Introdução
No contexto educacional contemporâneo, crianças diagnosticadas com autismo têm participado do cotidiano escolar graças aos avanços no campo das políticas educacionais que subsidiam a obrigatoriedade de matrícula na Rede Básica de Ensino ( Brasil, 1996 ). No entanto, seu envolvimento em práticas sociais escolares e não-escolares mostra-se um desafio. De um lado, familiares pautados em descrições diagnósticas parecem não saber como estabelecer relações que considerem a criança em sua singularidade, não o diagnóstico. De outro, educadores centrados nas práticas pedagógicas minimalistas baseadas no diagnóstico de autismo, que focalizam o treino e a repetição como caminho no processo de ensino e aprendizagem.
Segundo a versão atualizada do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM Tr-5, da Amer ican Psychiatric Association (APA, 2022), o autismo é um distúrbio do neurodesenvolvimento pertencente à classe dos transtornos que, neste caso, é do espectro autista. Os principais critérios residem nos déficits da linguagem. Conforme a APA (2022, p. 56) preconiza, tais déficits são “[...] persistentes na comunicação social e interação social em vários contextos [...]”, aspecto que persiste e caracteriza os “[...] déficits em comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal mal integrada a anormalidades no contato visual e linguagem corporal”. Os critérios diagnósticos mostram uma série de características biopsicossociais de pessoas nessas condições, o que, em contextos escolares, tem delineado o trabalho pedagógico e as possibilidades de participação nas diferentes práticas sociais.
Pesquisas têm sido feitas em busca de conhecer melhor o funcionamento destas crianças e identificar as intervenções educacionais cabíveis. Os achados, em geral, apontam que as propostas de trabalho educacional e/ou clínico tomam como referência as vertentes médico-pedagógica e psicopedagógica ( Jannuzzi, 2006 ). Mas ao fazerem isso e se basearem em características comportamentais descritas no manual diagnóstico, acabam tomando os descritores como regra para a intervenção e para os modos de ser e agir de pessoas com autismo ( Goulart & Assis, 2002 ; Gomes et al., 2016 ; Brito et al., 2021) .
Na ambiência escolar, uma hegemonia de tendências biologizantes acaba por afetar as relações de ensino, restringindo à sintomatologia clínica as possibilidades de desenvolvimento da criança. Tanto no ambiente educacional como no familiar ( Novaes, 2022 ), a relação com a criança que recebe o diagnóstico de autismo deriva do modo como é entendido. Por isso, é preciso deixar de interpretá-lo como uma síndrome restritiva do desenvolvimento da criança, porque essa abordagem inviabiliza a busca por outros caminhos possíveis.
Toda essa problemática acerca do autismo não é recente. Natalie Mas (2018) realizou um estudo de base histórica a partir dos trabalhos do psiquiatra austríaco Leo Kanner (1943) . Ela ressalta que a síndrome foi apresentada à clínica a partir de casos de crianças com “debilidade mental” ou “deficiência auditiva”. Para ela, a ênfase no tratamento do autismo traz consigo a questão da medicalização, do excesso de diagnósticos e da produção de uma série de aparatos pedagógicos no espaço educacional, com vistas à participação da pessoa com autismo nas práticas sociais. Ao olhar para a questão histórica do diagnóstico de autismo, Mas caminha em outra direção e argumenta que o sujeito nessa condição “poderia ser tratado mais efetivamente pela via da singularidade” (Mas, 2018, p. 99).
Estudos que se fundamentam no referencial vigotskiano indicam que expressões como “meu filho é autista”, “meu aluno é autista”, “tenho um primo autista”, “meu aluno com autismo é uma gracinha”, “tenho um primo com autismo que é superinteligente”, “ele é o amor da prô” circulam socialmente e impactam os modos de constituição da criança ( Chiote, 2021 ; Gonçalves, 2021 ; Novaes & Freitas, 2021 ; Padilha, 2021) . Tais expressões parecem delimitar a pessoa em “concepções engessadas e míopes do sujeito como sendo ele o autismo” ( Padilha, 2021, p , p. 13). Há, em contextos escolares, a exacerbada marca do diagnóstico que antecede a pessoa, com forte ênfase nas condições orgânicas. Esse aspecto causa estranhamento quando se assume a tese socio-histórico-cultural do desenvolvimento humano: que o homem se constitui na relação com o outro. Para Vigotski1 (2000), é no contexto social regido por leis históricas e culturais que o desenvolvimento da espécie humana acontece, e não como fruto de uma cadeia de comportamentos mecanizados.
Em face do exposto, o presente artigo problematiza esta questão e toma como referencial teórico-metodológico as proposições da perspectiva histórico-cultural, especialmente estudos de Vigotski sobre o diagnóstico das condições e possibilidades de desenvolvimento da criança (Vigotski, 1997). O objetivo aqui é compreender como essa questão é tratada por Lev Vigotski em seus estudos sobre a deficiência e, a partir daí, refletir sobre como o diagnóstico de autismo tem sido produzido historicamente e seus impactos na constituição da subjetividade da criança que o recebe.
Para alcançar o objetivo aqui pretendido, este texto apoia-se em um estudo de doutorado de natureza teórica e empírica que abordou as singularidades de Miguel, uma criança diagnosticada com autismo, aluno do segundo ano do Ensino Fundamental de uma escola pública localizada na periferia de um município do interior paulista.
No referido estudo, o pesquisador e primeiro autor deste texto desenvolveu uma pesquisa participante durante o ano de 2019, inserindo-se na sala de aula do aluno e desenvolvendo atividades pedagógicas em colaboração com a professora da turma2 . Além disso, o pesquisador entrevistou a mãe de Miguel a fim de compreender a história da criança pelo olhar materno3 . Os registros foram feitos em videogravação das situações em sala de aula e audiogravação da conversa com a mãe, além de notas de campo do pesquisador. Os dados gravados foram transcritos e analisados com base na microgenética ( Góes, 2000 ). Para o recorte das discussões do presente artigo, foram selecionados excertos da entrevista feita com a mãe e das notas de campo do pesquisador.
Além desta introdução, o presente texto está organizado em três seções: Na primeira, busca-se compreender a questão do diagnóstico à luz da teoria histórico-cultural e as derivações para compreensão da constituição da criança com autismo no debate contemporâneo. Em seguida, a seção ‘Miguel e suas relações dramáticas’ traz excertos narrativos que permitem refletir, com base no olhar vigotskiano, sobre como o diagnóstico impacta a constituição da criança com autismo. Após as discussões, as considerações finais enfatizam a importância de se compreender a criança nas práticas sociais, nas relações com os outros e em seus modos de atuação no mundo.
Reflexões sobre o diagnóstico à luz da teoria histórico-cultural
Cientista do início do século 20 e precursor da teoria histórico-cultural, Vigotski dedicou-se à compreensão do processo de constituição do psiquismo humano. Com foco em seu escopo teórico-metodológico, as discussões tecidas neste artigo pautam-se nas condições de desenvolvimento de pessoas com deficiência e no papel da palavra do outro no processo de constituição humana.
Ao estudar o desenvolvimento de pessoas com deficiência, Vigotski (1997) considera que as abordagens de sua época são unilaterais, pois as descrevem a partir de seus fatores fisiológicos, congênitos ou adquiridos. Na contemporaneidade, estudos que se baseiam em tais abordagens caracterizam o autismo como uma síndrome que prejudica o desenvolvimento da criança, especialmente na aquisição e uso da linguagem e em padrões de comportamento considerados restritos e repetitivos ( Ferraz et al., 2018 ; Benitez et al., 2020 ; Elias et al., 2021 ; Silva & Moura, 2021 ).
Contudo, o referencial vigotskiano caminha em outra direção ao compreender o desenvolvimento da pessoa com deficiência como um processo que acontece em uma localização social, regido por leis históricas da espécie humana em consonância com a cultura em que o sujeito está inserido. Por isso,
[…] neste estudo, utiliza-se a expressão “pessoa com autismo” e “autismos” para enfatizar que o autismo compõe o sujeito, mas não o define por completo. Nesse sentido, considera-se que os diagnósticos clínicos, que são entregues na escola, são pistas que podem auxiliar no planejamento do trabalho pedagógico a ser realizado com os estudantes com autismos, mas esse diagnóstico não pode ser interpretado como um fim em si mesmo, visto que todo sujeito é também histórico e cultural. ( Gonçalves, 2021 , p. 113)
Quando se problematiza o diagnóstico como meio, mas não como fim para o processo constitutivo de pessoas com autismo, outros caminhos se abrem para tensionar os limitadores presentes na própria terminologia de ‘autismo’.
O estudo mais recente com foco nessa temática histórica é a pesquisa de Mas (2018) : ‘Transtorno do Espectro Autista: história da construção de um diagnóstico’, que investiga o percurso histórico da classificação de autismo. Segundo a autora, em 1911, o psiquiatra suíço Eugen Bleuler descreveu o quadro de autismo. Ela frisa que, deste período até a descrição da síndrome em 1943 pelo médico austríaco Leo Kanner, havia uma tensão entre autismo e esquizofrenia pela semelhança dos fatores diagnósticos. Para Mas (2018) , essa informação na literatura não é nova, mas carece de aprofundamento.
Tal questão, além de contribuir para a compreensão do objetivo proposto, possibilita adentrar o referencial vigotskiano mirando a constituição humana e os fatos históricos que atravessam o entendimento do termo autismo e reverberam em diferentes práticas sociais.
Na coletânea ‘Fundamentos de defectologia’ ( Vygotski, 1997 ), a palavra autismo aparece no capítulo ”El diagnóstico del desarrollo y la clínica paidológica de la infância difícil”, em que ele analisa as complicações frequentes no desenvolvimento das chamadas crianças ‘difíceis’, com psicopatias ou significativo atraso mental4 .
Vigotski começa com uma crítica ao modo como o diagnóstico de desenvolvimento infantil era realizado em sua época. Para o autor, a clínica tradicional ocupava-se de diagnosticar as crianças que apresentavam peculiaridades no desenvolvimento, porém, sem preocupação em entender suas possibilidades desenvolvimentais. Vigotski dá o exemplo de uma mãe que leva seu filho de 8 anos à avaliação psiquiátrica, pois ele apresentava crises de irritabilidade, raiva, agressão. Após a avaliação clínica, o psiquiatra fornece o diagnóstico à mãe: a criança é epileptoide. A mãe, então, pede mais explicações e o médico responde: seu filho apresenta irritabilidade, raiva e comportamentos agressivos. A mãe retruca que, para saber isso, não precisaria ter levado seu filho à avaliação. Com este caso, Vigotski indaga: o que esperam os pais e educadores quando encaminham a criança para uma avaliação? E o que respondem os especialistas?
A partir dessa reflexão, ele argumenta que é preciso entender o que vem a ser o diagnóstico do desenvolvimento, como é possível fazê-lo e, para além do diagnóstico, pensar sobre o prognóstico, ou seja, sobre as possibilidades desenvolvimentais. Para Vigotski, é preciso compreender a essência dos sintomas, as relações dinâmico-causais: A clínica deve
[...] passar do estudo dos sintomas ao estudo dos processos de desenvolvimento que se manifestam nesses sintomas, e não existe nenhum fundamento para supor que os processos de desenvolvimento da criança normal e da criança anormal e os mecanismos da formação do transtorno de conduta não possam ser distinguidos do mesmo modo que a clínica usou para diferenciar as enfermidades psíquicas. ( Vygotski, 1997 , pp. 284-285, tradução nossa)5
Vigotski (1997) recorre aos estudos de psiquiatria de sua época, especialmente acerca das psicopatologias da criança, que, segundo ele, também necessitavam abandonar um olhar estritamente sintomatológico. Toma como exemplo a pesquisa intitulada “Sobre o problema da estrutura e da dinâmica das psicopatias constitucionais infantis”6 , da psiquiatra russa Grunya Yefimovna Sujareva, que se propõe a analisar a dinâmica das psicopatias infantis em detrimento de uma análise unicamente classificatória.
Vigotski encontra muitas semelhanças entre este estudo e suas próprias investigações acerca da complexa dinâmica do desenvolvimento da criança com deficiência. Da mesma forma que na pesquisa de Sujareva, Vigotski (1997) constata que os sintomas são muito mais reflexos de condições externas – meio, educação, situações reais da vida. Assim, ele se apoia em Sujareva para argumentar que o objetivo fundamental da análise está em separar os sintomas fundamentais primários das consequências secundárias.
Entendemos a partir de Vigotski (1997), que os sintomas primários são consequência direta das regularidades biológicas, enquanto as consequências secundárias dizem respeito ao modo como a deficiência é compreendida no âmbito social. Ele atesta que é importante, para além da deficiência, conhecer a criança e o lugar que essa deficiência ocupa em sua vida e constituição psíquica.
No caso de pessoas com psicopatias ou deficiência mental, o desenvolvimento “não constitui um desdobramento passivo de particularidades definidas desde o início, mas um desenvolvimento no legítimo sentido da palavra, ou seja, inclui em si uma série de novas formações.”7 ( Vygotski, 1997 , p. 307).
O autor entende que os fatores sociais e culturais atuam também no desenvolvimento das crianças denominadas por ele como ‘difíceis’. As novas formações se originam da dinâmica da vida social da criança e constituem sua personalidade. Em outras palavras, a constituição da criança é afetada pelo sentido que o outro atribui a seus gestos, ações, palavras. Ou seja, a singularidade humana diz respeito a um processo de significação. Baseadas na pesquisa de Sujareva (1930, apud Vigotski, 1997), a descrição, análise e síntese propostas pelo autor a respeito do desenvolvimento da personalidade da criança difícil consideram este processo de inserção da criança nas práticas sociais de sua cultura. Vigotski (1997) salienta as particularidades e a relação entre os fatores externos (exógenos) e internos (endógenos), e pontua que tanto o ‘atraso mental’ quanto a personalidade esquizofrênica são expressos na complexidade da dinâmica do desenvolvimento da criança.
Na contemporaneidade, as discussões em torno do diagnóstico de autismo têm demandado profundo trabalho de compreensão por parte dos pesquisadores que se embasam no referencial vigotskiano acerca de como o social incide na constituição da singularidade do sujeito nessa condição. Por isso, faz-se necessário o entendimento de estudos de Vigotski, com vistas a captar a abordagem vigotskiana nesse sentido. Tal movimento viabiliza a reflexão acerca do diagnóstico do autismo e sua incidência em práticas sociais.
Todavia, o referencial histórico-cultural possibilita compreender que a fala de uma criança com autismo tem sentido, significado, é mediada pelo outro e lhe permite participar de práticas sociais, como as vivenciadas na escola. Esse olhar para a fala da criança denota ‘possibilidades’, porque torna viável a compreensão do ser humano como fruto de um processo de desenvolvimento social.
Ao considerar o papel do social e da cultura na constituição da pessoa com deficiência, Vigotski (2009) se contrapõe ao olhar psicológico hegemônico que resume a comunicação a signo, palavra e som. A palavra, entendida como fragmento da comunicação, representa um aspecto externalizado da linguagem. Porém, a partir da exploração científica, “verificou-se que a comunicação sem signos é tão impossível quanto sem significado” ( Vigotski, 2009 , p. 12). Ou seja, em práticas escolares, o olhar vigotskiano para o papel do social e da linguagem no desenvolvimento da pessoa com deficiência tem contribuído para uma perspectiva de trabalho com foco nas possibilidades de desenvolvimento.
Contextualização do estudo: Miguel e suas relações dramáticas
Não é possível entender o desenvolvimento escolar de Miguel sem antes conhecer os caminhos que estão constituindo sua singularidade. Neste estudo, analisam-se excertos de uma entrevista realizada pelo pesquisador com a mãe da criança. Também são investigados trechos das notas de campo do pesquisador, que permitem identificar aspectos das relações de Miguel com seus colegas e a estagiária que o acompanhava em sala de aula. Nas análises, em consonância com a abordagem microgenética, buscam-se os indícios de como a palavra do outro reverbera na singularidade do aluno.
A entrevista entre o pesquisador e a mãe aconteceu após a reunião de pais do quarto bimestre escolar. O pesquisador explica a ela que sua fala será gravada; ela autoriza. Ele pede à mãe que diga o que ela gostaria de contar sobre a vida de seu filho.
Ela inicia o relato contando que Miguel é filho de caminhoneiro e que, nos primeiros dos vinte anos de casada, não podia “tipo assim, ter filho”. Menciona que durante dez anos tentou engravidar, fez tratamentos, mas sem sucesso porque o problema estava no pai. Com o tempo, resolveu “deixar de mão” e continuar sua vida, suas dietas – que eram “meio doidas” – ficava longos períodos sem comer; a última foi uma dieta líquida (durante 3 meses ingeriu apenas sopa e salada), o que a levou a passar mal. No hospital, descobriu que estava grávida de Miguel.
A gestação transcorreu conforme esperado, o bebê nasceu por cesariana, com 5,1Kg. Ele foi o primeiro filho. Por isso, tudo parecia “normal”, mas, por volta dos dois anos e por motivo de trabalho, ela precisou colocá-lo na creche. Foi quando uma educadora perguntou se a mãe via alguma diferença entre Miguel e outras crianças.
T. 1: Mãe: eu disse que não. Aí ela disse que ele gesticulava muito, abanava muito a mão, gostava muito de coisas que roda, do ventilador, coisa de roda... e ele gritava muito, e, com 1 ano 8 meses ele não falava, usava fralda... aí ela falou, no caso, eu acho que ela até já sabia, mas não quis falar para não dar aquele impacto. Aí ela falou, “então, mãe, vou encaminhá-lo para a APAE, para ele ter uma análise, para ver né”. Mas eu acho que nisso, ela já conhecia os sintomas de um autista, e eu não, no caso. Com 1 ano e 8 meses Miguel foi encaminhado para a APAE, durante seis meses ficou fazendo tratamento e, após 1 ano, “bateu o laudo de que ele é autista de grau leve (SIC), e foi aí que eu descobri o autismo dele”.
T. 2: Pesquisador: mãe, como foi esse processo?
T. 3: Mãe: eu fiquei “chocada” pois já via o Miguel antes dele nascer, eu sonhava com ele, do jeito que ele é! Deus mostrou como ele ia ser. Então pra mim, é coisa de crença, entendeu?! O espectro autista, o que ele é? Espectro: algo identificado que ninguém sabe de onde saiu que age na mente, entendeu? Aí já entra a religião, que cada um tem a sua e isso não se discute, então pra mim é normal, só que para a sociedade, não. A gente conversa com a psicóloga dele na APAE, e ela pergunta o que eu acho do Miguel, eu acho que ele é do jeito que Deus quer que ele seja, nenhum tratamento vai melhorar o jeito dele ou pior, eu acho que ele é exatamente do jeito que Deus quer, e se algum dia, Deus quiser, ele vai libertar ele, se não, se for para ele ser assim, ele vai ser.
A mãe afirma não ter problemas quanto ao diagnóstico, mas que o esposo trata Miguel diferente por causa do seu jeito. Ela diz que o pai o trata como se ele fosse normal, coloca de castigo e dá uns tapas quando precisa porque, para ele, Miguel é normal. Ao comentar sobre os modos do pai, ela relata o que explicou para o marido a respeito da condição do filho:
T. 4: Mãe: porque se você pegar uma criança sã, desde quando ela nasceu, e você a trata como doente, como retardada, ela vai ser retardada, mesmo ela sendo sã, porque você trata ela como retardada, e quando ela crescer, vai ser retardada. Nisso, eu falei para o meu esposo tratar ele normalmente. Após muita discussão, as coisas foram se acertando.
Esse ‘acertar as coisas’ não foi suficiente para que ela pudesse projetar ou ter expectativas para o futuro da criança, embora considere que há um fluxo de aprendizagem para a vida e para tudo.
T. 5: Mãe: o que eu simplesmente faço, quando a professora manda os deveres, não tem moleza, se fez errado, apaga mil vezes e vai fazer de novo. Contou errado? A gente tem uma sacola de tampinhas em casa, aí quando dá as continhas, ele começa a contar, contou errado? Conta de novo, contou errado? Conta de novo. Conta mil vezes até fazer, está entendendo? Porque eu conheço o Miguel, e tem vezes que ele sabe fazer, mas ele é muito desligado, tipo assim, no mundo da lua, ele sabe a resposta, mas é desligado e faz errado, ou então, quer terminar rápido para fazer outra coisa, aí é onde eu pego no pé dele [...] a vida tem seu percurso, mas assim, eu acompanho a escola. Se tem dever eu o deixo fazer do jeito dele, comendo palavra, comendo letra, mas eu o deixo fazer, depois eu apago e corrijo, sabe?! (Registro audiogravado, 17 de outubro de 2019)
Em seu relato, a mãe diz muitas coisas sobre a constituição social de seu filho, mesmo sem conhecer o posicionamento do referencial vigotskiano. Dessa situação, apreendem-se os indícios da singularidade de Miguel, sem deixar de ouvir os ecos estruturantes que carrega o termo ‘autismo’. A professora da creche, comentando com a mãe sobre os comportamentos do aluno, elenca alguns descritores conforme sua concepção de desenvolvimento humano: “gesticulava muito”, “abanava muito a mão”, “gostava muito de coisas que roda”, “do ventilador”, “gritava muito”. As palavras da mãe e da professora da creche sobre Miguel ajudam a entender quais outros o constituem, mas esse aspecto não é suficiente para compreender suas relações dramáticas. Outra ocorrência em sala de aula compõe a imagem de quem são os interlocutores de Miguel, sobretudo em práticas escolares. Como relata o professor-pesquisador,
[...] estávamos na aula de matemática (27 de março de 2019), realizando operações matemáticas (adição e subtração) com dois números (exemplo: 22+12). Tínhamos (eu e a professora) colocado os alunos em grupos de quatro crianças, dois que já tinham apreendido o conceito aritmético e dois que ainda não, de modo que pudessem se ajudar e durante a realização da tarefa passamos pelos grupos explicando, caso alguma criança tivesse dúvida. Até então, parecia tudo bem, mas observei um movimento diferente nas mesas próximas à de Miguel, um menino o imitava, batendo palmas e virando os olhos, enquanto os demais davam risada. Uma menina, que estava no grupo ao lado, explica para o colega que não podia fazer aquilo com ele, pois era uma criança com autismo. Com o passar dos dias fui observando e constatando que algumas crianças imitavam o comportamento de Miguel, ora para chamar a atenção, ora como brincadeira de mal trato. Pediam “pala a pofessola banheio”, respondiam “pesenti”, e “batiam palma, viravam a cabeça e os olhos e, se em pé, davam pulinhos e pediam para ligar o ventilador e a luz”. Se, por um lado, havia essa satirização, por outro, havia um movimento das crianças no sentido de “não pode fazer assim, ele é autista”, ou então, “professor, não pode brigar com ele, é autista”. (extraído do diário de campo do pesquisador)
Ele é autista! Essa frase foi expressa em diversas situações na escola, principalmente quando Miguel queria algo e não era atendido. Quando o aluno queria ligar o ventilador, mesmo em dias frios, ele podia porque a professora explicava que Miguel é autista. Quando se cansava de realizar a lição, podia ir para a quadra, porque, como Esther (a estagiária que o acompanhava) argumentava, ele é autista. Mas afinal, quantas coisas pode um autista em sala de aula?
Discussões
Aos olhos do outro, os comportamentos de Miguel parecem enquadrá-lo no espectro autista sobretudo em comparação com as outras crianças. Na entrevista, a mãe narra o que a professora da creche diz sobre o filho:
Aí ela disse que ele gesticulava muito, abanava muito a mão, gostava muito de coisas que roda, do ventilador, coisa de roda... e ele gritava muito, e, com 1 ano 8 meses ele não falava, usava fralda... então, mãe, vou encaminhá-lo para a APAE, para ele ter uma análise, para ver né? Mas eu acho que nisso, ela já conhecia os sintomas de um autista, e eu não, no caso.
Ao olhar para a questão da idade e sua incidência no processo de desenvolvimento de Miguel, pode-se dizer que o garoto, na ocasião da suspeita do diagnóstico, se encontrava na crise do primeiro ano de vida, para a qual Vigotski (1996) identificou três momentos críticos: o primeiro se refere à capacidade da criança se deslocar no espaço – a criança começa a andar, mas ainda o faz mal e com esforço; um segundo momento diz respeito ao desenvolvimento da linguagem, pois é quando a criança necessita da linguagem para se comunicar com o adulto, e ela ainda não tem essa capacidade desenvolvida; por fim, no terceiro momento, surgem as primeiras ações de protesto, que se manifestam com a criança gritando, se negando a fazer algo, se atirando ao solo.
Essa explicação auxilia a compreender que os comportamentos de Miguel descritos pela professora da creche podem fazer parte de sua situação social de desenvolvimento, que o coloca em posição de depender dos outros para agir. Vigotski (1996, p. 325) afirma que “nenhuma fase da infância exige tantas formas de colaboração tão elementares como o primeiro ano”8 . Será que Miguel encontrou nas relações estabelecidas na creche estas formas de colaboração? Será que seus comportamentos “autísticos” não foram se constituindo nos modos de interação? Como a professora passou a significar os modos de agir de Miguel?
Suas ações, como o interesse pelo ventilador e pelos objetos giratórios, foram significadas por um olhar patologizante. Será que, se a escola (a professora) atribuísse outros sentidos a essas ações, seus comportamentos “atípicos” não seriam transformados ou ganhariam novos sentidos? Comumente, os estudos tradicionais focalizam essas características e tipificam o sujeito em detrimento delas. Vigotski (2003) não desconsiderou as questões biológicas/orgânicas em seus estudos (consequências primárias). Todavia, ele estava preocupado com as consequências secundárias, inerentes ao modo como a deficiência é compreendida pelo grupo social. Para o autor, são as consequências secundárias que impactam na constituição psíquica da criança.
Amplificando essa discussão a respeito da patologização da pessoa com autismo, Laplane (2018 , p. 111) reflete sobre as “formas de participação de crianças com transtorno do espectro do autismo na escola”. Em diálogos com atores escolares, a autora recolheu uma série de relatos que valorizam as habilidades da criança no processo de apreensão de novos conhecimentos. Elucida, ainda, que é preciso organizar o coletivo pensando na flexibilização da atividade, mantendo sempre que possível a perspectiva de retomada em outro momento. Com isso, a expectativa é de que as crianças se sintam convidadas a participar da dinâmica da sala de aula. Compreende-se, portanto, a necessidade de investigar os comportamentos do aluno e não pressupor que a causa do atraso pedagógico é o autismo.
Em sequência da entrevista com a mãe, ela menciona que o divino entra naquilo que não pode ser explicado; talvez ela não soubesse, mas há estudos focalizando o autismo que datam de 1900. Esse pode ser um indício de que as pesquisas com pessoas com autismo precisam alcançar outros espaços, sair do meio acadêmico e ser disseminadas em linguagem compreensível para a sociedade.
A mãe também afirma que a criança é “exatamente do jeito que Deus quer”. Menciona que o filho, para ela, é “normal, só que para a sociedade não”. Mesmo assim, “se algum dia Deus quiser, ele vai libertar ele, se não, se for para ele ser assim, ele vai ser”. A mãe observa que a sociedade não vê Miguel como normal. Ainda assim, ela mesma retoma a ideia de “libertação divina”, como se o corpo do filho estivesse sendo castigado, em uma prisão.
Nessa situação dialética, há o conflito entre o sagrado e o profano, entre a religião e a ciência, uma contradição que, estruturalmente, constituiu o olhar para a pessoa com deficiência. Antes da ascensão do Cristianismo, bebês com deficiência eram mortos. Após o século IV, essa prática foi condenada, com os cristãos saindo em defesa da vida. Mesmo com a ideia de que “todos” são filhos de Deus e possuidores de alma, as pessoas com deficiência eram dignas de caridade, ou mesmo concebidas como loucas, possuídas e merecedoras de punição, sendo a principal o banimento do meio social ( Walber & Silva, 2006 ).
É notório que há uma dicotomia na compreensão do divino e da ciência. Esse pensamento, a ser superado na contemporaneidade, desconsidera a completude do homem e causa muitos conflitos, sobretudo, no que diz respeito à escolarização de pessoas com deficiência, como é o caso de Miguel.
Ainda assim, há uma contradição: se existem os embates entre o profano e o divino, o normal e o anormal, autista ou não autista, há uma mãe preocupada com a aprendizagem escolar de seu filho. Ela diz que “não tem moleza” quando a professora manda o dever de casa; “se faz errado, apaga mil vezes e vai fazer de novo”. Essa fala reitera o que ela disse sobre enxergar Miguel como os demais; mas, ao descrevê-lo, ela reafirma inúmeras características que o colocam em lugar inferior: “ele é muito desligado”, “no mundo da lua”, “sabe, mas faz errado”, “quer terminar rápido para fazer outra coisa”. Ela ainda explica o modo como medeia na lição de casa “eu o deixo fazer do jeito dele, comendo palavra, comendo letra, mas eu deixo fazer, depois eu apago e corrijo, sabe?!”. Refazer a lição, conforme narrado pela mãe de Miguel dá indícios de que, por mais que ela enxergue os traços de autismo no filho, eles não definem seu olhar para o garoto.
Oliveira e Victor (2018) , pautadas na matriz vigotskiana, não se prendem a tais descritores, e apresentam um estudo de caso no qual analisam os modos de interação estabelecidos entre uma criança com autismo e os adultos no contexto de uma brinquedoteca. Ao trazerem o exemplo de Murilo, notam a interação entre ele e a pesquisadora no compartilhamento de uma atividade lúdica; durante a brincadeira, o garoto mostra contentamento. Deste estudo, as autoras demarcam a necessidade de olhar para a criança com autismo como pessoa, que se posiciona de forma ativa, porque, assim como todas as pessoas, ela também se constitui na relação com o outro, pela linguagem.
Apreende-se das palavras da mãe que Miguel vai sendo desenhado pelas palavras do outro. Antes do nascimento; o sonho com o filho com autismo; depois, aos 2 anos, as palavras da professora que o marcam como atípico. A história de Miguel remete à construção da singularidade e ao modo como ele é afetado pelas palavras dos outros nas relações sociais.
É como no exemplo do gesto de apontar discutido por Vigotski (1995) , quando argumenta sobre o processo de significação. Primeiro o outro atribui sentido ao gesto da criança; depois, a criança toma este sentido para si. Primeiro o outro (a mãe, a professora) atribui sentido aos gestos de Miguel – ele é autista; depois, Miguel toma para si estes sentidos e atua nas relações sociais como uma criança com autismo. Sobre a significação, Vigotski (2000 , p. 31) comenta:
a pessoa de fora cria ligações, dirige o cérebro e através do cérebro, o corpo. Relação interna das funções e as camadas do cérebro, como princípio regulador básico na atividade nervosa, substitui-se pelas relações sociais fora da pessoa e na pessoa (domínio da conduta do outro), como um princípio regulador novo.
Pino (1993) sustenta que a significação afeta a constituição do sujeito. Ao nascer, a criança adentra um mundo cultural em constantes transformações. Nas relações que a criança estabelece com este mundo, as significações formam e guiam seu desenvolvimento, que acontece de modo dinâmico. Quando uma criança toma para si o significado socialmente definido de uma palavra, ela reelabora seu modo de olhar para o mundo e para as situações que a tocam. É na relação de significação com o mundo que acontece a (trans)formação do que parecia ser algo natural (aprender a falar, ler, escrever). Para Pino (1993 , p. 22), a “significação altera os modos de atividade e cognição da criança”.
O conceito de significação viabiliza a compreensão de características tidas como sendo da pessoa com autismo, mas que são estabelecidas na trama dialógica com o outro. Por exemplo, o aparente isolamento pode ser um momento de fuga de algo que está sendo incômodo para uma criança que recebe o diagnóstico de autismo, e não que ela, de fato, não consiga ficar no mesmo espaço que os demais.
Isso esclarece que as manifestações comuns do autismo se fazem em uma teia de relações. Primeiro acontecem no contexto social, depois para o sujeito. O homem, que se criou à medida que transformava a natureza ( Engels, 2020 ), é o mesmo homem social de Vigotski (2000) , implicado em se criar por meio da palavra do outro.
As características que tornam os sujeitos singulares podem ser vistas por meio do corpo e da identidade que o compõem. O corpo humano desvela gostos, grupos, e parece ser uma tela a qual cada um pinta conforme sua vontade. Nesse caso, nos parece que Miguel é uma tela pintada no início de sua vida escolar pelas cores do autismo. Seus gestos não são expressão de suas vontades, de seus desejos; seus movimentos são expressão de características inerentes ao diagnóstico clínico de autismo.
É certo que a visão patologizante tem presença marcante no campo científico, como afirma Vigotski (1997), mas ao extrapolar essa visão, viabiliza-se outro modo de constituição dos sujeitos. Baseados no referencial vigotskiano, Silva M. e Silva D. (2017) pontuam que é possível redimensionar o déficit primário pelo modo como a criança seja compreendida no contexto social, pois uma das crianças investigadas pelos autores entra na brincadeira e, com a ajuda de um amigo, sua brincadeira se desenvolve. Além disso, sinalizam para a necessidade de caminhos alternativos e outros recursos que permitam aos alunos com espectro do autismo se apropriarem do conhecimento cultural. Ou seja, preconiza-se a criação de práticas sociais que tensionem os limitadores presentes na própria terminologia de ‘autismo’.
No entanto, apreende-se dos excertos analisados que os modos de apropriação do gênero humano por Miguel vão sendo ditados na medida em que, em seu contexto social de desenvolvimento, as vivências vão sendo conduzidas por um tipo humano patológico. Em sua situação familiar, afirmam que ele é autista: nos primeiros anos do ensino escolar, vêm as palavras da professora que nota suas diferenças como algo desviante, carente de um olhar clínico-terapêutico e, na sala de aula, seus colegas satirizando seus gestos.
Assim, quais oportunidades a criança tem em seu meio social para se isolar da tipificação de autista? Miguel vai se mostrando autista porque o meio o caracteriza assim, como um personagem. É o drama do desenvolvimento em curso. O sujeito não se constitui como cópia e reprodução daquilo que é social, e sim nos sentidos que constrói e na significação das transformações que ocorrem no psiquismo humano. Se é a partir do outro que Miguel se constitui, é a partir da crença em seu autismo que ele vai se tornando parte do espectro, sem possibilidade de ser outro, se não autista. A mãe reitera essa passagem em sua fala, quando afirma que “[...] se você pegar uma criança sã desde quando ela nasceu, e você a trata como doente, como retardada, ela vai ser retardada, [...] e quando ela crescer, vai ser retardada [...]” e, corrobora o argumento de Vigotski (2000 , p. 38), “não é a loucura que diferencia o doente mental de nós, mas o fato de ele acreditar neste delírio, obedecer, enquanto nós não”.
A ótica do autor denota que a linguagem é fundamental no desenvolvimento do ser humano; assim, a singularidade de Miguel está sendo construída por discursos estruturais que tipificam as pessoas com autismo: dizem que ele é autista, e ele, mesmo sem saber, vai se tornando cada vez mais autista.
Em seu processo de desenvolvimento, as condições que podem ser oferecidas (ou não) no meio são, para Miguel, assim como são para todas as crianças, a gênese das formas culturais de apropriação do gênero humano. Se o meio é fragilizado, explica Vigotski (2018) , a criança carregará essa marca em sua constituição. O problema no contexto brasileiro é a carência de se olhar para a pessoa com autismo em sua singularidade, sobretudo, dos sentidos outros que podem ser atribuídos às novas vivências da criança. Se por um lado, o meio fragilizado deixa marca nos modos de apropriação da criança, o meio pode nutrir o desenvolvimento e suprir déficits do percurso.
Considerações
Neste artigo objetivou-se compreender como o diagnóstico do desenvolvimento infantil é tratado por Lev Vigotski em seus estudos sobre a deficiência, e a partir daí refletir sobre como o diagnóstico de autismo tem sido produzido historicamente e os impactos disso na constituição da subjetividade da criança que o recebe. Ao focalizar o objetivo proposto, mirou-se nos diálogos que Vigotski teceu com a psiquiatra Sujareva. Desta leitura, apreende-se que o autor dá um passo além da ciência fisiológica quando menciona que os fatores externos, de ordem social e cultural, afetam o modo como o sujeito se apropria do gênero humano. Neste processo de apropriação, há, também, um processo de conscientização em curso, como fruto da participação com o outro em práticas sociais e na atuação no mundo.
Dos tensionamentos aqui realizados, ocorridos a partir de um contexto de participação de uma criança com autismo em práticas sociais, afirma-se a urgência de que os atores escolares e toda a sociedade não se restrinjam ao diagnóstico clínico. É primordial olhar para a pessoa com autismo considerando sua história e suas possibilidades de desenvolvimento.
Ainda que os alunos com autismo estejam amparados pelas políticas da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, é importante a mobilização dos educadores para viabilizar práticas sociais que compreendam, sobretudo no contexto escolar, os alunos em suas singularidades.