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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.56 no.105 São Paulo jul./dez. 2023  Epub 26-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v56n105.03 

Violações

As passivações e seus destinos: As três dimensões do conceito de passivação de Andre Green

Las pasivaciones y sus destinos: las tres dimensiones del concepto de pasivación de André Green

Passivations and their destinies: the three dimensions of André Green’s concept of passivation

Les passivations et leurs destins : les trois dimensions du concept de passivation d’André Green

Fernando Urribarri1 

1Membro da Associação Psicanalítica Argentina (APA), onde coordena o grupo de pesquisa Espaço André Green. Lecionou na Universidade de Buenos Aires (UBA) e foi professor convidado nas universidades Columbia e Paris X. Foi colaborador de André Green em todas as obras posteriores a 2001. Buenos Aires


Resumo

O artigo apresenta uma introdução ao conceito de passivação introduzido - mas pouco desenvolvido - por André Green como parte de sua elucidação dos estados limite. O autor propõe diferenciar (e articular) uma passivação originária (normal), uma passivação traumática e uma passivação transferencial. Algumas consequências técnicas são ilustradas com uma vinheta clínica.

Palavras-chave: André; Green; narcisismo; passivação; pulsão; princípio de prazer

Resumen

Este artículo presenta una introducción al concepto de pasivación introducido por André Green como parte de su elucidación de los estados límite. El autor propone diferenciar (y articular) una pasivación originaria (normal), una pasivación traumática y una pasivación transferencial. Algunas consecuencias técnicas se ilustran con un caso clínico.

Palabras clave: André; Green; narcisismo; pasivación; pulsión; principio de placer

Abstract

This article introduces the concept of passivation introduced by André Green as part of his elucidation of borderline states. The author proposes to differentiate (and articulate) an original (normal) passivation, a traumatic passivation, and a transferential passivation. Some technical consequences are illustrated with a clinical vignette.

Keywords: André; Green; narcissism; passivation; drive; pleasure principle

Résumé

Cet article présente une introduction au concept de passivation introduit par André Green dans le cadre de son éclaircissement des états limites. L’auteur propose de différencier (et d’articuler) une passivation originelle (normale), une passivation traumatique et une passivation transférentielle. Certaines conséquences techniques sont illustrées par une vignette clinique.

Mots-clés André; Green; narcissisme; passivation; pulsion; principe de plaisir

1. Os estados limites, a psicanálise contemporânea

O pensamento de André Green nasce na corrente freudiana francesa, e se desenvolve como parte do movimento pós-lacaniano (Green, 1986), movimento pioneiro da psicanálise contemporânea. Esta última é concebida como uma terceira etapa na evolução da nossa disciplina caracterizada por um novo programa de investigação: depois dos estudos (e modelos) freudianos e pós-freudianos, centrados nas neuroses e nas psicoses respectivamente, estuda os estados limite - representativos das novas formas do mal-estar cultural na globalização. Fonte e motor de um novo paradigma complexo, o programa contemporâneo de investigação define tais estados como devires nos limites da simbolização e da subjetivação e aborda-os no marco do enquadre analítico (e de suas variações) centrado-se nas relações entre a representação e o irrepresentável como eixo do processo de (des) subjetivação (Urribarri, 2010). O afeto, logicamente, desempenha um papel fundamental no pensamento clínico contemporâneo. A passivação é um de seus emergentes.

O conceito da passivação é uma peça-chave da teoria da “loucura privada” (Green, 1996), através da qual André Green teoriza a especificidade das estruturas não-neuróticas. Contribui para elucidar aquilo que proponho denominar como um trauma narcísico primário (diferente do trauma sexual clássico), concebido como determinante da origem e do funcionamento destas estruturas (Urribarri, 2022). Consequentemente a noção de passivação contribui para a compreensão da loucura de transferência, na qual o conflito entre narcisismo positivo e narcisismo negativo afeta a função objetalizante (condição da simbolização) e põe em xeque o processo analítico. Entre as suas consequências técnicas contribui para a compreensão da necessidade e do sentido das variações da técnica e do enquadre. Ou seja, para a extensão do pensamento clínico no sentido de articular o modelo técnico centrado no sonho (e na sua interpretação) com um modelo dialógico do jogo analítico (e de sua transformação).

Há um contraste entre a importância que Green outorga a esta noção e as poucas vezes em que a aborda em seus escritos, onde constatamos diferentes sentidos e diversos usos em torno de um significado principal. Nestas breves notas, gostaria de fazer uma introdução sintética à noção de passivação, propondo distinguir entre uma passivação originária (normal), uma passivação traumática e uma passivação transferencial. A elaboração de cada uma destas noções e a articulação entre elas me parecem ser condições para a elaboração rigorosa do conceito de passivação delineado pelo autor de A loucura privada.

2. Três dimensões do conceito de passivação

“No originário há passivação” (Green, 1984a). A passivação originária (normal) corresponde à etapa fusional da relação com o objeto primário, na qual a “loucura materna normal” (Green 1980) desempenha um papel vital a favor da mobilização e ligação pulsional ao serviço de Eros. É uma passivação libidinal, “positiva” (ou “de vida”) em que o objeto primário (definido não apenas como um outro primordial, mas também como um sujeito desejante) é agente da “função objetalizante” (Green, 1993/2010) que favorece o predomínio de Eros sobre Tânatos, possibilitando a constituição do “Eu prazer purificado” (Freud, 1915/1990) - concebido por Green como núcleo originário do narcisismo de vida, base e condição da vida psí quica. Diferente da passividade - que pressupõe a diferença sujeito-objeto, e que é uma posição de satisfação sexual procurada ativamente - a passivação (ou passividade originária) é uma condição subjetiva inerente à fusão inicial do infans com à mãe. Quando a relação é “suficientemente boa” sua dinâmica centrípeta constitui o hedonismo alucinatório e autocentrado no qual se baseia a onipotência imaginária arcaica. Assim podemos entender a passivação como o primeiro tempo do processo de subjetivação - segundo o modelo greeniano do duplo retorno (Green, 1973 e 1984a).

A passivação traumática corresponde a uma experiência posterior de desencontro radical com o objeto (reconhecido em sua objetividade) durante a etapa narcisista primária, que afeta a constituição da estrutura enquadrante do eu (Green, 1984a, Urribarri, 2005), sua unidade e seus limites, pondo em xeque o processo de subjetivação. Constitui uma experiência afetiva, irrepresentável, de dor e impotência “além do princípio de prazer”, que destrói a onipotência narcísica primária, interrompe o afeto de existência e fratura o sentimento de identidade (Green, 1980). A passivação (neologismo derivado de passividade) nomeia o “xeque-mate” do sujeito em face aos movimentos de presencia/ausência excessiva do objeto primário, a combinação das falhas do meio ambiente com a insuficiência dos mecanismos defensivos próprios da organização narcísica (Freud, 1915/1990, Green, 1967/1988b).

Concebida como etiologia traumática dos estados limite, esta passivação “negativa (ou de morte)” impede ou interfere no processo de separação/diferenciação primária e dá origem a um “objeto-trauma” (Green, 1979/1988a) incorporado no Eu, com o qual se estabelece um conflito narcísico primário em torno do direito a existir (que duplica e complica o conflito em torno da satisfação pulsional). Para defender-se do objeto-trauma o sujeito não apenas o rejeita e des-investe (narcisismo positivo), como também ataca e des-investe aspectos do próprio Eu (narcisismo negativo), processo de desobjetalização radical movido por um “desejo de não desejo” (esta expressão da Piera Aulagnier resulta útil para dar conta do narcisismo de morte).

A passivação transferencial corresponde à repetição inconsciente, além do princípio do prazer, que retorna no campo analítico como “memória amnésica” (irrepresentável) da passivação traumática (Green, 2000b). É o território da “clínica do negativo” (Green, 1967/1988b) da qual nosso autor elucida algumas de suas figuras paradigmáticas como “a mãe morta” (Green, 1967/1988b), “a posição fóbica central” (Green, 2002), e a “síndrome de desertificação mental” (Green, 2006). A passivação desempenha um papel fundamental, subjacente, na “transferência de não transferência” que caracteriza os estados nos limites do analisável (Green, 1993/2010).

Nestas figuras se destaca o modo paradoxal como a passivação pode traçar o roteiro transferencial seguindo formas cuja variante extrema é “a fantasia de desligamento subjetal” (Green, 1993/2010) em que para “defender-se” simultaneamente das pulsões ingovernáveis e do objeto-trauma, o Eu cinde-se radicalmente de sua relação com o corpo pulsional e projeta a fonte pulsional no objeto (externo) atribuindo qualquer excitação ou movimento desejante ao outro. Esta “re-vitimização” denuncia as falhas (e a maldade) do objeto-trauma, mas oculta o conflito identificatório e a fixação pulsional (erótica e destrutiva).

3. Recusa do feminino ou do materno?

Encontramos a primeira utilização do termo passivação em “Repetição, reprodução, replicação” (Green, 1971/2000a), mas a ideia só é esboçada em “A sexualização e sua economia” (1974/1996b). Aponta para reinterpretar a questão da recusa do feminino em ambos os sexos, postulada por Freud (1937/1980) como “rochedo” ou causa última da resistência. Neste contexto, Green relaciona a passivação com a ideia, também nova, de “loucura materna normal”, definida como dimensão necessária de sobre-investimento apaixonado do bebê, durante a gravidez e os primeiros meses de vida. A passivação é concebida como experiência infantil universal correspondente à relação fusional com a mãe. Green propõe reinterpretar a ideia freudiana de “recusa do feminino” considerando que o recusado por todos os sujeitos é, na verdade, o feminino materno, sua dimensão fusional e pulsional, sua “loucura”, como uma ameaça à diferenciação e à unidade do Eu. “O originário supõe a passivação do sujeito” (Green, 1984b). Passada a fase originária fusional a “loucura materna”, sua pulsionalidade, enquanto “passivadora”, torna-se uma ameaça à subjetivação.

4. As paixões e seus destinos

A principal conceitualização da passivação se encontra no artigo “Paixões e destinos das paixões” (1980), que introduz e fundamenta o conceito de loucura privada. Seu objetivo geral é construir um modelo teó rico-clínico dos estados limite para superar as limitações dos modelos freudianos (da neurose) e pós-freudianos (da psicose) cuja aplicação para aquele considera teoricamente reducionistas e tecnicamente infecundas. Em suma, argumenta Green, as angústias arcaicas das quais nos falam os autores pós-freudianos devem ser entendidas como o efeito das paixões narcísicas, onde não é possível uma separação estável entre o Eu e o objeto, onde o amor e a destrutividade afetam simultaneamente ao Eu e ao objeto. “São paixões em sentido estrito, ou seja, amores (e ódios) que fazem sofrer a ponto do sujeito se defender por meio de um sacrifício alienante” (Green, 1980).

A loucura privada que caracteriza os estados limite é explicada através de um “modelo de duplo limite” (Green, 1982) que se baseia em uma teoria original do narcisismo primário como “estrutura enquadrante” do Eu (Green, 1967/1988b, Urribarri 2004). Em resumo, postula-se que para sair do estado fusional originário a constituição do Eu precisa do narcisismo primário como processo de constituição de um duplo limite - para operar uma separação e diferenciação primária - com relação às pulsões do Id e com relação ao objeto. Este processo complexo (de transformação ao mesmo tempo pulsional e identificatório) é co-determinado pelo funcionamento do objeto primário: se for “suficientemente bom” (Winnicott, 1971/1975) o sujeito só deverá se ocupar do conflito intrapsíquico com as pulsões, organizadas segundo o princípio do prazer (estrutura neurótica, predomínio do narcisismo positivo). Quando o objeto falha em suas funções primárias é instaurada uma segunda frente de conflito (simultaneamente pulsional e identificatória) com o objeto (e suas pulsões). A passivação é o resultado da dupla impotência do Eu frente às pulsões do Id e do objeto. À noção freudiana de desamparo - referente ao excesso traumático das pulsões do próprio sujeito - articula a noção de passivação para dar conta de uma experiência/ dimensão ligada ao objeto como outro (sujeito) pulsional.

Neste contexto, a noção de passivação contribui para a elaboração de uma teoria do trauma narcísico primário (diferenciado do trauma sexual clássico) determinante das estruturas não-neuróticas (Urribarri, 2022). O desencontro radical com o objeto (loucura materna patológica) impede a separação normal do sujeito, de modo que o objeto se torna um objeto-trauma que é incorporado e cinde o Eu. É a luta contra este agente que deveria ser seu aliado, mas que se torna seu inimigo, que obriga o sujeito a mobilizar o ódio e as pulsões de destruição contra o outro e contra si mesmo (narcisismo negativo). A passivação é a vivência afetiva de impotência do Eu face a um objeto-trauma (onipotente) que afeta e pode fazer colapsar sua estrutura enquadrante. No processo analítico, isto se repete como experiência afetiva de dor, que condensa angústias de intrusão e de abandono, na qual se confundem o gozo (atração) e o terror (rejeição) de perder os próprios limites subjetivos. A transferência sobre o analista do objeto-trauma impede a confiança básica requerida pelo método e o enquadre analítico. Na clínica isso se manifesta por exemplo na necessidade do paciente de fazer a sessão face a face.

Esquematicamente, pode-se dizer que neste conflito em torno das possibilidades de uma existência separada, na loucura privada achamos “soluções” onde predomina Eros; enquanto na psicose predomina Tânatos, sendo as pulsões de destruição colocadas a serviço de uma “conjuração do objeto” (Green, 1980) que arrasa a própria psique. Ao perceber a especificidade dos estados limite (nos limites da simbolização e da subjetivação) com relação às estruturas psicóticas Green diverge dos autores pós-freudianos que pensam a clínica contemporânea a partir dos modelos da psicose (seja em sua abordagem pós-kleiniana, apoiada em noções como “núcleo psicótico” ou “parte psicótica da personalidade”; ou seja nas abordagens lacanianas que falam em “psicose ordinária” ou “neo-melancolias”).

A destrutividade em jogo nos estados limites não é considerada da ordem da psicose, mas do narcisismo de morte. Ao nível da sua constituição e funcionamento na loucura privada (onde se destaca a clivagem do eu), propus considerar que o “oposto complementar” da passivação (que, como dissemos, refere-se em última análise a um “núcleo passional”) é o que que chamo de “onipotência negativa”2 (Urribarri 2016, 2022). Concebo-a como inerente à “analidade primária” (Green 2000b), constituindo uma espécie de formação reativa contra a passivação, e visando estruturar a estrutura enquadrante do narcisismo primário (Urribarri 2005). A oposição da onipotência negativa à ameaça de passivação (efeito da relação passional) configura a posição central do eu inconsciente nas estruturas não neuróticas. Esta operação responde à necessidade vital de preservar a onipotência imaginária (que entendo como condição do afeto da existência e da autoestima). A onipotência positiva é projetada no objeto (mau) e a onipotência negati va é instituída com base no orgulho de renunciar à satisfação pulsional do objeto em nome da auto-idealização sacrificial (lembramos que “o ideal é o negativo da pulsão”). Combinando afirmação negativa e autossuficiência subtrativa (“menos é mais”, “o que resta, acrescenta” etc.) esses devires subjetivos identificados com um “desejo de não desejo” são o que levou a J-B. Pontalis para falar sobre “heróis do negativo” (cujo paradigma extremo é o personagem Bartebly, de H. Melville).

5. Passividade e passivação: aquém e além do princípio de prazer

Na conferência “Passividade e passivação” (Green, 1996a) propõe diferenciar dois modelos para cartografar a clínica contemporânea e diferenciar as estruturas neuróticas das não-neuróticas. Trata-se de uma discussão sobre a insuficiência do modelo baseado em “uma criança é espancada” (Freud, 1919/1996), que propõem analistas franceses como Catherine Chabert e Jean Claude Rolland para dar conta da transferência nos estados limite do analisável. Em primeiro lugar, Green aponta que nestes últimos não predomina a masoquismo fantasiado ligado à posição sexual passiva (como no texto freudiano), mas o masoquismo primário como expressão da pulsão de morte, no qual tem lugar a passivação. A passividade é uma meta da libido erótica: procura um prazer sexual em posição passiva/receptiva. O masoquismo (perverso) seria uma defesa/solução frente à passivação. Em contraste, a passivação é da ordem da dor, da imposição de um sofrimento por parte do outro, e se relaciona com o desamparo originário (hillfolsigkeit freudiano).

Em segundo lugar, Green postula uma mudança de paradigma na obra de Freud, e diferencia dois modelos correspondentes à primeira e à segunda tópica (que por sua vez se correlacionam com o funcionamento neurótico e não-neurótico, respectivamente). O “modelo do sonho” (como é denominado em “O tempo fragmentado”, Green, 2000b), está governado pelo princípio do prazer, no qual o funcionamento representativo permite, na ausência do objeto, produzir uma satisfação imaginaria (alucinatória, sonhada, fantasiada). É adequado para a entender e analisar a transferência neurótica, mas insuficiente para lidar com a clínica contemporânea. O segundo, denominado na conferência de 1996 “modelo do desamparo”, dá conta da transferência nos estados no limite do analisável, nos quais predomina a repetição além do princípio do prazer.

Dois aspectos introduzidos aqui são essenciais para enriquecer a noção da passivação. O primeiro é que ao inscrevê-la com relação ao desamparo originário (do aparelho psíquico com relação às pulsões) podemos entendê-la como uma variante posterior do desamparo referida ao papel do objeto primário na etapa narcisista, que afeta a constituição e o funcionamento da estrutura enquadrante do Eu. “Notemos que aqui o trauma estende o seu campo além das fronteiras da sexualidade” (Green, 1996a).

O segundo aspecto que a articulação com o “modelo de desamparo” introduz é a relação da passivação com o irrepresentável. Ou seja, com o fracasso ou o comprometimento do processo de representação e o predomínio do afeto e dos movimentos identificatórios próprios da organização narcísica (Freud, 1915/1990). A experiência de desamparo é universal, e é geralmente superável (e reparável) graças à ajuda do objeto, que permite conservar a onipotência imaginária (fundamento do narcisismo) que se realiza através da satisfação alucinatória; mas quando isto não é possível, se instala o modo de funcionamento não-neurótico a que alude o “modelo do desamparo”: o comprometimento da solução alucinatória/ fantasiada afeta o sentimento de existência. A dor expressa uma ferida do narcisismo e marca o colapso da onipotência imaginária. Na passivação, o irrepresentável entra em cena e põe em xeque a simbolização. O objeto-trauma se torna presente através do afeto. Seus movimentos provocarão angústias narcísicas (de invasão e abandono) e estados de dor, vazio e espanto. Na minha experiência, uma das expressões da passivação corresponde à experiência de “terrores (ou pesadelos) diurnos”, estados afetivos de terror psicossomático mais ou menos passageiros ou recorrentes. Inclusive durante as sessões: vivências que às vezes, depois de certo tempo, os pacientes conseguem expressar em palavras e contar ao analista. Geralmente provocam a necessidade de reagir saindo do enquadre, agindo corporalmente, modificando a posição física.

6. Figuração clínica

O pensamento clínico contemporâneo propõe explorar e estender os limites do analisável. Na técnica, o modelo freudiano do sonho se inscreve e se complexifica fazendo parte de um modelo dialógico do jogo. Por exemplo, o princípio clássico de “tornar manifesto o latente” é combinado com o princípio de “tornar pensável o manifesto” (Urribarri, 2022). Talvez seja útil concluir estas notas com uma vinheta clínica. Quando Anette (55 anos) me consulta, está extremamente angustiada e diz que embora conse guisse cumprir suas obrigações, vivia com medo de enlouquecer. Ao terminar a faculdade de medicina, ela fez uma viagem para estudos de pós-graduação, interrompida por um episódio alucinatório induzido pelo consumo de drogas, que lhe provocou um estado temporário de despersonalização. Desde então, foi medicada durante anos com antipsicóticos; e depois, com antidepressivos, que continua a tomar. Além disso, entre outros sintomas, sofre de uma fobia extrema de aranhas: à simples menção destas, tem calafrios, contrai seu corpo e fecha os olhos de terror, durante um instante. Anette fala muito nas sessões, enquanto procura a confirmação da minha compreensão e empatia. Reparo que às vezes, quando começo a falar, se ela não me deu explicitamente a palavra, ela contrai levemente os músculos num gesto que associo à sua reação ao relato das aranhas. Certa vez, em lugar de fazer uma interpretação, transformei a minha observação em um comentário: “às vezes a palavra do outro, quando não corresponde às expectativas, pode provocar um susto”. Após um longo silêncio, ela disse que sempre tinha medo de que eu ficasse bravo com ela. Na sessão seguinte, me conta que tinha pesadelos recorrentes com aranhas imensas, e acrescenta: “não apenas pesadelos, às vezes são pesadelos diurnos... na sessão”. Com o tempo foi possível falar sobre eles, dando-lhes o estatuto de fantasia e não de delírio, diminuindo o terror da loucura e o medo de rejeição da minha parte. Graças a isso - e para evitar mencionar as aranhas - Anette os chamou de “sonhos de Louise Bourgeois” (em referência às esculturas da artista americana). O movimento associativo é intermitente, mas se sustenta ao longo das sessões, dando origem a um processo interpretativo. Em outra sessão na qual falou dos sonhos de LB, mencionei-lhe que sua obra icônica (escultura gigante de uma aranha) se chamava “Mãe”, ao que ela ficou indiferente. Uma semana depois, me conta que, após essa sessão, teve uma lembrança: quando era adolescente, durante uma discussão, sua mãe cheia de ira gritou-lhe: “a tua avó te roubou, te arrancou de mim!” (antes de fazer dois anos, Anette havia sido deixada pelos pais com os avós maternos para ser criada em sua casa de campo. Os pais a visitavam aos fins de semana e, um ano depois, levaram-na de volta para viver com eles). Foi então, disse-me ela, que vira sua mãe “completamente louca, violenta, a atacar-me como uma aranha monstruosa”.

2 Retomo esta expressão que Green utiliza de passagem, de forma descritiva, para elaborar um conceito metapsicológico que contribui para a compreensão do narcisismo negativo e visa elucidar a especificidade da transferência não neurótica, e em particular a sua variante cíclica única de micro reações terapêuticas negativas.

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Recebido: 29 de Outubro de 2023; Aceito: 29 de Outubro de 2023

Tradução de Dante Rovere

Revisão técnica de Abigail Betbedé e Berta Hoffmann Azevedo

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