticos de primeira grandeza; a ceramista Alice Felzenszwalb, conta que, quando menina, nos anos sessenta, se encantava com as aulas e os desenhos do professor que exerceu e exerce, até hoje, uma grande influência sobre o seu trabalho.
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Decerto, como testemunha Ferreira Gullar num vídeo sobre a vida e a obra de Serpa, o "lado educador", "lado formador" do artista foi tão forte quanto sua relação com a pintura. Arriscando-se sempre a viver uma nova experiência artística, Ivan Serpa, criador de uma obra extensa e múltipla, sabia exercer o dom da transmissão com fé e paixão, permitindo que cada aluno pudesse conquistá-la de modo subjetivo, único.
A atual retrospectiva da vida de Ivan Serpa, sob a curadoria de Marcus de Lontra Costa e Hélio Márcio Dias Ferreira, exibe 200 obras do artista espalhadas nos salões do majestoso Centro Cultural Banco do Brasil. Em cada um deles, é reservado ao espectador um encontro com as diferentes fases de criação do artista. Aos poucos, atravessamos em retrospectiva, num misto de perplexidade e encantamento, o universo múltiplo e plural de Serpa. A obediência dos curadores ao tempo cronológico funciona como uma bússola que norteia a produção inconsciente do artista. Uma marca importante, sem dúvida, pois revela que a subjetividade em jogo nas diferentes épocas de produção não escapa de estar subsumida ao invisível e ao que não tem nome nem nunca terá, a fonte inesgotável do dom artístico.
No primeiro dos salões, a produção dos anos de 1950 faz jus ao que reconhecem críticos e estudiosos na obra de Serpa: marco da estética construtivista no Brasil. As telas desse período ecoam o movimento abstracionista moderno. Cada uma delas testemunha a opção singular do artista em sua determinação de aderir às formas geométricas e ao estilo de pintura extremamente colorido da pintura abstrata, sem se deixar fixar pelo concreto. "Eu só posso pintar o que sinto", dizia o artista que também se juntou ao neoconcretismo - movimento artístico-literário que surge como reação ao excessivo racionalismo do concretismo.
Ivan Serpa não parou por aí: abraça a arte figurativa quando decidiu desenhar expressões trágicas representativas do mal-estar de sua época. A coleção de quadros e gravuras da "série negra" é um testemunho contundente do horror do artista à guerra e ao ódio entre os homens. O pano de fundo dessa série, segundo os curadores da retrospectiva, foi a guerra do Vietnã e a fome que então se alastrava pela África nos anos sessenta. Corpos esqueléticos, rostos sombrios e figuras angustiadas despertam o que nos causa o verdadeiro horror: o estranho estrangeiro que habita, ao mesmo tempo, dentro e fora de nós mesmos.
Nesse trânsito pelo pulsional, Ivan produz obras icônicas que formam o conjunto da fase "Mulher e Bicho". Toda a sensualidade emanada das telas desse período opera chocantes contrastes com as telas da "fase negra". Entretanto, ambas as séries trazem ao espectador a certeza de que o artista traduz algo importante sobre o homem e o mundo que o rodeia. A exposição dos objetos pessoais de Serpa e as cores dos quadros em homenagem à "Mangueira" retratam, singelamente, as pequenas e grandes paixões de sua vida.
Por fim, mergulhamos na Op Erótica, a série que marca o retorno de Serpa à linguagem construtiva. Desde aí, passamos às pinturas "Geomânticas", feitas às vésperas de sua morte ab-rupta e prematura. Estas telas, segundo os estudiosos de sua obra fazem parte de uma das mais importantes de suas experiências estéticas.
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Ao fim da exposição, enquanto caminhava em direção ao saguão do CCBB, ocorreram-me duas lembranças: a primeira diz respeito ao reconhecimento de Freud de que poetas, escritores e artistas "conhecem entre o céu e a terra, muitas coisas que a sabedoria escolar ainda não pode imaginar"; a segunda revela algo sobre a minha relação pessoal com Ivan, desenvolvida durante o pouco tempo em que tive a sorte de ter sido sua aluna na escolinha do MAM, quando garota. Não consegui aprender a desenhar, por mais que o mestre tenha se esforçado para ensinar-me. Mas agora, passados 65 anos desse encontro, pude compreender que Serpa foi quem me transmitiu as letras que resgatei e conquistei ao me deparar com o texto de Freud, quando pude enunciar o desejo de exercer a arte de me tornar psicanalista.
Referências
SERPA, Ivan. In: Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8922/ivan-serpa. Acesso em: 18 de Mar. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 [ Links ]
CCBB Rio. Ivan Serpa em exposição no CCBB Rio. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NIE-gNH0S40 [ Links ]
SERPA, Ivan. 90 anos de nascimento. In: De lá para cá. https://tvbrasil.ebc.com.br/delapraca/episodio/ivan-serpa-90-anos-de-nascimento [ Links ]
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Comentário crítico da retrospectiva Ivan Serpa: a expressão do concreto.
* Centro Cultural do Banco do Brasil, maio de 2020.