Considerações iniciais
Hall (2015, p. 9), considerando mais amplamente certo movimento de multiplicação identitária, escreveu
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado.
Na década de 1970, se estabeleceu socialmente uma identidade travesti, diferenciada de uma identidade homossexual e, em 1990, uma identidade transexual, diferenciada de uma identidade travesti (Carvalho; Carrara, 2013, p. 324-325). Mais recentemente, no século XXI, entre muitas outras, uma identidade intersexual se estabeleceu.
Por meio dessa militância, em sistemas socioculturais nos quais certas identidades teriam sido coletivamente abjetadas e, assim, consideradas anormais, alguns movimentos sociais estariam intencionando sua normalização (Butler, 2006). Assim, contestando certas normas socialmente instituídas, estariam militando pelo convencimento dos integrantes desses sistemas de que tais identidades consistiriam em entidades normais exatamente como aquelas aparentemente coerentes com essas normas.
No entanto, atualmente, várias teorias têm sido utilizadas como referenciais no debate público acerca das noções de identidade, inclusive teorias psicanalíticas críticas à normatização1 em alguns aspectos. Recentemente, o aumento da importância socialmente atribuída a certas noções de identidade nos mencionados sistemas socioculturais contribuiu para incrementar o interesse de autores do campo psicanalítico por elas, apesar de alguns terem resistido a aceitar a articulação de uma noção de identidade na metapsicologia - isto é, no domínio conceitual psicanalítico.
Nesse sentido, seriam cada vez mais comuns as discussões acerca da coerência dessa articulação, bem como de sua validade. Porém, em meio a esse contexto, certas teorias psicanalíticas têm sido utilizadas mais restritamente como instrumentos teóricos na análise ou na crítica do estabelecimento - e, em certos casos, de uma essencialização, normatização ou normalização - de identidades.
Criticando “certa concepção de uma identidade cristalizada, estática”, Miriam Debieux Rosa (1998, p. 122) escreveu:
[...] o homem na sua interface com os fenômenos sociais e os efeitos mútuos faz parte da reflexão do psicanalista. Reflexão esta realizada por meio da utilização de um referencial teórico conceitual que coloca em questão a própria validade do conceito de identidade, tal como aparece formulado em diversas correntes teóricas da psicologia social [...].
Alguns conceitos, como os de sexo, gênero e orientação sexual, representações de categorias identitárias,2 são considerados em certas teorias, a exemplo da obra de Butler (1990), como representações de entidades socialmente construídas; e não como as verdadeiras representações de entidades essenciais.
No mesmo sentido, o conceito de gênero tem sido concebido na teoria de muitos autores como uma entidade historicamente datada (Sartori; Mantovani, 2016a, oka; laurenti, 2018, CeCCarrelli, 2019, Sartori; CeCCarrelli, 2021).
Contemporaneamente, esses conceitos têm sido essencializados no imaginário de muitos indivíduos, em vários sistemas socioculturais - isto é, considerados neste imaginário como as verdadeiras representações de entidades essenciais; inclusive, em setores da militância identitária (Colling, 2015, p. 240-241).
Entretanto, a essencialização na sociedade brasileira das identidades sociais de sexo, gênero e orientação sexual seria considerada, em teorias como a de Butler (1990), como resultante na manutenção de uma estrutura socialmente opressiva aos indivíduos identificados analiticamente como “não cis-heterossexuais”3 - como, por exemplo, intersexuais, transgêneros ou homossexuais.
Muitos deles, identificados coletivamente desse modo, seriam recorrentemente discriminados e violentados. Frequentemente, a violência contra eles ocorreu na forma de intolerância - condicionada socioculturalmente - à incoerência deles com a normatividade socialmente estabelecida, denominada na teoria butleriana de matriz heterossexual.
Por outro lado, a teoria psicanalítica freudiana, considerada historicamente como subversiva no âmbito identitáriosexual, tem sido concebida nas obras de certos autores, a exemplo de Butler, como normatizadora precisamente nesse âmbito, mesmo que de modo escamoteado.
Não seriam inconsistentes as suposições de que Freud criticou a moralidade sexual ocidental e que sua psicanálise subverteu o modo como a sexualidade era não somente concebida mas também experienciada. Também não seria inconsistente a suposição de que a obra de Freud conteria construtos teóricos utilizáveis em conceituações críticas à essencialização das identidades, como a da noção de perverso-polimorfismo, analisada posteriormente neste artigo.
Entretanto, alguns dos enunciados constitutivos da teoria freudiana, não tendo sido problematizados pelo autor, reiterariam certas normatividades em ordenamentos socialmente opressivos. Justamente nesse sentido, Butler sustentou que a descrição acrítica, por certos autores do campo psicanalítico, de processos identificatórios supostamente resultantes na constituição de identidades de gênero contribuiria para a manutenção da essencialização dessas identidades - e, consequentemente, da mencionada matriz heterossexual.
Nesse contexto, Butler (1990, p. 1314) escreveu:
Além do mais, em que medida, na psicanálise, o corpo sexuado é assegurado por meio de práticas identificatórias governadas por esquemas regulatórios? [...] Se a formulação de um Eu corporal, um senso de contorno estável e a fixação da fronteira espacial são obtidos por meio de práticas identificatórias e se na psicanálise são descritos os funcionamentos hegemônicos daquelas identificações, podemos, então, conceber a psicanálise como uma inculcação da matriz heterossexual no nível da morfogênese corporal? (tradução nossa).
A crítica de Butler, centrada sobretudo no “modelo melancólico de identificação” de Freud, evidenciaria consistentemente as normatizações constituídas de modo implícito em trabalhos teóricos mais tardios de Freud, como Luto e melancolia ([1917] 2006) e O eu e o isso ([1923] 1992). Entretanto, já em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade ([1905] 1986), obra considerada subversiva no âmbito sexual no meio psicanalítico, se evidenciariam normatizações reiteradoras do ordenamento social denominado, décadas mais tarde na teoria de Butler, de matriz heterossexual.
Freud ([1905] 1986) criticou os conceitos vienenses de sexualidade, bem como alguns dos conceitos de sexo. Contrariando certas teorias cientificamente estabelecidas, conceituou a sexualidade infantil, considerando-a não como anormalidade, mas como entidade constitutiva de cada indivíduo - embora não idêntica à denominada sexualidade adulta.
Assim, considerou a sexualidade de um indivíduo como normalmente iniciada na infância. Além disso, em meio às suas mencionadas investigações, evidenciou analiticamente similaridades entre a normalidade socialmente concebida e certas condições clínicas - isto é, condições consideradas psicopatológicas, tais como a histeria. Mais restritamente, estabeleceu que em cada indivíduo considerado normal se constituiriam de algum modo rudimentos de perversão. Nenhum indivíduo seria inteiramente coerente com as normas sexuais socialmente instituídas.
Também nesse contexto, considerou a sexualidade de um indivíduo como não resultante de sua constituição anatômica, mas condicionada de algum modo por suas experiências. Na teoria de Freud, a sexualidade seria considerada “desenvolvível” em sentidos variados. Independentemente de seu sexo, o indivíduo seria um perverso -polimorfo. A noção de perverso-polimorfismo (individual originário), assim como outras noções freudianas, seria coerentemente articulável em teorias subversivas no âmbito identitário e sexual.
Embora sua teoria contivesse instrumentos teóricos subversivos, utilizáveis em críticas à essencialização da matriz heterossexual (Sartori; Ceccarelli, 2021), Freud teria contrariado não ostensivamente certa subversividade de alguns dos seus instrumentos, reiterando normatizações constitutivas dessa matriz.
Neste artigo, analisamos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, [1905] 1986) e discutimos certos enunciados freudianos no intuito de evidenciar esquemas normativos implícitos constituídos no modo não problematizado como o autor os construiu.
Três ensaios: entre o potencial subversivo da noção de perverso-polimorfismo e uma implícita normatização4
Autores de vários campos do conhecimento, sobretudo do campo psicanalítico, consideraram Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, [1905] 1986) uma obra subversiva em certos aspectos. Freud criticou as noções de sexualidade constitutivas do imaginário vienense - algumas comumente articuladas na comunidade médica. Os numerosos comentários acerca dessa obra, assim como suas críticas, muitas delas recentes, indicariam sua importância nos estudos acerca da sexualidade ainda atualmente.
No início do século XX, nas sociedades ocidentais, concebia-se a sexualidade de um indivíduo como normalmente iniciada na puberdade, de modo que os ocasionais indícios de sexualidade de uma criança eram considerados anormalidades - em certos casos, eram relacionados com uma degeneração moral precoce.
Contudo, Freud articulou originalmente sua noção de sexualidade infantil, contrariando essa concepção. Ele considerou que a sexualidade infantil, embora diferisse da sexualidade adulta, ocorreria em cada indivíduo e não consistiria em anormalidade. A sexualidade de um indivíduo seria constituída em meio às sucessivas etapas de seu desenvolvimento psicossexual, sendo normalmente iniciada em sua infância.
Além disso, nas mencionadas sociedades, a sexualidade de um indivíduo era concebida como normalmente resultante de seu sexo. No imaginário vienense, a sexualidade era abertamente normatizada. O cidadão vienense médio acreditaria que, normalmente, um homem apenas selecionaria sexualmente uma mulher; e uma mulher apenas selecionaria sexualmente um homem.
Assim como nas teorias de certos autores então reconhecidos como autoridades médicas e científicas, a sexualidade normal era concebida como correlacionada com o ato sexual reprodutivo. Nesse caso, a sexualidade de um indivíduo seria considerada normal caso correspondesse a certa interação sexual exclusiva dele com um outro necessariamente integrante do sexo oposto - a mencionada interação sexual consistindo na então denominada relação sexual adulta normal ou relação sexual madura.
Indiretamente, a sexualidade corresponderia a certa genitalidade: seriam consideradas como condições necessárias à sua normalidade, as interações exclusivas entre uma genitália masculina e uma feminina ao menos virtualmente ocasionadoras da reprodução.
No entanto, nos Três ensaios, Freud ([1905] 1986) criticou também essa concepção da sexualidade. No início do capítulo I - Aberrações sexuais, o autor centrou sua crítica nos denominados desvios sexuais. Nesse contexto, diferenciou analiticamente entre si: (i) os desvios nos objetos sexuais, isto é, nos objetos que seriam investidos libidinalmente e (ii) os desvios nas metas sexuais, isto é, nos atos nos quais se concretizariam os impulsos sexuais.
Na seção Desvios nos objetos sexuais, Freud analisou a teoria das inversões, intencionando aparentemente o entendimento acerca das homossexualidades - por ele denominadas de “inversões”. Então, analiticamente, diferenciou três subcategorias de inversão [sexual]: (i) inversão absoluta, que consiste na exclusividade da atração homossexual de um indivíduo; (ii) inversão anfígena: consiste na alternância, em um indivíduo, entre suas atrações homossexuais e, heterossexuais; e (iii) inversão ocasional, que consiste em certa circunstancialidade das atrações homossexuais de um indivíduo, relacionadas com algumas “restrições ambientais” ou com a denominada “imitação”.
Nesse contexto, Freud criticou a suposição, comumente articulada na comunidade médica vienense, de que a inversão sexual consistiria necessariamente em indício de degeneração. Além disso, contrariou a suposição de que a inversão sexual seria uma entidade meramente inata ou meramente acidental. E considerou a inversão sexual de um indivíduo como não determinada exclusivamente por sua constituição anatômica nem por suas experiências.
Entretanto, considerou a modalidade de investimento objetal de um indivíduo - em seus termos, invertida ou normal - como resultante da interação entre suas predisposições sexuais, as quais estariam relacionadas com sua constituição anatômica, e suas experiências. Nesse caso, considerou que as experiências individuais inibiriam ou reiterariam algumas de suas predisposições sexuais. Contudo, não conceituou estas últimas.
Freud supôs a inexistência de uma relação de necessidade entre: (i) a subcategoria [representacional] na qual se inseriria um objeto sexualmente selecionado pelo indivíduo, a exemplo das subcategorias “masculina” e “feminina”; e (ii) o sexo deste último.
Freud ([1905] 1986, p. 178-179) supôs que, originariamente, as pulsões sexuais de um indivíduo independeriam de um objeto. E estabeleceu que o indivíduo, independentemente de seu suposto sexo, consistiria originariamente em um perverso-polimorfo (Freud [1905] 1986, p. 174).
O perverso-polimorfismo individual originário consistiria na potencialidade originária de um indivíduo às mais variadas modalidades de investimento objetal - isto é, na sua potencialidade ao desenvolvimento dessas modalidades. A conceituação freudiana do perverso-polimorfismo individual originário depende da suposição de uma não determinação da sexualidade de um indivíduo - nesse caso, sua modalidade de investimento objetal - pelo seu sexo - isto é, sua configuração anatômica ou seus caracteres sexuais somáticos (Sartori; Mantovani, 2016b, p. 169).
Nessas circunstâncias, o indivíduo selecionaria sexualmente - isto é, investiria libidinalmente - o objeto em acordo com certos ideais, condicionados pelas suas experiências. Assim, seria coerente com essa consideração freudiana - apesar de Freud não tê-la estabelecido de modo ostensivo nesta obra -, a suposição de que a modalidade de investimento objetal: (i) seria uma construção psíquica e (ii) seria assumida pelo indivíduo em seu desenvolvimento em meio às suas identificações, ainda que reiterassem certas predisposições sexuais.
Por outro lado, a suposição de inexistência de uma relação de necessidade entre duas entidades concebidas não implicaria a desnaturalização nem uma não normalização de cada uma dessas duas entidades. Possivelmente, mas não necessariamente, um autor estabeleceria a inexistência de uma relação de necessidade entre o sexo de um indivíduo e a sua orientação sexual, mas suporia: (i) a naturalidade do sexo e da orientação sexual concebidos em sua teoria e (ii) a normalidade de algumas das subcategorias constitutivas desse sexo e, dessa orientação sexual - assim como a anormalidade de outras.
Freud estabeleceu a inexistência de uma relação de necessidade entre o sexo de um indivíduo e a sua sexualidade, mais restritamente sua orientação sexual5. Além disso, a sua obra mantém mais explicitamente um caráter analítico - e, até mesmo, subversivo - que um caráter normatizador da sexualidade. Entretanto, Freud a normatizou, isto é, considerou cada uma das muitas variedades da sexualidade como normal ou anormal, embora tivesse estabelecido em sua normatização da sexualidade critérios muito mais complexos que os contidos nas conceituações mais comuns da normalidade por ele criticadas.
Na terceira seção do capítulo I - Observações gerais sobre as perversões, Freud considerou que cada indivíduo, originariamente perverso-polimorfo, manteria em seu desenvolvimento vestígios de perversões, de desvios nas metas sexuais. O autor considerou como normalidade no adulto a vestigialidade ou a circunstancialidade desses desvios e como anormalidade, sua exclusividade.
Nesse caso, de modo indireto, a inversão absoluta, na qual as denominadas perversões não seriam vestigiais ou circunstanciais mas exclusivas, seria considerada pelo autor necessariamente como relacionada com anormalidade; porém, as inversões anfígenas e ocasionais, assim como a heterossexualidade, não seriam consideradas desse modo. Assim, ainda que tenha asseverado mais amplamente a não anormalidade das denominadas inversões, o autor reiterou indiretamente a consideração, como anormalidade, de uma de suas variedades: a denominada inversão absoluta.
Em nota adicionada à edição de 1915 de Três ensaios, Freud asseverou que a denominada inversão não consistiria em uma subcategoria de indivíduos - considerando que cada indivíduo, independentemente de seu estatuto de normalidade, ao menos de modo inconsciente, investiria libidinalmente em um integrante do mesmo sexo. Nesse caso, indiretamente, Freud criticou a consideração da homossexualidade - denominada inversão [sexual] - como entidade natural. Mas a mencionada asseveração de Freud seria referente, mais amplamente, à denominada inversão, categoria analítica e não restritamente à denominada inversão absoluta.
Contudo, Freud (1905, p. 130-131) denominou inversão [sexual] a condição de um indivíduo - denominado invertido - na qual este selecionaria sexualmente, ainda que apenas de modo esporádico, integrantes de seu suposto sexo. Utilizando esse termo, Freud considerou não explicitamente como uma variante normal da sexualidade, certa heterossexualidade - mesmo que tivesse criticado os conceitos de sexo e de sexualidade então socialmente articulados.
No contexto em que foi usado, o termo “inversão sexual” designou certa variedade desviante da sexualidade normal; em acordo com os escritos do autor, um desvio nos objetos sexuais, de modo que implicitamente a inversão não foi considerada como uma entidade normal - ainda que Freud tivesse criticado, em outros excertos, a consideração desta como uma anormalidade.
De outro lado, Freud articulou sua noção de caracteres sexuais psíquicos e, nesse sentido, diferenciou entre si caracteres psíquicos masculinos e, femininos. Então, ao menos aproximadamente, concebeu uma entidade correspondente à categoria de gênero - mesmo não tendo conceituado estritamente o gênero, como recordaram Sartori e Mantovani (2016b). Embora não a tenha desnaturalizado, o autor estabeleceu a independência entre o sexo de um indivíduo, seus caracteres sexuais psíquicos e sua modalidade de investimento objetal.
Adicionalmente, o conceito freudiano de inversão sexual se referiu não à condição na qual o indivíduo seleciona sexualmente integrantes de seu gênero (este nem mesmo tendo sido estabelecido socialmente naquele momento histórico) mas de seu sexo.
Nesse contexto, caso a teoria contida nesta obra tivesse sido acriticamente utilizada em certos sistemas socioculturais contemporâneos, tais como a sociedade brasileira, seriam considerados indiretamente como modos de inversão sexual, não somente uma homossexualidade, mas também várias identidades sociais consideradas como incoerentes com a normatividade socialmente estabelecida, como certos casos de transgeneridade (Sartori; Mantovani, 2016b, p. 168-169).
Portanto, na utilização acrítica de sua teoria da inversão, não seriam diferenciados entre si certos modos de transgeneridade e uma homossexualidade - ambos sendo considerados como casos da inversão [sexual]. Assim, ainda que Freud ([1905] 1986, p. 125) tenha reconhecido a variância da entidade por ele denominada de inversão [sexual], alguns excertos de sua teoria seriam consistentemente considerados como insuficientes teoricamente - e como instrumentos de manutenção de algumas problemáticas históricas - em certos contextos sociopolíticos (Sartori; Mantovani, 2016b, p. 168-169).
Na seção O recurso à bissexualidade, em sua análise das intersexualidades, denominadas por Freud de hermafroditismos conforme a nomenclatura médica contemporânea, o autor estabeleceu que, na genitália de cada um dos hermafroditas, caracteres masculinos e caracteres femininos estariam combinados entre si. Caso em um indivíduo constassem simultaneamente um aparelho sexual masculino e um aparelho sexual feminino “desenvolvidos”, esse indivíduo seria um hermafrodita verdadeiro. E caso na genitália de um indivíduo constassem caracteres masculinos e caracteres femininos somente “vestigiais”, esse indivíduo não seria um hermafrodita verdadeiro.
Apesar de ter contrariado certas concepções sociais dos sexos evidenciando sua inconsistência, Freud ([1905] 1986, p. 129) estabeleceu, concordando com certos autores então reconhecidos como autoridades médicas, não somente que as intersexualidades seriam anormalidades, mas também que a constatação da sua existência ocasionaria o entendimento de um desenvolvimento individual normal.
Nesse sentido, Freud ([1905] 1986, p. 200) naturalizou o sexo masculino e o feminino concebidos em sua teoria, considerando-os adicionalmente como entidades normais, mas a intersexualidade foi considerada entidade anormal.
Porém, concebendo complexamente os sexos por ele considerados normais, o masculino e o feminino, o autor estabeleceu que “certo nível de hermafroditismo anatômico” constituiria a norma nesse aspecto. Assim, Freud ([1905] 1986, p. 129) supôs que, em cada representante normal do sexo masculino, assim como em cada representante normal do sexo feminino, constariam “vestígios do aparelho sexual oposto” ao seu - mantidos de modo “atrofiado” ou “modificado”.
Se no aparelho sexual de um indivíduo constassem caracteres masculinos somente “vestigiais” ou “modificados”, além de caracteres femininos “desenvolvidos”, esse indivíduo seria uma “mulher normal”. Entretanto, caso, no aparelho sexual de um indivíduo, constassem caracteres femininos somente “vestigiais” ou “modificados”, além de caracteres masculinos “desenvolvidos”, esse indivíduo seria um “homem normal”.
Também, em outros excertos da obra, Freud não considerou como entidades socialmente construídas os sexos concebidos como normais em sua teoria - isto é, macho e fêmea. Nesse contexto, na seção Diferenciação entre o homem e a mulher, Freud ([1905] 1986, p. 200) escreveu:
[...] já na infância, são bem reconhecidas, as disposições masculinas e femininas; o desenvolvimento das inibições da sexualidade - isto é, vergonha, nojo, compaixão, entre outras -, ocorre nas meninas mais cedo e com menor resistência do que nos meninos (Tradução nossa).
Em sua articulação de seu conceito de sexo, implicitamente, Freud ([1905] 1986, p. 200) estabeleceu a existência de pelo menos um atributo que constaria em cada menina, mas não em nenhum menino, isto é, uma “anterioridade” no “desenvolvimento das inibições de sua sexualidade”. Analogamente, de modo indireto, estabeleceu a existência de pelo menos um atributo que constaria em cada menino, mas não em nenhuma menina, isto é, uma “posterioridade” no “desenvolvimento”.
Assim, o autor naturalizou o sexo masculino e o feminino, concebidos como normais - embora tenha estabelecido similaridades, em certos aspectos, entre os integrantes de cada um dos sexos concebidos -, sustentando teoricamente a existência de certas características, constatáveis nos indivíduos em sua infância independentemente de seu suposto sexo.6
Por outro lado, Freud ([1905] 1986, p. 200) desconstruiu, em outro aspecto, as sexualidades masculina e feminina, estabelecendo que a sexualidade das meninas manteria um caráter inteiramente masculino. Aparentemente, nesse caso, o autor sobrevalorizou implicitamente a sexualidade masculina, remetendo a sexualidade feminina à masculina; e não o contrário. Entretanto, ostensivamente, identificou entre si ambas as sexualidades em certo sentido.
Além disso aparentemente Freud ([1905] 1986, p. 200) intuiu, ainda na edição original7 da obra, que, se conseguisse conceituar mais exatamente a masculinidade e a feminilidade, seria consistente a suposição da natureza masculina da libido - isto é, da natureza da libido em cada “homem” e em cada “mulher”, independentemente da subcategoria [representacional] na qual se inserissem os objetos [sexualmente] selecionados por cada um.
No entanto, em nota adicionada em 1915, Freud identificou a masculinidade com atividade e a feminilidade com passividade, implicitamente atribuindo à libido a natureza masculina.
Considerações finais
Em 1905, Freud criticou os conceitos vienenses de sexo e de sexualidade. Contrariando algumas teorias, considerou a sexualidade de um indivíduo como normalmente iniciada na infância e não resultante [exclusivamente] de seu sexo, nem de suas experiências individuais - mas determinada na interação entre essas experiências e certas predisposições sexuais individuais, possivelmente relacionadas com sua constituição sexual anatômica. Entretanto, apesar do desenvolvimento crítico de seus conceitos de sexo e de sexualidade - subversivos em certos sentidos -, não desessencializou tais conceitos em sua obra. Mas em alguns excertos, Freud os normatizou abertamente.
O artigo Três ensaios mantém um caráter mais analítico e até subversivo do que um caráter normatizador da sexualidade. Algumas noções de Freud, como a de perverso-polimorfismo individual originário, seriam coerentemente articuláveis em teorias subversivas em âmbitos identitários e sexuais. Contudo, embora a teoria freudiana contenha instrumentos teóricos subversivos utilizáveis em críticas à essencialização da normatividade denominada por Butler (1990) de matriz heterossexual, Freud contrariou não ostensivamente certa subversividade de alguns dos seus instrumentos. Recorrendo a essencializações e a normatizações, reiteraria ocultamente, a matriz heterossexual.
Ainda que tenha contrariado certas concepções sociais acerca dos sexos, Freud ([1905] 1986) estabeleceu não somente que os chamados hermafroditismos - atualmente denominados intersexualidades -, seriam anormalidades, mas também que a constatação da sua existência ocasionaria o entendimento de um desenvolvimento individual normal.
Nesse sentido, o autor naturalizou o sexo masculino e o feminino concebidos em sua teoria, considerando-os como entidades normais e a intersexualidade como entidade anormal. Diferentemente de Butler, Freud não considerou o sexo como entidade socialmente construída. Porém, concebendo complexamente os sexos considerados como normais, ele estabeleceu que “certo nível de hermafroditismo anatômico” constituiria a norma nesse aspecto.
No entanto, Freud ([1905] 1986) normatizou a sexualidade e estabeleceu nessa normatização critérios muito mais complexos que os contidos nas conceituações mais comuns da normalidade por ele criticadas. Nesse sentido, ele considerou como normalidade no adulto a vestigialidade ou a circunstancialidade dos denominados desvios sexuais e como anormalidade a exclusividade destes.
Nesse caso, de modo indireto, a inversão absoluta - na qual as denominadas perversões não seriam vestigiais ou circunstanciais, mas exclusivas - seria considerada em Três ensaios como relacionada com anormalidade, mas as inversões anfígenas e ocasionais, assim como a heterossexualidade, não seriam consideradas desse modo. Assim, ainda que tenha asseverado mais amplamente a não anormalidade das denominadas inversões, Freud reiterou indiretamente a consideração como anormalidade de uma de suas variedades: a denominada inversão absoluta.
Por outro lado, Freud (1905) desconstruiu em outro aspecto as sexualidades masculina e feminina, estabelecendo que a sexualidade das meninas manteria um caráter inteiramente masculino.
Neste artigo, analisamos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, [1905] 1986), discutindo certos enunciados freudianos no intuito de evidenciar os esquemas normativos implícitos constituídos no modo não problematizado como o autor os construiu. Por meio de nossa análise, sustentamos a noção de que, mesmo esta obra freudiana, considerada extremamente subversiva no meio psicanalítico, seria criticamente revisável, assim como a noção de que, não sendo revisada, seria utilizável como instrumento de manutenção da denominada matriz heterossexual.














