Introdução
As unidades de acolhimento (UA) são espaços destinados a receber crianças e adolescentes que, por situações graves de violação de direitos, tiveram que ser afastadas das famílias de origem, a fim de receberem proteção integral, conforme determinado no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990; Martins & Santos, 2022). Prevê-se que essas unidades sejam espaços que se assemelham à convivência familiar, que podem ser caracterizadas, de acordo com o seu formato e finalidade, como Casas-lares, Abrigos Institucionais ou Famílias Acolhedoras. Nesses espaços, o trabalho desenvolvido tem por objetivo resguardar os direitos dos acolhidos à saúde, educação, moradia e convivência comunitária. No decorrer do processo de acolhimento e mobilização da rede intersetorial que compõe o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), encaminha-se a restituição do vínculo com a família de origem e, se isso não for possível, realiza-se uma busca pela inserção da criança e ou adolescente numa nova família (CONANDA, 2009).
Segundo o último relatório lançado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2020), foi registrado, no Brasil, um total de 34.157 crianças e adolescentes acolhidos, dos quais 8,4% (2.881) estão cadastrados para adoção. Analisa-se no relatório que a possibilidade de adoção é inversamente proporcional à idade das crianças e adolescentes acolhidos. No período de maio de 2015 a maio de 2020, 51% das adoções foram de crianças de até 3 anos completos e apenas 6% foram de adolescentes (maiores de 12 anos completos). Salienta-se, ainda, que “os adolescentes representam 77% do total de crianças e adolescentes disponíveis e não vinculados no SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento), havendo mais adolescentes cadastrados no SNA do que pretendentes que desejam adotá-los” (CNJ, 2020, p. 27).
Observa-se que tanto o contexto de acolhimento quanto seus desdobramentos envolvendo a separação e restituição do vínculo da criança e adolescente com a família de origem ou extensa e a adoção estão marcados por contradições. Há uma ambiguidade manifesta na compreensão que as crianças e adolescentes têm acerca da UA, que ora se revela como um espaço seguro e que garante a manutenção dos direitos básicos, ora evidencia a dor vivenciada frente ao afastamento da família de origem e o desgaste em função dos motivos que levaram à separação. Implica dizer que são substituídos e garantidos o acesso e direito à moradia, ao alimento e aos demais bens que resguardam a manutenção da vida; todavia, não é possível substituir os vínculos de afeto outrora construídos e agora afastados (Oliveira, 2007). Diante do caráter paradoxal sob o qual o acolhimento institucional está fundado, é fundamental considerar como as violências e restrições de direitos se retroalimentam dentro do contexto social até que ocorra a retirada da criança ou adolescente da sua família de origem. Cleto et al. (2019, p. 158) destacam as “mulheres-mães que, além de vivenciar situações de violência cotidiana perpetradas por seus parceiros íntimos e/ou familiares, sofrem, ainda, com o afastamento dos filhos do convívio familiar” e se percebem, na maior parte das vezes, sem recursos materiais e sociais que lhes permitam modificar a situação de vulnerabilidade na qual elas e seus filhos se encontram.
No que tange à adoção, observa-se que há um perfil ideal (menor de dois anos, branco e do sexo feminino) de pessoas passíveis de adoção (CNJ, 2020; Faleiro & Kessler, 2020). Tal perfil esboça a manifestação do desejo que é anterior e, por vezes, alheio ao próprio sujeito que aguarda adoção. Contudo, ao recair no discurso comum, esse desejo é assumido como algo naturalizado, restando, em última análise, que a criança e adolescente adotados apenas aceitem com gratidão, e sem qualquer desconforto, a suposta benevolência manifesta por pessoas que lhes ofertam a possibilidade de serem recebidos numa (nova) família (Sampaio et al., 2020; Silva & Vendruscolo, 2021).
Concernente às situações supracitadas, as quais perpassam a experiência de acolhimento, este estudo tencionou, a partir da escuta das narrativas de história de vida de adolescentes com trajetórias de acolhimento institucional, analisar a vivência da adolescência retratada nos relatos ofertados pelos adolescentes, compreendo-os em suas dimensões subjetivas e identitárias, e articulá-la com os determinantes sociais e políticos que permeiam o adolescer. Argumenta-se, assim, a favor de uma leitura crítica acerca da adolescência, visto que, conforme demonstram Aguiar et al. (2007), grande parte dos estudos científicos se desviam de uma análise que busque alcançar a totalidade do fenômeno e pensam a adolescência a partir de um modelo de adolescente de classe social privilegiada, inserido numa família nuclear e com acesso aos mais variados recursos, como alimentação, saúde, educação e lazer, embora essa não seja uma condição natural nem, muito menos, universal.
Nesse intento, assume-se que discursar e refletir sobre a adolescência constitui um exercício de compor um foco de análise voltado para as expressões da vida e organização da humanidade e perceber como elas ora se transformam, ora se cristalizam (Franceschini & Weschenfelder, 2021). Atualmente, é complexo até mesmo nomear o que é a adolescência. Seria ela uma etapa do desenvolvimento humano, um fenômeno, uma produção histórico-cultural, um estigma? Diversas são a formas de analisar e descrever esse “momento” da vida, e até a tentativa de demarcá-la temporalmente é controversa, visto que, mesmo nos documentos oficiais, o intervalo etário estabelecido é variado1.
Em meio às tentativas de demarcação sobre o que constitui elemento identificador do que é a adolescência, é possível, ainda, percebê-la, em suas caracterizações nos diferentes discursos científicos, como um estágio de desenvolvimento, como processo marcado pela cultura, economia e valores sociais, e mesmo enquanto condição (puramente) biológica, o que assume, inclusive, um caráter reducionista, por tomar a puberdade (marco da maturação biológica do organismo) como elemento que marca início e término a essa etapa (Oliveira & Oliveira, 2022). Contudo, partindo de um olhar histórico-cultural, o qual direciona as análises tecidas neste artigo, visualiza-se a adolescência como síntese de múltiplas determinações, pois, como afirma Vigotski (1999), faz-se necessário recorrer ao método histórico para a investigação dos fenômenos naturais, humanos e sociais, uma vez que “é somente em movimento que o corpo mostra quem ele é” (p. 86). Portanto, considera-se fundamental a ciência de que adolescência é:
(…) uma construção social com repercussões na subjetividade e no desenvolvimento do homem moderno e não como um período natural do desenvolvimento. É um momento significado, interpretado e construído pelos homens. Estão associadas a ela marcas do desenvolvimento do corpo. Essas marcas constituem também a adolescência enquanto fenômeno social, mas o fato de existirem enquanto marcas do corpo não deve fazer da adolescência um fato natural. (Bock, 2007, p. 68)
Com vistas a alcançar o objetivo desta investigação, atenta-se para aquilo que nos discursos dos adolescentes suscita reflexões sobre o que é a adolescência, sobre o que é ser um adolescente após a entrada numa UA e sobre como é vivenciar uma adolescência marcada pela dinâmica destacada por Sotero (2011) como vulnerabilidade/vulneração. Sotero afirma que a vulnerabilidade pode ser compreendida como uma condição humana em potencial, como quando se pensa na inexorabilidade da morte e na fragilidade da vida, bem como algo que se instaura em diferentes gradações, nas quais os grupos minoritários se localizam com um maior grau de vulnerabilidade se comparados àqueles grupos marcados por privilégios sociais e econômicos. A autora acrescenta o conceito de vulneração referente a situações em que os impactos do alto grau de vulnerabilidade evidenciados pela ausência de direitos básicos, como saúde, educação e moradia, já se efetivaram, de forma que “se passa a identificar esse grupo como vulnerado e não mais como vulnerável, no sentido genérico e existencial extensivo a toda a humanidade” (Sotero, 2011, p. 202).
O acolhimento institucional se constitui como uma proposta de oferecer às crianças e adolescentes a garantia de uma proteção integral, conforme proposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). Desse modo, o acolhimento institucional é previsto em situações nas quais ocorre uma restrição ou violação de direitos, demarcadas, aqui, como situações de vulneração. Os adolescentes que participaram desta pesquisa passaram por diversas violações, a citar: negligência dos responsáveis pelos seus cuidados; impossibilidade de acesso à escola; enfrentamento de um contexto em que os pais faziam uso problemático de álcool e de outras drogas; e abusos físicos e sexuais. Todas essas violações evidenciam a perpetuação das desigualdades sociais e da falta de acesso a direitos constitucionais por grande parte da população brasileira, incluindo os pais e responsáveis pelas crianças e adolescentes institucionalizados, que também são sujeitos socialmente vulneráveis/vulnerados.
Apesar das diferentes vulnerações sofridas anteriormente à entrada na UA, observa-se que a experiência daqueles que nela residem é, frequentemente, marcada por ambiguidades. Enquanto a instituição constitui um espaço de garantia de direitos e oferta de oportunidades, também se expressa como local que demarca a restrição do vínculo familiar, excesso de regras e normas (Oliveira, 2007). Demanda-se, assim, ao considerar o papel social das UA, um aprofundamento crítico que confira acesso à compreensão dos problemas sociais estruturantes, como a desigualdade social, bem como a formulação de intervenções eficazes e pautadas na compreensão da dignidade humana, independentemente de cor, gênero ou classe social, por exemplo (Rodrigues et al., 2021).
Considerando o objetivo proposto e os temas que orientaram a investigação, este artigo está organizado da seguinte forma: Após a apresentação nesta introdução da discussão central que será realizada no artigo e do objetivo que orientou o presente estudo, será brevemente descrito o percurso metodológico realizado. Na sequência, serão apresentados os resultados e discussões da pesquisa, por meio da análise de excertos das narrativas de história de vida dos adolescentes em acolhimento institucional que deram base para a construção das categorias de análise que serão apresentadas. Por fim, serão tecidas considerações acerca da reflexão sobre a dinâmica histórico-social da vivência da adolescência e indicados novos percursos de investigação que emergem deste estudo.
Método
Delineamento
A abordagem desta pesquisa foi qualitativa, tendo por base um conjunto de estudos pautados na visão da psicologia social crítica (Alves, 1997; Mayorga, 2006; Muniz Neto et al., 2014) e sócio-histórica (Bock, 2007; Ozella, 2002) acerca da adolescência. Foram extraídos excertos de narrativas de história de vida (Lima, 2014) construídas junto a adolescentes que residiam, no período da pesquisa, numa Unidade de Acolhimento Institucional (UA).
Participantes
Todos os adolescentes residentes na instituição quiseram participar da pesquisa. Assim, foram entrevistados cinco adolescentes, codificados para preservação da identidade. Os códigos dos participantes foram formados por nomes fictícios, seguidos do número referente à sua idade e letras correspondentes ao gênero: MC (mulher cisgênero); HT (homem transgênero). Os participantes foram Miguel (15HT), Laura (15MC), Ana (13MC), Paula (17MC) e Carol (12MC).
Procedimentos de coleta de dados
As entrevistas narrativas foram abertas e direcionadas pelas seguintes perguntas disparadoras de conteúdo: “Quem é você?”, seguidas do questionamento “Qual é a sua história de vida?”. Assim, compreende-se que, ao organizar sua existência numa estrutura temporal, mas contando-a no presente, o narrador seleciona e interpreta as situações vivenciadas, trazendo à tona elementos que dialeticamente marcam sua existência e constituem sua identidade metamorfose (Ciampa, 2005). Além disso, ao finalizar as narrativas, os participantes foram questionados sobre qual era seu projeto para o futuro, considerando, conforme afirma Alves (2017), que a identidade se manifesta como síntese de uma experiência histórica e que compreender o que se espera e planeja para o futuro constitui um elemento importante para a análise identitária. Todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e cada uma delas alcançou uma duração média de uma hora de áudio.
Procedimentos éticos
O desenvolvimento desta pesquisa foi avaliado e aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ-MG), conforme o parecer 2.413.773, pautado, portanto, nas diretrizes das Resoluções 466/2012 e 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde, 2012, 2016). Após a aprovação do comitê de ética, foi feita uma apresentação inicial para a equipe técnica da instituição sobre os objetivos e métodos da pesquisa. Mediante consentimento institucional, a pesquisadora e primeira autora deste texto realizou um período de observação participante na instituição por três meses e explicou aos adolescentes como funcionam as entrevistas narrativas e qual era a finalidade da pesquisa.
Procedimentos de análise dos dados
Considerando o foco estabelecido para este artigo, os resultados e discussões foram organizados e construídos com base no modelo de análise textual discursiva (Moraes, 2003). Desse modo, procedeu-se à fragmentação do texto, seguida da compreensão de unidades de significado que pudessem ser demonstradas por falas dos adolescentes participantes da pesquisa. Em seguida, alcançou-se a última etapa da pesquisa, na qual é expressa “a compreensão que se apresenta como produto de uma nova combinação dos elementos construídos ao longo dos passos anteriores” (Moraes, 2003, p. 191). Conforme afirma Moraes (2003, p. 201), o exercício que se realiza numa pesquisa qualitativa é o de “construir compreensão, compreender esse nunca completo, mas atingido por meio de um processo recursivo de explicitação de inter-relações recíprocas entre categorias, superando-se a causalidade linear e possibilitando uma aproximação da complexidade”. Assim, pela emergência de novas concepções sobre a adolescência e em diálogo com a literatura científica mencionada anteriormente, foram originadas duas categorias de análise: (1) Adolescência vulnerável/vulnerada e institucionalizada; (2) Visão adultocêntrica da adolescência e a vivência da autonomia no adolescer.
Resultados e discussão
Adolescência vulnerável/vulnerada e institucionalizada
Ao longo do desenvolvimento das formas de organização da sociedade, são postulados novos valores, nomes, classificações e divisões para os efeitos das transformações econômicas, históricas, sociais e culturais de um determinado povo e seus indivíduos. Desse modo, deve-se apreender como um movimento contínuo a expressão de quem o ser humano é, e o que ele pode e deseja vir a ser. Observa-se que o surgimento da adolescência é uma dessas manifestações do rearranjo da vida em sociedade (Aguiar et al., 2007).
Assim, o início desta análise sobre o adolescer demanda a construção prévia de reflexões específicas sobre o tema que dialoguem sobre o que envolve adolescer num contexto de acolhimento institucional, visto que se parte de uma concepção de desenvolvimento humano permeada por determinantes não apenas biológicos e psicológicos, mas também políticos, culturais, econômicos e sociais. Desse modo, destaca-se inicialmente que, ao discorrer sobre o percurso de acolhimento, considerando os fatores que justificaram as entradas na instituição, observaram-se pontos de convergência nos relatos dos adolescentes acerca do envolvimento dos familiares em contextos de uso e venda de drogas lícitas e ilícitas, a negligência manifesta na exigência de que fossem assumidas responsabilidades sem que houvesse preparo para elas, bem como a expressão de inúmeras violações de direitos. Tais observações podem ser destacadas a partir dos trechos relatados abaixo:
Miguel (15HT): A gente morava numa casa de dois cômodos. A gente morou nessa casa por uns… uns… Na verdade, a gente era que nem cigano, né? Mudava de casa, sempre de casa. Já passei fome, já morei na rua com a minha mãe (…) Teve uma vez que… meu padrasto foi bater na minha mãe que ele pegou a pistola da minha mãe calibrada… só que ela tinha tirado o pente na hora.
Laura (15MC): Minha mãe estava deixando a gente sozinha com uma menina de meses, tinha acabado de nascer (…) [meu pai] levava homem pra dentro de casa para beber. Teve [colegas do pai que tiveram] relação com minha irmã (…) ele [o pai] já chegou a pôr nós pra fora de madrugada… eu e minha irmã, porque minha mãe não queria ter relação com ele (…) [fiquei] sem ir na escola quase um ano (…) minha tia me bateu muito porque eu falei que não [arrumaria a casa]… minha perna chegou a ficar toda roxa de chinelada.
Ana (13MC): Meu pai e minha mãe mexia com tráfico, aí eu vim pra cá. Minha mãe matou uma pessoa. Foi pra cadeia. (…) Nós já viveu na rua, já morou… minha mãe ficou uns cinco dias na cadeia (…) a gente ficava com fome e pedia algumas coisas pros outros.
Paula (17MC): Eu presenciei meu pai batendo na minha mãe porque ele chegou bêbado em casa. Aí ele a espancou. Aí a gente foi pro hospital e tudo e eu tentei ajudar ela ainda e em algumas coisas eu não consegui. Até hoje eu fico me perguntando porque eu não consegui, mas eu era só uma criança.
Carol (12MC): Minha mãe morreu, aí eu fui pra casa da minha madrinha. Fiquei lá seis anos e vim aqui pro abrigo. Que não tinha ninguém que me queria.
As vivências anteriores ao acolhimento que marcam a vida dos adolescentes que participaram da pesquisa evidenciam inúmeras situações de violação de direitos. Conforme observa-se nos trechos apresentados, não havia para a maioria deles a garantia de uma moradia, houve falta de alimento, o acesso à escola era deficitário e o apoio social e emocional, além de ausente, agravava-se pelo convívio com situações de violência e insegurança. Refletir sobre a adolescência de indivíduos que vivenciaram uma infância marcada por vulnerabilidades e vulnerações evidencia a crítica de que pensar projetos e estratégias de desenvolvimento humano desconsiderando os contextos de vida consiste em uma utopia falaciosa que sustenta uma lógica social e econômica marcada por privilégios e exclusão.
Com efeito, alcançar analiticamente o fenômeno da adolescência, considerando as marcas constituídas em uma sociedade orientada por uma lógica de desigualdade social, permite constatar que os modos de vida e desenvolvimento humano são afetados pela situação social, política e econômica que circunda os indivíduos. Nesse sentido, pensar a adolescência de pessoas que tiveram seus direitos básicos violados e que atualmente se encontram numa unidade de acolhimento demanda compreender que o adolescer pobre vivencia um alargamento da precariedade contida na estigmatização desse adolescer. Para além do fato de que “a própria narração acerca da adolescência acaba por produzir uma identidade performativa do adolescente” (Muniz Neto et al., 2014, p. 325) como um sujeito instável, rebelde e desobediente, os adolescentes em situação de vulnerabilidade são mais fortemente regidos por um controle social que determina os modos de ser e viver (Muniz Neto et al., 2014, p. 325), fazendo com que até mesmo cenários de violação de direitos se tornem espaços para ações que afirmam, embora sejam inerentemente contraditórias, preservar uma suposta ordem e bons costumes. O relato abaixo demonstra como os próprios dispositivos de segurança que, em casos de afastamento da família de origem e acolhimento institucional, costumam ser os primeiros contatos da criança ou adolescentes com a políticas de intervenção do Estado, acabam, muitas vezes, por sustentar situações de violência simbólica e legitimam políticas identitárias marcadas por estereótipos e conduzem a condutas hostis:
Miguel (15HT): [após apanhar ao ponto de sofrer um aborto, minha mãe] ficou no hospital até se recuperar e o [namorado dela] foi preso porque ele não tinha que se recuperar de nada. E… ela depois que se recuperou, foi presa (…) aí o conselho tutelar foi lá em casa… a cena que me marcou assim, foi essa daqui: (…) meu padrasto chegou algemado lá em casa, aí os policiais revirando tudo de cabeça pra cima (sic). E… os policiais viraram tudo de cabeça pra cima (sic), as… alguns guarda-roupas, as camas… E pra mim isso é uma cena que eu nunca vou esquecer.
Reflete-se, assim, que a sociedade, entendida enquanto um sistema que é produto e produtor dos indivíduos, tende a se representar como vigilante da ordem e dos princípios moralmente consagrados no passado, muitas vezes em tom autoritário e homogeneizador (Martines et al., 2022). Portanto, embora as UAs existam amparadas num discurso constitucional de proteção e garantia de direitos, não se deve fugir ao questionamento do que dá suporte à necessidade de existirem instituições que acolhem crianças e adolescentes. Afinal, importa questionar em que medida o desamparo familiar, as vulnerações sofridas pelos progenitores e uma lógica de Estado reparadora sustentam, em diferentes gerações, a repetição de um cenário de precarização da vida. Questões como essa perpassam a reflexão sobre a adolescência proposta neste artigo, e é necessário assumir que buscar conhecer os caminhos e processos de desenvolvimento humano, demanda, concomitante, refletir sobre as condições de vida que envolvem os percursos de desenvolvimento e humanização.
Visão adultocêntrica da adolescência e a vivência da autonomia no adolescer
Conceituar o que significa adolescência é um desafio contemporâneo, visto que os marcos do desenvolvimento biológico não são parâmetros suficientes para descrever a experiência histórica e cultural que atravessa e orienta o percurso de desenvolvimento humano. Considerando esse paradigma, Mayorga (2006) discute que a busca por uma definição do que é ser adolescente está marcada por um olhar adultocêntrico, que é aquele visto como
(…) um estranho. E diante desse estranho, o adulto se empenhará em colocar uma série de adjetivos para esses sujeitos: aborrescentes (críticos e questionadores), em crise, imaturos (biologicamente e intelectualmente), rebeldes (sem motivos), despreparados (para o trabalho, em alguns contextos, e também para a vida sexual), fora da realidade (demasiado idealistas, pensamento mágico), etc. O adolescente é, em nossa sociedade, o não adulto, aquele que não goza ainda de determinadas qualidades e habilidades e, portanto, privilégios: racionalidade, centramento, maturidade, capacidade, maturação sexual. (p. 16)
Observou-se ao longo da escuta das narrativas de história de vida que, em muitos momentos, os adolescentes apontavam para a condição de se sentirem privados da possibilidade de tomar decisões, ainda que sentissem ter capacidades cognitivas que os habilitavam para se posicionar diante de muitas delas. Laura (15MC), por exemplo, afirma que “antes, eu falava que eu preferia mil vezes a minha mãe do isso daqui, mas não é a gente que escolhe”. Além das decisões ditadas pelo poder judiciário, no percurso de busca por um lar substituto junto à família extensa, Laura (15MC) também afirma que no abrigo diziam a ela, quando havia a oportunidade de passar o final de semana com um membro da família e ela não queria ir, “não, você tem que ir. É a única pessoa que você tem, a única oportunidade”.
Nos trechos apresentados, verifica-se que a necessidade de ter um outro que garanta a manutenção da vida, dada tanto pelo alto grau de vulnerabilidade, quanto por um modelo social que demanda a tutela do adolescente, faz com que a possibilidade de escolha apareça como um ato barrado. Mayorga (2006) traz contribuições para a compreensão da adolescência como uma questão histórica ao discutir a identidade dos adolescentes. A autora aponta que o olhar adultocêntrico transforma-se na voz ativa sobre o que é ser adolescente, de modo a situar esse grupo negativamente, por meio do destaque de atributos necessários para a vida adulta e que lhes faltam. Com isso, o adolescente é visto como um estranho, imaturo, irresponsável e despreparado, que, geralmente, ao ser qualificado com tais adjetivos, passa a se perceber em conformidade com eles.
Os imperativos estabelecidos por um olhar adultocêntrico sobre o adolescente também aparecem em outras narrativas, como na de Miguel (15HT), ao falar sobre sua sexualidade:
Eu sou uma pessoa que é transexual. E que não identifica no corpo de um… de uma mulher (…) Eu só vou tomar hormônio. Porque eu já até conversei com meu médico… eu queria ter uma barba igual à dele. Aí eu vou, eu vou começar a tomar… não agora. Porque eu estou aqui dentro [do abrigo] e eu não posso fazer isso. Depois que eu sair daqui, eu vou começar a tomar um remédio que prepara meu… que vai preparar minhas células para receber o hormônio.
Observa-se nas falas destacadas de Laura (15MC) e Miguel (15HT) a força da política de identidade instaurada sobre o adolescente. As delimitações sociais do que é ser adolescente outorgam um caráter de tutela e, por vezes, atuam como tentativas de silenciamento de desejos e projetos. Contudo, ser humano envolve sempre um ato de resistência, visto que todo indivíduo guarda em si potencialidades criativas que lhe são constitutivas e viabilizadas pela possibilidade de ser consciente de si e dos espaços que ocupa. Remete-se aqui à compreensão de subjetividade revolucionária, aquela que enreda em si a capacidade de transformação (Sawaia & Silva, 2019).
Considerando o caráter de uma subjetividade revolucionária que imagina e constrói para si alternativas perante as mazelas sociais vividas, observa-se nas narrativas dos adolescentes participantes da pesquisa o despontar de uma autonomia que resiste às políticas identitárias que pretendem reduzi-los em relação a quem devem ser, como devem se comportar e pensar e passam, então, a elaborar para si saídas alternativas que encaminham novos desejos, pensamentos e sentimentos:
Laura (15MC): eu não quero ir pra casa de ninguém (…) eu acho que no abrigo tem mais futuro (…) aqui tem muitas oportunidades. (…) no dia 21, eu acho, de outubro, eu vou fazer uma prova que eu vou pro nono ano. Se eu passar nessa prova, ano que vem, em janeiro, a moça vai me contratar [para trabalhar como jovem aprendiz].
Laura (15MC) narra em sua história de vida inúmeras situações de violação de direito: além de ser submetida a trabalhos domésticos exaustivos e a situações em que fora espancada, também foi obrigada, durante o tempo que residiu com a tia, a cuidar do sobrinho adoecido, tendo que deixar de frequentar a escola durante cerca de um ano e meio. Considerando as situações vivenciadas pela adolescente, discutir o significado da autonomia implica não apenas considerar a capacidade de assumir tarefas, mas o modo como tal discurso capacitista pode levar a situações de exploração, bem com à ausência de uma reflexão sobre as condições de vida e apoio social que permitam o desenvolvimento de um senso de responsabilidade e compromisso. Desse modo, pensar sobre a autonomia do adolescente envolve avaliar não apenas suas dimensões biológicas e psicológicas, mas também os significados sociais que ora os colocam como sujeitos imaturos e irresponsáveis, ora os reconhecem como pessoas que devem assumir as mesmas responsabilidades de um adulto. No caso de Laura (15MC), a autonomia se manifesta diante da escolha de planejar um futuro para si que envolva apropriar-se das oportunidades que ela tem recebido no abrigo, desenvolvendo assim atributos necessários para gerenciar sua vida.
Refletir sobre a adolescência pobre e vulnerável suscita a compreensão do adolescer como fenômeno humano de caráter sócio-histórico, isto é, imbuído de inúmeros determinantes sociais que perpassam o desenvolvimento humano, a conquista de autonomia, de um lugar de fala. O adolescer vulnerável subsiste pela ordem da resistência, pela luta em busca de um caminho de possibilidade que se abre em oportunidades mínimas ou ocultadas nos atos institucionais de administração da vida cotidiana. A asserção de Ana (13MC) sobre como julga o que lhe é oferecido aponta para relação que se estabelece entre suporte social e os caminhos para a sobrevivência:
Ana (13MC): Vamos supor, a pessoa vai lá e te oferece maconha. Primeiro você tem que pensar: Você deve? Você quer? Ou você pode fazer isso? Geralmente você tem que pensar isso: Deve, posso, quero? Eu não posso, eu não devo, porque eu não posso pegar. Porque eu sou de menor. Eu quero? Não quero. Se tiver duas negativas, você não pega. Você deve beber isso? Não, porque sou de menor. Então, geralmente a gente tem que pensar isso. (…) Aqui é uma casa de acolhimento. Eu sei que aqui não é tão fácil de ficar. Não é bom de ficar, aqui não é a nossa casa de verdade. Mas aqui é a nossa casa para sobreviver. Porque se não tivesse uma casa, como essa daqui, todo mundo estaria na rua. Pedindo esmola. Sem uma roupa pra ter.
Ana (13MC) iniciou o relato de sua história de vida preocupada com a segurança do sigilo de sua identidade. Questionou: “eu posso mesmo contar tudo?”. Uma vez esclarecida sobre os parâmetros éticos que orientam a pesquisa, iniciou dizendo que a mãe estivera envolvida com o tráfico de drogas e que havia assassinado uma pessoa. Além disso, contou sobre o tempo que morou na rua e sobre a vinda para o abrigo após a prisão da mãe. Não obstante, o relato da adolescente sobre a análise necessária diante da oferta de “maconha” reflete um cenário próximo às suas vivências, ao passo que revela o modo como sua análise foi refinada a fim de considerar o porquê de recusar tal oferta. Esse elemento retrata o modo como a entrevista consegue comunicar sua autonomia de pensamento, visto que diante da oferta e do ensino que recebeu sobre o tema, escolhe analisar as implicações de uma possível aceitação. Além disso, finaliza destacando o sentido que atribui ao abrigo, que é o de ser “uma casa para sobreviver” e, assim, constrói para si mesma um caminho de enfrentamento da sua atual situação de vida, demonstrando novamente como, pela construção e apropriação de significados, assume de forma autônoma a representação sobre o seu viver.
Ao finalizar as narrativas de história de vida, os adolescentes participantes da pesquisa foram convidados, conforme orienta Alves (2017), a descrever seu projeto para o futuro. Defende-se que essa é uma etapa importante da narrativa, tendo em vista que identidade é algo que se constitui e manifesta no tempo e, por isso, “o sujeito que narra é considerado uma totalidade que se manifesta na particularidade de uma história” (Alves, 2017, p. 35). Sobre seus projetos futuros, houve recorrências sobre o desejo de formarem uma nova família quando alcançarem a vida adulta (Laura (15MC), Ana (13MC) e Carol (12MC)), bem como estudar e conquistar oportunidades de trabalho (Laura (15MC), Ana (13MC), Paula (17MC) e Carol (12MC)).
Sobre menções a projetos singulares, destaca-se o de Carol (12MC), que afirmou: “primeiramente, o que eu quero que aconteça é ser adotada (…) porque numa família tem amor, tem carinho… tem atenção”; salienta-se, também a descrição intimista de Miguel (15HT), que afirmou que sobre o seu futuro pensa “em ser uma pessoa melhor, que minha mãe sempre dizia pra mim não ser igual ela”. Reflete-se, mediante os relatos, que anunciar um projeto de vida envolve demarcar para si e para o outro um caminho de possibilidades existenciais, sejam elas factíveis ou não no momento presente. Projetar envolve pensar em caminhos de superação e transformação. Conforme afirma Costa & Alberto (2021), “[a] elaboração de um projeto de vida é uma das questões centrais no desenvolvimento psicológico dos jovens e é a base para a conquista da autonomia e da realização pessoal” (p. 5).
Portanto, finaliza-se esta análise demarcando a resistência de ser e vir a ser, e concomitantemente ressalta-se que o ser humano é um indivíduo constituído num contexto relacional. Desse modo, questionar os determinantes sociais, o papel das instituições e a desumanidade presente na manutenção da desigualdade social, sustenta-se como um ponto de partida fundamental frente à compreensão de que o ser humano é marcado pela potência de ser; porém, “[t]oda existência precisa de ‘intensificadores’ para aumentar sua realidade. Um ser não pode conquistar o direito de existir sem a ajuda do outro, que ele fez existir” (Lapoujade, 2017, p. 25).
Considerações finais
Esta pesquisa tencionou, a partir da escuta das narrativas de história de vida de cinco adolescentes com trajetórias de acolhimentos institucionais, analisar a vivência da adolescência retratada nos relatos ofertados por eles, compreendendo suas dimensões subjetivas e identitárias e relacionando-as com os determinantes sociais e políticos que permeiam o adolescer. A análise desenvolvida deu origem a duas categorias: (1) Adolescência vulnerável/vulnerada e institucionalizada; (2) Visão adultocêntrica da adolescência e a vivência da autonomia no adolescer. Em síntese, a primeira categoria demonstrou como as vulnerações vivenciadas pelos adolescentes impactam seu processo de desenvolvimento humano. Já a segunda, discutiu as implicações de classificar a adolescência, a partir de parâmetros que a reduzem a um adulto ideal, bem como sobre as vias emancipatórias evidenciadas nas resistências cotidianas dos adolescentes que encaminham saídas autônomas diante dos dilemas vivenciados.
Reflete-se, a partir do exposto, que a adolescência não pode ser compreendida se estiver distanciada de sua dimensão material, histórica e dialética. Por essa razão, ao analisar a adolescência enquanto um fenômeno atravessado pelo discurso, instituições e cultura, articulando-a com excertos das narrativa de história de vidas dos/das adolescentes entrevistados, verificou-se a síntese de duas expressões: a adolescência marcada e ou restringida pela lógica da escassez e controle que afeta a regência da vida, do corpo e das relações inscritas numa sociedade administrada pela lógica do capital e a nomeação e qualificação adultocêntrica acerca do fenômeno, vinculada ao debate que se estabelece entre autonomia e adolescência.
Considera-se, portanto, que a análise da adolescência por uma perspectiva crítica e histórico-cultural possibilitou múltiplas ponderações, bem como posicionamentos políticos e sociais frente às mazelas socialmente vividas por tantos seres humanos que, embora inseridos em contextos comunitários, são repetidamente submetidos a condições precárias e distanciadas de um projeto de sociedade que visa ao bem-estar coletivo. Desse modo, a finalização deste estudo abre campo para novos temas de pesquisa, a citar: Como são originadas e percebidas as diferentes concepções de adolescência de acordo com a situação social de desenvolvimento dos sujeitos? Como a família, profissionais da saúde e educadores podem compreender e intervir junto aos adolescentes considerando a totalidade do adolescer, ou seja, seus aspectos biológicos, sociais, culturais, econômicos e políticos?
Ademais, depreende-se e demarca-se como compreensão estruturante para novas pesquisas a necessidade de analisar a adolescência enquanto fenômeno humano complexo que se realiza dialeticamente. Desse modo, conclui-se que não se pode cristalizar a experiência de ser adolescente ou desvinculá-la das condições sociais que a produzem enquanto manifestação singular e histórico-cultural. Afinal, todo ser humano se constitui a partir das relações afetivas, materiais e culturais que o cercam.