Ah, mais um livro sobre a guerra... Para quê? Já aconteceram milhares de guerras-pequenas e grandes, famosas e desconhecidas. E o que se escreveu sobre elas é ainda mais numeroso. Mas... foi escrito por homens e sobre homens, isso ficou claro na hora. Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma “voz masculina”. Somos todos prisioneiros de representações e sensações “masculinas” da guerra... Das palavras “masculinas”. (Aleksievitch, 2016, p. 12)
Breve relato de viagem de pesquisa de campo (Berlim, maio de 2022)
Em maio de 2015 estive em Berlim desenvolvendo parte das pesquisas sobre memoriais que realizo há muitos anos.3 Nessa ocasião, em visita ao Topographie des Terreurs assisti à exposição permanente de fotos em displays espalhados pela sala de exposições. Entre a riqueza extraordinária da exposição desse lugar de memória ímpar na Alemanha, chamou-me a atenção a última foto exposta.
Nela dois soldados russos do Exército Vermelho assediavam uma mulher alemã, após a ocupação russa no final da Segunda Guerra, quando a Alemanha nazista já se encontrava praticamente derrotada pelas tropas aliadas.
A foto era apavorante. Dois homens armados e fardados assediando uma mulher sozinha, assustada e constrangida. Um deles puxava suas vestes, como se pudesse arrancá-las no meio da rua; o outro, cúmplice, com um sorriso de escárnio no rosto atestava que o que era terrível para a mulher para ambos era mais um momento de diversão lasciva. Eles estavam no meio da cidade, publicamente expostos. Ao redor, vazio e solidão, diante do assédio cometido pelas autoridades máximas recém-instauradas em Berlim: o vitorioso Exército Vermelho soviético.
Enquanto a dupla de soldados investia sem mesuras contra a mulher, ao mesmo tempo, faziam chacota da vulnerabilidade absoluta e do medo exposto pela provável vítima diante do que poderia acontecer instantes depois, ou teria acontecido antes: o estupro de mais uma mulher alemã.
Com um sorriso de escárnio no rosto e a certeza da permissão para fazerem tudo sem restrições, sem lei, sem vergonha, culpa e sem castração alguma no país recém-ocupado, esses soldados pareciam escolher como prêmio levar adiante a continuidade de atrocidades já cometidas pelos nazistas, vistas e vividas na guerra sanguinária prestes a terminar. Decidiram então celebrar a vitória não como homens, mas como animais. O palco escolhido: o corpo das mulheres que seriam então nas próximas semanas e meses, muitas vezes, invadidos por bichos.
A mulher na foto, cujo rosto se esconde de dor, pavor e vergonha, e cujo nome não saberemos, se encolhia e se apequenava enrustida, como quem quisesse desaparecer entre as próprias vestes amarrotadas e sumir, quiçá livrando-se do inevitável. Essa fotografia me impressionou para sempre.
Nos anos vindouros essa imagem não deixaria de perdurar em lembrança e em pensamento, e creio que reencontrá-la era uma das minhas vontades mais claras quando, no futuro, retornasse a Berlim.
Para mim foi uma pista largada no chão que recolhi e guardei. Tudo o que ela mostrava e ocultava aludia à amplitude de uma devastação temporal maior, que eu ainda não sabia que existia, mas já se encontrava plenamente representada - e havia bastante tempo - em algum lugar da própria cidade de Berlim como monumento de contramemória, como vim a descobrir anos depois.
Aos que decidiram ser vitoriosos e animais lhes foi concedido, como prêmio, a impunidade para cometer a perpetuação de atrocidades, premiação que eles não demoraram a usufruir. Os estupros em Berlim começariam horas após a entrada do Exército russo na cidade. Os grandes vencedores, quando tiveram a oportunidade, não hesitaram em tornar-se apenas nazistas.
Uma vez afirmou Robert Fisk: “Gostando ou não, é assim que acaba a maior parte das guerras. É como se os pecados fossem apagados” (2007, p. 635).
Tudo o que há de resignação nessa frase de Fisk responde, evidentemente, à sua própria experiência como um dos maiores repórteres de guerra conhecidos, porém, ela deixa implícito um senso quase religioso e expectante de que algo maior do que as guerras se impusesse para cobrar os pecados cometidos em nome delas. Ele sabia, nada existe que impeça o apagamento das vítimas esquecidas para que pecados sejam apagados.
Essa foto única e determinante exibe com precisão estarrecedora as violações explícitas, sanguinárias, misóginas, criminosas e cruéis às quais foram expostas as mulheres alemãs pelos então vencedores da guerra, que teriam acabado de “livrar” a humanidade das atrocidades nazistas para cometerem as próprias. Seu caráter pungente, talvez o mesmo que me impressionou em minha primeira visita, seria destacado num livro publicado pelo Topographie des Terreurs em 2014 (Steur, 2014), no qual a foto é reproduzida em página inteira, como uma das importantes imagens do livro.
Esse não é um exemplo único ou isolado.4 Países ocupados por outros exércitos sofreram problemas semelhantes durante a Segunda Guerra e, possivelmente, em todas as guerras. A permissão e impunidade do abuso não tornam a atrocidade menos atroz. A “valentia” dos vencedores, não raro, tem seu prêmio garantido: o corpo e o espírito de milhões de mulheres em diferentes países do mundo. O que torna, contudo, tudo mais nauseabundo são as justificativas. Não raro quem comete atos assim tem suas justificativas denegatórias. Justificativas - como “Estamos apenas cobrando o que os alemães fizeram na Rússia”, ou “Foi uma consequência da solidão, medo e privação a que foram submetidos os soldados em combate”, ou “Tudo era parte de uma necessária estratégia de guerra” - abundam, com poucas diferenças, nas falas de autoridades e dos próprios perpetradores.
O direito do homem à sua vingança, o coitadismo masculino e a fatalidade inexorável da guerra fazem parte do mesmo complexo que autoriza (ou não desautoriza) violências, que sustenta a impunidade e invariavelmente acoberta perpetradores seguindo uma hegemonia consolidada, nesse caso, dos homens que entre si se compactam indiferentes e, consequentemente, contra o corpo e o espírito de mulheres. Nada pode estar acima da honra, da dor e do pensamento masculinos. A masculinidade deve permanecer incólume dentro de um mesmo sistema de assimetrias. Fora disso, a segregação, a violência e a crueldade são autorizadas, incentivadas e perpetuadas não importa contra quem, não importa onde. A assimetria é um sintoma para vencedores (ou derrotados) que adquire formas coletivas, comunitárias e institucionais e tende a se perpetuar como estratégia primeira para a instalação de hegemonias.
O binarismo, portanto, sempre foi unarismo. Há dois para legitimar o um com base na negativação de um dos polos amparados pelo pensamento e o discurso dicotômico. Só assim é possível compreender que a anulação das mulheres, convertida em corpo violável, se torne apenas apanágio masculino para odiar, segregar, usar, festejar e destruir.
Aqui cito Butler:
O feminino, para usar uma catacrese, é domesticado e tornado ininteligível dentro de um falologocentrismo que se supõe autoconstituinte. Rechaçado, resta sobreviver como espaço de inscrição desse falologocentrismo, a superfície especular que recebe as marcas de um ato significante masculino apenas para devolver um reflexo (falso) e garantir a autossuficiência falologocêntrica sem fazer nenhuma contribuição própria. (2023, p. 77)
Embora Butler reflita aqui sobre o domínio epistêmico, do qual outros domínios derivam, ela contribui simultaneamente para apontar que o falologocentrismo, o binarismo unário ou a centralidade masculina interagem com o que está fora dela por efeito de domesticação e hegemonia congênita. Isto é, o feminino pode - e por vezes deve - existir como lugar de inscrição de algo que o submete e o define como parte do contexto da afirmação da centralidade falocêntrica.
Mas, além disso, o corpo e o psiquismo femininos devem se expor, ou se oferecer, como receptáculo da confirmação de uma ordem, cujo reflexo especular negativo do feminino não pode ser nada além de defeituoso, frágil, aquém e superficial.
O reduto narcísico no qual as identidades masculinas sobram sobre as outras e outres faz perdurar como efeito, violências assumidas como sempiternas, banais ou inevitáveis. Lá onde o homem se eleva sobre outres é o mesmo lugar onde todas as outras são subalternizados genericamente e sem exceção. Não há meio-termo para a binariedade abusiva que a tudo contamina, bem antes que qualquer denúncia, reivindicação e oposição indignada se levante.
Do mesmo modo que as guerras são tidas como inevitáveis, suas consequências, permissões e oportunidades também o são no contexto de um espetáculo masculino de aniquilação, destruição e afirmação do não se sabe o quê, num jogo infindável de estupidez e sangue. Sempre, as aniquiladas/es tiveram arrancada sua singularidade, antes de desaparecerem pela violência cruel-e “justa” - que não tem termo.
Cito trecho de reportagem de Lucy Asch sobre os acontecimentos em Berlim após a ocupação russa, citando o diário de Vladimir Gelfand:5
Uma das passagens mais reveladoras do diário de Gelfand é datada de 25 de abril, quando ele chegou a Berlim. Gelfand estava andando de bicicleta às margens do rio Spree, a primeira vez que andou de bicicleta, quando deparou com um grupo de mulheres alemãs carregando malas e trouxas. Em um alemão ruim, perguntou-lhes para onde estavam indo e por que haviam deixado suas casas. “Com horror em seus rostos, eles me contaram o que havia acontecido na primeira noite da chegada do Exército Vermelho”, escreve ele.
“Eles cutucaram aqui”, explicou a linda garota alemã, levantando a saia, “a noite toda. Eles eram velhos, alguns estavam cobertos de espinhas e todos eles subiram em mim e cutucaram - nada menos que 20 homens”, ela explodiu em lágrimas.
“Eles estupraram minha filha na minha frente”, acrescentou sua pobre mãe, “e ainda podem voltar e estuprá-la novamente.” Esse pensamento horrorizou a todas.
“Fique aqui”, a garota de repente se jogou em cima de mim, “dorme comigo!
Você pode fazer o que quiser comigo, mas só você!” (Ash, 2015)
Uma jovem mulher, que já fora violada por 20 soldados num contexto de total permissão a abusos, teria forças para se indignar e afirmar o banal desse absurdo? Ela e sua mãe teriam como continuar vivendo no país ocupado por estupradores? E teriam como sair? E para onde num país ocupado? E como imaginá-las continuando a viver como mulheres com a certeza de que serão sucessivamente atropeladas por carcaças de tanques e homens?6 A imaginação parece soçobrar ante os extremos do fazer cruel que, por sua vez, cria contextos nos quais se confirmam o sem limites a que podem chegar masculinidades em escombros que, para se erguerem do chão, se apoiam sobre aquelas que violentam.
Em 2022, retornei a Berlim, graças ao apoio recebido da fapesp, para dar continuidade às minhas pesquisas sobre memória, memoriais e arquivos de sonhos. Uma de minhas intenções, contudo, era perseguir os rastros daquela foto e aprofundar, no pouco tempo que tinha, o contexto berlinense em que ocorreu o maior estupro de brancas, cometido por brancos, da história. Estima-se que cerca de 2 milhões de mulheres foram violentadas durante a ocupação da Alemanha pelo Exército Vermelho em Berlim e em outras cidades menores da Alemanha.7
Naquela ocasião montei um pequeno diagrama de pesquisa que incluía conversas com pesquisadoras alemãs, visitas a museus conhecidos e o retorno ao Topographie des Terreurs, passados sete anos de minha primeira visita.
São imodestas as descobertas que acontecem quando estamos local e presencialmente nos lugares de investigação e pesquisa. Tudo depende de detalhes, sorte e alguma perspicácia e, por vezes, a consideração e atenção solitária de quem caminha por abismos, prestando atenção aos solavancos encontradas no próprio psiquismo que se nubla e se esclarece, enquanto descobre o ilimitado do terrível.
Meu primeiro contato na finalização do contexto de pesquisa foi Martin Dammann.8 Embora estivesse de viagem para a França na mesma semana, Martin gentilmente me cedeu muitas dicas e lamentou não estar em Berlim para acompanhar-me na visita ao Treptower Park, que era uma das razões principais de minha investigação. Ele me sugeriu retornar ao Topographie des Terreurs e visitar o acervo do Museu da História Alemã, a começar pela exposição permanente do museu.
Segui suas sugestões. Entrei em contato com o diretor do Museu da História Alemã, que me informou de a exposição permanente do museu estar em obras, o que pude verificar quando fui ao museu, mas na ocasião não me foi sugerido nenhum outro caminho no acervo do museu que pudesse me auxiliar na aproximação específica desse tema. Dias depois, Martin me passaria um contato do staff do museu disposto a me ajudar. Mas, naquele momento, eu já estava em Varsóvia.
Durante esses poucos dias em Berlim estive também com uma pesquisadora alemã da Universidade Humboldt. Nossa conversa parecia não alcançar o tema que eu visava, mesmo eu tendo sido muito explícito quanto àquilo sobre o que me interessava conversar com ela, sabendo de sua trajetória de pesquisadora alemã e feminista. Em algum momento de nossa conversa estranha, ela apenas disse: é possível que minha avó tenha sido estuprada, mas nunca falou sobre isso. Algum silêncio recobriu nossa conversa depois disso, e não pudemos avançar significativamente.
Entre 1945 e 2023 quase 80 anos se passaram, mas não são abundantes os materiais sobre esses acontecimentos (Gerbhardt, 2017), e, certamente, os testemunhos sobre esses fatos estão à beira da extinção, já que muitas das vítimas e sobreviventes ou decidiram jamais falar sobre a experiência ou já faleceram. Os poucos elementos que hoje existem são raridades.
Para mim, a exibição desses traços semiapagados, opacos, ostensivos e impositivos é sempre matéria preciosa para um psicanalista deambulante. Encontrei num país, que prima exemplarmente pelos seus memoriais e museus da Shoah, um caminho nada retilíneo para encontrar informações sobre acontecimentos mundialmente conhecidos, mas ainda repletos de denegações, silêncios, ocultações e dolos em sucessivas gerações.
Sabia que não teria condições de ir muito mais além, com as condições de tempo de pesquisa que tinha, e, de todo modo, meu tema de investigação mais amplo não era exatamente o estupro coletivo acontecido em Berlim no final da Segunda Guerra. Eu mesmo estava fazendo um desvio do meu tema principal que se completaria dias depois em Varsóvia.
Ainda em Berlim me preparei então para visitar aquele que, em minha opinião, é um dos principais locais de contramemória no mundo: o monumento ao soldado russo no Treptower Park em Berlim.
Minhas fantasias sobre esse monumento eram modestas em relação ao que iria encontrar. Imaginava um grande monumento de bronze com uma moldura ajardinada, posicionado num dos locais do imenso parque. Monumento que já havia visto em fotos exibidas na Internet. Mas o que encontrei foi uma inequívoca, terrível, gigantesca e autoritária homenagem, sem comedimentos, a um dos maiores grupos de estupradores do mundo, hoje mantida pelo dinheiro do povo alemão por intermédio da municipalidade de Berlim.
A experiência que comove se perfaz em camadas. Não é uma homenagem distraída, largada em qualquer lugar no parque, são milhares de metros quadrados insistentes, perfazendo uma iconografia abusiva do soldado russo, que, no monumento central, carrega uma criança em seu braço esquerdo e uma espada abaixada em seu braço direito. O guerreiro vitorioso, generoso e estuprador que salva a Alemanha da devastação anticivilizatória nazista.
Mais abusiva é a imagem quando lembramos que entre as pessoas violadas em Berlim estavam idosas e crianças, como as que o soldado carregava no braço parecendo salvá-la, elevando-a quase acima de si mesmo. Mas quem a salvaria do soldado que a carregava nos braços? Não sem motivo, esse monumento é, segundo Ash, denominado por alguns “monumento ao estuprador desconhecido” (Ash, 2015).
Antes de chegar ao monumento principal, passamos pelos 16 sarcófagos, onde estão enterrados os 5.000 mil soldados russos que morreram em combate contra o Exército nazista. Antes ainda, duas estátuas de bronze enormes recebem o visitante, ambas ajoelhadas na entrada do sarcófago. São soldados russos que homenageiam seus compatriotas mortos em combate e recebem o visitante de modo humilde e deferente.
Uma estátua de mulher indica o caminho da grandiloquente homenagem aos homens. É uma mulher de joelhos, cabisbaixa, submissa e em prantos. Ela representa a mãe de todos os soldados em luto e presta homenagem a eles: a motherland. Ela agradece aos combatentes do Exército Vermelho (seus filhos) pela façanha e chora por eles. Mas a qual façanha a estátua feminina, concebida por homens, se refere? Por que pranteia? E a que faz deferência ou se submete?
Um pesadelo se encena nesse espaço. Ele confunde e atenta contra os trabalhos difíceis da memória. Tudo planejado e encenado desde 1947, e preservado década após década pelos componentes que forjam a política internacional entre países e entre homens. Num país que, não sem contradições, prima pela qualidade de informações e documentação sobre o Holocausto, em nenhuma parte do parque encontra-se qualquer informação sobre as milhões de mulheres e crianças alemãs violentadas brutalmente na Alemanha, cujas vidas seriam devastadas durante e após a ocupação russa (Ash, 2015).
Em 2022, em plena Berlim, um convite explícito à submissão do pensamento, da história e dos testemunhos impossíveis das mulheres que não puderam e não quiseram falar. Um convite à desmemória.
Os soldados mortos estavam a serviço de recobrir as mulheres mortificadas, e as mulheres violadas e caladas, a serviço de legitimar a justa homenagem aos combatentes e suas narrativas gloriosas, que abundaram e predominaram após a Segunda Guerra.
A captura da palavra se exibiria como iconografia da morte e da mortificação, atuando também para legitimar crimes impunes e elevar os homens, machos, guerreiros, acima das atrocidades que cometem. As mulheres figuram ali como subservientes à versão dos homens e ao desejo dos homens de violentá-las. As mulheres são um imenso nada, para sempre indiferenciadas e desconhecidas.
Há ali todo um traçado que exibe não apenas as razões da guerra que resultam na afirmação da masculinidade degradante, mas seus corolários que condenam a mulher ao silêncio e à resignação perpétua, a fim de não macular as glórias que ocorreram apesar delas, contra elas e sobre elas e que perduram em infinitas versões sobre a Segunda Guerra Mundial. Se a instrução dada por esse monumento pode ser compreendida como abusiva em si mesma, isso nos impele a pensar sobre o papel do negativo na ativação dos mecanismos de perpetuação de sociedades inteiras de abusadores.
A exibição pública dessa contradição é denegatória, sem dúvida, mas a verdade é que poucos enxergarão ali mais do que um enorme parque de monumentos, belamente ajardinado, indicando que o pior já passou. Embora apenas os deliberadamente ignorantes não tenham informações sobre as práticas violadoras do Exército russo em países invadidos. O que ocorre hoje na Ucrânia, por exemplo, instala uma repetição atual previsível, mas impressionante:
A promotora geral da Ucrânia Iryna Venediktova disse na terça que seu escritório tem coletado relatos de violência sexual cometida contra homens e mulheres de todas as idades, de crianças a pessoas mais velhas. (GrahamHarrison, 2022; Al Jazeera, 2022)9
Mas lá, em Berlim, o soldado russo continua, indenemente, sendo homenageado. Os traços iconográficos e inconscientes do destino das mulheres podem ser vistos nas muitas imagens de mulheres nas lápides e na grandiloquente imagem da motherland ajoelhada, submissa e arrasada. Mothers e Land devastadas. As mulheres estão ali, mas como figuras agradecidas, amedrontadas e resignadas, e, ao final, quem narra essa história é Stalin. O que pode ser lido em todas as 16 enormes lápides adornadas com suas frases. Quem mais as mulheres elegeriam para representá-las, senão Josef Stalin?
O (não)lugar para a memória das mulheres
Em depoimento ao Opera Mundi Amelinha Teles (2018), mais uma vez, conta detalhes da natureza sexual das torturas durante sua prisão política pela oban. A violação sexual era uma prática autorizada, regular e política de Estado contra as mulheres presas durante o governo civil-militar iniciado em1964 no Brasil. Os fatos descritos por Amelinha não eram fatos isolados, nem desvios de comportamento desse ou daquele militar, desse ou daquele policial. Seus relatos revelam o endereçamento sexual das práticas de tortura no Brasil, elas acompanhavam e definiam a prática da tortura e a impunidade que beneficia os torturadores até hoje e indicam, com clareza, a tolerância social e política à continuidade dessas violações, crimes e abusos até hoje impunes no Brasil.
Diferentemente do monumento grandiloquente ao soldado soviético em Berlim, a homenagem no Brasil é adornada com impunidade e o silêncio sobre esses crimes do passado, que também define e insufla a prática continuada de violência contra as mulheres brasileiras hoje.10
E são as mulheres que precisam repetir infinitamente o que sofreram, as consequências desse sofrimento e os riscos que correm numa sociedade e num país inteiro que se negam explicitamente a ouvi-las, quando não atuam para calá-las. Não houve torturadores, nem ditadura, nem estupros cometidos por agentes do Estado no Brasil, então governado por militares. São as mulheres, exibindo seus corpos, seus espíritos machucados e seus testemunhos, que mantêm vivas as memórias das atrocidades e a tarefa da não erradicação dos atos de tortura e destruição cometidos por homens, que decidiram cometer violências contra as mulheres, porque elas são mulheres. A ditadura civil-militar no Brasil praticou a tortura feminicida e o femicídio despudoradamente.11
Não há homens torturadores punidos no Brasil, o que enseja, oportuniza e incentiva que monstruosidades façam campanhas políticas inteiras negando o golpe militar, seus crimes, atrocidades e covardias e cheguem ao poder pelo voto defendendo práticas ilegais e discricionárias.
Desde já, fica claro que, no Brasil, as prisões em escala que passaram a ocorrer desde o dia 8 de janeiro de 2023 exibiram o fato de que a extrema direita é outro nome no país para hordas de violadores contumazes de direitos humanos e civis, pregadores de ódio a minorias e executores deliberados de práticas de racismo, sexismo e misoginia.
Tudo isso sempre foi sabido, mas foram as prisões e processos decorrentes da tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023 que performaram também um espetáculo contra a impunidade de massa que prosperava no Brasil, à margem e contra os princípios da Constituição Federal de 1988.
Vivemos quatro anos (2019-2022) numa atmosfera em que tudo era permitido, e as vozes contrárias pareciam roucas, inaudíveis e apagadas pela capacidade governamental de calá-las ou ser indiferente a elas. Os microfones da infâmia e da estupidez soaram muito alto, bem mais alto do que se supunha. O ataque ao pensamento, ao argumento e ao exercício do falar e ouvir criou imensa adesão, converteu-se em discurso transmissível e instruiu ações e afetos em toda parte, no seio de hordas que, hoje sabemos, chegam a milhões de pessoas.
Esses assumidos violadores da Constituição de 1988 se reconheceram e se organizaram em torno da pregação de campanha do ex-presidente derrotado nas urnas em 2022, e hoje acusado de crimes de roubo, furto, apropriação indevida do patrimônio nacional. Foi ele que incitou e convenceu milhões a levarem vantagem em tudo, e sobretudo porque seriam acobertados. A mensagem eficaz, mas fragmentada, sempre foi “comprem suas armas e saqueiem quem e o que puderem”, e esse parecia ser o mote da campanha, enquanto o ex-presidente e sua família faziam sua própria pilhagem contra o Estado. Falsas promessas encantaram serpentes, hoje criadas e soltas pelo país.
Mas o que tornava tudo implicitamente horrorizante é que isso se estendia à incitação a patrimonializar também o corpo dos vulneráveis, dos divergentes e dos não brancos e não homens. Por isso seu linguajar converte corpos em objetos purgados de sujeites, animaliza e prega contra elus a violência e a degradação:
“Tu pesa o quê? Mais de sete arrobas, não é?” (Brasil 247, 2022), disse o ex-presidente investigado para um homem negro. Ou sobre a morte de Dom Phillips e Bruno Araújo: “Pelo que tudo indica, se mataram os dois, espero que não, estão dentro d’água. Dentro d’água, pouca coisa vai sobrar. Peixe come. Não sei se tem piranha lá no Javari” (Brasil, 2022). Sobre o estupro, dirigindo-se à então deputada federal Maria do Rosário: “Jamais vou estuprar você, porque você não merece” (IstoÉ, 2014). E ainda sobre a busca dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura, efeito do golpe de 1964: “Quem vai atrás de osso é cachorro” (Locomotiva, 2020).
O escárnio sempre foi sua estratégia discursiva para arrebanhar adeptos, convocando a massificação de desejos de morte, degradação e destruição de milhões de pessoas que deveriam ser segregadas, violentadas e mortas porque são desagradáveis a alguém, ocasionalmente no poder. Vivemos a ressurgência da tirania no Brasil.12 Brasileiras e brasileiros, até então acanhados, converteram-se em francos e aguerridos apoiadores do governo passado, e constituem hoje a massa capaz de agir, votar e defender práticas ilegais, criminosas e violentas para a satisfação de desejos e fantasias de devastação, até então, inconfessáveis.
Na linguagem própria a esse grupo, basta uma frase para converter negros em animais; ativistas em comida para peixe, mulheres em candidatas e merecedoras de violência e escárnio e desaparecidos políticos em comida para cães. Essa metamorfose da estupidez alastrou-se no Brasil com impressionante consistência e rapidez, e poucos têm dúvidas de que devastariam o país, caso o resultado das últimas eleições presidenciais em 2022 fosse diferente do que foi.
Nesse último período, o escárnio como arma política tornara-se ferramenta de desmantelamento discursivo de pontos de partida comuns, infensos ao propósito da violência. O desprezo explícito contra grupos e pessoas calou ou obscureceu discursos sobre a defesa da diversidade, dos direitos e as lutas pela igualdade, que foram diariamente ridicularizados em aparições públicas do ex-presidente.
É o mesmo escárnio patente nos rostos dos soldados estupradores do Exército Vermelho em Berlim em 1945, estampado na imagem na qual os risos dos soldados indicam que seria impossível convencê-los a não violentar aquela mulher sozinha, totalmente exposta, vulnerabilizada e assediada publicamente. Militares e covardes armados, numa cidade ocupada por pessoas vulneráveis e derrotadas, verão nisso sempre uma oportunidade. Escarnecer é dissuadir radicalmente do apelo à palavra, ao argumento e à razão, pleiteando autorização para abusos vindouros. Esses eram os desejos escamoteados que um novo golpe no Brasil realizaria. Soldados e milícias soltas por toda parte, sem qualquer regulação, controle ou vergonha.
O merecimento então revela os detalhes sórdidos de psiquismos adoecidos. Os soldados merecem estuprar, porque, afinal, são vencedores. As mulheres merecem (ou não) serem estupradas, porque, afinal, tornar-se um mero objeto masculino deveria ser sempre uma ambição, um privilégio e um… merecimento.
Aqui se conflagra então o apanágio da covardia e a suposição do desejo de degradação. Ou seja, supor e impor o desejo da mulher de ser degradada atenua, disfarça e vela a pusilanimidade dos covardes, ao mesmo tempo em que mantém intacta a injunção de que o desejo da mulher deve sempre estar a reboque do desejo do macho.
Essa é a autoficção dos autosupostos “vencedores” que se alimentam do próprio fígado para, ao final, se afirmarem homens acima dos humanos. São perigosos no convívio com diferentes e põem, de muitas maneiras, pessoas em risco. Evitar a chegada desses não humanos ao poder é hoje a maior prioridade e urgência nas lutas políticas planetárias.
Nesse massacre ao corpo, ao rosto e à alma da mulher, a convicção de meios e modos de viver matando se consagram, mas também a própria noção que engendra a vicissitude traumática é posta em relevo. Territórios do traumático são aqueles nos quais algum sujeite resiste, ante o desejo de aniquilá-le. Elu subiste como trauma, fragmento e/ou pesadelo, mas refuta, ainda que penosamente, a convicção daquelas que desejam impossibilitar os acontecimentos que suas vidas representam.
Então, podemos indicar aqui, explicitamente e sem mesuras, que a questão sobre a assunção da produção de contextos de experiências traumáticos é uma estratégia de poder de governos, partidos e grupos e reside na valorização abusiva da centralidade do falo, como princípio e fim.
Para a psicanálise examinar criticamente o diagrama potente do complexo de Édipo e suas vicissitudes, sob essa perspectiva, torna-se uma tarefa das mais urgentes, assim como recusar-se a fazê-lo, ser indiferente em nome de uma outra operação de salvamento da psicanálise, poderá avizinhar psicanalistas e suas instituições a cúmplices e sUSPeitas do que hoje se nomeia como eliminação de corpos e epistemes (Malfrán, Geni & Lago, 2021).13
Máscaras identitárias de poder e violência como sérios problemas para a teoria e a clínica psicanalítica
A constituição do sujeite psicanalítico ou em psicanálise é um assunto caro e importante. Nesse debate abre-se uma fenda, inaugurada por Freud, sobre a indeterminação do sujeite no próprio processo de fazer-se sujeite. O caso do pequeno Hans revela muitas das oscilações na investigação, apurada e atenta, que Freud faz da sexualidade de uma criança de 5 anos e seu pavor de cavalos.
As oscilações de Hans quanto a sentir-se menina, menino, os dois ou nenhum aparecem como traços de uma luta que se trava no campo da sexualidade e no corpo sexual da criança, e é uma batalha de gênero. Mas não se esgota aí, como logo notaremos na descrição do caso feita pelo pai de Hans e pelo próprio Freud. Observa então Freud sobre Hans: “A mamãe, ele acredita, tem um faz pipi ‘como de um cavalo’” (1909/2015, p. 241). A (im) potência da mãe será explicada pelo faz pipi que ela não tem, porque o que ela tem foi secularmente negado, degradado, desvalorizado e transformado em mero receptáculo daqueles que têm um o faz pipi. Por que a vagina não pode ser fálica?
Hans estava assolado por um ambiente heteronormativo parental, no qual se inclui o próprio Freud, evidentemente. A poligamia, homossexualidade, bigamia de Hans manifestam-se de diferentes modos, ressaltados pelos dois homens que o acompanham, porém, não se concebe nesse estudo a possibilidade de uma sexualidade trans na exploração empreendida pelo pequeno Hans. Mais de 100 anos passados, contudo, o que era muito difícil para Freud não o é para nós.
Vivemos o privilégio de pensar hoje o impensável no passado, restituindo o que fundou a própria psicanálise como prática e pensamento à margem de si mesma, de sua institucionalidade e de seus eventuais pontos de certeza. Duvidar do que se diz sobre si é o que Freud legou para o trabalho clínico e para a metapsicologia, mesmo quando falhou e fracassou. Trabalhar por uma psicanálise atenta, engajada e criativa não é mais tarefa de Freud, mas é nossa.
Em Hans, tudo pode acontecer no complexo de tensões em que se define o alvo da pulsão, mas a indecidibilidade, a ambiguidade, o in between determinariam o sofrimento neurótico e dificuldades psíquicas para o pequeno.
Isso é verdade quando ouvimos o caso e a análise de Freud. Parece não haver lugar para indefinições, ainda que qualquer definição possa ser, potencialmente, possível. Se um espaço para a apresentação dessas tensões é explicitamente aberto por Freud, também é verdade que a contraforça exercida pelos adultos que estão em torno de Hans e que sobre ele têm inegável poder assimétrico jamais é pensada como inscrição psíquica e sobredeterminação, naquilo que produzirá em Hans a fobia de cavalos.
A fobia da castração, a fobia do pai, a fobia de ter de ser algo que não deseja e ainda ignora, a fobia do imenso faz-pipi do cavalo. O medo de Hans não é apenas da perda do órgão (o faz pipi), que já sente como emblema de poder, força e obrigação desde sempre, mas de ser punido por não representar o que lhe impõe uma dívida impagável pela mimetização do narcisismo parental (ser um menino), por mais que esforços não faltem na criança em busca dessa mesmidade psíquica, que insiste como promessa e que jamais é inteiramente abandonada pelos pais nem por Hans. Por vezes, lendo o caso, temos a impressão de vermos uma ilha polimorfa cercada de heteronormatividade por todos os lados (Freud e seu discípulo, o pai de Hans).
Não é simples introduzir a complexa dinâmica de poderes que se exercem nas interacões entre adultos e crianças, e talvez Ferenczi (1992) tenha sido o primeiro a mencionar isso explicitamente. Sobredeterminações narcísicas parentais têm papel de gênese e condenação psíquica e, portanto, reconhecê-las interpretativamente é abrir uma fenda de pensamento outro na função de decalque dessas mesmas sobrederminações.
Sabemos que essa outridade do pensamento que também pervade o psiquismo é condição para que uma análise aconteça e seja possível, porém, ela deve cuidar de sua própria instalação de outras heteronomias às quais o psiquismo adere na situação transferencial. Essa adesão não raro é devida a vícios da forma, que poderíamos supor vícios do corpo, vícios de representação do corpo herdados e cujos obstáculos impõem saberes e deveres que induzem à experiência psíquica cativa. “Somos todos prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra... Das palavras ‘masculinas’” (Aleksievitch, 2016, p. 12).
A imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1992) sobredetermina a experiência sexual como experiência de gênero. Mas as imposições colonizadoras ao corpo e ao psiquismo são inúmeras, e o processo de apropriação da condição de ser corpo é custoso, como sabemos. Um citação de Dolto pode nos ajudar a prosseguir:
A imagem dinâmica (do corpo) corresponde ao “desejo de ser” e de perseverar em um advir. Este desejo, enquanto fundamentalmente abalado pela falta, está sempre aberto pelo desconhecido. A imagem dinâmica não tem, portanto, representação que lhe seja própria, ela é a tensão da intenção: sua representação seria a palavra “desejo”, conjugada com um verbo ativo, participante e presente no sujeito, na medida em que encarna o verbo ir, no sentido de indo-desejando ... A imagem dinâmica expressa em cada um de nós o Sendo, chamando o Advir: o sujeito no direito de desejar, eu gostaria de dizer “em desejância”. (Dolto, 1992, pp. 44-45)
Muitas são as consequências possíveis dessa afirmação. Aqui interessa indicar que a imagem/representação inconsciente do corpo próprio tem efeito de movimento (dinâmica) e se perturba diante da estagnação. Sofre imobilizado e sem o dinamismo próprio do que constitui o desejo enquanto devir. Não precisamos indicar o quanto o corpo psíquico das mulheres, e da comunidade lgbtqiap+, sofre com a imobilidade que lhe é imposta e exigida. Trans pode ser lido também como moving on e, certamente, em desejância. Mas o sempre aberto e o desconhecido são possibilidades ensejadas por corpos não masculinos, que sempre esbarram na impossibilidade tóxica dos homens imbecilizados por seus próprios paradigmas.
Nos estertores de tudo que é feito para manter determinados corpos e psiquismos cativos, há sempre a evidência do exercício de uma economia de gozo que se estende, até capitalizar o que seria sofrimento alheio, convertendo-o em formas de gozo próprio, definindo por essa via os caminhos do desejo sexual socialmente aceito, capturado e padronizado. No imenso “fora disso tudo” são lutas, resistências, novos modos de pensar, dizer, fazer e performar e a instauração do novo, que sempre supõe o declínio de formas de agir e pensar que hoje, certamente, em muitos lugares e situações, agonizam à beira de sua própria crueldade autoafirmativa, positivada, binária e heteronormativa. Estamos em revisão desses traços no próprio pensamento e na clínica psicanalítica, que depende muito e sempre do diálogo com esse “fora” vaginal.
Contra essa agonia, perpetradores instauram e preparam mais guerras, nas quais os homens ainda podem ser destituídos de humanidade, para continuarem a ser apenas inumanos. Por essa via, intentam pôr tudo abaixo, e de algum modo, e por causa disso, tudo está, sempre, apenas começando.