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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.46 no.87 Belo Horizonte jun. 2024  Epub 19-Maio-2025

https://doi.org/10.5935/0102-7395.v46n87.04 

TEORIA PSICANALÍTICA

O percurso do conceito de repetição em Freud

THE CONCEPT OF REPETITION IN FREUD

Consuele Cordeiro Antunes1 

Psicóloga. Psicanalista em formação pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

1Pós-graduanda em Psicologia da Saúde e Hospitalar. Membro da equipe da Clínica Ampliada de Saúde Mental (CASM). E-mail: consuele.antunes@gmail.com


Resumo

A repetição é um fenômeno feito conceito, central na clínica e na teoria. Apresentamos um percurso do conceito em Freud, com seus momentos de virada e refletimos a respeito de suas implicações clínicas, com o intuito de acompanhar o caminho percorrido pelo autor desde as colocações anteriores ao status de conceito até sua elaboração como tal.

Palavras-chave: Repetição; Percurso; Conceito; Retorno

Abstract

Repetition is a phenomenon made concept, central to clinic and theory. We present a path of the concept in Freud, with its moments of turn and reflect on its clinical implications, in order to accompany the path taken by the author from previous places to concept status to its elaboration as such.

Keywords: Repetition; Pathway; Concept; Return

Há algum tempo a questão da repetição vem capturando minha atenção de forma enfática, como resultado de experiências clínicas desafiadoras no âmbito da escuta da repetição e a consequente angústia provocada pela pergunta: como operar com algo que se apresenta não só como insistente mas também com características de um micélio?

A repetição guarda em si uma contradição interessante: por um lado, é percebida com facilidade pelas pessoas, que costumam procurar análise por um sofrimento que se repete, que insiste; por outro lado, a repetição se coloca como enigma teórico: o que é isso que tanto insiste em reaparecer ainda que seja profundamente desprazeroso e que, mesmo com trabalho analítico, segue se repetindo em certa medida? A questão a respeito do que se repete é feita por Freud desde o princípio.

É comum autores abordarem a repetição partindo do texto Lembrar, repetir e perlaborar uma vez que foi a partir desse escrito que Freud (1914/2017) elevou a repetição enquanto conceito. A repetição está presente desde os primórdios freudianos em seus escritos preliminares, ditos não psicanalíticos, e em suas famosas cartas. Freud vai empreender uma investigação sobre a repetição, direta ou indiretamente, ao longo de toda a sua obra, até seus escritos finais. Concepção central na constituição da noção de inconsciente e pulsão, a repetição é também protagonista da maior virada teórica de Freud nos anos 1920.

Já no início de suas investigações dos sintomas histéricos, Freud se depara com a insistência de elementos que se colocam como atualizações cifradas de eventos traumáticos do passado. Avançando na compreensão dos processos da neurose histérica, percebe que, se o sujeito tivesse uma vivência que lhe despertasse uma forte excitação incompatível com sua moral, o Eu se defendia repelindo a representação indesejada/dolorosa para longe da consciência. O afastamento se dava com alto custo energético, uma vez que a representação afastada continuava tentando voltar. Em última instância, conclui Freud, essa representação tem origem sempre no sexual. Esse período inicial é marcado pela compreensão de que, ao conseguir fazer com que o paciente se lembrasse da cena traumática, esquecida ou recalcada, ele seria curado. Mas essa compreensão cai por terra com a constatação da insistência do sintoma e da resistência.

A partir da escuta dos sintomas, dos conflitos ocultos, da reedição desses conflitos e, principalmente, da insistência da representação em emergir e o consequente contra investimento aplicado contra a mesma, Freud pôde perceber os mecanismos inconscientes e, assim, empreender a formulação do que viria a ser o aparelho psíquico.

Fundando o aparelho psíquico as experiências excitatórias vão deixando marcas, traços mnêmicos. A excitação é o signo do despertar da pulsão, essa energia constante que habita entre o somático e o psíquico, e promove a interface entre os dois campos. Enquanto no somático a pulsão encontra sua fonte, no psiquismo manifesta-se através de seus representantes. A quantidade de excitação proporcionada por uma experiência atribui um caráter de fixação ou não.

A cartografia inconsciente é composta por uma constelação de representantes psíquicos, cada qual com sua carga pulsional, libidinal. A marcação das primeiras experiências e suas possíveis fixações constitui uma rota nomeada por Freud como facilitação, ou seja, um caminho facilitado para obtenção de satisfação. Cada fixação tem o seu, digamos, campo gravitacional que exerce uma atração nas experiências seguintes. Os representantes tendem a seguir a rota traçada pelas primeiras experiências. O tráfego no psiquismo aspira à constância, tanto na rota quanto na intensidade.

Entendemos que a repetição se faz presente no meandro da formulação do aparelho psíquico e sua dinâmica de funcionamento antes mesmo de alcançar o patamar de conceito. É possível inferir sua presença, antes mesmo de sua conceituação e apesar de sua distinção em conceitos importantíssimos como pulsão, sintoma, transferência, resistência, retorno do recalcado.

Essa concepção nos direciona para a observação de que há, na repetição, para além de seu aspecto patológico, algo que marca sua participação na constituição do próprio aparelho psíquico, que serve ao sujeito como sustentáculo. É pela repetição que há um caminho facilitado, e “[...] Freud reconheceu nessa repetição bastante enigmática e incoercível a ação de uma força pulsional muito poderosa e basal que comandaria o aparelho psíquico [...]” (Jorge, 2020, p. 493).

Pode-se dizer que o retorno é um princípio inerente à constituição e ao funcionamento psíquico. O retorno é uma característica, portanto, do inconsciente, então a repetição também está incluída neste princípio, apenas acerca do que devemos igualmente estar atentos que ela não pode ser confundida com aquele (Paiva, 2019 p. 12).

Em Atos obsessivos e práticas religiosas, antecipando um aspecto daquilo que será fundamentalmente trabalhado no texto de 1914, Freud (1907/2006) analisa de forma comparativa os dois fenômenos, a fim de explicitar o que há neles de representativo, de simbólico. Se, na prática religiosa, esse simbolismo é compartilhado pelos crentes, nos atos obsessivos, ele é particular e “o que está sendo representado em atos obsessivos e em cerimoniais deriva das experiências mais íntimas do paciente, principalmente das sexuais” (Freud, 1907/2006, p. 111).

Aqui aparece o embrião da ideia posteriormente desenvolvida de que se repete em atos, se atualiza, o conteúdo recalcado e o conflito inconsciente. Percebendo-se o fracasso do recalque na sua tarefa de defesa da consciência assim como a força existente no sentido de retorno do conteúdo recalcado.

Repete-se em ato aquilo que já não é possível lembrar. Esse é o ponto central de Lembrar, repetir e perlaborar, texto que integra um conjunto de escritos em que Freud (1914/2017) se preocupa em delimitar a técnica psicanalítica devido a divergências no âmago do movimento psicanalítico e fundamental no trabalho com a repetição. Decerto como as divergências são pontos cruciais, o caráter sexual na etiologia da neurose, por exemplo, o autor inicia o texto a partir de um percurso onde coloca as transformações ocorridas na teoria psicanalítica ao longo da sua elaboração e estabelece a prática analítica no momento da escrita. A teoria viria a sofrer outras grandes transformações.

De início, lançava-se mão do método catártico e da hipnose para alcançar o objetivo de então: lembrar e ab-reagir, ou seja, possibilitar uma descarga afetiva que liberta o sujeito de um afeto ligado a uma recordação traumática. Agora, da escrita do texto, não se objetiva localizar uma cena, uma recordação, mas seguir a dinâmica do sujeito para superar as resistências e preencher as lacunas das lembranças, da história esquecida, recalcada do sujeito. A interpretação serviria a esse fim.

Freud preconiza o esquecimento como uma espécie de bloqueio. O esquecimento da infância seria encoberto por lembranças que guardam em si elementos de sua origem, elas guardam o que há de essencial da infância, “elas representam os anos de infância esquecidos tão bem quanto o conteúdo manifesto do sonho representa os pensamentos dos sonhos” (Freud, 1914/2017, p. 153).

O que não é lembrado é atuado e persiste fazendo-se presente na repetição.

[...] podemos dizer que o analisando não se lembra de mais nada do que foi esquecido e recalcado, mas ele atua com aquilo. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele repete sem, obviamente, saber que o repete (Freud, [1914] 2017, p. 154).

Freud chama atenção para a relação entre repetição, transferência e resistência. Ele estabelece a resistência como uma parte da repetição e a repetição como uma atuação do passado impedido de ser lembrado. Dito de outra maneira, a repetição se coloca como uma alternativa diante da impossibilidade da lembrança, e ela mesma é uma maneira de lembrar. Quanto mais intensa for a resistência, há mais chances de o paciente deixar de lembrar e passar à atuação. Esse movimento fica claro para ele, ao tomar o estado hipnótico, ideal para o lembrar, só sendo possível justamente por ter posto a resistência amplamente em suspenso.

No estudo da relação entre os três conceitos diante da possibilidade de o tratamento seguir com uma transferência positiva e suave, o caminho no sentido de lembrar experimenta significativos avanços. No entanto, se a transferência é hostil ou muito intensa e, por isso, sujeita ao recalque, o lembrar passa à atuação. A partir daí as resistências ditarão o que será repetido, pois “é no arsenal do passado que o doente busca as armas com as quais se defende da continuidade do tratamento e que precisamos tirar dele peça por peça” (Freud, 1914/2017, p. 156).

O paciente repete sob as premissas da resistência. E o que ele repete? Freud (1914/2017, p. 156) responde: “[...] tudo aquilo que se impôs a partir das fontes de seu recalque em sua essência evidente, suas inibições e posições inviáveis, seus traços de caráter patológicos”. E apresenta o manejo da transferência como recurso para conter a compulsão à repetição.

Um manejo de transferência bem-sucedido, segundo Freud (1914/2017), é aquele que mantém a compulsão à repetição se manifestando apenas no campo transferencial. Além de conter seu potencial destrutivo, disponibiliza um campo seguro para atuação e possibilita o vislumbre das pulsões patológicas da vida anímica do paciente. Assim, as pulsões antes recalcadas podem atuar sob transferência, e o paciente fica menos vulnerável aos efeitos em sua vida fora da transferência. O trabalho de manejo propicia esse arranjo sob uma medida fina, uma vez que a transferência se torna intensa demais ela propicia o acirramento da resistência e a consequente atuação. “A transferência cria, assim, uma zona intermediária entre a doença e a vida, onde se dá a transição da primeira para a segunda” (Freud, [1914] 2017, p. 160). Permite – se repetir na transferência, para poder lembrar, possibilitando operar uma ligação na energia que se encontra livre.

No texto Lembrar, repetir e perlaborar,Freud (1914/2017) nos localiza não somente nas mudanças das concepções clínicas e teóricas da psicanálise, mas também nos apresenta a intrínseca ligação existente entre os conceitos presentes no título, além dos conceitos de transferência e resistência. No que se refere à repetição até aqui, Freud a tem como uma força que reedita componentes psíquicos que anteriormente não podiam ser lembrados; ela está essencialmente vinculada tanto à pulsão sexual, na insistente busca por satisfação, quanto à transferência e à resistência.

Nesse momento do desenvolvimento teórico prevalece a concepção do primeiro dualismo: pulsões sexuais em contraposição às pulsões de autoconservação (pulsões do Eu). O conflito se instaura uma vez que o sujeito está sob a égide do princípio de prazer, em que as pulsões buscam satisfação sem absolutamente nenhum freio. É justamente nas pulsões de autoconservação que encontrarão alguma oposição à busca vertiginosa por satisfação, estabelecendo, assim, o conflito entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação; princípio do prazer e princípio de realidade.

Até este ponto o princípio de prazer é um dos fundamentos que regem o funcionamento do aparelho psíquico. Compreende-se, economicamente, que o aumento de excitação, uma grande quantidade de energia, no aparelho é sentido como desprazer enquanto a liberação, a diminuição dessa energia é sentida como prazer. A atividade psíquica tem como objetivo evitar o desprazer e buscar o prazer.

Laplanche e Pontalis (2016) destacam que o princípio de prazer não sofre grandes alterações ao longo da obra, entretanto se coloca como um problema com relação a outras elaborações como as próprias concepções de prazer e desprazer, por exemplo.

A questão do princípio de prazer segue cada vez mais em evidência e encontra o ápice da sua problematização no período da Primeira Guerra Mundial. O advento das neuroses de guerra coloca Freud diante da insuficiência do princípio de prazer para explicar alguns fenômenos.

Roudinesco (1998) esclarece que a neurose de guerra, neurose traumática, reacende uma discussão antiga a respeito da origem traumática das neuroses. A questão primordial nesse ponto se refere à possibilidade de esclarecer se os soldados estavam mesmo enfermos ou se tratava de simulação. Psiquiatras de toda parte eram convidados a dar um parecer sobre o assunto. Freud foi solicitado como perito em uma ocasião em que, além de atestar o caráter do adoecimento, teceu críticas contumazes às técnicas utilizadas no intuito de fazer com que os soldados voltassem rapidamente aos campos de batalha.

A respeito das neuroses traumáticas se estabelecem dois caminhos depreendidos do evento traumático: o evento funciona como um elemento desencadeador, indicativo de uma estrutura neurótica já existente ou o traumatismo se torna parte do sintoma que apresenta como uma tentativa de operar uma ligação e uma ab-reação do trauma (Laplanche; Pontalis, 2016). É a partir da apresentação do traumatismo como parte do sintoma com os sonhos repetitivos – os flashbacks dos eventos traumáticos vividos pelos pacientes – que se coloca fortemente a questão da hegemonia ou não do princípio de prazer na vida psíquica, uma vez que os pacientes repetiam incessantemente as vivências profundamente desprazerosas.

A neurose de guerra entra em conflito com a proposta de Freud de que a neurose estaria intimamente vinculada à sexualidade, tendo sido resultado de um conflito entre o eu e as moções pulsionais do isso. Desta maneira, como estender tal dinâmica à neurose de guerra, uma vez que, neste caso, a finalidade econômica da pulsão pareceria contrariar o princípio de prazer, afastar-se da sexualidade? Assim, as neuroses de Guerra se distinguem das neuroses comuns por apontar algo além da pulsão sexual e do princípio do prazer, se colocando, portanto, como uma via para a formulação do conceito de pulsão de morte (Oliveira; Ligeiro, 2021, p. 44).

Ao se dedicar à investigação da causa da repetição de algo desprazeroso, Freud (1920/2020) publica o ensaio Além do princípio do prazer. Esse texto polêmico, que marca uma virada de extrema importância na teoria psicanalítica, tem como característica uma alta carga de especulação apontada por vários comentadores e pelo próprio Freud.

Além disso, é um texto muito complexo e singular na obra freudiana com citações e fontes diversas, com diferentes entradas, conforme Iannini (2020). Para não nos perdermos nem nos desviarmos do curso empreendido aqui, nos deteremos no que concerne à repetição.

A questão lançada sobre o princípio de prazer pelas neuroses de guerra evidencia de fato um ponto que já vinha ocupando Freud havia tempo. Ele abre o texto reafirmando a supremacia do princípio de prazer na regulação dos processos psíquicos. E ao longo da primeira seção, segue apresentando o que a psicanálise entende como prazer e desprazer, reapresenta a concepção do aparelho psíquico e recoloca o conflito entre o princípio de prazer e o princípio de realidade com as implicações ocorridas do âmbito das sensações de prazer/desprazer. A questão está posta: como é possível que o aparelho busque prazer, se a experiência clínica mostra justamente o contrário?

Se existisse um domínio como esse, a imensa maioria de nossos processos anímicos deveria ser acompanhada de prazer ou conduzir ao prazer, ao passo que a experiência mais comum contradiz energicamente essa conclusão. Então somente pode ser que na psique exista uma forte tendência ao princípio de prazer, à qual se opõem certas outras forças ou circunstâncias, de modo que, o resultado final nem sempre possa corresponder à tendência ao prazer (Freud, 1920/2020, p. 65).

Freud distingue dois tipos de desprazer, apesar de ressaltar a existência de outros. O primeiro tem sua origem no processo de recalcamento de moções pulsionais inerente à formação do Eu; esses conteúdos recalcados seguem sendo fontes de desprazer para o Eu quando encontram uma forma de satisfação. O segundo tipo, que é fonte da maior parte deles, são os desprazeres de percepção, percepção de acúmulo de pulsões insatisfeitas no aparelho ou percepções externas. Essas percepções são sentidas como perigo.

Freud investiga o processo em que o recalcamento transforma uma possibilidade de prazer em desprazer. Na esteira dessa investigação, ele chega às neuroses traumáticas e à fixação nos eventos causadores de grande sofrimento. Preconiza que essa fixação na experiência desencadeadora de trauma nada tem de novo, uma vez que essas fixações são observadas desde o começo da investigação psicanalítica nos estudos dos sintomas histéricos.

Freud esboça uma pergunta: como conciliar, com o princípio de prazer, a repetição de uma produção ativa de experiência dolorosa? A partir da observação das brincadeiras infantis, o famoso fort-da, em que observa seu neto atirando um carretel para longe e o puxando de volta, são expostos dois processos anímicos: o primeiro é a passagem de uma experiência vivida passivamente pela criança à repetição agora de forma ativa. Se, em um primeiro momento, a criança sofre com a saída da mãe vivida como um desaparecimento, na brincadeira ela faz com que o carretel/mãe desapareça. Ao empreender o desaparecimento ativamente, ela opera também uma vingança contra a mãe que sumiu, como quem diz: antes que você me deixe eu me desfaço de você.

No começo, o analista procurava descobrir e estabelecer quais eram as conexões inconscientes e interpretá-las para o paciente. A psicanálise se fazia na interpretação. Com a observação dos limites terapêuticos desse método, passou-se a procurar que o próprio paciente se lembrasse daquilo que lhe serviu de base para a interpretação. Com esse processo, as resistências para o lembrar ficam em evidência. Percebe-se que não é possível tornar consciente todo o inconsciente. Diante da impossibilidade de se lembrar do que está recalcado, o paciente o repete, presentificando o passado esquecido. É esse movimento de presentificação do passado na transferência, bem como a tomada de consciência desse movimento, que possibilitam algum sucesso terapêutico. Essa era a concepção de repetição até ali e que se mostrava insuficiente.

Freud vai preconizar as resistências como oriundas do Eu, ele mesmo responsável pelo recalcamento. Restabelecendo uma oposição não entre consciente e inconsciente, mas entre o Eu e o recalcado, infere-se que, se as resistências são oriundas do Eu, a compulsão à repetição advém do conteúdo recalcado, inconsciente. Freud se pergunta: “Mas então, em que relação com o princípio de prazer se encontra a compulsão à repetição, que é a manifestação de força do recalcado?” (Freud, 1920/2020, p. 91).

Até esse ponto do texto, Freud vinha colocando pontos de interrogação no princípio de prazer, mas nenhum deles realmente quebrou sua hegemonia. Agora ele cede ao fato de que há outra coisa operando no aparelho psíquico:

Mas fato novo e digno de nota que agora iremos descrever é que a compulsão à repetição também traz de volta aquelas experiências do passado que não contêm nenhuma possibilidade de prazer e que mesmo naquela época não puderam ser satisfações, nem mesmo de moções pulsionais recalcadas desde então (Freud, 1920/2020, p. 91).

O autor constata que a compulsão à repetição traz consigo experiências que não têm nenhuma possibilidade de prazer, a exemplo de vivências infantis que, seja por seu desenvolvimento, seja por exigências culturais, só puderam encontrar a frustração.

Em vista dessas observações extraídas da conduta na transferência e do destino dos seres humanos, encontraremos a coragem para supor que realmente existe na vida anímica uma compulsão à repetição que sobrepuja o princípio de prazer (Freud, 1920/2020, p. 97).

Há algo para além do princípio de prazer. Todos os esforços empreendidos por Freud para manter a soberania do princípio de prazer não são suficientes diante da insistente apresentação da compulsão à repetição. Diante desse impasse teórico, ele apresenta sua formulação da existência de uma pulsão de morte. Empreende uma longa elaboração teórica em que percorre o caminho traçado pela, digamos, evolução pulsional e sua relação com a vida e a morte do organismo. Nesse momento um novo dualismo impera: pulsão de vida versus pulsão de morte.

A repetição figura entre os principais motivos que levaram Freud à hipótese da pulsão de morte, dizem Laplanche e Pontalis (2016, p. 408):

A tomada em consideração, nos mais diversos registros, dos fenômenos de repetição que dificilmente se deixam reduzir à busca de uma satisfação libidinal ou a uma simples tentativa de dominar as experiências desagradáveis; Freud vê neles o sinal do “demoníaco”, de uma forma irreprimível, independente do princípio de prazer e suscetível de se opor a ele. A partir dessa noção, Freud é levado à ideia de um caráter regressivo da pulsão, ideia que, seguida sistematicamente, leva-o a ver na pulsão de morte a pulsão por excelência.

Seguindo nesse fio, Freud opera muitos esclarecimentos teóricos, mudanças de rumo não só teóricas, mas também clínicas e de compreensão do tratamento.

Como podemos perceber na trajetória teórica de Freud, as diferentes formulações sobre o conceito de repetição dão lugar a diferentes concepções sobre o tratamento psicanalítico e à ideia de cura. Esse percurso vai desde a concepção de que, pela descoberta do recalcado, a psicanálise poderia fazer cessar essa repetição, até a conclusão de que essa repetição é constituinte/constitutiva do sujeito (Kaufmann, 1996, p. 452).

O estudo sobre a compulsão à repetição abre novos caminhos na concepção do conceito de masoquismo, na compreensão da angústia, na discussão sobre o fim do processo analítico, enfim, acompanha Freud até seus últimos escritos. Ele encontra muitos sucessos em seus questionamentos; no entanto, no que diz respeito à relação existente entre princípio de prazer e compulsão à repetição permaneceu sem respostas claras.

Vemos a repetição como uma grande rede micelial com suas hifas que tudo conectam, correndo em seu interior a pulsão. Existem hifas de maior e menor calibre, periféricas e centrais. Percebemos no fazer clínico, este certo tipo de separação de repetições, se assim podemos dizer, uma com a qual é possível fazer algo através do trabalho analítico e produzir alguma mudança, e outra sobre a qual recai o nominado por Freud de demoníaco, o que traça, esculpe, entalha um percurso pulsional pelo qual parece que nada é possível fazer além de estar sob aviso e com certa ciência de seus moldes e caminhos. φ

Referências

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Recebido: 15 de Fevereiro de 2024; Aceito: 12 de Abril de 2024

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