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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Transtornos alimentares – um enfoque psicanalítico

 

Gilda Kelner

Círculo Psicanalítico de Pernambuco

 

 


RESUMO

Faz revisão da literatura sobre anorexia e bulimia, discorrendo sobre várias teorias de interpretação desses distúrbios, centrando sua discussão sobre Freud, Klein e Ferenczi. Salienta alguns casos clínicos atendidos em hospital geral.

Palavras-chave: Anorexia, Bulimia, Introjeção, Incorporação, Imagem corporal.


ABSTRACT

The author proceeds with a literature review about anorexia and bulimia, discussing several theories or interpretation of these disturbances, focusing its discussion on Freud, Klein and Ferenczi. She points out some patients observed in a general hospital.

Keywords: Anorexia, Bulimia, Introjection, Body image.


 

 

A compreensão e a interpretação dos transtornos que afetam o comportamento alimentar e a vida nutricional não podem prescindir de uma referência à Psicanálise.

A obesidade traz à cena não apenas uma referência estética e psicossocial da imagem do corpo, como também um complexo de identificações positivas e negativas se compreendendo genealogicamente. São processos muito arcaicos, cujo desvendamento psicopatológico está centrado nos investimentos primitivos do intercâmbio alimentar, na relação objetal.

Freud sublinhou o significado marcante das experiências libidinais infantis, no contato da criança com o seio materno, seu primeiro objeto, mas não aprofundou a análise de seu conteúdo, as emoções e fantasias envolvidas nessas primeiras experiências. Freud não pensava que a criança formasse relações objetais em seus primeiros tempos de vida. Descreveu a identificação com o objeto como a forma de vinculação das mais antigas, mas diferenciou-a da relação objetal. O pai da Psicanálise deu mais relevo ao aspecto auto-erótico do que ao alo-erótico da vida primitiva infantil.

Para Melanie Klein, a atitude da criança em relação a seus objetos é inteiramente determinada por suas necessidades físicas, seus impulsos e fantasias. É por intermédio de suas sensações que a criança tem experiência de seus objetos: e a experiência sensorial constitui a matriz tanto da fantasia inconsciente como da percepção consciente. Apesar de sua fragilidade extrema, o bebê assume uma atitude onipotente em relação a seus objetos, imaginando-os como fazendo parte dele, vivendo apenas através dele e para ele.

Ainda para Klein, com a predominância dos instintos orais, nesta fase precoce de desenvolvimento libidinal, um bom objeto, para o bebê, é o que tem bom sabor e dá prazer à boca. Depois de deglutido, sacia a fome e aplaca as sensações de desconforto. O mau objeto é o que frustra, tem um mau sabor e não é bem aproveitado. De acordo com as idéias kleinianas, haveria tendências para a criança usurpar o “bom objeto”, incorporando suas qualidades, e projetar as qualidades do “mau objeto”, ou seja, introjetar o que é agradável e projetar o que é desagradável.

Vale aqui lembrar a idéia de Paula Heimann, de que “frustração e gratificação podem ser definidas em termos de separação e união. O mais simples padrão de gratificação é representado pela entidade ‘boca faminta/seio nutriente’ ,um padrão de experiência que não conduz a uma nítida diferenciação entre sujeito e objeto”. Dentro desta linha de raciocínio, o objeto oral não é apenas mantido na boca, mas também incorporado, introjetado, projetado, e os mecanismos de introjeção e projeção se desenharão ligados a fantasias do bebê, do que se poderia inferir que o objeto do bebê poderia estar dentro ou fora de seu corpo e, mesmo estando fora, seria uma parte dele, sendo, ainda, indistintas as fronteiras do corpo.

Sandor Ferenczi e a escola húngara reconheceram a existência de relações objetais infantis. Como bem disse Jurandir Freire, o adulto e a criança ferenczianos são sujeitos psicanalíticos, são sujeitos divididos e não sujeitos racionais, idênticos a si mesmos. Para Ferenczi, há uma independência lógica de sentido no que diz respeito à identidade do objeto que serve de referência, ou seja, não existe uma relação necessária entre palavras e coisas. É por esta razão que uma mãe árida, oca, operatória, pode interpretar qualquer choro da criança como sendo uma solicitação de alimento, e a administração desse alimento é sentida como algo que ela recebe, mas não é o que ela precisa e demandou, os sentidos ficando, desde então, muito confusos.

No meu entender, Ferenczi, no seu artigo de 1909, “Transferência e Introjeção”, introduz questões fundamentais para o assunto ora relatado. O autor inicia lembrando os avanços da teoria psicanalítica relativos à transferência e à histeria. Ao escrever sobre a transferência em relação ao médico, ele opõe a problemática do neurótico à do demente precoce e do paranóico. O demente retiraria totalmente seu interesse do mundo externo. O paranóico, ao contrário, rejeitando esse interesse fora de seu ego, projetaria no mundo exterior seus desejos e tendências. Por fim, o neurótico, de maneira oposta, procuraria incluir em sua esfera de interesse uma parte tão grande quanto possível do mundo externo, por meio de um processo, inverso ao da projeção, que Ferenczi propõe chamar de introjeção.

No início, segundo ele, o recém-nascido experimenta todas as coisas de um modo monista, quer se trate de um estímulo externo, quer se trate de um processo psíquico. Mais adiante, ele distingue entre as coisas submetidas ou rebeldes ao seu desejo, o monismo se transformando em dualismo, aparecendo o mundo externo e a oposição ego/mundo externo. Surgem as tentativas de expulsar os afetos desagradáveis, que nem sempre são facilmente expulsos, pois o mundo externo não se deixa tão facilmente expulsar. “O ego cede a este desafio, reabsorve uma parte do mundo externo e nele espalha seu interesse: assim constitui-se a primeira introjeção”, segundo Ferenczi. Desta forma, o primeiro amor e o primeiro ódio realizam-se graças à transferência, as primeiras sensações de prazer/desprazer, inicialmente auto-eróticas, deslocam-se para os objetos que as suscitaram. O bebê, inicialmente, gosta da sensação de saciedade, depois passa a gostar do objeto que lhe proporciona a saciedade.

No artigo seguinte sobre este tema, de 1912, Ferenczi redefine suas posições:

Descrevi a introjeção como a extensão para o mundo externo do interesse, originalmente auto-erótico, por meio da introdução dos objetos externos na esfera do ego. Considero qualquer amor objetal ou qualquer transferência como uma extensão de ego ou introjeção. Em ultima análise, o homem pode amar apenas e unicamente a si mesmo: amar a um outro equivale a integrar este outro a seu ego. É esta união entre os objetos amados e nós mesmos, esta fusão dos objetos com o nosso ego, que chamei de introjeção e, repito, estimo que o mecanismo dinâmico de qualquer amor objetal e de qualquer transferência sobre um objeto é uma extensão de ego, uma introjeção.

É importante diferenciar os termos introjeção e identificação em Ferenczi. A introjeção é um processo e a identificação é um mecanismo, um mecanismo de assimilação e englobamento de uma parte do objeto (a mãe) no narcisismo primário do sujeito. Nos transtornos alimentares estamos nos deparando fundamentalmente com estas questões.

Segundo Lacan, a castração envolve ambas as figuras parentais, sendo que inicialmente ocorre uma castração materna, que se sucede de uma castração paterna. A ineficiência desta segunda etapa deixaria o indivíduo submetido à devoração pela mãe. Para Justus1, “são exatamente essas experiências fundamentais de ruptura e de falta, tais como a separação do nascimento, o desmame, o afastamento da mãe e a castração, que vão dar possibilidades ao sujeito de elaborar sua subjetividade. Ela será articulada através do espaço vazio deixado pela perda do objeto primordial. A carência dessa interioridade tem por conseqüência nociva, por vezes até mortífera, a exclusão da atividade libidinal da cadeia simbólica. A relação com a mãe torna-se uma relação ‘tranqüilizante’, sendo um facilitador para a compulsão, numa tentativa de suplência da falta”.

Tanto em anoréticos, como em bulímicos, coloca-se o problema da imagem do corpo. Schilder, em 1935, concebeu a imagem do corpo como algo mais que um modelo postural, surgindo de mudanças de posição, mas representando um modelo integrado de todas as experiências orgânicas e psíquicas. O autor destacou a importância da variante mobilidade neste conceito – através dos movimentos variados, se percebe a imagem do corpo. É de notar a inatividade, tão característica do obeso, relacionada à grave perturbação de seu conceito corporal.

Alperovich publicou um trabalho, na Revista Argentina de Psicanálise, com um título curioso: “Gênesis y perpetuatión de la obesidad o Come y quedate quieto”. Ele assinala que o obeso sedentário de hoje foi o filho imobilizado de ontem.

Na Odisséia, Homero refere que Circe converte os tripulantes em veados, alegorias da obesidade. Para tal, os encerra com bastante comida e bebida. Euríloco, representante paterno, entregou os tripulantes a Circe, representante materna, que, passivamente, se entregaram à submissão, da mesma forma que são enjaulados os animais para a engorda, depois de castrá-los.

O grupo de estudos perinatais em Buenos Ayres, liderado por Rascovsky, descreveu a situação pós-natal mais precoce facilitadora da fixação oral. Eles destacam que esta ocorre quando, na sexta semana de puerpério, em plena fase de amamentação, não se reinicia, ou se reinicia mal a vida genital dos pais, do que resulta uma excessiva erotização da amamentação, que facilita a futura orientação com predomínio oral do filho, fenômenos que o autor denomina genitalização da oralidade.

Assim, do amplo espectro de intercâmbio possível entre a mãe e o filho, ela exerce, quase com exclusividade, o caminho da alimentação. E o pai, inerte, não ocupa seu espaço, não exerce seu papel na interdição da “overdose” materna.

McDougall ressalta que o lactente não faz a menor distinção entre dor física e dor afetiva. Por lhe faltar capacidade de representar simbolicamente suas vivências, o bebê não pode pensar o próprio corpo e as sensações que dele emanam, nem reconhecer os próprios sentimentos dolorosos como seus. A autora se coloca uma questão fundamental: como o corpo biológico se torna um corpo psicológico, ou seja, a representação psíquica de um corpo nominável, unificado e erógeno? Como o soma e a psique se comunicam?

Aulagnier afirma que a passagem do estado de infans para o de criança se acompanha de uma primeira diferenciação, a troca de mensagens entre a psique e o soma não se faz mais em circuito fechado: um destinatário externo passa a fazer parte dele. E este destinatário externo é a mãe, em suas funções maternas primárias, cujo exercício será modulado por seu investimento narcísico sobre o bebê, o que vai influenciar decisivamente o desempenho das funções de para-excitação , descritas por Fain (1971) e de cuja eficiência (ou ineficiência) haverá a modificação do sofrimento psíquico e físico do bebê.

Aulagnier argumenta que mesmo que a mãe seja a porta-voz, a palavra se interpõe entre ela e seu bebê como uma terceira pessoa. E a voz da mãe é acompanhada de sua própria corporalidade. Com a voz, tanto podemos acariciar como ferir, tanto se pode abrir horizontes, como aprisionar trajetórias.

À voz materna, somam-se outras percepções dos sentidos, o odor, o tato, etc. O que importa é nos darmos conta de que não se trata de sensações em si, mas de seu registro, do modo como são representadas psiquicamente.

As mães dos obesos não compreendem seus apelos e, diante de qualquer demanda, respondem com alimentação. Tal atitude não habilita a criança a discriminar a fome de outras sensações de desconforto. Desta forma, o adulto bulímico procurará, no alimento, o preenchimento deste imenso vazio interior.

Do ponto de vista fisiológico, a mulher tem maior quantidade de tecido adiposo que o homem e este, maior quantidade de tecido muscular que a mulher. Assim, na criança obesa, o excesso de gordura poderia significar excesso de mãe, e a imobilidade, por hipotonia muscular, uma falta de pai. O obeso, internalizando sua peculiar trama de interação familiar e reeditando vínculos análogos, que contribuem para a perpetuação da obesidade, costuma viver uma estreita monotonia oral, em detrimento do amplo espectro de alternativas de vida.

Colette Chiland publicou um trabalho cujo título é muito sugestivo; “A Realização do ideal hermafrodita. Coma, meu filho, tu serás gordo, tu serás homem e mulher”. Este trabalho teve como objetivo fornecer algumas ilustrações clínicas de uma fórmula defensiva, dentre outras, aquela de uma tentativa de realizar uma transformação do corpo, para adquirir algum atributo do outro sexo, conservando os seus próprios. Não se trata de transsexualismo mas da realização do que Joyce McDougall, com muita propriedade, chamou de ideal hermafrodita. Chiland enfatiza que não pretende generalizar a psicopatologia da obesidade de garotos no período de latência. Relata as suas observações através da análise desses meninos e percebe uma tentativa de realização do ideal hermafrodita, em se colocando atributos corporais femininos (seios, ancas, ventre e escondendo o pênis na gordura suprapúbica) e conservando os seus próprios, do sexo masculino. As mães desses garotos esperavam uma menina e se depararam com uma criança do sexo masculino.

No curso de um tratamento analítico, o problema da obesidade é colocado de forma variável. Com efeito, se a palavra tem, em Psicanálise, o lugar que se conhece, é que ela traz a marca de sua oralidade. O elo entre o comer e o falar não é simplesmente analógico, é fundador de uma compreensão do que se encontra em jogo numa psicanálise, esta “zona intermediária” da qual falava Winnicott, para designar o espaço primordial de troca entre boca e seio. No curso de uma psicanálise ou de uma psicoterapia, as flutuações dinâmicas do comportamento oral alimentar, freqüentemente as inversões súbitas anorexiabulimia, podem, com certeza, ser globalmente percebidas como expressões singulares de defesa contra a angústia.

Segundo Fedida, a consumação solitária e escondida de guloseimas pode ser também interpretada como uma compulsão de compressão interior de objetos, a fim de evitar que apareça um vazio. A semiologia do fantasma é aqui extremamente simbólica e variada. Ela coloca em jogo, na cura, a problemática axial da incorporação, assegurando, ao conteúdo alimentar, a ambivalência de um efeito reparador e destruidor, ou ainda, gratificante e persecutório. É bem isso que se ouve na conversa do obeso, onde se misturam a angústia, a culpabilidade e a auto-agressividade: a compulsão se entende, segundo esta bipolaridade, de uma falta interior a preencher ou a reparar e de uma representação de desejo a anular ou a destruir. Talvez a bulimia seja, paradoxalmente, o meio do qual o obeso se serve para destruir, por asfixia, por sufocação, a criança que, nele, reclama e exige o amor único ao qual ele pretende com exclusividade.

Descrevendo uma crise bulímica da véspera, uma solteirona de cincoenta e três anos comenta: “Eu fazia de tudo para chamar a atenção de meu pai. Cuidava de tudo, da casa, de meus irmãos. Ele não via nada disso. Só tinha olhos para minha irmã. Ele foi à formatura dela e não foi à minha. Quando penso em tudo isso, choro e só tenho vontade de comer, sem parar”.

Há que se chamar a atenção também para a agressividade verbal necessária para não vomitar, em certos pacientes. Ao invés de alimentos, vomitam palavras, cujo significado é muito significativo em relação à sua angústia. Não é rara a verborréia nas obesas.

É freqüente que se mostrem com pênis, em sonhos, as obesas em tratamento psicanalítico. Groddeck já interpretava a obesidade do homem como um desejo de identificação à mulher, na representação inconsciente de estar grávida. As mulheres desejam freqüentemente um pênis, para preencher seu vazio interior. O que está em jogo é a completa insatisfação consigo próprios, tanto do homem quanto da mulher obesos, que segui em tratamento analítico. E de sua mais extrema solidão. Posso lembrar da vida miserável de uma pobre mulher gorda que, desde criança, era ridicularizada no colégio, pela imagem e, quando adulta, era motivo de comentários de todos na pequena cidade do interior onde morava. Ela se fechou mais e mais, reivindicava o direito de ser ignorada, recolheu-se à solidão.

Segundo Igoin, no seu trabalho “Les Amatrides”, a mulher gorda que se isola é obcecada pela crença de reencontrar a humilhação do abandono. Este termo procura descrever o fosso entre os desejos e não mais a realidade, mas o corpo. A solidão é invocada como parada defensiva face às rejeições que a corpulência suscita. Solidão e corpulência – qual esconde a outra?

A literatura psicanalítica e as próprias pacientes obesas atribuem à obesidade uma posição de defesa contra a sedução. A abundância de carnes poderia representar uma dessexualização. Diante do desafio impossível do Édipo, como refere Mc Dougall, a mulher gorda se refugiaria no arcaico carregado pela oralidade. Não se contam mais as numerosas interpretações pré-genitais através das quais se tende inexoravelmente, às vezes de forma estereotipada: regressão simbiótica, regressão ao estágio oral, a incorporação da mãe para tornar-se parte integrante dela, o objeto transicional destinado a aplacar a angústia de separação, etc. É importante lembrar que, apesar de serem estes achados muito escutados nas pacientes obesas, não são exclusivos delas, nem esta é sempre a sua fala.

No tratamento psicanalítico, a atualização dos processos primários exalta o lugar da oralidade alimentar e da imagem da obesidade. É a constituição de um espaço interior que, finalmente, vem assegurar as condições de uma nova imagem narcísica e é a partir daí que o paciente pode encontrar seu regime alimentar equilibrado e as atividades físicas e esportivas que lhe convêm, sem atribuir ao exterior a solução de todas as suas dificuldades psíquicas.

 

Anorexia

A anorexia nervosa se tornou uma entidade clínica independente através dos trabalhos concomitantes de Gull, na Inglaterra, e de Lasègue, na França, há mais de cem anos. Com seu quadro clínico exuberante e dramático, foi chamada de “consumação nervosa” e se lhe atribuiu, desde o início, uma ligação com a histeria, sobretudo por sua predominância no sexo feminino. Posteriormente, outras organizações patológicas foram adicionalmente identificadas.

O saber médico só prevaleceu sobre as crendices populares quando se caracterizou as jejuadoras ou anoréticas como doentes e não como bruxas, possuídas pelo demônio e candidatas ao exorcismo. Não se pretende, no momento, analisar a posição exorcista do clero opressor, representante das forças divinas, mas há que se pensar no poder que ele se atribuiu e quanto essas pacientes lhe serviram aos propósitos.

Santa Clara de Assis caminhava descalça, dormia no chão e fazia jejum sistemático, assim como São Francisco de Assis. Outras jovens religiosas seguiam as mesmas práticas. Aguirre2 se pergunta que diferença haveria entre a identificação dessas jovens de então e as de hoje... em relação a modelos. E prossegue com seus questionamentos: “Parece que estes sintomas não são próprios da pós-modernidade, foram descritos e identificados em tempos distintos da história. Santas, histéricas, anoréticas, parecem ser alguns nomes dados a estas mulheres problemáticas que não se ajustam ao discurso da época”. E homens também. O artista da fome descrito por Kafka confessa ao inspetor, à beira da morte, por inanição, que não pôde evitar o jejum porque não havia comida que lhe agradasse. “Se a tivesse encontrado, podes acreditá-lo, me teria fartado como tu e como todos”. Nada lhe interessava.

À maneira dos paranóicos, o ego das anoréticas parece contraído, de acordo com as idéias de Ferenczi, rejeitando alimentos, cuidados, tudo lhe parecendo persecutório e destruidor, rejeitando também possivelmente a feminilidade. Quando recusam o alimento e chegam à inanição, qualquer tentativa de alimentá-las no hospital é peremptoriamente recusada. Ás vezes, a equipe médica, diante da desnutrição e desidratação severas, introduzem sondas nasogástricas para hidratá-las, que são freqüentemente retiradas por elas. O psicanalista se depara com uma situação dificílima, pois que precisa defender sua paciente do que ela sente como “abuso” e é pressionado pelos médicos, que não querem ser cúmplices de um suicídio exibido e exibicionista. Afinal, “somos seres olhados no espetáculo do mundo”, de parte a parte. Por mais que ele compreenda que não deve cooperar com os médicos nestes procedimentos, se sentirá diante de um seríssimo problema ético.

Recentemente, uma paciente circulava pela enfermaria do alto do seu metro e setenta de altura, pesando 32 kg, sem nenhuma forma feminina. Desapareceram os seios, as ancas, sem vestígios de qualquer curva, e achando-se gorda. Seu avô médico se descabelava pelo hospital, procurando as razões para o que ele chamava de tanta sandice, mas quando aprofundou as conversas com a equipe, saiu de mansinho e não mais quis procurar explicações para nada. Principalmente depois que não pôde circunscrever a causa da doença da neta à omissão da figura paterna, no caso, seu genro. Parece que se assustou.

Quanto à mãe, não se ausentava do hospital para nada e estava invasivamente atenta às discussões clínicas, inclusive quando era convidada a retirar-se. Preenchia todas as características descritas para a figura materna dessas pacientes, possessivas, castradoras, dominadoras, invasivas, enfim, insuportáveis. Sabendo-se da omissão desse pai, essa filha foi o chamado prato cheio para o engolimento e a devoração pela mãe. Há que se atentar para o grande perigo das generalizações. Isso não quer dizer que todas as mães de anoréticas sejam assim, apenas grande parte delas.

Vale salientar que estamos falando de pacientes anoréticas gravíssimas, com estrutura psíquica fronteiriça, beirando a psicose, mas não podemos esquecer do enorme número de pacientes anoréticas, principalmente adolescentes (10% da população teen americana feminina), pressionadas pelo protótipo das modelos, magríssimas, esqueléticas, neste mundo do espetáculo de Dabord. Qual é o ideal de nossos dias se não obedecer a padrões? Sua estrutura é bem diferente da paciente citada acima e seu prognóstico bem menos grave. Essas mocinhas se alternam entre jejuar e comer compulsivamente, provocando vômitos logo em seguida. É interessante notar que as crises bulímicas ocorrem nas caladas da noite, quando ninguém as olha, pois elas se afiguram como fortes, poderosas e respeitáveis enquanto jejuadoras. Comer, só escondido, e com enorme remorso, procurando imediatamente uma reparação, que é o vômito provocado, para expulsar o demônio do corpo.

A mídia exibe exaustivamente o padrão atual de beleza. As longilíneas modigliânicas substituíram definitivamente as rechonchudas de Renoir. E “a imagem tem o extraordinário poder de captar as angústias e desejos (dos indivíduos), de controlar-lhes a intensidade e SUSPENDER-LHES (grifo meu) o sentido... A vida psíquica do homem moderno situa-se entre os sintomas somáticos (doenças, hospital) e a transformação dos desejos em imagens (devaneio diante da televisão). Em tal situação, ela se bloqueia, inibe-se, morre” (Julia Kristeva).

Segundo Kafka “a esquelética magreza do jejuador provinha de seu descontentamento consigo mesmo....”. O jejuador, contraposto à sua necessidade de jejuar, sem parar, se articula à única forma possível de satisfação. Jejuar e exibir o jejum e suas conseqüências, “fanaticamente enamorado da fome. A interrupção do jejum através da introdução da sonda nasogástrica seria excluir a paciente de sua glória... o que ela não admitiria jamais”.

A Medicina trata o sintoma... A Psicanálise interpreta o sintoma como uma defesa, uma saída patológica. A Medicina quer corrigir a anorexia e a desnutrição, “impedindo” a morte. A Psicanálise quer compreender o que significam.

Na mesma enfermaria estavam internadas a anorética e uma paciente hepatopata, testemunha de Jeová. Qual seria a relação entre a recusa à hemotransfusão das testemunhas de Jeová e a recusa do alimento pela paciente anorética? A paciente testemunha de Jeová estava muito anêmica por causa de sangramentos digestivos repetidos e a família recusava a transfusão. O pastor já havia comparecido ao hospital e pretendeu assinar um termo de responsabilidade. A paciente também confirmava a recusa, mas não de forma tão enfática. Afinal de contas, era ela que estava com risco de vida...

No dia seguinte, ao ser novamente abordada pelo médico residente, ela disse uma frase interessante: “Doutor, receber transfusão é pecado do mesmo jeito que sexo fora do casamento, mas se a mulher é estuprada, ela não é pecadora e sim o homem que a estuprou!” Ocorre uma erotização do sangue e a hemotransfusão, nestes moldes, seria um “estupro consentido”? Seria a recusa ao alimento um “estupro recusado”? Até porque o estupro caracteriza, neste contexto, pelo menos dois pares: Vilão/vítima e masculino/feminino. E a recusa à feminilidade é um marco divisor entre estas duas pacientes, entre estas duas espécies de recusa. Até onde o residente aceitou o papel de estuprador simbólico que o analista rejeita, na enfermaria?

Segundo a história, os Lapiths eram uma tribo guerreira, cujo chefe, Kaineus, era impiedoso. Depois de muitas conquistas, chegou a vez de uma derrota em que o chefe morreu. Verificou-se que Kaineus era uma mulher que havia sido estuprada e, como prêmio, os deuses lhe deram a identidade masculina, um pênis. Essa paciente anorética também tinha algo de impiedade, massacrava sua mãe, os médicos e brincava com sua morte para atingir essas pessoas. No caso de Kaineus, havia uma dissociação entre o sujeito e seu corpo, como ocorre com a anorética. Ela se aliena de seu próprio corpo e o admira como uma outsider, de fora, silenciando seus desejos, de sede, de fome, de cuidados, de sexo, de amor.

Meng, em 1944, observou que a regressão, na anorexia nervosa, sobrepujava, em gravidade, aquela da neurose e comparou-a à regressão na psicose. Propôs o termo “psicose do órgão”, embora admitindo que este termo encerrava um certo paradoxo.

O autor destacou a deformação da estrutura do ego como sendo a essência da doença e comparou suas observações com as de Federn (1934) nos estudos com esquizofrênicos, no que diz respeito à despersonalização dos pacientes e sua incapacidade para compreender os verdadeiros sentimentos.

Paul Laurent Assoun, em Freud e a Mulher, vê a anorexia como uma síndrome histérica que expressa enfaticamente algo de característico da feminilidade. A anorética “apresenta um espetáculo que responde à perplexidade de Freud, já que, em sua pretensão fantasística, ela é aquela que, por excelência, sabe o que quer”. Porém, o que ela ignora é que esse querer determinado sustenta uma negação do desejo. Deste modo essa estrutura neurótica traz um traço de perversão na marca mesma de uma Verleugnung (renegação). “O querer garante a presunção do saber absoluto, mas esse corpo subjugado constitui uma barreira para algo que não quer se expressar, que é o desejo pelo outro” (Assoun, 1993: 118). Renegação da sedução: desencanto e ausência de sexualidade. “Se a histérica, na sua paródia enganadora do convite sexual, com sua dança aliciadora, debate-se com a sedução e a utiliza como uma armadilha para submeter os homens, a anorética recusa-se a isso” (Bidau, 1998: 75).

Como resultado de um deficiente exercício da paternidade, um dos paradigmas do mal-estar contemporâneo, na anorexia, o par mãe-filha faz uma sólida união, formando como que uma liga, “uma cilada narcísica” (Bidaud, 1998: 87).

Numa mesma paciente, como já referimos, a anorexia pode alternar-se com crises bulímicas.

Rizzuto sugere a expressão bulimarexia, juntando estes sintomas aparentemente opostos. Segundo ela, essas pacientes têm um modo peculiar de se relacionar com as palavras. Seu trato com a palavra falada se dá de forma alienada. Gato não é gato, lebre não é lebre... Ela subverte a palavra e sua função, que é dar significado às coisas. A paciente anorética retira o sentido das palavras, como subtrai o sabor dos alimentos, o aroma do perfume e o sentimento da vida. Enfim, ela, destitui todos os objetos, animados e inanimados, dos seus atributos, de suas funções. Nas crises bulímicas ela, ao mesmo tempo que procura preencher o seu vazio interior com selvagem voracidade, pretendendo que aquele alimento lhe traga bem-estar, imediatamente o reconhece como destrutivo, mau, e tenta expulsá-lo com a mesma “selvageria”.

A voracidade para ingeri-lo é equivalente, em ódio, à necessidade de vomitá-lo, como se fosse a intervenção de uma lavagem gástrica para eliminar um veneno mortal, antes que ele fosse absorvido pelo organismo, como uma paciente relatou.

São célebres algumas frases que expressam os transtornos alimentares.

“ Aquilo é magro de ruim”, referindo-se a alguém que come muito e não engorda. Se o fulano é ruim, ele projeta sua “ruindade” no objeto, tornando-o um mau objeto, que não irá atender sua função nutridora. Mesmo assim, ele é ingerido em grandes quantidades, como se a compressão interior tivesse uma conotação ambivalente de devorá-lo ou destruí-lo e de incorporá-lo.

Freud, em um de seus trabalhos, faz um elo entre a anorexia nervosa e a melancolia, focando a atenção para a perda do apetite.

A escola kleiniana aponta o medo paranóide de ser envenenado, algumas vezes ligado com a projeção da mãe sobre a criança de seus próprios desejos ou do medo depressivo de colocar em perigo os bons objetos internos.

Kestemberg e colaboradores relatam os componentes perversos e masoquistas dos pacientes anoréticos e descrevem seu sentimento de estarem “morrendo de prazer”.

Sours destaca a importância de distinguir dois grupos de anoréticos. Um deles que, sob pressão da adolescência, experimenta a ressurgência dos desejos edípicos femininos, o que conduz a soluções regressivas. O outro grupo compreende anoréticos que mostram defeitos estruturais do ego relacionados à falha da separação e individuação precoces.

A gama sintomatológica da anorexia nervosa engloba histéricos, obsessivos, somatizantes, psicóticos, fronteiriços, etc.

Para Sprince, a anorética fica comprimida entre o terror da solidão e o terror do aniquilamento. Sob este enfoque a anorexia pode ser compreendida como uma tentativa da adolescente de ter um corpo diferente do corpo da mãe, sem o instrumento psíquico imprescindível para tal objetivo.

As pacientes não vêem a anorexia como um problema e sim como uma solução, o que torna dificílima qualquer abordagem terapêutica.

Lacan, citado por Breen, argumenta que, se a identidade de uma pessoa é construída na linguagem, talvez a recusa em falar, tão característica das anoréticas, seja uma recusa de assumir uma identidade, como feminina, e uma recusa de uma definição, como adulta.

Boris defende que a razão de ser de uma pessoa anorética é o triunfo onipotente sobre o objeto, dono de si mesmo. Sua metodologia é conseguir evitar ser possuída pelo amor e seu ponto de contato é não necessitar nunca de nada, muito menos da Psicanálise. Ela se apega à anorexia e à impossibilidade de mudar, ela adere aos impedimentos e bloqueios de deslocamento.

Breen revê a anorexia nervosa sob o enfoque do desejo e do medo da paciente em fundir-se com a mãe. Ele descreve alguns sentimentos contra os quais este estado de fusão forma uma defesa, assim como algumas das conseqüências, em particular a ausência de um espaço transicional e o que isso significa para o desenvolvimento mental. Sugere que a anorexia seria uma tentativa de aniquilar aquilo que constitui a natureza da existência humana: a desigualdade, a progressão do ciclo vital e a morte.

A Medicina atual considera a obesidade um transtorno metabólico, transmitido geneticamente. Aqui não estamos tratando disso e sim da ingesta alimentar compulsiva e da recusa alimentar absoluta, patológica.

Todas essas considerações psicopatológicas concernentes aos transtornos alimentares são pertinentes e merecem o mais respeitoso aprofundamento, no entanto, há que sempre lembrar a singularidade do paciente. Sua história é absolutamente única, assim como sua relação com o analista. O paciente bulímico ou anorético, assim como nenhum outro, pode ser reduzido a uma estereotipia, a um clichê.

Por fim, gostaria de chamar a atenção para o cuidado especial no tratamento psicanalítico desses pacientes.

Clarice Lispector, em janeiro de 1947, de Berna, escreveu a uma amiga: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício interior”.

Atrás da problemática da irrepresentabilidade de que sofrem esses pacientes, com horror ao vazio, aos abismos impenetráveis, às angústias de fragmentação e, ainda, das confusões de lugar, entre dentro e fora, self e não self, real e imaginário, despende-se muito tempo de tratamento para que o processo psicanalítico possa transformar esses “terrores sem nome” em terrores nomináveis e, enfim, narráveis, como referiu Bion.

 

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1 No seu artigo “Anorexia, uma tenacidade cega”, disponível no site Estados Gerais da Psicanálise
2 No trabalho “Patologías Actuales”, disponível no site dos Estados Gerais da Psicanálise

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