nascer bissexual é tão normal quanto nascer com dois olhos; um homem ou uma mulher sem o elemento da bissexualidade seria tão desumano quanto um ciclope.
(Freud & Bullitt, 1930/1967, p. 64)
A verdade não está nos objetos, mas na relação entre eles. (Bion, citado por Bléandonu, 1993)
Em seus diálogos com Fliess, entre os anos de 1898 e 1904,4 Freud desenvolveu um de seus conceitos mais polêmicos e inovadores, o de bissexualidade psíquica. Freud atribui a essa noção enorme importância, colocando-a como premissa fundamental para entender os mistérios da sexualidade humana. Para o psicanalista, não nascemos homens nem mulheres, mas com “uma predisposição originalmente bissexual” (Freud, 1905/2020, p. 28), apenas no progresso de nossa pulsionalidade, ao assumir nosso próprio sexo em suas infinitas possibilidades, considerando todos os conflitos inerentes a esse complexo processo que se ancora sobretudo na diferença dos sexos, é que alcançamos uma certa conformidade em nossa identidade sexual.
Freud defenderá uma bissexualidade constitucional que será o pavimento do complexo de Édipo, o solo no qual se sustenta e se desenrola a trama edípica. Nesse sentido, lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade inerente a todos os seres humanos. A bissexualidade, para o psicanalista, se entrelaça a duas correntes indissociáveis: a feminilidade e a masculinidade. Ambas constituem a subjetividade de maneira a dar contornos singulares a nossa identidade - o barro do qual somos feitos.
No entanto, Freud, no decorrer de toda a sua obra, compartilha com seus leitores sua dificuldade em dar contornos às noções de masculinidade e de feminilidade ao apontar, por exemplo, a complexidade dessas categorias que seriam “confusas” (1905/2020), “de conteúdo incerto” (1925/2010a), que a “psicanálise não pode esclarecer” (1920/2014), e que, por fim, atrelá-las à atividade e à passividade “é pouco” (1920/2014). A partir das declarações freudianas sobre a impossibilidade de chegar ao cerne dessas dimensões, podemos afirmar que Freud nunca equiparou feminino e masculino à anatomia, pelo contrário elevou essas categorias a qualidades mentais ou posições psíquicas. Ao nosso ver, o psicanalista já intuía que restringi-las a uma lógica binária, castrado/não-castrado, é perder a relação dialética entre masculinidade e feminilidade (David, 1975/2018).
Freud, apesar dos desafios que enfrentou no que concerne ao alcance de um corpus teórico harmônico que abrigasse a bissexualidade, nunca abandonou esse conceito, chegando a afirmar que ele é “fator decisivo” para a compreensão das manifestações sexuais (1905/2020, p. 140). No entanto, não deixou de revelar seu descontentamento por não conseguir extrair, dessa importante noção, todo o seu potencial. Os desafios freudianos, primeiramente, dizem respeito ao “continente negro”, ao mistério e assombro do psicanalista diante da psicossexualidade feminina, e, posteriormente, como ele revela em “O mal-estar na civilização” (1930/2010), a impossibilidade de articular a teoria da bissexualidade à das pulsões.
Se Freud, com esse conceito em mãos, ficou em uma espécie de encruzilhada, ele deixou, em contrapartida, aberturas para outros psicanalistas articularem:
1) Bissexualidade e gênero (Green, 1973/1988; McDougall, 1997; Godfrind, 1997; Elise, 2019).
2) Bissexualidade e criatividade (McDougall, 1997; Elise, 2019).
3) Bissexualidade e funcionamento mental (Nosek, 1996; Sandler, 1999) - o que revela a fertilidade desse conceito.
Neste artigo, damos preferência a uma faceta menos explorada do conceito de bissexualidade, a sua relação com o funcionamento mental. Ao nosso ver, a bissexualidade psíquica respalda nossa hipótese de uma mente andrógina, ideia que encontra seus alicerces na Teoria do pensar do psicanalista inglês Wilfred Bion (1962/1991). Acreditamos que os gérmens da teoria bioniana, inauguradora de um novo modo de pensar a psicanálise e a clínica, encontram-se na teoria freudiana da bissexualidade psíquica. Nesse sentido, não há Bion sem Freud e, do mesmo modo, quando mergulhamos nas ideias bionianas, não encontramos mais um Freud sem o clarão que Bion coloca sobre os textos fundadores da psicanálise.
A ideia freudiana de que masculinidade e feminilidade transcendem a anatomia e são, portanto, elementos psíquicos parece ser o embrião das ideias de Bion a respeito de da noção de continente-contido, assinalados como ♀♂, postos um ao lado do outro de modo que podemos inferir uma relação dialógica que está expressa na afirmação: “A verdade não está nos objetos, mas na relação entre eles” (Bion, citado por Bléandonu, 1993).
Acreditamos que foi Bion que possibilitou dar novos contornos à dimensão da bissexualidade psíquica, pois ele levou as noções de masculinidade e feminilidade às últimas consequências, tornando-as dimensões abstratas que nos dão sinais de uma mente edípica primordial.5 O pensamento, dessa perspectiva, é fruto de um coito fértil entre continente↔contido, ♀↔♂, masculinidade↔feminilidade, revelando uma mente andrógina com um funcionamento (bi)sexual.
A noção de continente e contido, central à teoria do pensar e expressa em uma linguagem matemática, biológica e poética (Sandler, 2021), resguarda a condição bissexual da mente. Isso porque, representados como ♀♂, continente-contido nos levam diretamente para a condição natural da mente, sua estruturação edípica e sua capacidade, no encontro fértil entre feminilidade e masculinidade, de gerar a vida psíquica ou, podemos dizer, de gerar humanidade - o que nos transportaria para o além do desumano, representado, por Freud e Bullitt, pelo gigante monstruoso de um olho só (1930/1967).
As raízes da teoria do pensar bioniana estariam na noção kleiniana de identificação projetiva (1946), considerada, já por Melanie Klein, não só como um mecanismo de defesa, mas como possibilitadora da comunicação entre as mentes e, portanto, da instauração e manutenção dos vínculos. É importante frisar que Bion (1959/1994a) estenderá esse funcionamento primitivo à relação analítica, isto é, dessa marca originária, marcada pela dependência, percebemos a necessidade vital de duas mentes para a expansão da vida psíquica no início e reinícios de nossa existência - seja no colo da mãe ou no divã do analista.
Em O aprender com a experiência (1962/1991), Bion nos alerta que aquilo que denominamos como pensamento, foi, em sua origem, a identificação projetiva. No entanto, na teoria bioniana, o pensamento transcende a lógica racional, aproxima-se do sonhar e abarca a experiência emocional que, por ser perturbadora, exige e engaja o pensamento (Ogden, 2005/2010). Além de explicitar a origem do pensamento, o que o mobiliza e sua natureza, Bion busca compreender, sobretudo, como pensamos, é nesse ponto que a teoria do continente-contido abarca os processos envolvidos nessa capacidade humana - a mais recente da espécie e, talvez, a mais surpreendente.
Nessa etapa de sua obra, Bion tece considerações didáticas sobre sua teoria a respeito das noções continente-contido e como ambas se relacionam, evidenciando que há uma relação dialética entre elas. De acordo com o psicanalista, essa teoria expressa a relação primeira e arcaica com a mãe, no que tange aos objetos parciais, por isso mesmo Bion enfatiza o par “boca-seio”6 que resguardaria essa dimensão ainda inicial e primitiva - esse par tem suas origens na noção kleiniana que aponta o seio como fonte básica de gratificação e frustração.
Será do encontro entre seio e boca, ou seja, entre mãe e bebê, que o bebê poderá introjetar o que Bion chama de dispositivo ♀♂. Esse dispositivo se conecta a outros conceitos cruciais na obra de Bion, tais como a função-alfa que opera, concomitantemente, às noções de continente-contido. A função-alfa, por sua vez, possibilita a formação e o uso dos pensamentos oníricos de maneira a transformar os elementos-beta, representantes da brutalidade da experiência emocional, culminando, então, na criação do sentido, isto é, em uma linguagem que dê conta da experiência emocional.
Desse modo, ao mamar o leite, o bebê mama seu aparato de pensar ou poderíamos dizer que o pequeno cientista introjeta seu “método” de pensar, de sonhar, enfim de transformar a brutalidade da vida emocional em sentido. O bebê empreende uma busca epistemológica, sua busca por conhecer a mente da mãe: “o bebê introjeta a atividade de dois indivíduos que descrevo, de modo a nele se instalar o dispositivo ♀♂ como parte do aparelho de função-alfa.” (Bion, 1962/1991, p. 125).
Esses seriam os primeiros passos de Bion no desenvolvimento de seu conceito de “continente-contido”, conceito que se relaciona à urgência psíquica de processar e elaborar a experiência emocional. Poderíamos dizer que se, inicialmente, continente-contido seria uma forma de relação expressa pela boca e pelo bico do seio, caminhamos para o desenvolvimento dessa dupla para uma complexa teoria que se inter-relaciona com vários outros conceitos fundamentais da obra Bion, sobretudo à função-alfa.
É bonito observar que Bion põe lado a lado a dimensão emocional e o conhecer, revelando que não se fala de uma capacidade cognitiva esvaziada de sentimentos, pelo contrário estamos no terreno da experiência emocional. Desse modo, é no encontro, atravessado pelas emoções, entre a mãe e seu bebê, que se origina a mente ou, em uma concepção bioniana, poderíamos equipará-la ao próprio aparelho para pensar, que, por sua vez, pode promover a expansão da mente. Não sem desafios, uma vez que Bion aponta a capacidade de pensar atrelada à vivência emocional, isto é, ao despertar do amor e do ódio, por isso mesmo, quando conjugados ou em um movimento de impregnação, podem levar ao crescimento, mas também à destrutividade, à ruptura da própria capacidade de pensar.
Mais especificamente, em Uma memória do futuro (Bion, 1975), o psicanalista se refere à mente como um peso muito grande: “A experiência que ainda não chegou a uma conclusão é se o animal humano vai sobreviver a uma mente enxertada em seu equipamento já existente. Você acha que pode aguentar um pouco mais?”. Se respirar e digerir são sucessos bem-vindos, pensar é a conquista mais recente de nossa espécie, sobre isso nos alerta ironicamente Bion em uma de suas palestras em São Paulo: “então um alegre dinossauro, de repente começou a se transformar em um mamífero, e então o pobre mamífero começou a desenvolver uma mente” (Bion, 1978/2020, p. 152).
Pobres mamíferos e pobres de nós, analistas, - esses coitados (Freud, 1937/2006) -, que têm de se haver com a mente humana. Nossos pensamentos seriam, de acordo com Bion, “obras-primas” (1978/202, p. 152), no entanto, como qualquer obra de arte subversiva, elas incomodam. Bion ainda aproxima os nossos pensamentos aos nossos filhos, analogia que também nos remete ao desafio e à ambivalência: pois não seriam os filhos que nos retiram amorosa e dolorosamente de nossos lugares narcísicos?
Se os pensamentos são nossos filhos e, portanto, nos alerta Bion, devemos estar capacitados para cuidar e protegê-los, poderíamos pensar que o psicanalista britânico infere que o pensar é fruto de uma fertilidade mental, isto é, de uma mente andrógina - poderíamos, então, nos perguntar: seria o casamento entre ♀ e ♂ que aproximaria a (bi)sexualidade e o pensamento?
Como uma mãe que carrega em seu ventre um feto em crescimento e, portanto, do mesmo modo que seu útero está em constante expansão também está sua mente que se abre a fim de criar espaço para chegada de uma nova vida e, claro, o bebê que se prepara para buscar/conter o seio, a mente da mãe e, portanto, sua existência psíquica inexoravelmente edípica, pois há três elementos imprescindíveis à constituição da humanidade: o bebê, o seio e a mente da mãe. Desse modo, Chuster et al. (2019) são categóricos ao afirmar que “não pensamos que exista o humano fora do mental, e o mental é sinônimo de edípico. O pré-edípico não é humano” (p. 57) - o casamento edípico, em termos abstratos, é o movimento da vida mental e dos encontros humanos.
A espera paciente de uma mãe por um filho e de um filho por sua mãe implica a abertura ao novo e ao mistério. Do mesmo modo, no que diz respeito ao conhecimento e sua evolução, Bion discorre sobre o místico ou gênio (1970/2007) e o desmantelamento do que Bion chamou de Establishment, nos ensinando que a teoria é fértil quando revela um movimento de abertura ao novo.
Essa abertura, essa recepção do novo, implica em um mergulho na dimensão do desconhecido, o que é a própria essência do movimento de ♀♂, isto é, do próprio pensamento que, imbuído de coragem, vai em direção ao mistério. Aqui estaria o que Bion chamou de capacidade negativa (Bion, 1977/1989), conceito que evoca a capacidade de tolerar frustração atrelada ao pensamento como potencialidade. Nas palavras de Chuster, enfrentar a tensão psíquica só é possível por intermédio de uma capacidade negativa, “o que significa utilizar mais a intuição ou tolerar o tempo cego de observação cuidadosa até o ponto que essa pode ligar-se a um conceito que dará espaço para o desenvolvimento da observação” (grifos no original, 2022).
Nesse sentido, a capacidade humana de penetrar e ser penetrado, ou seja, de exercer a masculinidade e a feminilidade, ganha um estatuto de suprema potência: o do pensamento ou, em outras palavras, do próprio funcionamento mental. Todos somos, assim, psiquicamente portadores de vaginas e pênis, tal qual nos diz Sandler (2021, pp. 211-212) ao defender a natureza bissexual da mente expressa pela dinâmica ♀♂. Em texto anterior, Sandler (1999) defende que feminilidade e masculinidade estão em constante interação e seriam “funções da personalidade” (p. 459). Há, de acordo com o autor, um exercício da feminilidade↔masculinidade, tanto no que diz respeito à dimensão intrapsíquica como também na relação analítica.
Para o psicanalista brasileiro, o conceito de bissexualidade psíquica revela uma das observações binoculares de Freud. Se entendermos a ideia de visão binocular de Bion como a capacidade de confrontar e correlacionar distintos vértices, de integrar e não recorrer à clivagem, de tolerar paradoxos e não se apressar a resolvê-los, estamos na direção da complexidade dos processos mentais que nos ensina a compreender os fenômenos psíquicos como coexistentes em uma constante relação e oscilação - a parte psicótica e não psicótica da personalidade, o consciente e o inconsciente, o infantil e o adulto e, claro, a masculinidade e a feminilidade.
Sendo assim, esse constante movimento entre ♀↔♂, feminilidade↔masculinidade, representa uma permanente movimentação entre polos e não uma clivagem. Sandler (1999, p. 468) acredita que essa oscilação está mais próxima a um monismo, ao uno - a “O”, ou seja, o marco zero, a origem ou o incognoscível, nas palavras de Bion
A complexidade do conceito de bissexualidade, quando iluminado pelo modo de pensar bioniano, parece transcender a ideia de binariedade e se aproximar da representação de um “casal criando” (Sandler, 1999, p. 468), férteis e enamorados - como as criaturas de Platão no mito do Andrógino quando se encontram em cópula. Mas, afinal de contas, o que almejaria esse encontro amoroso? Esse movimento da mente expresso na interpenetrabilidade entre ♀♂? De acordo com Bion, o que é evidenciado em sua releitura original do mito de Édipo (1957/1994b), essa busca se ancora na mais vital necessidade humana: a mente se lança em busca da Verdade. A mente, nesse sentido, se alimenta da Verdade emocional: “um desenvolvimento mental parece depender de verdade do mesmo modo que o organismo vivo depende de alimento” (Bion, 1965/2004).
Bion, ao resgatar o Édipo, leva-o à saturação, a sexualidade estaria à serviço da busca da Verdade. Por esse vértice, a sexualidade é periférica. No entanto, olhemos mais perto: é Freud em Bion, Bion em Freud! Todo o olhar freudiano para a histeria e sua etiologia sempre sexual é uma forma de alcançar a verdade. Há, na teoria bioniana, uma radicalização ou uma abstração suprema das ideias edipianas, pois Bion propõe uma mente edípica tridimensional, já que onde parecem existir dois, há três: a mente da mãe, o bebê e o seio (Chuster, 2022).
Em uma perspectiva bioniana, pensar e todo e qualquer processo criativo é edípico e, portanto, sexual, no mais o objetivo analítico é a criação de si próprio, isto é, o desafio é tornar-se mais si mesmo - sendo assim, não teríamos aqui sempre presente um triângulo edípico? Uma cópula e um nascimento? A teria bioniana derrama sexualidade por vias abstratas, mais próximas aos fenômenos mentais, afinal de contas a mente não estaria no terreno da abstração?
Nesse ponto, vale introduzirmos as ideias de Leopold Nosek (1996) que se propõe a pensar a intimidade entre sexualidade e pensamento, isto é, entre bissexualidade e continente-contido. Nosek, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em um texto intitulado “Pensamento e sexualidade” (1996), resgata o texto de André Green intitulado Has sexuality anything to do with psychoanalysis? (1995) e, de maneira provocativa, Nosek se pergunta, por exemplo, se o retorno bioniano à primeira tópica freudiana em seu resgate da teoria do sonho e do sonhar que o levará à equação pensamento-sonho e se a abstração bioniana expressa em uma “poética econômica e emblemática” (1996, p. 210) dos símbolos ♀♂ representariam uma dessexualização e uma descorporização da teoria, seguem seus questionamentos: “Abstração cientifizante ou susto? Seria Bion um valoroso soldado mais corajoso na guerra que no assombro da sexualidade?” (1996, p. 210).
Na visão de Nosek, “não há estados dessexualizados de mente” (1996, p. 201) de tal modo que a personalidade se organiza tal qual o sintoma, portanto, abarca a sexualidade. No entanto, na teoria bioniana, segundo o autor, o “caráter sexual adquire um caráter minimalista, reduzindo-se a um elemento poético ideogramático: masculino e feminino (♂ e ♀)” (1996, p. 201). Para o psicanalista, continente-contido ganham um estatuto relacionado à dimensão pré-genital, o par boca-seio, que afasta, segundo o autor, a teoria bioniana da complexidade do encontro genital, isto é, da genitalidade. Seria, por assim dizer, um recurso defensivo.
Acreditamos, porém, que, ao aproximar o par boca-seio de uma pré-genitalidade, o intuito bioniano seja o de resguardar, nessa dupla de objetos parciais, o berço da vida mental, a nascente do psiquismo, e da sexualidade. Nesse sentido, na relação mãe e bebê está os primórdios do psiquismo e a base sobre a qual se assenta todas as nossas futuras trocas genitais, uma vez que, no terreno íntimo de carinhos e carícias com a mãe, ancora-se o nosso desenvolvimento sexual e nossa abertura para a alteridade.
Desse modo, perguntamo-nos: será que Bion também não tinha a devida clareza do potencial do encontro desse casal originário? E de que, aqui, estaria o berço dos nossos futuros encontros sensuais, sexuais e que almejam a vivência de uma sexualidade plena ou de uma genitalidade? Além da emergência da própria subjetividade, expressa na própria noção de genitalidade? Acreditamos que sim.
As provocações de Nosek - como respostas ao furor causado pelo texto de Green (1995) que denuncia uma psicanálise que prescinde de sua nascente, a sexualidade - vão além e nos brindam com reflexões valiosas, expressas em um retorno a Freud e, portanto, à dimensão da sexualidade. O psicanalista discorre sobre a intimidade entre bissexualidade psíquica e a teoria do pensar ou, ainda, sobre a bissexualidade como função analítica.
O movimento de aproximar o conceito freudiano de bissexualidade da teoria de pensar de Bion acaba por colocar em primeiro plano a sexualidade no movimento que dá origem ao pensamento e, consequentemente, resgatar o erotismo de nossas mentes e de nossos encontros - na vida e com nossos pacientes. Nessa direção, Nosek infere que nos aproximamos de terreno perigoso: a sexualidade na sala de análise. O psicanalista, então, faz uma série de perguntas que caminham no seguinte sentido: o que fazer com a sexualidade inevitável do analista? É possível colocar a sexualidade para fora da sala de análise? O perigo, nos adverte, é reduzir o fazer analítico à bondade, o que pode carregar uma série de defesas relativas à necessidade premente de elaborar nosso modo de se relacionar sexualmente com nossos pacientes - enfim, a resistência ao encontro entre duas genitalidades.
Parece, assim, que a clínica nos exige criatividade, capacidade de transitar na multiplicidade das posições sexuais que uma relação a dois possibilita, em outras palavras ou, melhor, nas palavras de Nosek: “nossa formação deveria permitir não somente uma sexualidade, como também um polimorfismo” (1996, p. 213). É necessário coragem para encarar nossas correntes homossexuais e heterossexuais ou habitar estados sexuais de mente, muitas vezes, inexplorados. E, portanto, fala-se aqui de capacidade de lidar e perlaborar nossa própria bissexualidade: “nesse movimento de subjetividades, estão presentes o intercâmbio de papéis e a bissexualidade tal como definida por Freud. É bastante sugestiva a imagem de quem em cada relação estão presentes no mínimo quatro participantes” (1996, p. 214), mais adiante, “note-se como é fundamental a oscilação da posição na função analítica. Há no caso o início da elaboração do Édipo invertido. Bissexualidade necessária para o pleno uso da potência” (1996, p. 219).
Nesse sentido, Nosek segue, em seu texto, em uma tentativa de aproximar as ideias bionianas de conceitos freudianos, sobretudo da bissexualidade e da psicossexualidade, a fim de que possamos vivenciar a “interação fértil da genitalidade” (1996, p. 2015), ampliando a noção de genitalidade - o que já é uma proposta freudiana - para além da “concretude da ação sexual” (1996, p. 2015), movimento fundamental em prol da ética da psicanálise. Do contrário, estamos no terreno da doença, da sexualidade em ato, fenômeno psicótico, ou do terror do encontro das subjetividades que expande a humanidade:
Vou definir masculino-feminino, continente-contido em seu aspecto genital como o movimento de uma subjetividade lançando-se sobre outra, perdendo nesta movimentação sua identidade, tornando-se fundida à outra e retornando a si, prenhe de significado. Nesse movimento, a urgência da aquisição de sentido (que é a própria vida psíquica) se mistura com a urgência ou desejo de doação de sentido. Considerem-se os riscos de investimento libidinal, o medo de perder-se de si, do não retorno etc. (Nosek, 1996, p. 214)
Parece, assim, que a proposta que encontramos em Nosek caminha em duas direções: 1) um diálogo entre a teoria da psicossexualidade e as concepções bionianas, de modo que possamos compreender que o que se impõe na ideia de continente-contido é o próprio intercurso sexual; 2) a prática analítica livre e ética, de maneira que o analista possa expressar sua sexualidade e permitir que o paciente também o faça, impedindo conluios psicóticos que não abrem espaço para a emergência do sentido ou, em uma linguagem freudiana, para a representação. É imprescindível que nós, analistas, possamos, em nossas análises e com nossos analisandos, elaborar nossa bissexualidade e reconhecer o prazer que habita nosso modo se ser, sempre sexual, pois há gozo em sermos “acolhedores, férteis, penetrantes” (1996, p. 220).
Cada ser sexual propõe uma forma de se relacionar e cada dupla encontra sua maneira de se vincular; dessa cópula de mentes, nascem bebês que muito exigem da dupla: cuidar, proteger, compreender, transformar - “Quantos filhos se geram numa análise? E depois de seu surgimento é por vezes preciso uma existência para desenvolvê-los” (Nosek, 1996, p. 216).
De modo semelhante, Antônio Sapienza e Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho (1997), também psicanalistas em busca de compreender a proximidade entre sexualidade e pensamento, abordam a intimidade sexual entre analista e analisando, para isso tecem considerações sobre a dupla boca-seio e sobre o casal analítico:
A disponibilidade para a interpenetração e intensa complementaridade exporá o casal analítico à mútua aprendizagem com dor mental. Dessa experiência emocional emanam conhecimentos e intuição analiticamente bem equilibrada, que dão conforto genuíno ao existir. Essa é a permanente aposta que o par analítico renova a cada sessão e que Bion denomina Ato de Fé: ampla entrega e interdependência dos parceiros, sem perder os referenciais de funções diferentes, com vantagens mútuas que favorecerão sanidade e maturação mental para ambos. Evoca o funcionamento de cópula sexual, onde as duas partes em conjunção obtêm satisfação e realização de modo compartilhado: a) ao sugar o seio o bebê obtém alimento, prazer e amor, ao mesmo tempo que colabora nas gratificações da mãe em exercer e ampliar suas funções; b) o mesmo acontece no coito amoroso e na união ardente homem e a mulher (Junqueira Filho & Sapienza, 1997, p. 188)
Assim como Nosek, a dupla de psicanalistas acredita, ancorados no pensamento bioniano, que, na análise, a verdadeira fome do casal analítico deva ser por sentido, sobretudo, pela transformação do “mar sensorial” da sexualidade concreta em “terra firme de representações emocionais” (Junqueira Filho & Sapienza, 1997, p. 195). Pensamos que o caminho inverso também deve ser encorajado a ser percorrido em uma análise, isto é, se um casal analítico pode se enlaçar, gozar do encontro de duas subjetividades, o paciente pode vir a desfrutar de um pleno uso de sua potência sexual na vida - “da terra firme de representações emocionais” para um “mar sensorial”.
De algum modo, acreditamos que, quando a análise é um coito fértil capaz de produzir, procriar e parir, estamos diante de uma experiência obstétrica que permite ao paciente tornar-se mais si mesmo, ou seja, exercitar mais a sua potencialidade diante da vida; nossos analisandos encontram, assim, maneiras criativas de se relacionar sexualmente, afetiva e amorosamente. Da mesma maneira, quando não há em análise um intercurso fértil - ou, em outras palavras, quando um integrante da dupla pode se apresentar agradável demais para que não haja uma relação genuína, erótico demais para intimidar a capacidade de pensar da dupla, racional demais para não se entregar à turbulência de um encontro - no geral a vivência do ato sexual é da ordem do pavor: penetrar ou ser penetrado é destruir/ser destruído, invadir/ser invadido; aqui a lógica inconsciente é matar ou morrer.
Talvez, o paradoxo mais temido da psicanálise seja o que envolve sexo carnal e sexualidade enquanto ato psíquico, pois sexo e sexualidade são indissolúveis, mas inconfundíveis. A confusão se dá, por exemplo, nas transferências eróticas pouco elaboradas que revelam um ataque à experiência analítica, uma vez que o filho de uma relação analítica é em última instância o renascimento da própria psicanálise, uma psicanálise “sob medida” para aquela dupla, ambos fechados em uma sala, vulneráveis e entregues um ao outro - a intimidade psíquica é, na maioria das vezes, mais ameaçadora do que o ato sexual, será o vínculo íntimo que libertará o paciente para vivenciar o sexo e a sexualidade.
Nesse sentido, um encontro sexual pode ser pensado em seu sentido amplo, em que se coaduna intimidade psíquica e experiência sensorial, isto é, para além de corpos que se interpenetram, a mente, a alma e o coração também estão mergulhados. Na relação sexual e na sexualidade, corpo e mente, sensorial e não sensorial, revelam-se como duas facetas indiferenciadas, não se sabe bem o que é carne, o que é mente.
Sendo assim, do mesmo modo que masculinidade e feminilidade podem ser vislumbradas por um ponto de vista espectral7 e não como vertentes dicotômicas, a sexualidade também pode ser vista por intermédio de um espectro: ela é corpo e ela é abstração, trânsito contínuo entre esses polos. Quando o prazer explode, há um desfalecimento do sujeito no outro, o que pode promover o renascimento e a reinvenção de si próprio - uma transformação em “O”. Não à toa, os franceses chamam o ápice erótico de la petite mort, a “pequena morte”.
Depois de sermos arrastados por esse movimento que autores contemporâneos nos levaram, podemos afirmar que sexo e sexualidade habitam a teoria bioniana de um modo original e promissor, uma vez que a sexualidade se impõe nos processos mentais descritos por Bion, revelando que a dimensão freudiana da sexualidade habita sua teoria, elevada, inclusive, a uma potência extraordinária quando percebemos que, de acordo com Bion, a mente é edípica e, portanto, assim também é o funcionamento mental. Dessa perspectiva, a sexualidade está à serviço da Verdade emocional do sujeito, seria, por assim dizer, um continente para a investigação dos processos mentais do paciente.
Acreditamos que o movimento de resgate da sexualidade, feito por Nosek, inspirado e impulsionado pela denúncia de André Green, pode ser valioso. A sexualidade está na abstração dos funcionamentos mentais, mas ela apenas ganha esse estatuto por ser também o vislumbre das potencialidades do corpo, já nos diria Freud que o aparato psíquico é intrínseco às funções biológicas do corpo - não há mente que não se ancore em um corpo sensual. Sendo assim, sexualidade, quando diz respeito à psicanálise, está sempre no terreno da psicossexualidade, portanto é ato psíquico e designa humanidade, em um eterno retorno à alteridade que nos funda, ou seja, à relação emotivo-afetiva-sexual com o Outro.
Parece, assim, que a aproximação entre a bissexualidade psíquica de Freud e as noções de continente-contido de Bion revela que em ambos os conceitos está em jogo a díade penetrante/penetrado - e suas variáveis: fora/dentro, dar/receber, ter/oferecer - como potencialidades do corpo e da mente. Por esse vértice, pois há outros tantos que a psicanálise nos brinda, é possível vislumbrar as relações primordiais com o Outro, a consequente arquitetura do aparelho mental e o funcionamento andrógino da mente - que evoca sexo, gravidez e nascimento.