Pensando sobre a teoria de D. W. Winnicott no que se refere à conquista da capacidade de preocupação (concern), podemos perceber como este ponto do desenvolvimento emocional é crucial tanto para pensar a saúde psíquica, como para definir o que seria um adulto com capacidade intergeracional de cuidado do outro, seja este outro um familiar, um amigo, um paciente ou outro ser humano. O autor nos ensina que só com essa aquisição, talvez a mais difícil e estendida no período da infância, o indivíduo pode ser considerado uma pessoa completa.
Em outros trabalhos, tenho me debruçado sobre a questão da humanidade do analista (Tosta, 2023a; 2023b), no sentido de que a sua pessoa se faz evidenciada na clínica psicanalítica contemporânea, por ter mudado a prevalência de casos que nos chegam para atendimento. Se no momento da criação da psicanálise predominavam os casos de neurose, de algum tempo para cá, imperam os casos fronteiriços, também chamados de casos limite. Aprendemos com André Green (2017) que esse limite se refere à analisabilidade de um paciente, e não a um critério diferenciador diagnóstico.
Winnicott, ao discutir os limites da análise padrão, procura modificar o manejo terapêutico e dá o seguinte depoimento: “Faço análise porque é do que o paciente necessita. Se o paciente não necessita análise, faço alguma outra coisa” (Winnicott, 1983, p. 152).
Frequentemente tais casos demandam uma regressão no processo analítico, justamente por serem indivíduos que têm em suas histórias de vida situações traumáticas, que levaram a interrupções de seu amadurecimento psíquico. Muitas vezes não são apenas interrupções, mas um percurso traumático que sinaliza falhas significativas e prolongadas em relação ao escudo protetor do ambiente primário - um trauma cumulativo3 -, que pode causar graves distorções no ego, como mostrou Masud Khan (1984).
No processo regressivo dentro da análise, a pessoa do analista é especialmente exigida no setting analítico. Michel Balint revela o papel destacado do analista na regressão nos casos de pacientes que tiveram a “falha básica” na relação inicial com o objeto primário. O turning point no processo analítico - o novo começo - do qual Balint (1968/1993) fala, apenas pode ocorrer diante de uma atitude diferenciada do analista, que consegue ultrapassar certas barreiras do enquadre psicanalítico clássico. Sabemos o quanto Balint reativou as ideias revolucionárias trazidas por Ferenczi com a elasticidade da técnica.
Ao trabalhar os diversos tipos de regressão, Balint acentua o lugar do analista nesse processo, quando a regressão é do tipo benigna, ou seja, quando age em favor do reconhecimento do paciente. Aí o analista poderia encarnar o ambiente que sustenta e carrega o paciente e consente em ser usado, tal como seriam os objetos e as substâncias primárias.
A substância, o analista, não deve resistir, deve consentir, não deve dar origem a muito atrito, deve aceitar e transportar o paciente por um certo tempo, deve provar ser mais ou menos indestrutível, não deve insistir em manter limites rígidos, permitindo o desenvolvimento de uma espécie de mistura entre o paciente e o próprio analista. (Balint, 1968/1993, p. 134)
Para Winnicott (1964/1994), a regressão do paciente é destacada como processo relativo à dependência. Na análise, a regressão relaciona-se a viver com o analista a dependência que não foi possível ser vivida em sua história relacional. Trata-se de uma regressão à dependência na transferência com o analista. Então, na regressão clínica, o analista e o manejo de todo o setting podem assumir o primeiro plano com relação à intervenção interpretativa.
Em Winnicott, o lugar da pessoa do analista ganha destaque de muitas formas. Uma das maneiras que sobressai é a intercorporeidade experienciada, pois a sensorialidade muitas vezes pode ser um veículo de comunicação valioso na clínica, especialmente no processo regressivo. Destaco a presença psicossomática do analista que, com sua vivacidade, pode sentir e estar com o paciente de muitas maneiras. Um exemplo mais marcante se dá diante do paciente silencioso, em que se evidencia a presença viva do analista em sua função de analista-ambiente (Tosta, 2019), o que percebo como correspondente ao que na conceituação de Figueiredo (2008) seria o analista em reserva ou em espera.
O presente trabalho, por sua vez, relaciona-se com a implicação do analista em sua função de cuidador, originada da ideia winnicottiana de que a psicoterapia seja voltada, não para a cura ou aprisionada à necessidade de classificar o paciente nos quadros nosológicos, e sim que seja vivida como uma prática de cuidado do outro. Mas o que seria esse cuidado?
Winnicott (1986/2021) acredita que o termo “cura”, em suas raízes, significa cuidado, e relaciona o cuidado ao segurar, ou seja, ao holding. Ele explica que cuidar também faz parte da prática médica e relembra a relação que o médico mantém com seu paciente em uma cidade do interior. Diz: “O médico pode aprender muito com aqueles que se especializam em cuidar-curar, no lugar de se especializarem em ‘curar pela erradicação dos agentes do mal’”. Acrescenta a ideia de que o “cuidar-curar” seria uma extensão do conceito de “segurar” (Winnicott, 1986/2021, p. 139).
Então, percebemos que o autor está mencionando o cuidado em relação ao holding, à sustentação do ser. O autor sugere que dediquemos ao paciente um setting profissional no qual seja oferecida a provisão ambiental relativa ao cuidar-curar.
Ética do cuidado
O cuidado com o outro envolve então uma questão ética fundamental. O filósofo Loparic me apresentou o trabalho de Carol Gilligan. Essa autora, no livro A voz diferente (1982), relata extensa pesquisa na qual destaca o desenvolvimento da moralidade em mulheres e homens. A autora distingue dois tipos de moralidade: a dos direitos e a da responsabilidade. Ela afirma:
A moralidade dos direitos tem como fundamento a igualdade e centra-se no entendimento da equanimidade, ao passo que a ética da responsabilidade apoia-se no conceito de equidade, o reconhecimento de diferenças nas necessidades. Enquanto a ética do direito é uma manifestação de respeito igual equilibrando as reivindicações do outro e do eu, a ética da responsabilidade repousa num entendimento que enseja compaixão e cuidado. (Gilligan, 1982, pp. 176-177)
Para a autora, no desenvolvimento humano, a maturidade implica poder manter uma tensão dialética entre a ética de justiça que advém da premissa de igualdade e uma ética do cuidado, assentada numa premissa de não-violência.
Nessa direção, Loparic (2013) relaciona a teoria freudiana com a ética da lei e a proposta de Winnicott com a ética do cuidado. O filósofo ajuda a distinguir os significados do termo “cuidado” na psicanálise winnicottiana: “cuidado” como provisão ambiental, fator fundamental na formação da existência psicossomática e na socialização dos indivíduos; e “cuidado” como a responsabilidade para com seus cuidadores e seu ambiente.
Entendo que o primeiro sentido pode ser derivado do papel de cuidado da mãe com seu bebê, que possibilita o início de sua existência, cuidado revelado pela preocupação materna primária ou devoção. Em seguida, a mãe e/ou os outros agentes de cuidado do ambiente primário ocupam-se em fornecer as condições suficientemente boas para o indivíduo em formação. Num primeiro momento pensamos nos pais, mas podemos lembrar os professores de educação infantil e também os analistas ou psicoterapeutas e todos os adultos maduros ocupados na provisão ambiental para aqueles que dependem deles.
Winnicott (1986/2021, p. 133) salienta que o cuidado envolve dependência. Dependência implica confiabilidade. Adverte que como profissionais de saúde “somos chamados a ser humanamente (e não mecanicamente) confiáveis, a ter a confiabilidade embutida em nossa atitude geral”.
O segundo sentido de cuidado tem a ver com o cuidado que o indivíduo tem consigo e com os outros, condição conquistada na etapa de desenvolvimento emocional que Winnicott denomina “concern” (concernimento). Atingindo essa capacidade, o indivíduo sente-se responsável por seus impulsos tanto em seu mundo interno como no mundo externo. O concernimento inclui, então, um cuidado de si e do outro. Esse cuidado implica que o adulto maduro possa assumir a responsabilidade por aqueles com quem interage, onde há interdependência, incluindo uma atenção com o meio em que vive e suas relações sociais mais amplas - com sua comunidade e com a sociedade como um todo -, mesmo na esfera política, tendo, assim, o cuidado uma marca que transcende a responsabilidade no nível apenas individual.
Pensando na clínica, focalizemos o analista como esse adulto maduro que cuida do outro em ambos os sentidos do termo “cuidado”. Winnicott nos convoca a esse cuidado responsável em diversos textos, o que nos leva a deduzir a ideia que chamo de “psicanálise do cuidado”.
A meu ver, essa ideia do autor tem a ver com a concepção de saúde psíquica que se relaciona com o viver criativo e pessoal. Assim, o autor afirma: “Sobre o que versa a vida? Podemos curar nosso paciente e nada saber sobre o que lhe permite continuar vivendo ... ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida” (Winnicott, 1971/1975, p. 139).
Para poder proporcionar situações clínicas de acontecimento de um viver conjunto com o paciente, o analista precisa estar ocupado com o que Winnicott chamou de cuidar-curar, e não contaminado com a noção de cura-tratamento, relacionada à erradicação da doença. Aquele psicoterapeuta que permanece nesse espírito de “furor curandis” fica mais atento ao sintoma e sua eliminação do que ao que está interrompendo no paciente a possibilidade de viver o self criativo.
Aqui preciso salientar que uma questão fundamental na psicanálise do cuidado é o trabalho com o manejo da situação clínica. Esse há de ser diferenciado conforme a idade emocional do paciente. Assim, em carta de 1953 à psicanalista britânica Hanna Segal sobre a questão do manejo, Winnicott (1987/1990) destaca que este é essencialmente diferente nos casos dos psicóticos em relação aos dos neuróticos.
De acordo com seu estágio de desenvolvimento, o paciente poderá fazer uso do analista de formas diferenciadas. Quando num estágio mais primitivo, poderá usar o analista em suas funções “analista-ambiente” e “analista-objeto” (Tosta, 2019), de forma exclusiva ou separada, muitas vezes sem se dar conta de que ambas as funções derivam da mesma pessoa. Poderá chegar o momento em que o paciente atinja o estágio de preocupação e possa juntar em sua mente as duas funções do analista, só aí reconhecendo a unidade do terapeuta, dando-se conta do analista como pessoa. O analista precisa sempre se oferecer como pessoa completa para que seu paciente possa utilizá-lo na medida de suas necessidades.
Para tal, o analista ou psicoterapeuta precisa ativar sua capacidade de se preocupar com o outro, sua possibilidade de alcançar a comunicação possível com o paciente, de acordo com o que ele demanda em relação ao analista, mobilizando sua capacidade empática de viver junto com o paciente seu sofrimento e suas descobertas. A questão da empatia está sobremaneira evidenciada na psicanálise do cuidado.
Desde Ferenczi, aprendemos sobre a necessidade que tem o analista de trazer para a cena terapêutica o tato e a sensibilidade. Ferenczi (1928/2011) propõe o “sentir com”, que depois veio a ser formulado como “sentir o outro dentro de si”, ou seja, sentir de modo empático.
Winnicott, por seu turno, num dos modos pelos quais aborda a empatia, considera que:
Um sinal de saúde mental é a capacidade que um indivíduo tem para penetrar, através da imaginação, e assim de modo preciso, nos pensamentos, nos sentimentos e nas esperanças de outra pessoa, e também de permitir que outra pessoa faça o mesmo com ele. (Winnicott, 1986/2021, p. 91)
Na verdade, Winnicott propõe ao analista a empatia de “estar com” o paciente, “viver com” ele, ter uma experiência junto com o paciente.
Aprecio a definição de empatia do psicanalista uruguaio Victor Guerra (2022, p. 66):
Empatia é a receptividade à experiência emocional do outro. É deixar outras lógicas nos habitarem e visitar e ser visitados por outras sensibilidades. Sair, habitar, visitar: todos verbos que implicam uma forma de abertura, uma forma de dispor do que já se sabe para viver na posição de descobridor - a característica princeps do infantil.
O autor segue dizendo que a empatia seria uma disposição ativa e inconsciente de ser sensível aos elementos verbais e não verbais a fim de captar e se envolver na vida psíquica do outro (Guerra, 2022).
Estou explicitando a empatia por ser um dos pontos fundamentais pelos quais se manifesta a capacidade de o analista preocupar-se com o outro.
Dentro da prática clínica, pode-se evidenciar o cuidado responsável do analista, de maneira privilegiada, quando o paciente necessita constituir a capacidade de se preocupar (concern). Na normalidade, nesse período do desenvolvimento emocional, a mãe, como uma pessoa completa, tem uma atitude não retaliadora em relação aos ataques agressivos da criança e, desta forma, ajuda a criança a juntar em si mesma os aspectos agressivos e afetivos de sua personalidade, e também a integrar numa só a pessoa da mãe, os aspectos de mãe-objeto e mãe-ambiente. Ressalto que, para que a tarefa de cuidar seja bem-sucedida para a criança, é necessária a sobrevivência da mãe aos ataques agressivos. Essa atitude materna possibilita a criação de um círculo benigno, uma vez que se estabelece a capacidade de sentir culpa quando necessário, e a criança pode então se preocupar e se sentir responsável por seus impulsos e suas consequências sobre o outro.
Sobre a sobrevivência do objeto
Com relação à sobrevivência do objeto, a fase do concern vem como uma continuidade da fase de uso do objeto, no sentido da linhagem da constituição da impulsividade e agressividade no desenvolvimento emocional.
Na fase do uso do objeto, é a sobrevivência desse que possibilita ao bebê conquistar a externalidade do mundo, podendo então usar o objeto e diferenciar fantasia de realidade. Na verdade, é aí que a fantasia pode começar.
Não seria, contudo, o comportamento de sobrevivência da mãe que muda da fase de uso do objeto para a fase do concern, e sim a capacidade de o bebê se dar conta do que se passa, e se tornar consciente de seus impulsos. Mais do que nunca, precisa dessa sobrevivência do objeto para poder lidar com a culpa de modo potencial, e não se sentir devastado por ela.
Portanto, há uma diferença entre a fase de uso do objeto e a do concernimento: no concern a criança passa a saber, ter consciência de sua impulsividade e precisa que a mãe também saiba, que sobreviva à sua impulsividade - seu lado mãe-objeto - e mantenha também o seu lado mãe-ambiente, a empatia com o bebê para sustentá-lo nesse período particularmente difícil.
No concern, o objeto sobrevivente tem a ver com a mãe-pessoa. Diz Winnicott: “A mãe-pessoa sustenta a situação no tempo, enquanto o bebê busca um caminho para alcançar a ‘posição depressiva’, pois na ausência dos cuidados pessoais e contínua da mãe esse desenvolvimento quanto aos efeitos no objeto do amor excitado não pode ocorrer” (1988/1990, pp. 89-90).
Mas, para que possa exercer essa função, também a mãe (ou quem exerça o papel de cuidador primário) precisa ser sustentada por um outro. Nesse processo, o pai da criança, ou uma figura terceira que se relacione com a mãe e com a criança, protege a mãe para que ela possa suportar os ataques do bebê. A sobrevivência do objeto e a manutenção da sustentação, portanto, possibilitam que a criança atinja o concernimento. Para o autor, essa conquista revela-se de dois modos: como vimos, a criança torna-se preocupada quanto aos efeitos de seus impulsos de amor excitado sobre o objeto amado e, também, quanto aos resultados dessa experiência excitada em seu próprio self. Para que o bebê possa pôr sua impulsividade amorosa sobre o domínio do eu, ele precisa de um cuidado materno contínuo, presente e vivo.
É o comportamento do objeto, sua capacidade de sobreviver aos gestos impulsivos destrutivos e receber os seus gestos reparatórios e construtivos, que possibilita ao bebê conquistar a capacidade para sentir culpa.
Assim também acontece na análise, pois o analista, como a pessoa completa que é, precisa ficar atento aos movimentos destrutivos e construtivos de seu paciente e, como analista-objeto, possa sobreviver aos ataques, enquanto, como analista-ambiente, consiga acolher os gestos restitutivos, para que o paciente possa alcançar a integração do estágio de preocupação.
Em outras palavras, nos períodos em que o paciente está elaborando sua capacidade de concern, o analista é quem vai auxiliá-lo a juntar o analista-ambiente e o analista-objeto, assim como auxiliar o paciente a integrar no seu mundo interno a agressividade e a afetividade. Aqui a preocupação do analista com seu paciente vai se revelar especialmente pela sua sobrevivência diante dos ataques transferenciais do paciente.
Caso clínico
Para ilustrar, trago um recorte de caso clínico4 em que a psicoterapeuta foi levada a sustentar um alto nível de agressividade da criança em atendimento, que se manifestava em termos de comportamento de oposição ou birra.
Trata-se de um atendimento psicoterapêutico realizado por uma psicóloga na Clínica Psicológica de uma universidade em São Paulo e supervisionado por mim. Esse atendimento resultou em uma monografia com a temática do comportamento de oposição, que foi apresentada pela supervisionanda àquela instituição de ensino (Gayoso & Tosta, 2018). Com base no relato clínico desse atendimento, selecionei alguns fragmentos para construir as minhas elaborações teóricas, focalizando outros aspectos do caso, relativos à relação analista-paciente, no contexto do presente artigo.
A menina, que vamos chamar de Giovana, iniciou o tratamento com 3 anos e 7 meses. A demanda da mãe era relativa a um comportamento desafiador e desobediente da menina, e relatou que ficava perdida e muitas vezes não sabia o que fazer, queixando-se de ter dificuldades de estabelecer limites a certos comportamentos da filha.
Alguns dados do histórico do caso merecem ser destacados. Soubemos que ela quando bebê, na creche, apanhava dos colegas, além de voltar da escola assada devido ao uso inadequado da fralda e com manchas vermelhas, como se alguém a tivesse beliscado. A responsável foi identificada e demitida. No entanto, depois disso, quando já era maiorzinha, ela continuava apanhando dos colegas e, em vez de se defender, acabava dando tapas e mordidas em si mesma. Entendo que esses dados iniciais já mostram uma história em que essa criança viveu, ainda bebê, uma situação de negligência e de abuso, e que, num primeiro momento, sua reação foi autoagredir-se, depois passando a agredir o ambiente.
Outro dado importante: Paula, mãe de Giovana, revelou que teve uma gravidez conturbada devido às brigas com o ex-marido, pai de Giovana. Segundo ela, o marido ficava agressivo quando estava sob o efeito de drogas e do álcool. Um mês antes de Giovana nascer, Paula pediu a separação e depois ganhou a guarda da menina na Justiça. Podemos perceber que a mãe passou por um relacionamento abusivo e violento com o pai de Giovana, tendo também ficado traumatizada.
Além disso, Paula teve que se afastar da filha logo após o nascimento para acompanhar sua mãe no hospital. Treze dias depois do nascimento de Giovana, faleceu a sua própria mãe. Assim, o luto sobrepôs-se a uma história abusiva, em que essa jovem foi abandonada à sua própria sorte, na gravidez e logo que nasceu a filha. Solitária, sem o suficiente apoio ambiental, não pôde desenvolver a preocupação materna primária. Ela mesma disse que gostaria de ter dado mais atenção para sua filha no começo da vida, mas não foi possível.
Quanto ao pai, parou de visitar Giovana quando esta tinha apenas 1 ano e 8 meses. Mesmo o padrasto parecia não exercer a função paterna. A mãe não tinha suficiente força egoica para estabelecer limites. E ninguém na família parecia ter a necessária atitude parental, ao mesmo tempo amorosa e firme.
Na psicoterapia, observou-se que Giovana trazia constantemente para a sessão a relação estabelecida com sua mãe, predominando a transferência da figura materna para a psicoterapeuta. Além de gritos e tentativas de satisfazer sua vontade, ela tinha comportamentos propositais que chocavam a terapeuta, fosse uma resposta atravessada ou algum comportamento autoagressivo, mesmo que indiretamente (por exemplo, beber água da torneira), de forma que fosse exigido da terapeuta o estabelecimento claro dos limites, como se solicitasse o exercício da função paterna.
No início do processo, Giovana demonstrou seu sofrimento psíquico. Logo na primeira sessão, ela viu a tinta dentro da caixa e resolveu fazer uma pintura. Ela pegou o vermelho e esboçou um coração, mas logo depois misturou todas as tintas e passou em cima dele com força e rapidez. A psicoterapeuta perguntou o que ela estava fazendo, e ela respondeu “estou fazendo um buraco preto. Nossa! mas que fedido isso aqui! Carambola, que cheiro ruim!” (sic). Nesta hora, a psicoterapeuta intuiu um sofrimento intenso por parte de Giovana, que não quis falar mais nada sobre o assunto.
Em trecho de outra sessão, revelou seu sofrimento, dizendo ter raiva dos brinquedos, porque “Eles estão me matando. Eles não me deixam dormir”, falou rindo (sic). Depois pediu à terapeuta para apagar a luz da sala para ficarem as duas no escuro, assim como ficava brincando com os brinquedos à noite, sozinha.
Aqui, os brinquedos eram representantes dos objetos perseguidores que não a deixavam dormir. Pode-se entender que a independência reativa experimentada através do comportamento de oposição de Giovana dava-lhe um domínio sobre várias situações e pessoas, e isso lhe causava sofrimento de caráter persecutório.
A psicoterapeuta relata o quanto foi difícil sustentar a situação e lidar com a contratransferência. Sentia-se testada o tempo todo. Logo no início do tratamento, a primeira coisa que a menina disse foi “você sabia que eu pintei a parede da escola?” (sic), o que já era uma previsão do que ela iria fazer no atendimento. E, de fato, ao fim daquele encontro, ela pintou a parede da sala.
De modo frequente, a paciente inundava a sala inteira com água e também fez a caixa lúdica de piscina. Winnicott (1988/1990, p. 91) nos lembra que, na psicoterapia de crianças pequenas, a sala de brinquedos representa a psique da pequena paciente, “e o analista é admitido ao mundo interno da criança, onde há uma tremenda disputa entre diversas forças, onde reina a magia, e onde o que é bom é constantemente ameaçado pelo que é mau”. Entrar nesse mundo pode levar o analista a uma sensação de desconforto mental.
Em função disso, após os atendimentos, a psicoterapeuta levava aproximadamente 40 minutos extras para arrumar a sala. Esse processo demandava bastante energia, assim como o atendimento em si. Devido à complexidade da demanda, a terapeuta precisava manter-se sempre atenta, não podendo “baixar a guarda”, por isso, sentia-se esgotada após as sessões, mas, mesmo diante de todas essas adversidades, permaneceu firme e atendendo a menina. Destaco que, nesse processo, diferentemente da mãe da paciente, que não teve o necessário suporte ambiental, a psicoterapeuta pôde contar com o holding da supervisora e do grupo de supervisão, para poder sustentar toda essa situação de grande desafio profissional.
Penso que a pequena menina exigia um ambiente no qual poderia confiar e do qual depender para vencer seus medos advindos de sua história traumática. Precisava testar se agora tinha uma continuidade no tempo e no espaço que sobrevivesse a todas as adversidades internas e externas para que pudesse conquistar a segurança que ainda não tinha conseguido no seu ambiente familiar.
Da parte da psicoterapeuta, avalio que esse processo psicoterapêutico exigiu um alto grau de tolerância ao sintoma, que demandou uma sobrevivência difícil a tantos ataques a ela, ao enquadre e ao cenário analítico. Muito dessa sobrevivência foi possibilitada pela empatia com o sofrimento psíquico da menina, que pôde dar esperança à terapeuta de permitir, com seu atendimento, uma nova oportunidade de desenvolvimento psíquico para a pequena paciente.
Winnicott (1968/1994), quando expõe sua teoria sobre o uso de um objeto, destaca o papel do objeto sobrevivente para a constituição da externalidade. Afirma: “Se for numa análise que estas coisas estão acontecendo, então o analista, a técnica analítica e o setting analítico, todos eles entram nisso como sobrevivendo ou não sobrevivendo aos ataques destrutivos do paciente” (p. 175).
Nesse ponto, concordamos com Elza Dias (2002), quando diz:
No que compete àquele que cuida, sobreviver significa manter-se por conta própria, dar continuidade ao que se inicia; é fazer perdurar, preservando incólume a qualidade da relação e do ambiente; é, sobretudo, não sucumbir às turbulências próprias do estar vivo e do amadurecimento - inclusive as que incluem destruição - de quem está sendo cuidado, ou seja, é permanecer consistentemente a mesma pessoa, com a mesma atitude, sem retaliação. (p. 349)
A analista precisou cuidar para que o estresse e desgaste que o atendimento da menina lhe causava em termos pessoais não sobrepujassem a necessidade ética de estar como uma pessoa empática, humana e responsável em todas as sessões para sustentar o ser da criança.
Palavras finais
O presente artigo focaliza a responsabilidade ética do analista diante da vulnerabilidade psíquica do paciente em sofrimento. Com base no caso apresentado, pode-se perceber o cuidado do analista no atendimento às necessidades psíquicas específicas de sua paciente. Nesse caso, na medida em que a criança necessitava elaborar os sentimentos contraditórios do estágio do desenvolvimento emocional nomeado como concern, a tarefa destacada do analista foi sustentar a situação no tempo e no espaço e se manter como objeto sobrevivente para a paciente. Como vimos, a sustentação e sobrevivência do analista visavam permitir que a criança pudesse dar-se conta de seus impulsos agressivos, tanto voltados para si mesma como direcionados para as figuras de seu ambiente, o que no atendimento clínico era representado pelo analista e por todo o setting oferecido. Em última instância, a sobrevivência do analista poderia levar a criança a se dar conta da própria agressividade pessoal, da violência dentro dela, a qual ela mesma não tinha condições de aguentar, e, quando o analista suporta, a paciente pode vir a tolerar sua destrutividade diante dos objetos de amor.
É mister ressaltar que a preocupação ética do analista daria as condições para que o paciente também possa conquistar o concernimento e, em consequência, atingir a capacidade para a moralidade.
Quando destaco o aspecto de sobrevivência, focalizo apenas um dos aspectos da função de cuidado do analista em sua prática. Mas o cuidar do paciente, em termos éticos, envolve muitos aspectos ligados à prática psicanalítica. Por exemplo, o analista toma para si a responsabilidade da manutenção de uma atitude estável e de ser consistentemente si mesmo.
Nessa direção, seria um exercício do cuidar-curar, da psicanálise do cuidado, na qual a atenção com o outro ser humano em sua possibilidade de ser e existir é o que rege a prática do analista na sua séria e comprometida tarefa de fazer uma clínica ética.
Winnicott nos traz uma forma de fazer psicanálise que busca não apenas elaborar o passado, mas também proporcionar uma nova oportunidade no processo terapêutico, uma experiência diferente que não foi possível na história de vida do paciente. A qualidade do cuidado que Winnicott propõe enfatiza a experiência - uma experiência conjunta entre paciente e analista. Portanto, a psicanálise do cuidado acaba sendo uma psicanálise do acontecimento. Uma psicanálise que também valoriza o presente, um presente que aponta para o futuro.
Enfim, encarando o processo psicoterapêutico na concepção winnicottiana, sabemos que nele predomina a noção de cuidado com o outro, considerado em sua alteridade radical e, ao mesmo tempo, levando em conta a relação intersubjetiva na qual esse outro é modificado e se modifica, tal qual o analista, em função do terceiro relacional que emerge da relação. O outro não é mais o outro, para sempre estranho e diferente, como também o eu não é mais um eu, para sempre privado no seu universo particular.













