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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.46 no.77 São Paulo  2024  Epub 20-Set-2024

https://doi.org/10.5935/0101-3106.v46n77.24 

Ateliê

CONVERSA COM ROBERTA MARTINELLI

ROBERTA MARTINELLI

Apresentadora, criadora e curadora do programa Cultura Livre na tv Cultura. O programa completa, em 2024, 15 anos no ar e foi indicado pela apca como o melhor programa de televisão. Apresenta e produz o programa Som a Pino diariamente na Rádio Eldorado e o Clube do Livro. É curadora musical do sesi Lab em Brasília e apresentadora e programadora do Sounds and Cities no programa Jam the Planet no Japão. Fez os podcasts “Essenciais” na Deezer e “Nós” no Spotify. Participaram Flavio Verdini, Anne Lise Di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci e Francisco Duarte


Ide - Ao pesquisar sobre sua biografia, soubemos que você desistiu da formação em Direito quase no final do curso. Conte um pouco dessa história. Você sente que foi “convocada/sintonizada” com a tua vocação? rm - Quando saí do colégio, não sabia o que eu queria fazer, então, fui estudar Direito. No quarto ano, eu trabalhava no Tribunal de

Pequenas Causas, e, como eu não era muito eficiente, meu chefe dizia que eu devia ser cantora, pois eu tinha uma voz bonita e deveria cantar. Uma amiga minha que fazia a eca estava envolvida em um musical sobre Vinicius de Moraes, e me chamou para um teste. Uma das personagens era a Garota de Ipanema, na época, eu era bem queimada de sol. Eu disse que queria, mesmo sendo muito tímida. Após o teste de voz, o diretor musical disse que eu não poderia cantar sozinha, mas em coro dava para passar. Fiz o musical, foram meses de ensaio e apresentação.

Quando acabou, eu pensei: é isso que quero fazer na minha vida. Larguei a faculdade no quinto ano e fui estudar teatro.

Ide - A odisseia do encontro com os próprios talentos?

RM - Não sei se eu fui convocada. Na verdade, eu não era muito boa. Nunca tinha subido num palco, mas o que me encantou foram as pessoas das artes. Quando as vi, pensei: é isso que eu quero, quero ficar com essas pessoas, estar perto delas, é essa vida que eu quero.

Fiquei muito encantada, era um tipo de gente que eu não tinha por perto. O que me ensinou a entrevistar as pessoas na vida foi uma aula de palhaço que fiz com Cláudio Thebas - ele que escreveu livros com o Christian Dunker.

Thebas é muito especial, no sentido de viver o momento presente, de nos ensinar a nos preocupar com o que está acontecendo agora, em nos abrir nas relações, não criar grandes expectativas. Para mim, foi um curso muito importante e transformador, mudou minha vida. Nos meus programas e nas minhas entrevistas, existem um tanto do que eu descobri ali e que eu comecei a levar para a minha vida.

Durante um dos episódios do Clube do Livro,2 falei uma frase que depois fiquei impactada, pensando sobre ela, até mesmo contei na terapia que nesse ano eu vivi mais dentro do meu programa do que fora dele, pois o programa tem uma duração, um período e ali eu consigo fazer com que a vida seja dilatada. É preciso um preparo para estar presente, estar presente naquele momento. Tem a pesquisa, eu me preparo estudando a pessoa, ouvindo os discos, tem as coisas práticas, mas não deixo que isso interfira na hora da relação que vai se criar. Uma vez, há muito tempo, entrevistei a Gal Costa, era a primeira vez que eu iria entrevistá-la, minha expectativa era muito alta, eu achava que ela iria gostar muito de mim, assim como eu gostava dela. Mas a entrevista foi depois de um show, um dia que ela estava um pouco irritada e não estava muito bem. A entrevista não foi legal, e eu fiquei superchateada.

Então entendi que não se pode criar expectativa sobre uma relação proposta com base em uma ideia pessoal sobre alguém, tento pôr isso em prática nos meus programas. Tenho consciência de que, às vezes, eu atinjo esse lugar, mas sempre fico querendo um pouco mais.

FV - Certo dia, eu estava parado no trânsito e ouvi na estação de rádio uma história emocionante que abriu um portal de coincidências, conectando-me com a apresentadora e o ouvinte do outro lado da linha do Telefone Aberto. Três pessoas situadas no território misterioso da emoção. Os três choram simultaneamente. O gatilho? A razão pela qual o ouvinte escolheu determinada música era relacionada ao aniversário do pai, que era naquele dia.

Ide - Você sabe e usa esse talento conscientemente? Você usa sua intuição quando sintoniza com seus interlocutores?

RM - O lance com os ouvintes, o telefone aberto e a troca que se dá, é minha proposta. Se me perguntarem se eu consigo, respondo: nem sempre, às vezes acontecem conexões que parecem mágica. Fico muito feliz quando alguém percebe isso e emocionada por saber que é visto da mesma maneira que é vivido. Quando você me escreve narrando tudo isso, confirma minha percepção.

FV - A maneira como você captura o que teu interlocutor quer dizer, nota-se isso especialmente com as crianças que te telefonam ou as pessoas adultas que, de algum modo, trazem um sofrimento ou uma alegria. Você consegue chamar a atenção para o que não está explícito no discurso. É notável a naturalidade com que você conta situações pessoais, que funcionam como um conector direto com o outro, um portal. Como aquele garoto, emocionado com seu primeiro show de rock, no caso, o Encontro dos Titãs, e você pergunta qual a data em que ele vai, e é o mesmo dia que você vai! Combinam um código de reconhecimento, se acaso ele te vir por lá. Ele volta a ligar um tempo depois, e vocês conversam sobre o não encontro.

Ide - Os artistas, como os psicanalistas, visam o despertar para a vida interior e se abrem para a intuição e seu uso profético como pré-emoção, se é que a emoção pode estar circunscrita dentro do tempo. O que move a radialista?

RM - Sou movida pelos encontros e pela troca que se dá naqueles momentos, fico tentando viver o que acontece nessas horas. Hoje se deu de novo no telefone aberto: uma moça ligou e pediu uma música, lembrei-me de um relacionamento amoroso malsucedido que eu tinha tido aos 20 anos. Na época eu cantava essa música, e nos identificamos. Existe essa identificação tanto nas entrevistas quanto nas trocas, pois, quando dividimos nossas vidas e histórias, convidamos as pessoas a fazer o mesmo, minha entrega leva à entrega das pessoas, e a entregas das pessoas leva à minha entrega. Se não for coletivo, não funciona.

E nem sempre funciona. Por exemplo, meu pai morreu há pouco tempo, quatro dias depois eu fiz o Telefone Aberto, fiquei apreensiva sobre como seria aquele dia, e, obviamente, não foi nada do que eu tinha imaginado. Particularmente, não gostei da seleção musical, eu estava dura, fria, não estava aberta. E o dia transcorreu assim, não tinha o que fazer… Era o que eu queria? Era o que eu esperava? Não, tem como esperar algo em um momento como esse?

O mais precioso no que faço é o imprevisto. Gosto da surpresa e quando acontece o que não está escrito.

2Clube do Livro Eldorado: série apresentada por Roberta Martinelli sobre livros, seus autores e leitores. https://music.amazon.com.br/podcasts/afd8f886-13d7-4572-ae7f-6ca9489c1754/ clube-do-livro-eldorado.

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