Neste ensaio, dedico-me a sustentar uma reflexão consistente o bastante acerca do modo como as contribuições de W. R. Bion à psicanálise podem ser pensadas na elaboração de trabalhos científicos. Que fundamentos devem orientar um método de pesquisa que tenha como premissa epistemológica a obra de Bion compreendida não como um conjunto de teorias que se dão à aplicação prática, mas como um estilo vivo de experiência e investigação do objeto psicanalítico (Bion, 1962, 1963, 1970) em um horizonte sempre inconclusivo de publicação?
Encontro na obra de Bion um pensamento original e esclarecedor para examinar fenômenos da clínica psicanalítica, não obstante a complexidade peculiar desse autor. Ler Bion requer descobrir, por meio da atividade clínica, da análise pessoal e da experiência viva no cotidiano social, aquilo que o autor habilidosamente discute ao longo de sua extensa obra voltada aos fenômenos do pensamento e ao aprimoramento das capacidades de observação e intervenção do psicanalista.
Deixarmo-nos acompanhar por Bion requer a disposição para uma constante tempestade. Seus trabalhos, quando examinados em um estado mental de atenção e leveza, despertam-nos sentimentos vertiginosos, pois requerem liberdade para nos estranharmos com realizações inéditas, por vezes perturbadoras, capazes de modificar significativamente nossas concepções sobre fenômenos psíquicos e as possibilidades de análise. Ao penetrar e nos deixarmos penetrar pelo pensamento bioniano, somos invariavelmente pegos de surpresa por aspectos da experiência comum que sempre estiveram presentes, mas que subitamente nos revelam dimensões nunca percebidas. É algo semelhante ao que experimentamos nos sonhos em que acidentalmente nos deparamos com uma porta que se abre para um cômodo que até então ignorávamos existir em nossa própria casa.
A busca da linguagem viva e mobilizadora constitui um eixo importante das contribuições de Bion à psicanálise. Paulo César Sandler assim sintetiza:
Mais que qualquer outro (com exceção, talvez, de Winnicott), Bion devolveu vivacidade à psicanálise, resgatou a linguagem coloquial que o jargão expulsara das sessões e criou um método de examinar as vicissitudes da apreensão da realidade psíquica: verdades imateriais subjacentes aos fenômenos sensorialmente apreensíveis. Ele deixou um exame detalhado das limitações da comunicação verbal, pois as palavras escondem, como observou Voltaire, e revelam, como percebeu Freud. E mostrou que elas o fazem paradoxal e simultaneamente. (2009, p. 439)
Em Bion, a linguagem e suas transformações na sessão de análise demandam um estado de atenção sensível aos detalhes insUSPeitos, sutis, microscópicos que revelam aspectos da realidade psíquica pulsante, captada e transformada pela dupla analítica em constante interação. A realidade psíquica cuja natureza é da ordem do númeno, inapreensível pelos sentidos, somente pode ser apreendida em suas transformações fenomênicas, a
expressão sensorial que se manifesta, dentre outros modos, por meio da linguagem em toda sua plasticidade (Bion, 1965, 1970). O contato humano é mediado por uma linguagem social, com vocabulário coloquial, ordinário, compatível com o universo simbólico em que habita o analisando. O analista precisa ser capaz de se comunicar com espontaneidade, ao mesmo tempo em que procura com o analisando alcançar uma qualidade afetiva que torne aquela conversa um encontro transformador, que abra possibilidades de engendrar pensamentos oníricos a partir dos resíduos e impressões sensoriais captados no encontro analítico, e experimentar o ser onde usualmente persiste um saber sobre.
Embora os trabalhos de Bion lancem luzes a muitas questões relativas à linguagem, é curioso observar que não encontramos nesse autor a preocupação em formular uma teoria da linguagem enquanto sistema de códigos comunicacionais em qualquer perspectiva semiótica ou epistemológica. Ao contrário, por exemplo, do que encontramos em Jacques Lacan (1968), que discute em profundidade os trabalhos de linguistas e filósofos como Émile Benveniste, Louis Althusser e Ferdinand de Saussure para desenvolver sua teoria de que o inconsciente se estrutura como linguagem, Bion discute a linguagem de forma abrangente e fluida para designar as maneiras como analisando e analista se expressam e o teor de comunicabilidade das formas expressivas utilizadas no trabalho psicanalítico. Essa ausência de definições teóricas taxativas é contrabalançada com claras descrições fenomenológicas das correlações clinicamente observadas entre a linguagem como meio de comunicação e os processos de pensamento, como em sua formulação da Linguagem de Alcance (Bion, 1970), ou seus trabalhos dos anos 1950 que discutem a linguagem como ação mecânica para a identificação projetiva na descarga de estímulos pulsionais (Bion, 1967a).
Bion demonstra que as comunicações do analisando podem servir a diferentes usos. Por meio da observação psicanalítica e do refinamento das capacidades intuitivas do analista (Bion, 1970), podemos deduzir o elemento psíquico a ser conhecido na sessão. Associação livre e escuta livremente flutuante ganham outros contrastes em sua obra, particularmente em função de suas experiências nas duas Guerras Mundiais (Bion, 1997) e no trabalho com pacientes esquizofrênicos e borderlines em sua clínica. Em tais contextos, Bion trabalhava sob condições bastante arriscadas, sujeitas a constante bombardeio, tanto nos campos de combate, como no campo das identificações projetivas massivas que caracterizam o trabalho com pacientes psicóticos pela abordagem inaugurada por Melanie Klein (1946/1991a). A coloração imaginativa e alucinatória que caracteriza o pensamento psicótico leva a atenção de Bion à percepção do caráter concreto, duramente impregnado de sensorialidade e pobremente embrutecido das equações simbólicas, conceito introduzido por Hanna Segal (1957/1991) para descrever a maneira como o pensamento psicótico equipara o símbolo com a coisa simbolizada, indicando a falta de uma noção de separação que possibilite a representação do objeto ausente. As proposições kleinianas deixaram marcas significativas no que viria a constituir o sistema conceitual bioniano, especialmente no tocante aos processos psíquicos, tais como a teoria das posições esquizoparanoide e depressiva, o conceito dinâmico das fantasias inconscientes como base de toda experiência, a visada kleiniana da pulsão de morte como impulso destrutivo presente na vida psíquica desde a mais tenra infância, e a fenomenologia da identificação projetiva e suas relações com a atividade mental psicótica, mesmo em pacientes não-psicóticos.
Na década de 1950, Bion publica uma série de trabalhos posteriormente compilados em Second thoughts (1967a). Esse período de sua produção escrita revela o despertar de um modo de apreensão da realidade psíquica e da função onírica do pensamento que são contribuições originais suas. Nessa coletânea, Bion analisa a concretude da linguagem do psicótico e a impossibilidade de simbolização de experiências no contato com o mundo interno e o mundo externo, bem como as ansiedades decorrentes da intolerância à frustração.
Desde os anos 1960, diversas proposições de Freud e Klein são transformadas por Bion em formulações muito mais abstratas que podem ser utilizadas pelo psicanalista para pensar fenômenos psíquicos para além daqueles a que tais teorias foram originalmente concebidas. Essa característica do pensamento bioniano pode ser compreendida como um movimento de abstração em funções e fatores psíquicos (Bion, 1962) a partir de fenômenos que, em Klein, eram elaborados com base em descrições imagéticas, impregnadas de representações do funcionamento mental de crianças pequenas.
Em Aprender da experiência (1962), Bion aprofunda sua descrição dos processos psíquicos formulados no seminal artigo “Uma teoria sobre o pensar” (1962/1967b). Ao introduzir a premissa de que a capacidade de pensar se desenvolve a partir da necessidade psíquica de dar conta dos pensamentos (estes antecedem o pensador), Bion desenvolve uma metapsicologia dos processos do pensar, tomando por modelo a relação do bebê com o seio. Nessa obra, conceitos fundamentais do enfoque bioniano são apresentados e discutidos de forma paradoxalmente breve e complexa, evidenciando o refinamento de uma forma de expressão linguística na composição de seus escritos.
Em Elementos de psicanálise, Bion (1963) aprofunda sua epistemologia psicanalítica e introduz a chamada grade, sua representação de um instrumento que serve para categorizar de forma insaturada a qualidade imaterial do que ocorre em uma sessão de análise (movimentos, comunicações, pensamentos, interpretações etc.). Bion esclarece que todo relato clínico sofre deformações especialmente por carecer de uma linguagem que consiga veicular a dimensão afetiva da experiência originalmente vivida com o analisando - isto é, a realidade psíquica, não sensorial. Esse trabalho também apresenta uma formulação ampliada de seu conceito de objeto psicanalítico, um modelo que serve como ponto focal para favorecer ao psicanalista a intuição daquilo que ocorre no plano da realidade psíquica.
Em Transformações, Bion (1965) descreve a passagem da experiência não verbal, não representada dos processos primários, para formulações de diferentes naturezas características dos processos secundários descritos por Freud em A interpretação dos sonhos (1900/2001). Bion recorre a modelos da matemática e da geometria projetiva para examinar as “interpretações do analista … [e as] reações e comunicações do paciente, de acordo com a égide sob a qual sejam feitas.” (Sandler, 2009, p. 447). Finalmente em Atenção e interpretação (1970), Bion formula sua concepção da Linguagem de Alcance, “uma linguagem que está em contato com a origem da realidade psíquica, com o não sensorial, indiferenciado, irrepresentável de O” (Vermote, 2019, p. 140).
Os trabalhos de Bion em sua última década de vida aproximam-se cada vez mais de uma forma psicanalítica de fenomenologia em que questões caracteristicamente ontológicas são discutidas sempre de forma dialógica, expositiva e impregnada de um forte apelo ao imaginário como recurso para levantarmos hipóteses e examinarmos fenômenos psíquicos relacionados aos níveis mais arcaicos da experiência. É o que ocorre, por exemplo, em seu modelo da mente primordial e outras captações do não representável que não se dão a interpretações analíticas, mas requerem do analista o desenvolvimento de uma sensibilidade muito aguçada para estar com o analisando em momentos de desamparo absoluto.
A calibração do compasso
Pensar a epistemologia seguindo os passos de Bion é uma proposta complexa, não apenas pela natureza do objeto de pesquisa, mas também pela maneira como seu pensamento se desenvolve em movimentos não lineares e com raríssimas concessões a qualquer forma de didatismo. É necessário, portanto, calibrar o compasso e suportar as incompletudes para navegar as águas ora turvas, ora terrivelmente cristalinas de Bion - isto é, assumir essa mesma complexidade como vértice de investigação (Chuster, Soares & Trachtenberg, 2014) para descobrir em Bion a possibilidade de esclarecimento de fenômenos clínicos. Isso implica reconhecer que estamos diante de um objeto multifacetado, afetado por infinitas variáveis, ondas e turbulências que confundem a navegação. Qualquer tentativa de reduzi-lo a algo simples e conhecido está fadada ao naufrágio.
Particularmente em seus trabalhos que discutem a importância crucial da acuidade da observação no trabalho psicanalítico, Bion nos leva a rever velhos hábitos clínicos até então tidos como pedras angulares da psicanálise. Isso se revela em seu estilo
como uma mistura de respeito e crítica pelo saber adquirido. Ele tinha um talento especial para abordar de maneira idiossincrática tópicos essencialmente tradicionais: atenção flutuante, sonhos, linguagem da interpretação, associação de ideias, transferência. Isso significava não apenas um saudável desdém em relação a formalismos rigorosos, mas também uma informalidade genuína na maneira de pensar e comunicar o pensamento. (Chuster et al., 2014, p. 23)
Tal informalidade consiste em um modo peculiar de transmissão de ideias originais e comunicação de suas intuições ao longo de seus textos. Sua obra tem fortes tonalidades pessoais - “escrevo sobre mim” (Bion, 1982, p. 8) - e perpassa seus textos na forma de um “decantado de reflexões sobre suas experiências pessoais”, mesmo quando adota uma linguagem altamente abstrata inspirada na matemática para elaborar um pensamento científico (Braga, 2018, p. 152). Esse aspecto do estilo bioniano põe o leitor em posição desconfortável, caso tenha expectativas de encontrar grandes formulações prescritivas sobre fenômenos psíquicos e a prática analítica ao modo de definições metapsicológicas. Seu pensamento evolui em torno de questões com as quais se depara na experiência pulsante da clínica psicanalítica e que são tratadas por diferentes vértices, deixando o campo sempre aberto a novas indagações. Chuster et al. (2014) propõem tratar a obra de Bion a partir de uma leitura de saltos de pensamento, isto é, com base na premissa de que uma questão apresentada em dado momento de sua obra abre-se para a elaboração de novas questões formuladas e discutidas em outro instante, seguindo uma lógica interna consistente, mas sempre permeável a outras conexões que podem ser reveladas pelo leitor que se deixar inundar pelo pensamento de Bion desapegado de exigências hermenêuticas ou exegéticas de definição e compreensão. Conforme observa Braga (2018):
É fundamental pensar na obra de um autor olhando seu todo. Neste sentido, poderíamos pensar a obra de Bion como uma obra com uma extraordinária coerência interna: não há nada sobrando, não há nada rejeitado, contribuições de diferentes períodos se complementam e vão surgindo, na sequência, como novas elaborações. Qualquer ponto dela pode ser identificado como pertencendo ao todo. Não perdem o sentido com o passar do tempo. É uma obra que está à nossa frente no tempo, mesmo passado meio século de suas principais formulações. (p. 153)
Os trabalhos de analistas dedicados à obra de Bion podem fazer as vezes de carta náutica para navegar a complexidade de suas conceituações. Não fornecem soluções, explicações, tampouco respostas prontas. Bion não está aprisionado nos livros, como um gênio da lâmpada que pode ser evocado e libertado para atender a desejos de entendimento. É preciso algo mais para acessá-lo, ou seja, a experiência viva de cada leitor que se proponha a iluminar um aspecto de seu texto por vértices únicos e tonalidades particulares, sem perder de vista a trilha marcada pelo autor e a flutuação de suas elaborações paradoxais. Nas palavras de Chuster (2018):
Penso que a principal ferramenta para auxiliar a nossa navegação com tal sentido consiste em aplicar o vértice da teoria da complexidade, e este, por sua vez, depende de acionar nossa capacidade imaginativa. Isso significa que, em primeiro lugar, precisamos nos preparar para entrar em contato com a enorme capacidade intuitiva de Bion, geradora de ideias avançadas, que nos coloca no futuro, cujo acesso se faz apenas pela imaginação. (p. 15)
A capacidade imaginativa proposta por Chuster consiste na possibilidade de captarmos com a passada do texto algo que nos toca emocionalmente e mobiliza nossa sensibilidade para a formação de imagens visuais e se traduz em uma experiência pessoal que pode então ser pensada e elaborada para alçar à condição de conhecimento vivo. Ao leitor, é necessário apreço à liberdade no sentido de não nos deixarmos submeter a possíveis exigências de racionalismo ou de falácias intelectualistas que teriam o efeito de reduzir a complexidade da leitura de Bion a compreensões simplistas.
Modelos, abstrações e lógica abdutiva
O psicanalista francês Pierre-Henri Castel (2014), em seu estudo sobre as fontes filosóficas que conferem unidade e coerência à obra de Bion, propõe que
Para Bion, os olhos não servem primeiro para ler: eles servem para ver, e ver no sentido do contato psíquico e intelectual sem mediação com o real - em uma palavra, a intuição … [Portanto,] pensar com Bion não pode … se resumir a articular coerentemente textos, ou comentários autorizados, nem qualquer coisa que se apoie na linguagem: isso representaria “nada mais que palavras” e significações superficiais… . Pensar com Bion é penetrar, ao contrário, na espessura propriamente conceitual tanto dessas palavras como dessas significações, ou seja, naquilo que lhes confere seu valor lógico e epistêmico. (pp. 259-260)
Assim, pela natureza de sua concepção da prática psicanalítica, uma pesquisa desenvolvida no eixo epistemológico bioniano não obedece à lógica indutiva ou a aproximações dedutivas, uma vez que estas se inscrevem fundamentalmente em um ordenamento cartesiano que é próprio de (e mais coerente com) as ciências da objetividade. A psicanálise como disciplina e método de investigação ocupa-se essencialmente da realidade psíquica, o campo da subjetividade, que requer do pesquisador aptidão e disponibilidade para suportar paradoxos, os quais não coadunam com a lógica cartesiana que visa a conhecer os fenômenos a partir de suas relações causais.
Os fenômenos com os quais Bion se ocupa são concebidos pela experiência direta do analista com a realidade do outro, seja um indivíduo, um grupo de pessoas, um fenômeno social, ou mesmo uma composição textual que resulta de experiências vividas por um autor-analista-pesquisador em sua prática cotidiana. Esse modo de apreensão da realidade atende àquilo que tradicionalmente denominamos de lógica abdutiva, um modo epistêmico de inferência que revela em seu bojo
o caráter estrutural não só das hipóteses, mas das crenças, julgamentos e da investigação científica, [noções estas que] são de grande importância, uma vez que se encontram na base não apenas do pensamento criativo em geral, como também da disciplina de interpretação (incluindo a psicanálise e a hermenêutica moderna). (Silver, 1983, p. 285)
Entende-se por lógica abdutiva uma forma de pensamento em que se busca a melhor explicação para problemas que escapam ao convencional, o que requer, portanto, o suporte da intuição e do repertório de conhecimentos pessoais do pesquisador para introduzir novas ideias e possibilidades de investigação. Procura-se apreender o fenômeno no contato direto com o objeto de pesquisa, confiando-se na capacidade imaginativa do pesquisador-analista como fundamento para o desvelar daquilo que se busca descrever. Essa posição epistemológica é necessariamente incompleta, precária e vinculada à capacidade perceptiva do pesquisador que participa implicitamente com sua história, seu ethos e suas condições subjetivas. Portanto, as limitações e qualificações singulares do pesquisador delimitam os contornos de um campo de investigação imperfeito e incompleto, mas que preza pelas possibilidades intuitivas individuais como instrumento de organização da realidade examinada. Segundo Sandler (2013), Bion está entre os pensadores que, ao lado de Kant, Einstein e Bergson,
procuram as coincidências entre os conceitos e objetos através da observação e intuição do todo. A intuição sobre o todo pode ser feita através de modelos e analogias, mas nunca por observação direta. A partir dessa intuição emerge a necessidade de tolerar paradoxos [dada a natureza da realidade psíquica investigada]. (p. 140)
O estado de mente do analista-pesquisador capaz de suportar paradoxos é descrito por Bion (1970) na formulação da capacidade negativa - a capacidade do analista se manter em um estado de dúvida, sem buscar apressadamente explicações para o fenômeno investigado - e, antes disso, em sua conceituação da visão binocular (1962). Esta configura uma espécie de inflexão subjetivamente treinada para que o observador consiga conceber a si próprio como continente de suas observações, em paralelo e concomitantemente àquilo que pode observar no contato com o analisando e em suas conjecturas imaginativas (Bion, 1978/2014b) acerca do objeto psicanalítico, foco de sua investigação. Tais conjecturas são necessariamente parciais, pois aquilo que o analista consegue apreender é sempre limitado à sua própria constituição edípica, sua singularidade como ser humano.
Disso decorre que a visão binocular de Bion (1962) se traduz em um interjogo de pares simétricos: eu/outro, sensorial/psíquico, consciente/ inconsciente, finito/infinito, lógica dos processos secundários/lógica dos processos primários, mas que sempre é apreendido apenas parcialmente e de forma transitória. Visão binocular é uma metáfora de guerra que traduz a ideia original de se justapor duas lunetas (monovisão) como recurso para enxergar mais longe e com melhor nitidez. A noção de visão binocular refere-se a um estado mental apropriado para levar a atenção à apreciação multidimensional do objeto por meio do confronto e relacionamento de diferentes vértices de observação em busca de uma captação viva e dinâmica do objeto investigado. A capacidade negativa (Bion, 1970), por sua vez, diz respeito às condições requeridas do analista para favorecer a apreensão daquilo que é mais significativo em uma observação, os lampejos da realidade não sensorial que podem ser captados apenas sutilmente naquilo que se apresenta discursivamente como um pequeno detalhe banal, um gesto, um movimento fugidio, fato selecionado que organiza a percepção e a significação do objeto psicanalítico (Bion, 1962).
No que concerne ao papel epistemológico dessa proposição, a visão binocular representa a oportunidade de captar elementos dispersos no fenômeno observado por vértices distintos de observação, incluindo a experiência pessoal do analista em justaposição com a experiência do analisando. Diferentemente da visão monocular, que tenderia a buscar o fenômeno por meio de expressões objetivas e sensorialmente delimitadas, o modelo da visão binocular conjuga elementos que seguem a lógica do princípio de prazer/desprazer com elementos ligados à lógica do princípio de realidade como eventos simultâneos. Vigia-se o gato ao mesmo tempo em que se limpa o peixe, segundo o adágio popular. Nesse sentido, “o consciente e o inconsciente, assim produzidos constantemente, funcionam de fato em conjunto, como se fossem binoculares, portanto, capacitados para correlação e autoconsideração” (Bion, 1962/2021, p. 98).
Em Transformações, Bion (1965/2004) cita o físico Werner Heisenberg, que formulou em 1920 o princípio da incerteza:
De acordo com Heisenberg, surgiu uma situação na física atômica: o cientista não pode se fiar na visão comumente aceita de que o pesquisador tenha acesso a fatos, pois os fatos a serem observados são distorcidos pelo próprio ato da observação. Além do mais, as dimensões do campo no qual o pesquisador tem que observar a relação de um fenômeno com o outro são ilimitadas; não se pode, entretanto, ignorar nenhum fenômeno “neste” campo, pois todos interagem entre si. (p. 61)
Na investigação do objeto psicanalítico, Bion evoca a incerteza para afastar “a crença em uma interpretação completa, ou a mitologia de uma interpretação correta, ou a existência de uma interpretação que se pense resolutiva” (Chuster, 2018, p. 64). Tais condições são necessárias à elaboração de modelos de aproximação com a realidade de O (Bion, 1965) a partir de suas expressões fenomênicas. Uma vez que o contato direto com a realidade psíquica é impossível ao observador, podemos apenas nos aproximar de aspectos dessa realidade por meio da captação de suas transformações em parte sensorialmente apreendidas, em parte intuitivamente concebidas. Os modelos e abstrações viabilizam o pensamento abdutivo, no sentido de possibilitar a investigação do fenômeno pelo cotejamento de elementos parciais que podem ser observados em uma sessão de análise.
O analista está, portanto, na posição daquele que, “graças à força da visão binocular e da consequente correlação” que a fruição dessa capacidade de observação lhe confere, é capaz de formar modelos e abstrações que servem para “esclarecer [o fenômeno, diante da] incapacidade do paciente de fazer o mesmo” (Bion, 1962, p. 104).
Embora o foco de Bion (1962) se volte ao modo como a dupla analítica pode se dispor a aprender com a experiência de psicanálise, suas formulações conceituais se abrem para concebermos o trabalho do analista-pesquisador ao adentrar a investigação epistemológica pela ótica bioniana. Seguir as proposições de Bion implica, a rigor, um longo tempo de preparo que possibilite ao pesquisador-analista sustentar a capacidade negativa e a visão binocular como instrumentos subjetivos para a investigação a que se propõe. É uma posição desconfortável, desconcertante e assustadora, quando empreendida com amor e respeito à verdade. Há também o risco de que o princípio de incerteza nesse caso seja tomado como uma espécie de passe livre para leituras descoladas ou apartadas daquilo que Bion se propõe a descrever em seus trabalhos, os quais são usualmente muito complexos e requerem não uma postura dogmática, mas antes uma paciência e um espírito de perseverança científica para suportar a própria experiência de contato com o texto.
Dialogismo, paradoxos e capacidade de observação
Sandler (2013) destaca a importância do treino de observação científica do analista na apreensão dos fenômenos clínicos enunciados pelas teorias psicanalíticas desde Freud. Para apreender a essência de uma teoria psicanalítica é fundamental que o analista tenha experiências com sua própria mente em situações que possam aproximá-lo do fenômeno e alcançar a realização daquilo que está conceitualmente descrito em uma formulação. Tal aprendizado é conduzido de forma a tomar a mente do analista como seu laboratório e instrumental de aproximação com a realidade psíquica - o vértice da autoconsideração a que Bion se refere quando descreve o modelo da visão binocular. Isso implica a vivência de uma dupla analítica capaz de pensar pensamentos impensáveis, isto é, de adentrar a noite escura da alma, de que trata São João da Cruz, citado amplamente por Bion em Transformações (1965) e Atenção e interpretação (1970) ao ressaltar o arrebatamento experimentado na relação psicanalítica quando analista e analisando se dispõem a encarar a verdade psíquica conquanto esta possa emergir e ser apreendida em formulações transientes no aqui e agora da sessão de análise.
Não há como se alcançar a linguagem bioniana, especialmente em seus escritos do período que compreende os quatro grandes livros de 1962 a 1970, sem se viver suficientemente a experiência psicanalítica. Do contrário, os riscos de se produzir uma leitura solipsista do texto bioniano podem conduzir a uma deformação intelectualizada dos fenômenos humanos que Bion discute, resultando frequentemente em uma interpretação cartesiana ou mesmo comportamental do objeto psicanalítico. Acerca de leituras que se afastam do vértice dialógico característico de Bion, e que podem resvalar tanto em um “realismo ingênuo” como em um “idealismo ingênuo”, ambos de caráter totalitário dado que reduzem a complexidade do pensamento, Sandler (2013) nos alerta que estas “culminam em uma legislação de opiniões individuais, uma postura de leitura-über-alles que enaltece a imaginação realizadora de desejos como a única verdade a que outros possam aspirar” (p. 153).
O dialogismo bioniano pressupõe um movimento de concepções tendendo ao infinito (±Y) que transitam por um espectro de possibilidades que têm em um polo o narcis-ismo (-Y) e no outro o social-ismo (+Y). A letra Y é pronunciada como why em inglês, o que pode nos indicar que no polo narcisista ocorre uma redução do questionamento de tal modo que faça coincidir o pensamento apriorístico com a realidade - isto é, impõe a imaginação como soberana à realidade -, ao passo que no polo social-ista pode haver um excesso de questionamento vazio que leva a generalizações em detrimento do fenômeno singular - isto é, que se prestam à manutenção do status quo. O modelo é inicialmente utilizado por Bion em Aprender da experiência (1962) em sua enunciação do objeto psicanalítico. Adotar Bion como eixo epistemológico em uma pesquisa científica implica um exercício constante de atenção, indagação e diálogo de tal modo que seja possível utilizar suas formulações conceituais e fenomenológicas não como objeto-fetiche disponível na prateleira para a reprodução de afirmações ingênuas ou para sustentar opiniões pessoais, mas como instrumento de conhecimento que se presta ao exame dos fenômenos psíquicos que suas teorias pretendem descrever.
Encontro nas figuras do outro analista, do colega leitor e da comunidade científica os destinatários de toda comunicação elaborada com esforço de precisão na observação de fenômenos psicanaliticamente apreendidos. No movimento que tende a +Y, as concepções são dialogadas com uma comunidade de leitores-analistas dedicados a compor uma rede permanente de pensamento crítico que, não obstante, está também sujeita ao risco do dogmatismo. E na inclinação a -Y encontramos o caráter autêntico da criatividade do autor-analista que se baseia em suas experiências pessoais para dar voz aos fenômenos analisados, ainda que corra o risco de eventualmente subverter as configurações formais de conhecimento a que se visa em uma pesquisa. Trata-se de uma tensão dinâmica que requer do analista-autor-pesquisador a paciência para transitar entre momentos de incerteza e momentos de elaboração do pensamento que emerge com o trabalho que se realiza e se expande à medida que novas concepções são levadas à prática clínica e proporcionam ligações inusitadas para se aproximar da complexidade do fenômeno examinado. O horizonte está sempre em um ponto inalcançável e é sempre uma pré-concepção em busca de realizações, como assinala Bion (1962). Conforme Castel (2014):
Eu me esforçaria, de preferência, a levar radicalmente a sério a postura bioniana de uma modificação psíquica do leitor-analisante, de maneira que ele possa mudar seu estado interior e ver psicanaliticamente o que ele nunca tinha visto nem concebido … Porque se acede assim às formas de ligação (linking) dos pensamentos entre si, invisíveis de outra maneira. Melhor, acede-se assim a formas de ligação que só a psicanálise descobre, não somente a partir de seus procedimentos clínicos, mas, ainda mais além, porque ela demonstra aí sua marca epistemológica própria e, talvez mesmo, sua cientificidade. (p. 260)
É nesse sentido que o terceiro elemento do conhecido adágio de Bion (1967/2014a) sem memória, sem desejo, sem busca de entendimento requer ser pensado. O entendimento pode se tornar o maior obstáculo para se estabelecer aproximações com a realidade não sensorial. Assim, uma proposição de Freud, Klein, Winnicott ou qualquer outro autor fruto da árvore psicanalítica ficaria ela mesma sujeita a leituras ora idealistas, ora hiper-realistas, repetindo-se assim a lógica cartesiana do ou isto/ou aquilo, das verdades totalizantes que impedem o conhecimento do fenômeno observado. Um estado de atenção delicada é necessário para sustentar a postura epistemológica de uma pesquisa pautada pelo dialogismo bioniano a fim de se mitigar o risco da arrogância do conhecimento.
Ao longo de sua obra - não apenas seus escritos, mas também nas transcrições de seminários e supervisões - Bion faz usos muito peculiares das palavras e da escrita. Suas elaborações podem despertar no leitor um desconforto desorganizador que demanda disposição para tolerar a aparente confusão da linguagem por ele empregada. Se for possível sustentar essa atitude, podemos eventualmente alcançar uma realização daquilo que Bion discute. Do contrário, a tendência a buscarmos formas conhecidas no texto de Bion nos conduzirá fatalmente a uma distorção, a uma substituição da experiência de turbulência por outra de falsa calmaria, aquilo que Bion designa como o domínio de -K, o vínculo de anticonhecimento (1962, 1965). Suas comunicações, adverte o próprio Bion, “devem ser consideradas como formulações verbais de imagens sensoriais construídas para comunicar em uma forma o que provavelmente é comunicado em outra forma; por exemplo, como uma teoria psicanalítica” (1967a, p. 2). A ambiguidade do objeto de estudo - a realidade não sensorial - se inscreve na maneira como Bion (1962) se expressa e em suas construções sintáticas que visam a sustentar deliberadamente, no plano verbal, o paradoxo característico do fenômeno psíquico. Ele nos propõe abraçar o paradoxo como elemento indissociável do propósito de seus escritos, sem o qual torna-se impossível fazer uma comunicação que seja bem-sucedida em mobilizar no leitor um estado de mente peculiar.
Entendo que o grande problema de se produzir um trabalho científico tomando Bion como referencial reside justamente em seu eventual achatamento epistemológico, isto é, em sua submissão a uma lógica de causa e efeito, dedutiva ou indutiva, em que a leitura particular se torne um descolamento da experiência e do diálogo com uma comunidade de analistas-pesquisadores que se dedicam a pensar juntos o impensável, indagar e discutir as experiências sempre em sua qualidade de incompletude. Retomando Sandler (2013):
Uma fonte primária de erro me parece ser a subserviência ao desejo e ao prazer que se manifesta, em diferentes graus, como um mix de ódio à verdade e ao amor, e um desprezo sensório-concreto pela mente e pela vida. Não tolerar que o seio real [a experiência incompleta] difere de modo frustrante do seio que é desejado (ou talvez, de que se necessita) pode ser a base tanto para um idealismo ingênuo - ao alucinar o seio ideal - ou a um realismo ingênuo - ao tornar concreto o seio que não poderia oferecer consolo ou, quando se pode oferecê-lo, este não pode ser experimentado devido a traços inatos de inveja narcisista e paranoica, forçando a uma cisão. (p. 156)
Em suma, a linguagem do autor-analista-pesquisador, em tais condições características do vínculo -K (ou da tendência a -Y no espectro do objeto psicanalítico), assume a guisa de objeto concreto e saturado que se supõe solapar a própria necessidade de viver a experiência inusitada do texto para saber de que se tratam tais concepções. Isso resultaria em uma leitura e uma escrita vazias, desprovidas do elemento variável que designa o objeto psicanalítico que se oferece para ser conhecido em múltiplos, infinitos e incompletos vértices de observação.