Introdução
Transtornos Específicos de Aprendizagem (TA) são distúrbios do neurodesenvolvimento, persistentes ao longo do tempo, mesmo perante a aplicação de intervenções, e que não podem ser explicados por falta de escolarização, déficits intelectuais ou sensoriais, outros transtornos mentais ou neurológicos, adversidades psicossociais ou falta de proficiência na língua de instrução acadêmica (American Psychiatric Association, 2014). Esse distúrbio começa a se apresentar na idade escolar como dificuldades de leitura, escrita ou cálculo, habilidades acadêmicas que ficam muito aquém do esperado para a idade cronológica do indivíduo e de suas habilidades cognitivas gerais (Sanfilippo et al., 2020).
Ler é uma tarefa cognitiva complexa que requer integração e comunicação entre várias partes do cérebro e geralmente ocorre de forma automática (Munzer et al., 2020). Todavia, o Transtorno de Aprendizagem Específico para a leitura afeta sua precisão, velocidade, fluência e decodificação, bem como a ortografia. Conhecido como dislexia, é o mais prevalente entre os Transtornos Específicos de Aprendizagem, atingindo entre 5% e 17% das crianças em idade escolar (Sanfilippo et al., 2020).
Estudos genéticos e de neuroimagem revelam que o transtorno está relacionado a diferenças funcionais e estruturais em diversos circuitos neurais que podem ser herdadas (D’Mello & Gabrieli, 2018). Mesmo com essas correlações neurobiológicas, o diagnóstico é clínico e baseia-se no histórico, na observação e na avaliação psicológica (Sanfilippo et al., 2020).
Embora os sinais diagnósticos da dislexia se manifestem a partir dos 7 e 8 anos de idade, quando a criança está aprendendo a ler, há fortes evidências de que essas particularidades do neurodesenvolvimento dos sujeitos disléxicos são em habilidades de pré-leitura que servem de base para tal e em regiões do cérebro que auxiliam tais habilidades (D’Mello & Gabrieli, 2018). Crianças em fase pré-leitura com risco de desenvolvimento de dislexia devido ao histórico familiar já podem apresentar diferenças estruturais e funcionais na rede neural de leitura do hemisfério esquerdo e comportamento preditor de futuros déficits na leitura, como sutis diferenças no vocabulário e sintaxe. Assim, tudo isso indica que a criança com predisposição para dislexia já entra na escola com um cérebro menos equipado para aprender a ler (Barbosa et al., 2015).
Mesmo com esses sinais precoces, a maioria dos diagnósticos de dislexia dentro do sistema educacional ocorre tardiamente, depois da criança já ter falhado em aprender a ler por um longo período e já apresentar significativa discrepância de desempenho ao ser comparada com seus pares (Lithari, 2019). Assim, além de ser perdido o melhor momento para a intervenção, enquanto o cérebro está mais “plástico”, esses indivíduos podem ser tachados de desinteressados, preguiçosos e “burros”. Isso afeta muito a autoestima, com sentimento de insegurança, frustração e fracasso, podendo até mesmo evoluir para comorbidades psiquiátricas, como ansiedade e depressão. Pessoas com TA também são mais propensas a não completar o Ensino Médio, não ter Ensino Superior, adentrar o sistema de Justiça, ficar desempregadas e receber menores salários (Lithari, 2019).
Em indivíduos sem o transtorno, a leitura envolve redes neurais nas regiões de linguagem do hemisfério esquerdo, incluindo o córtex frontal inferior, o temporoparietal dorsal, o temporal superior e o occipto-temporal ventral (Livingston et al., 2018). Conectadas por tratos, cada uma delas exerce uma ou mais operações específicas. Já em indivíduos com o transtorno, no hemisfério esquerdo, há menor ativação funcional nessas áreas e reduzidas substância branca nos tratos e substância cinzenta (Nicpon et al., 2011). Ademais, há um defeito na habilidade de integrar a informação entre diferentes sistemas funcionais. Tudo isso resulta em prejudicadas percepção fonológica, a capacidade de identificar e manipular unidades de linguagem falada, e fluência de leitura, que se torna lenta e trabalhosa (D’Mello & Gabrieli, 2018).
Para mais, a maior parte dos sujeitos portadores de algum transtorno ainda é reconhecida por suas dificuldades e não por seus talentos (Nicpon et al., 2011). Dificilmente o meio clínico, escolar e até mesmo científico investigam a possibilidade de que o desenvolvimento diverso ao esperado possa se apresentar como melhores habilidades cognitivas do que o desenvolvimento considerado normal, fenômeno referido na literatura como “dupla excepcionalidade” (Alves & Nakano, 2015). Alguns poucos estudos exploratórios feitos com crianças disléxicas com essa finalidade encontraram, por exemplo, maior criatividade, originalidade, habilidades de elaboração e conexão, velocidade e riqueza de detalhes na produção de figuras originais (Wechsler, 2013).
Nesse sentido, alguns autores (Munzer et al., 2020; Alves & Nakano, 2015) especulam que o hemisfério direito seria mais desenvolvido funcionalmente em indivíduos com dislexia, principalmente o lobo parietal, sendo tal condição responsável pelo talento e por produções criativas. Contudo, há ainda uma lacuna de estudos nacionais com essa temática e, mesmo entre os internacionais, não há um padrão de achados relacionados à identificação de habilidades criativas em indivíduos com transtornos de aprendizagem e à comparação com indivíduos sem dificuldades de aprendizagem (Cancer et al., 2016).
O presente estudo busca compreender como tais diferenças estruturais e funcionais nos cérebros das crianças disléxicas, incluindo os mecanismos compensatórios no hemisfério direito, apresentam-se na prática. Afinal, boa parte dos testes psicométricos feitos até então tinham como enfoque comparar as habilidades de crianças disléxicas com as de não disléxicas, concluindo o que faltava nas primeiras, e não o que poderiam ganhar com esse processamento neural distinto, desconsiderando a possibilidade dessa “dupla excepcionalidade”. Como a habilidade mais investigada em estudos de outros países comparando crianças com e sem o TA foi a criatividade e ainda não há um consenso, essa será a habilidade mais explorada também nesse estudo. Desse modo, aspira-se compreender esse TA para além dos déficits na leitura e fazer inferências de como essas crianças poderiam aprender melhor a partir de suas particularidades de raciocínio, valorizando e ressaltando suas qualidades e habilidades e não suas limitações, tendo em vista o impacto da dislexia na autoestima, na vida acadêmica e profissional.
Método
Trata-se de um estudo descritivo, exploratório de coorte transversal com amostra de 50 escolares, de ambos os sexos, entre 10 e 11 anos de idade, sendo 25 (GD) já diagnosticados com Dislexia do Desenvolvimento e 25 (GC) sem o transtorno de aprendizagem, pareadas por idade e nível escolar. Os 25 escolares indivíduos do grupo com TA tiveram seu diagnóstico de dislexia formalizado através de laudo médico que seguiu os seguintes critérios: ausência de sinais evidentes de enfermidade neurológica, identificados por meio de avaliação clínica, que incluiu o exame neurológico tradicional; ausência de sinais evidentes de redução da idade mental, identificados através da aplicação da Escala de Inteligência Wechsler - WISC-IV (Wechsler, 2013) para crianças; ausência de sinais evidentes de enfermidade otológica, identificados por meio de otoscopia; ausência de perda auditiva confirmada pela avaliação audiológica básica, que consistiu de audiometria tonal liminar; presença de queixa escolar relacionada à aprendizagem.
Estes escolares pertencem ao Centro Municipal Especializado de Avaliação e Atendimento Interdisciplinar Gato de Botas, parceria entre a Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP) e a Secretaria Municipal de Educação de São José do Rio Preto-SP. Foi criado em 28 de setembro de 2000 pela necessidade de avaliar e atender crianças da rede pública, com queixas de dificuldades de aprendizagem.
Os critérios para encaminhamentos ocorrem por intermédio do Departamento de Educação Especial na Secretaria Municipal de Educação. A inclusão nos atendimentos depende dos seguintes critérios: estar matriculado em escola pública (municipal); estar cursando o Ensino Fundamental; apresentar dificuldades de aprendizagem; e ter esgotado todas as possibilidades pedagógicas da escola em que estuda.
Desta maneira, o escolar que não consegue ultrapassar as etapas de alfabetização, e não retém conteúdo, é avaliado pela equipe interdisciplinar do Centro Gato de Botas, composta por neurologista infantil, neuropsicólogo, psicólogo, pedagogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e, quando necessário, um psiquiatra infantil. Finalizadas as avaliações, por meio do estudo de caso, conclui-se uma hipótese diagnóstica com visão global para o aprendizado, incluindo o escolar no processo de intervenção nas áreas de exigência do seu diagnóstico.
Foi feito contato com o responsável pelo Centro Gato de Botas, o qual foi informado sobre a pesquisa, seus métodos e objetivos, e autorizou a coleta de dados. Em seguida, o estudo foi explicado para os escolares, que foram e convidados a participar mediante a assinatura do Termo de Assentimento e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pelos pais ou responsáveis.
O grupo sem o TA foi composto por 25 escolares provenientes da escola municipal. A escolha desta escola deu-se pela proximidade física com o Centro. Para o recrutamento dos participantes, inicialmente, foi contatada a coordenação da escola municipal, para apresentação e explicação dos objetivos e procedimentos do estudo. Após o consentimento e assinatura do TCLE, foi autorizada a pesquisa em ambiente escolar. Foi solicitado aos professores que indicassem crianças sem histórico ou queixas de dificuldades de aprendizagem. Os escolares indicados foram comunicados e convidados a participar do estudo mediante a assinatura do Termo de Assentimento e da assinatura do TCLE pelos pais ou responsáveis.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), com o parecer n° 4776623.
Considerando o contexto da pandemia de covid-19, o instrumento escolhido por ser viável e seguro para avaliar os grupos foi o Google Forms. Para evitar vieses, os formulários, com linguagem simples e objetiva, serão preenchidos pelos próprios escolares e não pelos pais. Tais formulários serão divididos em 3 seções. Na primeira, cada participante colocará seus dados: nome, idade, sexo e série escolar. A seção seguinte será um teste de criatividade autoral baseado no“Widening, connecting and reorganizing (WCR) test” (Nakano & Wechsler, 2006). Foi elaborada uma versão autoral, adaptada para os objetivos da pesquisa. Ainda não há uma versão brasileira validada do teste. O WCR foi escolhido como base, pois já foi validado em uma amostra de 200 estudantes da mesma faixa etária e utilizado em testes comparativos de criatividade entre crianças disléxicas e não disléxicas em outros países (Richardson & Mishra, 2018).
Assim como o teste de base, esse instrumento mede as três principais habilidades e operações mentais envolvidas no pensamento criativo: ampliar, gerando múltiplas ideias e perspectivas; conectar, associando ideias de forma pouco usual, além das aparentes semelhanças e diferenças; reorganizar, considerando os elementos para além de um contexto específico e alterando pontos de vista.
O teste é composto por nove itens, três de cada subteste, contendo estímulos visuais e verbais. Cada subteste avalia uma dessas três operações mentais previamente descritas. No primeiro, que avalia a capacidade de ampliar, o participante deve escolher uma entre quatro opções, que variam da menos para a mais óbvia interpretação de um estímulo. No segundo subteste, que avalia a capacidade de conectar, o participante deve escolher, dentre uma lista de palavras acompanhadas de suas respectivas imagens, três itens para associar com um dado estímulo. No terceiro subteste, que avalia a capacidade de reorganizar, após ler uma sentença ou ver uma imagem descrevendo uma situação hipotética, o participante deve escolher uma entre quatro opções, que variam da menos para a mais óbvia, para completar a situação apresentada. Nos subtestes dois e três, além da escolha das alternativas, as crianças devem apresentar uma breve justificativa para sua escolha, permitindo a distinção entre respostas pensadas e respostas aleatórias.
A pontuação é dada de acordo com a associação entre criatividade e originalidade, ou seja, as pontuações maiores são para respostas menos escolhidas e as pontuações menores para as mais escolhidas. Nos subtestes 1 e 3, as pontuações para cada resposta podem variar de 0, mais escolhida e menos criativa, a 3, menos escolhida e mais criativa, por item. Da mesma maneira, no subteste 2, cada tópico da lista de 8 palavras terá sua pontuação medida de acordo com a porcentagem de escolha: as 2 mais escolhidas valem 0 ponto; as segundas 2 mais votadas, valem 1 ponto; as segundas 2 menos votadas valem 3 pontos e as 2 menos escolhidas valem 3 pontos. Ao fim, todos os resultados dos testes serão somados, possibilitando um total de 0 a 27 pontos.
Exemplo de uma das questões do subteste:
Sentar
Subir em cima para alcançar objetos no alto
Apoiar os pés enquanto sento no sofá
Me esconder embaixo em uma brincadeira
A última seção é outro teste autoral de criatividade, baseado no teste “Pensando Criativamente com Palavras de Torrance” (Hahm et al., 2017). Foi elaborado um teste autoral, uma vez que o original validado no Brasil somente pode ser acessado por psicólogos. Esse teste de base foi escolhido, pois já foi previamente validado, além de ser referido como o teste de criatividade mais divulgado e estudado internacionalmente (Mammadov et al., 2019) e o mais adequado ao contexto educativo (Chen et al., 2018). Foram criadas 2 atividades que consideraram o contexto online, sendo viável pelo Google Forms. Na primeira delas, “Aperfeiçoamento do produto”, é mostrada uma imagem de um elefante de brinquedo e pedido que sejam listadas todas as melhorias para torná-lo mais interessante e divertido. Na segunda, “Usos inusitados”, pede-se ao sujeito que faça uma lista de todos os usos inusitados e interessantes para caixas de papelão vazias.
Através da comparação entre os grupos será observada a flexibilidade (o grupo que tem maior diversidade de categorias de ideias); a elaboração (descrições, embelezamento da ideia por meio de adjetivos); fantasia (alusão a ideias imaginárias); uso de analogias, metáforas. Por exemplo, “qual grupo apresenta maior número de ideias”.
As análises serão feitas através do teste de Mann-Whitney, que é um teste não paramétrico aplicado para duas amostras independentes. Outros dados serão expressos em percentuais e categorização das respostas singulares apresentados em tabelas.
Resultados
A caracterização dos escolares disléxicos (GD) mostrou que 14 (56%) eram do sexo masculino, com idade média de 10,25 e desvio padrão (SD) de 1,25 anos. No grupo de escolares não disléxicos (GC), 15 (60%) eram do sexo masculino, idade média de 10,21 e desvio padrão 1,17 anos. Importante ressaltar que essas características foram homogêneas nos dois grupos, proporcionando equilíbrio e minimizando possíveis interferências.
Observou-se que não houve nenhuma dificuldade em manusear a tecnologia digital (100%) utilizada na coleta de dados.
No que diz respeito às tarefas criativas, foi relatado que os escolares do GD e GC apresentaram desempenho flutuante, exceto na habilidade de ampliação (Figura 1). Quando foi categorizada, por ordem de características comuns, as respostas emergidas no GC apresentaram 80% (n=11) que responderam “colorir, pintar, enfeitar”.

Figura 1 : Comparação dos grupos de escolares disléxicos (GD) e não disléxicos (GC) quanto aos testes de tarefas criativas
Os resultados acima revelaram que não houve diferença significante entre os grupos GD e GC nos testes da ampliação do campo mental (p≥0,05), que demonstrou pouca geração de ideias e perspectivas. Nos testes de conexão houve diferença significante (p<0,05), apresentando maior desempenho dExemplo de uma das questões do subteste:e combinação incomum de ideias no GD. Na reorganização do campo mental, também o GD considerou um maior número de elementos para além de um contexto específico e alterando pontos de vista (p<0,05).
Quando objetivou-se explorar a criatividade verbal dos escolares, sendo mostrada uma imagem e a capacidade verbal foi explorada, o GD apresentou maior número de respostas originais (40%, n=10) comparado ao GC (20%, n=5).
Quando foi categorizada por ordem de características comuns, as respostas emergidas no GC, 80% (n=11) responderam “colorir, pintar, enfeitar”. As cinco respostas interessantes são listadas abaixo. Quanto ao GD, 36% (n=9) responderam “colorir, pintar, enfeitar”, 16% (n=4) expressaram “falar, andar, brincar”, 8% (n=2) não responderam. Referindo à questão de responder sobre os usos inusitados de um determinado objeto, no caso uma caixa de papelão, poucas exceções no GC relataram ideias incomuns. A maioria do GC (88%, n=22) mencionou “guardar coisas/brinquedos”. Outras respostas consideradas singulares estão expostas nas Tabelas 1 e 2.
Tabela 1 : Resultados das respostas singulares dos grupos disléxico (GD) e não disléxico (GC) sobre as questões que tinham como alvo o processo criativo (imaginar, descobrir, combinar e ultrapassar a experiência imediata)
| Questão 1 | Respostas GC | Respostas GD |
|---|---|---|
| Aperfeiçoando o produto | ||
| “colocar asas, cabelo, roupa...” | “Cortaria no papel, faria em 3 D, cortaria em pedaços para juntar e faria uma réplica do lado” | |
| Mostrando a imagem de um elefante de brinquedo, pede-se que sejam listadas as melhorias para torná-lo mais interessante e divertido. | “mais fofinho e colorido” | “Robô” |
| “falar e deixar subir nele” | “poder sugar e jogar a água” | |
| “jogar água pela tromba” | “deixaria a prova d’agua porque se molhasse não estragaria” | |
| “faria ele um super-herói” | ||
| “mais 3 patas e mais 3 trombas” |
Fonte: Dados da pesquisa
Tabela 2 : Resultados das respostas singulares dos grupos disléxico (GD) e não disléxico (GC) sobre as questões que tinham como alvo o processo criativo (imaginar, descobrir, combinar e ultrapassar a experiência imediata)
| Questão 2 | Respostas GC | Respostas GD |
|---|---|---|
| Uso inusitado | ||
| “A maioria das pessoas joga fora as caixas de papelão vazias, mas elas podem ter milhares de usos interessantes e incomuns. De que jeitos interessantes e incomuns você acha que essa caixa pode ser utilizada?” | “uma padaria, uma casa de Barbie, uma caixinha de médica, um dado gigante, um aviãozinho, uma caixa de livros” | “cortaria e faria um dinossauro de papelão” |
| “fazer brinquedos, coisas de escritório, coisas de escola” | “cosplay” | |
| “entro dentro, corto as tampas e faço um carro, um avião” | ||
| “capacete, carrinho” | “casa e móveis para bonecas” | |
| “duas espadas” | ||
| “castelo, casa, montar variedades, robô, supermercados, carrinhos.” | ||
| “casa de cachorro” |
Fonte: Dados da pesquisa
Discussão
O presente estudo explorou comparativamente habilidades criativas entre escolares com e sem dislexia na tentativa de compreender como se apresentam na prática as diferenças de processamento neural entre ambos. Seria assim um meio indireto de avaliar a hipótese de que existem, no cérebro dos disléxicos, mecanismos compensatórios no hemisfério direito que favorecem o pensamento criativo. No geral, os resultados sugerem maior criatividade dos disléxicos, o que também concluíram alguns estudos empíricos feitos em outros países (Nicpon et al., 2011; Henriksen et al., 2018).
Desse modo, com a contribuição específica de um estudo feito com crianças falantes do português brasileiro, é possível inferir que há um traço comum, o pensamento divergente, nesse transtorno de aprendizagem independente de características socioculturais e linguísticas de cada país. Revisões de literatura também já sustentavam que as alterações neurobiológicas desse transtorno específico de aprendizagem fossem similares entre os diferentes sistemas de escrita (Almeida, 2022; Robinson & Aronica, 2019; Carpenter et al., 2020).
Mas, nesse caso, as diferenças entre os grupos foram estatisticamente significantes nas habilidades de conectar ideias incomuns e de reorganização do campo mental e não na habilidade de ampliação do campo mental, na qual, diferentemente do esperado, houve pouca geração de ideias.
Se aprender a ler envolve assimilar progressivamente os padrões de uma determinada língua e tal processo está prejudicado nas crianças com dislexia (Erbeli et al., 2022), elas são forçadas a buscar caminhos alternativos para essas regras e para processar as informações de forma a tentar se equiparar aos não disléxicos. Essa pode ser a razão pela qual elas apresentaram maior habilidade criativa nas tarefas que envolvem contornar os meios convencionais: conectar ideias de forma não usual e reorganizar o campo mental.
Ainda que estatisticamente significantes, na prática, as diferenças entre os grupos foram pequenas para se concluir que, no sistema educacional atual, o pensamento criativo das disléxicas possa compensar por sua dificuldade geral no aprendizado. Afinal, o processo de alfabetização e a educação como um todo estão padronizados para favorecer as crianças sem alterações do neurodesenvolvimento e as habilidades acadêmicas consideradas mais relevantes para o mercado de trabalho.
Para Ken Robinson (2019), que viralizou pelo TEDTalk de 2006 “Do Schools kill creativity”, a criatividade é tão importante na educação quanto a própria alfabetização. Também é vista como crítica para o aprendizado e o ensino no século 21 (Boot et al., 2020). Na atualidade, até mesmo pela lógica de mercado, faz sentido que a educação estimule a criatividade, já que essa é uma habilidade cada vez mais necessária para criar novas ideias que possam levar ao progresso, à inovação e econômica e à geração de riqueza (Ben-Naim et al., 2017). Por isso, é necessária uma revolução educacional que valorize o pensamento divergente e a criatividade.
Pensando a curto prazo, algumas possibilidades são, nas creches e escolas, apresentar o mesmo conteúdo de formas distintas, jogos, por exemplo, ou por meio de materiais concretos, como materiais de pintura, peças de montar ou colagens e focar em manter as crianças disléxicas motivadas (Henriksen et al., 2018; Carpenter et al., 2020).
Contudo, há ainda a hipótese de que a criatividade, assim como a inteligência e outras habilidades cognitivas, varie de acordo com fatores individuais, como estímulos ambientais e genética, sem que haja favorecimento significante do grupo disléxico, o que já foi corroborado por uma metanálise (Erbeli et al., 2022). Mas a pesquisa nesse sentido não pode ser esgotada tendo em vista todos os ganhos que as crianças disléxicas, e mesmo as não disléxicas, podem ter com uma educação que valorize o pensamento criativo e a “dupla excepcionalidade”.
Considerações
Crianças com Transtorno de Aprendizagem Específico para a Leitura, a dislexia, por apresentarem pior desempenho na precisão, velocidade, fluência e decodificação da leitura em comparação com os escolares de mesma idade sem o Transtorno, têm profundos prejuízos em suas vidas acadêmica, social e, futuramente, profissional.
Muito se sabe sobre as bases neurobiológicas dessa condição e inclusive sobre mecanismos neurais compensatórios que se desenvolvem no hemisfério direito das disléxicas, mas ainda não há muitos estudos, principalmente nacionais, que investiguem como essas diferenças de processamento neural se apresentam na prática, se isso as torna mais criativas. Assim, o presente estudo investigou essa questão e os resultados foram sugestivos de maiores habilidades criativas no grupo disléxico: conectar ideias de forma não usual e reorganizar o campo mental.
Tais habilidades são essenciais na formação dos estudantes e cada vez mais exigidas no mercado de trabalho, contudo, ainda não são estimuladas pelos sistemas educacionais nacionais e internacionais. Por isso, é necessária uma revolução educacional que valorize o pensamento divergente e a criatividade, não só para que a educação se torne mais inclusiva às crianças com alterações do neurodesenvolvimento, mas pelo progresso da sociedade como um todo.














