A colonização não acabou, ela continua e se atualiza no contemporâneo. Temos lembrado disso nos movimentos indígenas justamente porque, para reparar, é necessário antes reconhecer. Nossos territórios foram invadidos e violados em 1500 e continuam sendo nos dias de hoje. Quando falo em território, não estou me referindo apenas aos rios, matas, florestas. Nossos sonhos, nossa subjetivação, o modo com que nos relacionamos também são parte do território da existência. Da mesma maneira que a terra, da qual também fazemos parte, pode ser reflorestada das feridas que a exploram, nosso tecido relacional também pode e deve ser parte desse reflorestamento.
No centro da colonização está o marco temporal, ou, melhor dizendo, os marcos temporais que incidem até mesmo sobre nossa sexualidade, afetividade, modos de criar vínculos. Tenho chamado de sistema de monocultura a esse conglomerado colonial que se estrutura na monocultura da fé, através do monoteísmo cristão; na monocultura dos afetos, por meio da monogamia; na monocultura da sexualidade, mediante o monocissexismo, e assim por diante (Núñez, 2021). Nas palavras de Ailton Krenak (Krenak & Campos, 2021, p. 69), monocultura “é a imposição monolítica de um mundo só” e esta imposição pode ocorrer em diversas frentes.
Há importantes diferenças entre cada uma das monoculturas, mas o que as une é sobretudo a impossibilidade de concomitância: uma monocultura de soja impede a floresta e sua biodiversidade; o monoteísmo cristão afirma que há apenas um deus verdadeiro (o seu) e que todos os demais seriam falsos; a monogamia em que se comprova que ama alguém não podendo amar e desejar outras pessoas ao mesmo tempo; o monossexismo nos constrange ao binarismo de escolher azul ou rosa, homem ou mulher, e assim por diante. Criticar a impossibilidade da concomitância não significa afirmar que, necessariamente, teremos de dizer sim a tudo e a todos, mas é um exercício de não tomar a decisão binária como um a priori inescapável, irrevogável.
Quando os colonizadores chegaram a nosso território, vieram com a premissa de que nos trariam a evolução, o progresso e a civilização. A nós, atribuíam o atraso, a selvageria, o retrocesso. Missionários, como José de Anchieta, diziam que havia um único casamento verdadeiro, o cristão monogâmico, e que os povos indígenas não eram evoluídos, pois eram dissidentes da monogamia colonial. A pesquisadora Graciela Chamorro (2008) pontua que
A base da reestruturação da sociedade indígena nas reduções foi a imposição da família monogâmica patriarcal. Com ela os jesuítas colonizaram não só a “alma” dos indígenas, mas também sua percepção, seus corpos e sua sexualidade. O desejo sexual foi demonizado e toda lascívia castigada. O comportamento sexual como um todo era controlado pelo medo.
Cabe pontuar que até a Constituição de 1988, nós, povos indígenas, éramos considerados uma categoria social transitória, ou seja, esperava-se o momento em que deixaríamos de ser “selvagens”3/animais e passaríamos a ser “civilizados”/humanos, quando, então, desapareceríamos. Para deixar de ser animal e se tornar humano, era necessário deixar de ser bárbaro e se tornar cristão; o projeto civilizatório esteve marcado pelo racismo religioso. Humano, nesse contexto, é menos uma descrição biológica e muito mais uma ficção política. “Mate o índio nele e salve o homem”, famosa frase do capitão genocida Richard Henry Pratt, na qual se percebe a oposição entre ser indígena/selvagem e cristão/civilizado/humano (Pratt, 1892).
Esse olhar colonialista sobre nossos povos aparece também em muitas outras áreas de pesquisa, linhas de investigação acadêmicas que só recentemente têm-se aberto a nossas presenças. Temos buscado dialogar com as diferentes teorias (nossos povos nunca tiveram a obsessão de converter o planeta todo às nossas perspectivas), tendo a nitidez de avaliar até que ponto podem nos auxiliar e até que ponto discordamos de suas ponderações.
Gostaria aqui de fazer um breve exercício dessa ordem em relação a alguns aspectos da teoria psicanalítica freudiana, uma das perspectivas com as quais dialogo. Tenho admiração pela trajetória de Freud e por parte de sua produção, florescida e vibrante, mesmo em um contexto histórico tão especialmente hostil e violento contra pessoas judias. É comum que pessoas brancas se refiram a Freud como um “homem branco europeu”, mesmo sabendo de sua história, mesmo sabendo que naquele contexto a supremacia branca perpetrava um genocídio contra judeus, que evidentemente não eram vistos como pessoas brancas. Portanto, é com base nesse reconhecimento que farei minhas considerações críticas a algumas das ponderações que Freud (1913/1996) construiu sobre povos “primitivos”, especificamente as constantes em “Totem e tabu”. Não tenho a pretensão de abordar a obra como um todo, pelo contrário, minha ênfase será especificamente na discussão acerca das noções de desenvolvimento e evolução.
Sinalizo que essas críticas, embora aqui endereçadas, não são exclusivas a Freud, até mesmo, muitos outros diálogos seriam possíveis com base nele mesmo, em outros de seus trabalhos. Estou ciente de que muitas dessas características estão presentes até hoje em diversas literaturas antropológicas e de áreas afins, marcas, também, da falta de escuta da hegemonia em relação aos povos indígenas em primeira pessoa (do plural), uma realidade que pouco a pouco vem se transformando. É comum que se tente atenuar os discursos colonialistas com falas como “tal autor era uma pessoa de seu tempo”, como se nossos povos também não coexistíssemos em diferentes temporalidades. Quando se tomam narrativas hegemônicas como as representativas de uma época, corre-se o risco de justamente pôr à margem as dissidências desse mesmo período, que, nesse olhar, ficam “fora” de um tempo, de uma época da qual também fizeram parte. É reconhecendo as ambiguidades, paradoxos e limitações das teorizações psicanalíticas que sigo apostando nesse diálogo. Meu intuito não passa por encontrar uma “verdade” no passado da escrita freudiana, mas contribuir para debates acerca da reverberação de algumas dessas lógicas no contemporâneo.
Assinalo ainda que sei que os usos e reflexões sobre povos “primitivos” nem sempre têm um objeto descritivo de uma realidade factual, mas podem ser, antes, muito mais uma elucubração, uma hipótese, uma metáfora ou mito explicativo. Justamente pelo que a psicanálise nos ensina, o que é imaginado ou fantasiado também tem sua “existência” e validade, e é aceitando o convite e a generosidade de Freud para uma abertura a outras percepções que buscarei somar nesse debate. É inequívoco que, quando se fala em povos selvagens e primitivos, ainda que a referência seja pré-histórica, a associação mais comum que se faz é com povos indígenas. Em “Totem e tabu”, há menções ao fato de que a referência era mesmo a povos “primitivos” dos diferentes continentes, não só em sua presença pré-histórica, mas também sua existência no contemporâneo daquela época. Fato é que, de uma forma ou de outra, seguimos associados ao atraso, à “infância”, ao que não é desenvolvido, ao que vai na contramão do progresso. Assim, embora a palavra “primitivo” signifique, no seu sentido literal, algo que veio no início, no começo, sabemos que o sentido mais comum atribuído a ela é de primitivo como algo atrasado, (ultra)passado. Diante disso, optamos por utilizar outros termos, como povos originários.
Para resumir muito brevemente a tese de Freud sobre esse tema, resgato aqui sua proposta evolutiva, segundo a qual o primeiro estágio da humanidade seria o animista, que ele associa à infância; o segundo estágio seria o metafísico/religioso, correspondente à juventude; o terceiro seria o científico, referente à maturidade. Cada um desses estágios teria uma correspondência evolutiva com os estágios da libido. Enquanto o primeiro seria característico de povos “selvagens”, o último seria pertinente aos povos “civilizados”.
Uma das grandes problemáticas dessa proposta é a universalização. Afirmar que todos os povos do mundo possuem leis universais de funcionamento é, no mínimo, um erro metodológico. Mesmo nos dias de hoje, temos nossos parentes que estão em isolamento voluntário, sobre os quais pouco ou nada se sabe, especialmente acerca de seus costumes e modos de vida. Apenas por isso já seria apressado sentenciar que no mundo todo as comunidades seguem as leis de um grupo específico que se crê universal, uma postura que me lembra, até mesmo, o que Freud (1917) pontua sobre as três feridas narcísicas e a importância da descentralização de si como referência do outro.
Outra das problemáticas é referente à leitura equivocada que se tem sobre “animismo”. Quando nossos povos afirmam que os rios, as matas, o vento, a água também são pessoas, não estamos ignorando a diferença entre cada um desses seres, mas afirmando que essas existências também são gente, ainda que não tenham nosso rosto, nossa cara.
Cristóvão Colombo (1999), em uma carta de 1492-3, comenta sobre indígenas
devem ser bons serviçais e habilidosos, pois noto que repetem logo o que a gente diz e creio que depressa se fariam cristãos; me pareceu que não tinham nenhuma religião. Eu, comprazendo a Nosso Senhor, levarei daqui, por ocasião de minha partida, seis deles para Vossas Majestades, para que aprendam a falar. ... E digo que Vossas Majestades não devem consentir que aqui venha ou ponha pé nenhum estrangeiro, salvo católicos cristãos, pois esse foi o objetivo e a origem do propósito, que esta viagem servisse para engrandecer e glorificar a religião cristã. ... O melhor fruto que [da nova terra] se pode tirar me parece que será salvar esta gente.
Nessa fala percebemos que, mesmo havendo centenas de línguas indígenas à época, mesmo havendo centenas de formas de espiritualidade, para Colombo, nossos ancestrais não tinham “nenhuma religião”, pois, desde seu universalismo, só considerava como religião a própria. Da mesma forma, acreditava que nossos ancestrais deveriam “aprender a falar”, pois não percebia como linguagem nada que fosse além das línguas europeias. Todo esse projeto em nome de “salvar essa gente”, ainda que em nome dessa salvação, que não solicitamos, tanta violência, escravização e etnogenocídio tenham sido praticados. Tentar extinguir a língua de um povo é parte do extermínio desse mesmo povo, uma vez que arrancar dele sua língua e impor uma outra, estrangeira, como oficial é também tentar retirar dele sua identidade, sua cosmogonia, seu modo particular de ver o mundo. É uma violação civilizatória (Núñez, 2022). Em 1628 o cacique guarani Nesu, como registrado nas cartas jesuíticas, já “deixava claro que o Deus dos missionários era só Deus dos espanhóis e contrário ao Deus dos antepassados indígenas” (Chamorro, 2008, p. 86).
Quando os colonizadores chegaram aqui eles questionavam se nossos ancestrais tinham ou não alma, pois, se não tivessem, seriam “animais”. Como dito, o que demarcava ser gente, para eles, era ser cristão. Àquela pergunta “tem ou não tem alma”, nosso povo responde: sim, temos, mas o rio também tem, bem como o vento, o mar, os demais bichos. Quando dissemos isso, o que estamos pontuando é que não queremos fazer parte do que o parente Ailton Krenak (Krenak & Campos, 2021) chama de “clube vip do humano”, pelo contrário, queremos expandir o que conta como pessoa. E é nesse sentido que entendemos que a terra e todos os seres que vivem nela também são gente, à sua maneira. A busca da sociedade civilizada, por ressaltar a própria excepcionalidade diante dos demais bichos, diz dessa ilusão de superioridade, muito informada pela narrativa cristã de que o mundo teria sido feito para o homem. O fato é que cada ser tem sua singularidade, de maneira que, se pusermos as características de uma formiga como suprassumo da existência, todos os demais seres estariam, necessariamente, em falta, rebaixados. Uma dessas tentativas de criar uma excepcionalidade humana está na narrativa de que apenas o bebê humano nasceria em desamparo, precisando de contínuos cuidados para sobreviver. Há uma série de outros bichos,4 até mesmo mamíferos, cujos bebês também necessitam de suporte por longos anos. De alguma forma, todos os seres precisam de algum amparo, porque é a interdependência que nos constitui, em maior ou menor grau.
Esse movimento, tão comum em pesquisadores não indígenas, de exaltarem ou rebaixarem o humano distinguindo-o dos demais bichos, me lembra um excerto de Mário Quintana (2008, p. 18): “há críticos que, em vez de me julgarem pelo que sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse para um pessegueiro e dissesse: ‘mas isso não é um trator!’”. Então, sim, um chimpanzé pode não fazer o que um bebê humano faz, mas o bebê humano também não salta dos galhos como ele. Ou como também diria Alberto Caeiro (Pessoa, 1946/1993):
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço ideias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores. Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto, Como que sou inferior.
Portanto, não se trata de negar as especificidades e diferenças do humano em relação a outros seres, mas de libertá-lo de seu binarismo, ou seja, de retirar o humano do centro. Para nós, indígenas, sermos parentes dos demais bichos não é uma ofensa, mas um elogio, uma honra. Sabemos que os mesmos que os subestimam por não serem humanos também nos põem em uma posição de sub-humanidade. E dizem que o mundo está “desumano e cruel”, atribuindo a si tudo que é bom, ao passo que, quando tentam ofender alguém, comparam-no pejorativamente com algum bicho: vaca, galinha, macaco, cobra, porco, verme etc. Ao domínio do corpo associam o que é “animal”, falam sobre querer um “sexo selvagem”, pois sabem que um “sexo civilizado” não tem corporalidade.
Retornando ao debate inicial, só muito recentemente aqueles que nos viam como ingênuos, infantis e “anímicos” estão reconhecendo que nosso cuidado com os parentes não humanos não consiste em falta de inteligência ou maturidade, mas em uma constatação milenar de que nós somos interdependentes dos demais seres e que cuidar dessa rede é um autocuidado.
Freud (1913/1996, p. 188) comenta que “uma investigação dos povos primitivos mostra a humanidade aprisionada pela crença infantil em sua própria onipotência”, mas talvez essa onipotência refira-se muito mais às sociedades ditas civilizadas e evoluídas que a nossos povos, que não situam a si mesmos como o centro do mundo. Não é de se estranhar que haja tanta violação das matas, dos rios, dos demais bichos, se o mundo colonial tem como bússola moral a Bíblia, a qual ensina que o mundo foi criado para que o “homem” dominasse tudo. Nessa concepção, para se aproximar de Deus não seria possível ter “amizade com o mundo”, e todo o domínio do corpo, da carne, dos desejos, da “natureza” é visto como inimigo da evolução, do desenvolvimento, da alma, do céu. Se veem a terra como lugar amaldiçoado, se veem esta vida como inferior à que realmente seria verdadeira, a celeste, é compreensível que a relação de antagonismo com o próprio corpo se estenda também à terra, percebida como “tentação” e empecilho rumo ao progresso, ao desenvolvimento. As renúncias de toda essa dimensão do corpo, da terra, da sexualidade são percebidas como passo fundamental para ser redimido no Juízo Final. Para nossos povos, essa ideia de sobrenatural e sobrenatureza não está posta dessa forma, pois não compreendemos que haja algo superior à natureza. Aliás, a própria divisão entre natureza e cultura, humano e animal, alma e corpo, amor e sexo e tantas outras cumpre a mesma função de desconexão e des-envolvimento com a interconexão entre os seres.
Em nosso povo, o binarismo morte e vida não se apresenta da forma como acreditam os colonialistas. A relação mente e corpo, natureza e cultura, espírito e carne não faz parte de nossas cosmogonias, ela é fortemente influenciada pela ideologia cristã. Não são todos os povos indígenas que acreditamos que nossos “espíritos” estão bravos, ressentidos e amargos contra nós porque eles estariam mortos e nós, vivos, porque não acreditamos nesse binarismo, nem nessa ideia de que a memória não se transforma. Nossos espíritos não são necessariamente transcendentais, eles coexistem conosco. Morte e vida são termos insuficientes para nós. Não atribuímos à morte a impotência, pois compreendemos que também em vida a temos. O vento está vivo ou morto? A areia é viva ou morta? Quando nosso corpo se transformar em minhocas e outros seres, compreenderemos que essa será uma transformação, não um fim. Essa vida não seria a passagem imperfeita rumo à vida eterna, o céu. Até mesmo, para nós, o céu faz parte da terra, não há nele um apelo moral ou transcendental. Essa transformação sazonal da existência não é inferior nem superior a nada, ser minhoca não é melhor nem pior que ser baleia ou formiga.
Nas cartas jesuíticas que tenho pesquisado, os padres registram sua luta contra a presença do incesto e da não monogamia nativa, e é interessante observar que, sem a monogamia, o mito do Édipo, que a psicanálise empresta, não se sustentaria. A impossibilidade de concomitância, essência da monogamia, é o que caracteriza todo o problema, é ela que dá sentido a esse tipo de inveja, cobiça, disputa. Como nos ensina Freud, a proibição está intimamente relacionada à produção de desejo, de maneira que, não havendo esse pânico moral em nossos povos, não se sustenta esse tipo de obsessão e fixação em torno do sexo/sexualidade que caracteriza as sociedades ocidentais, como pontua Foucault (1993). Em alguns trechos das cartas jesuíticas, os padres relatam dificuldade em implementar a confissão, uma vez que nossos ancestrais acreditam que em nada pecam, sendo, portanto, desnecessário confessar (Del Techo, 1991). No cristianismo, a evolução está posta no quanto alguém é capaz de controlar sua “carne”; enquanto atribuem esse desenfreamento ao “selvagem”. A internalização da moral cristã seria um dos marcadores da diferenciação entre animal e humano. De acordo com o professor Roberto Machado (2021), Nietzsche (2009) lembra que “chamar a domesticação de um animal seu ‘melhoramento’ soa aos nossos ouvidos quase como uma piada”.
O segundo estágio proposto por Freud seria o religioso ou metafísico, e o terceiro seria o científico, o ponto mais alto da evolução. Com isso, o que passa despercebido é que ciência e religião hegemônicas não são tão distantes quanto se pode supor. Em uma perspectiva nietzschiana, compreendemos que “a ciência nem se opõe à moral nem pode ser sua superação porque não apenas tem as mesmas bases que ela como é a última etapa de seu aperfeiçoamento; ... ainda que de modo inconsciente, são os valores morais que reinam na ciência” (Machado, 2021, p. 111). Para esse autor, o ponto principal de união entre ciência e moral seria “a mesma superestimação da verdade (a mesma crença no caráter inestimável e incriticável da verdade)”. Essa obsessão com a verdade é reflexo da oposição à verdade-aparência, uma vez que “não há ciência sem o postulado, sem a hipótese metafísica de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade tem mais valor que a aparência, a ilusão” (Machado, 2021, p. 113). Portanto, a substituição de Deus pelo humano não muda o essencial, que é a falta de questionamento sobre a legitimidade dos valores morais como ponto de partida. É justamente esse tipo de crença moral que tem inspirado tantos autores à universalização de suas verdades.
Nessa lógica evolucionista, o crescimento e a maturidade estariam na tomada de partido do binarismo, carne e espírito, homem ou mulher, azul ou rosa, pai ou mãe, e assim por diante. Autores como Regina Tavares da Silva (2019) associam não monogamia a povos “primitivos” e selvagens e monogamia a povos civilizados justamente porque o critério que utilizam é a ideia de que é a não concomitância que valida o verdadeiro amor, o verdadeiro desenvolvimento (Pilão, 2021). Afinal, para o deus cristão, a única prova de fidelidade é não praticar o adultério espiritual de adorar outros deuses. Para Tavares da Silva (2019, s/p), a “poligamia seria, portanto, um retrocesso a épocas ultrapassadas ... a cultura monogâmica é uma conquista histórica e sua normatização é um marco na evolução sociocultural da humanidade”. Os valores morais cristãos que a autora aciona, a seu ver, seriam universais, símbolos do progresso e do desenvolvimento, de maneira que em sua defesa da monogamia há um racismo religioso implícito.
Assim, na sociedade dominante, bissexualidade é vista como uma fase, um estágio rumo “à decisão” e à maturidade, porque não admitem a concomitância de desejos e afetos para além disso. Também não conseguem compreender que não ter de escolher, necessariamente, apenas um amor para viver ao mesmo tempo não significa imaturidade.
Como comentei, até a Constituição de 1988 nossos povos ocupavam um lugar de “transição” cujo ponto final era ser, pensar e viver como os brancos. Antes disso, nossas nações indígenas eram vistas (o que ainda persiste informalmente) como uma categoria a ser tutelada, éramos vistos como a infância, como crianças diante do adulto Estado. Com base em Fanon, Deivison Faustino (2015, p. 28) comenta que “quando um europeu comum se dirigia a qualquer um destes, inclusive aos representantes (negros) mais destacados da sociedade, fazia isso utilizando o petit-nègre, uma linguagem estereotipada”, que aciona justamente esse imaginário de uma linguagem em caricatura. Sabemos que a sociedade dominante ainda vê crianças como seres sem autonomia, como pessoas que só serão gente quando crescerem e produzirem economicamente, mas para nossos povos elas não são inferiores de modo algum e não nos humilha a comparação com elas, ainda que saibamos da intenção do gesto.
Com isso, concluo, sabendo que há muitas outras discussões a se fazer nesse debate, mas salientando que a artesania dos afetos é uma possibilidade de irmos além desse marco temporal que coloca escadas no desenvolvimento. Aliás, talvez menos que desenvolvimento e progresso, possamos abrir espaço para repensar a qualidade do nosso envolvimento com o mundo, como nos ensina Mestre Bispo (Santos, 2015), Kerexu Yxapyry (Antunes, 2015) e tantas outras referências indígenas e quilombolas.
Nem o tempo de antes era atraso nem o de amanhã será avanço, talvez essa temporalidade linear e evolutiva não seja a mais adequada para lidarmos com as descontinuidades (Foucault, 2010) que nos perfazem. Como diz o filósofo guarani Timóteo Popygua (Silva, 2017), para nós o tempo é espiralar, não tem começo nem fim, não somos nem a gênese nem o apocalipse da existência. E talvez justamente por isso possamos compreender que a saúde está na concomitância da floresta, e não na monocultura, e que o mundo é muito maior do que o folclore binarista tenta nos convencer.
Como ensina a parenta Jera Guarani (2020, p. 19), talvez possamos convidar os brancos (jurua) a
... se tornarem selvagens, para que se tornem pessoas não civilizadas - pois todas as coisas ruins que estão acontecendo no planeta Terra vêm de pessoas civilizadas, pessoas que não são, teoricamente, selvagens ... Quem sabe, para além de repensar apenas o que chamam de “psicanálise selvagem”, os psicanalistas não indígenas possam abrir espaço para recordar, repensar, elaborar sua própria psicanálise civilizada.
Talvez o maior desafio quando discutimos violações não seja tanto o combate às violências que explicitamente se põem a favor do ódio, mas sim quando elas operam com base em um vocabulário e em um repertório que se organiza em nome do bem, do amor, da salvação, do respeito, da família e seus supostos bons costumes. Neste “infamiliar” que nos ensina Freud (1919/2019), é que pode residir a real problemática, nessa estranheza quase herege em olhar de outra forma para o que nos foi ensinado como família, amor, pátria, deus, pai etc.
Nesse sentido, é fundamental que haja uma desromantização desses lugares, pois essa romantização ainda faz crer que, em sua origem, trata-se de algo essencialmente bom, que a colonização e catequização no fundo são boas e saudáveis, que aquilo feito em nome do amor, da salvação e da família em verdade é projeto a ser defendido. Mas, só pelo fato de se pôr como universal, por sua imposição, é preciso que se reconheça, toda monocultura é violenta, é invasiva e violadora. Se seu ponto de partida já é a negação do outro, expressa na ideia de conversão e de cura de tudo que é diverso e múltiplo, então ela não pode ser compreendida como uma opção entre outras válidas, mas como a não opção, como a que justamente impede que haja possibilidade de escolhas. Não escolhas livres, que estas são ingênuas, se consideramos o contexto em que vivemos, mas escolhas, mesmo que parciais, que abram espaço para a singularidade.
Se a sexualidade de uma pessoa homofóbica se subjetiva por meio da hostilidade contra homossexuais, essa sexualidade não deve ser vista como tão válida quando a das pessoas homossexuais, uma vez que, neste último caso, é uma demanda pelo próprio corpo, não pelo controle da sexualidade alheia. Nunca houve, por parte dos movimentos sociais de dissidência de gênero, o desejo de curar ou converter ninguém. Portanto, o direito à liberdade precisa sempre estar sensível às contingências históricas. Da mesma forma, se a fé de alguém se afirma negando os demais deuses, se essa ideologia ensina que só há um deus verdadeiro e os demais são falsos, não deveria causar tanto estranhamento quando membros desses grupos praticam racismo religioso. Não são exemplos de “falsos” religiosos, afinal, sua prática é apenas uma continuidade do que sua ideologia já orientava. Por outro lado, não vemos povos indígenas queimando casas de reza de outros credos, justamente porque nossa cosmogonia não é de monocultura, é de floresta. Nesse sentido, pelo fato de admitirmos a concomitância de seres, de espiritualidades, de sexualidades e jeitos de ser no mundo em nossas próprias cosmogonias, não se verifica em nossas práticas o mesmo impulso colonial em exterminar a diversidade.
A assimilação que os colonizadores tentaram impor em nome da civilização tinha como ponto de partida e chegada eles próprios, afinal, não era sobre se assimilarem às nossas culturas, mas sobre fazer com que nos diluíssemos em sua própria cultura. É imprescindível que esses gestos não sejam percebidos como simplesmente “humanos”, mas como coloniais. Este projeto de dominar o mundo, como diz Fanon (2008, citado em Faustino, 2015), é um sonho branco, e a descolonização não busca uma outra colonização, levada por outros agentes, mas o seu fim.
Recusar as monoculturas não significa não ter nenhum critério, nenhuma língua, nenhuma fé. Significa não as tomar como critério universal. Posicionar-se contrariamente às monoculturas é afirmar o princípio da floresta, cuja característica essencial é justamente a possibilidade de concomitância, da diversidade e singularidade. E talvez um dos maiores legados da psicanálise seja justamente o respeito radical à singularidade que nos constitui em nossa diversidade coletiva.