A professora e pesquisadora Anna Maria Lunardi Padilha é graduada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1974), tem mestrado em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1994) e doutorado em Educação, na linha de pesquisa Conhecimento Linguagem e Arte pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Foi professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba até 2017. Atua como pesquisadora dos seguintes grupos: Grupo de Pesquisas em Educação Especial no Sistema Comum de Ensino, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Grupo de estudo, pesquisa e intervenção em leitura, escrita e literatura na escola na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e no Projeto SaúdeAntar no Instituto de Pesquisas Heloísa Marinho/RJ (IPHEM).
Membro do Grupo de Estudos Brasileiros em Defectologia e Psicopatologia na Teoria Histórico-Cultural - GT, na Universidade de Brasília (UNB). Experiência na área de Educação, com ênfase em Desenvolvimento Humano e a Escola de Vigotski, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de Professores, Educação Especial na Perspectiva da Inclusão; Pedagogia Histórico-Crítica; Educação em Saúde, Educação Infantil, Práticas Educativas Escolares e não Escolares, Processos de Ensino e Aprendizado. Autora e organizadora de livros. Autora de Capítulos de livro e Artigos em Periódicos.
Anna Padilha é uma das pioneiras no adensamento de temáticas abordadas por Vigotski sobre a deficiência, como, por exemplo, seu estudo sobre a constituição do sujeito simbólico, comprometido pela deficiência mental, que desvela as possibilidades desse sujeito em atribuir sentido ao mundo ao seu redor. Além disso, vale salientar a relevância de seu nome para a compreensão dos desafios da educação especial numa perspectiva inclusiva.
Anna, gostaríamos de conhecer a sua trajetória profissional e acadêmica. Poderia nos contar um pouco da sua biografia?
Anna Maria Lunardi Padilha: Ao finalizar o curso Normal, em 1963, às vésperas do golpe que instalou a ditatura civil-militar no Brasil, já como militante e membro da JEC (Juventude Estudantil Católica), dediquei-me à formação política de jovens estudantes. Isso tem ligação com a escolha que fiz, mais tarde, cursando Pedagogia na PUC-Campinas e trabalhando no campo da Educação.
Por 30 anos, dediquei-me ao acompanhamento e orientação pedagógica de crianças e adolescentes com problemas escolares, vítimas do fracasso escolar e/ou com deficiência intelectual. Fui coordenadora pedagógica da Educação Infantil ao Ensino Médio e professora formadora de professores no CEFAM (Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério, em Campinas). Alfabetizei adultos, marinheiros no Rio Paraná, em projetos ligados a Paulo Freire e participei da formação de professores leigos e indígenas na região do Médio Araguaia, no estado de Mato Grosso.
Entre os anos de 1993 e 2000, o foco foi os estudos e pesquisas acadêmicas – mestrado e doutorado – na Universidade de Campinas (Unicamp), onde conheci Lev Vigotski, a Psicologia soviética e o filósofo russo Mikhail Bakhtin. Ter sido orientada pela professora Maria Cecília Rafael de Góes, por Angel Pino e receber, também, orientações e possibilidades de experiências clínicas no Centro de Convivência de Afásicos, na Unicamp, com a professora Maria Irma Coudry, foram vivências decisivas na compreensão do desenvolvimento humano na Teoria Histórico-Cultural.
De 2002 a 2017, fui docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Escrevi alguns livros, vários artigos e capítulos de livros, a maior parte deles no campo da pesquisa e das práticas pedagógicas para crianças e adolescentes da escola pública, com deficiência, na perspectiva da inclusão social e escolar das crianças e jovens deficientes.
A partir de 2018, passei a fazer parte do Instituto de Pesquisas Heloísa Marinho, no Rio de Janeiro, trabalhando junto ao Prof. Dr. Jairo Werner no Setor de Psiquiatria da Infância, Juventude e Família, na Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Ministrar cursos, participar da formação de professores da escola pública em diversos municípios, orientar estudos sobre a obra de Lev Vigotski e a Defectologia, bem como escrever textos acadêmicos, têm sido, ainda hoje, trabalhos aos quais me dedico.
Anna, quais vivências você considera como um marco na trajetória profissional que a aproxima da produção científica na interface entre desenvolvimento, saúde e educação e quais inquietações essas vivências trouxeram? Por quê?
AMLP: Saúde e Educação são campos do conhecimento que fizeram parte de meus estudos e meu trabalho desde muito tempo. Primeiro, nos muitos anos em que trabalhei atuando com crianças e adolescentes vítimas do fracasso escolar e/ou com deficiências e outras patologias consideradas da área das doenças mentais, no sentido de promover o desenvolvimento das funções psíquicas culturais. Foi quando pude desenvolver estudos sobre avaliação, ensino e fracasso escolar, na interface entre saúde e educação.
Em seguida, a pesquisa e estudos sobre a deficiência intelectual considerada grave. “O caso da Bianca”, como ficou conhecida a pesquisa desenvolvida entre os anos 1996 e 2000 e depois publicada1 , com o incentivo da professora Gilberta Jannuzzi - marco importante da Educação Especial no Brasil – foi uma das vivências muito significativas na minha trajetória acadêmica e profissional na interface entre desenvolvimento, saúde e educação. E por último, não menos importante, o trabalho junto ao prof. Dr. Jairo Werner, como mencionado na questão anterior.
Identifico quatro grupos de inquietações advindas dessas vivências, articulados entre si, que me acompanharam e me acompanham até hoje e podem ser assim resumidos:
a) o desejo da superação da sociedade capitalista e da construção de uma nova sociedade que constituirá um novo homem, tal como desejava Vigotski. Disse ele que “junto com a liberação dos muitos milhões de seres humanos da opressão, virá a libertação da personalidade humana das correntes que restringem seu desenvolvimento” (Vigotski, 1930/2004). Tal inquietação supõe um movimento dialético, ininterrupto de formação da consciência e a educação desempenha um papel central na formação das novas gerações, superando a divisão entre trabalho físico e intelectual;
b) o respeito e a luta pelo direito à escolarização de qualidade socialmente referenciada de todas as pessoas, principalmente as mais empobrecidas e invisibilizadas. Para isso, um enorme desafio: se é violência deixar crianças e jovens sem comida, sem cuidado, sem moradia e sem escola, é, igualmente violência, deixá-los na escola, sem aprender;
c) uma profunda inquietação com a chamada perspectiva inclusiva da educação escolar. Perspectiva essa, ainda, em construção desde o século passado e com um caminho longo e difícil pela frente, com embates, avanços e recuos significativos porque vivemos em uma sociedade dividida em classes antagônicas e em luta. As políticas públicas, as concepções e as práticas educativas hegemônicas têm se configurado graves limitações ao desenvolvimento humano, tanto em relação aos estudos e às pesquisas quanto em relação à objetivação da inclusão social e escolar das pessoas com deficiência e;
d) as possibilidades de compor a Teoria Histórico-Cultural e a Pedagogia Histórico-Crítica, ambas construções coletivas cuja matriz é o Materialismo Histórico e Dialético de Karl Marx e Friedrich Engels.
Como ocorreu a sua aproximação com os estudos de Vigotski, em especial com a Defectologia, e qual foi a grande contribuição deste autor no âmbito do seu trabalho, considerando a pesquisa, ensino e a extensão?
AMLP: A aproximação com os estudos de Lev Vigotski e sua escola e, em especial, com a Defectologia, aconteceu na entrada no Mestrado no início da década de 1990, com minha participação no Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem (GPPL - Unicamp) que se fundamenta, desde sua formação, nos pressupostos teóricos da perspectiva Histórico-Cultural em Psicologia, tendo como um dos principais autores de referência Lev Semionovitch Vigotski. Os escritos deste autor e de dois de seus companheiros Alexander Luria e Alexis Leontiev, além de outros seguidores dessa teoria, começaram e fazer parte de minhas leituras, estudos e pesquisas, tanto individuais quanto coletivas. Como o objeto de minhas pesquisas foi (e ainda é) o desenvolvimento das funções psíquicas superiores/culturais das pessoas com atraso no desenvolvimento e/ou com deficiência intelectual, além de outros problemas referentes à saúde mental, era coerente e necessário estudar a Defectologia de Lev Vigotski.
Outro fato relevante – que contribuiu e ainda contribui para a minha aproximação com os estudos defectológicos –, foi ter conhecido e poder acompanhar o trabalho na Psiquiatria da Infância e Adolescência que desenvolve o psiquiatra professor Dr. Jairo Werner Jr., bem como conhecer e acompanhar o trabalho desenvolvido no Centro de Convivência de Afásicos (CCA), no Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) na Unicamp.
Encontrei na obra de Lev Vigotski a resposta para muitas de minhas dúvidas a respeito do desenvolvimento humano nas mais diferentes condições de vida e, especificamente, do desenvolvimento das pessoas com deficiência. Este autor, ancorado no aporte filosófico materialista histórico e dialético, evidenciou a natureza cultural do humano e, dessa forma, o desenvolvimento do psiquismo como produto da apropriação de signos culturais.
A vida profissional e as pesquisas demandaram/demandam reflexões e buscas por melhor compreensão do funcionamento do sistema psíquico e do papel da educação. As respostas, no entanto, vieram acompanhadas de mais interrogações e dificuldades diante dos problemas humanos, que enfrentamos para a inclusão social e escolar. Quanto mais estudo a obra de Vigotski, mais me encontro diante de desafios teóricos e práticos e mais sinto necessidade de estudar. Os estudos que empreendi para a construção da dissertação e da tese foram marcos fundantes para o caminho que passei a seguir na luta pelo desenvolvimento psíquico das crianças e adolescentes com deficiência, dedicando-me mais profundamente à deficiência intelectual e aos estudos da Defectologia. Na pesquisa, os fundamentos do desenvolvimento humano e os estudos de caso; no ensino, a formação de novos pesquisadores e educadores; e na extensão, colaborando com a formação teórica e com a resolução de problemas concretos do Atendimento Educacional Especializado (AEE) de escolas estaduais e municipais.
Do ponto de vista conceitual qual é a principal elaboração teórica de Vigotski que mais impactou a sua forma de compreender o desenvolvimento humano?
AMLP: Esta questão é desafiadora. Para respondê-la, seria necessário desenvolver uma síntese do fio condutor da obra de Lev Vigotski e de seus desdobramentos teóricos e práticos, o que não seria possível nesta entrevista. Sua Teoria Histórico-Cultural mudou radicalmente minha concepção de desenvolvimento humano e de educação, mas, ao mesmo tempo, respondia aos meus desejos de transformação social e me forneceu/fornece fundamentos epistemológicos mais coerentes.
Este autor russo foi elaborando e reelaborando sua teoria nos curtos anos de vida que teve, sem perder os fundamentos de sua posição diante do mundo e do humano do homem. Fez parte da construção de um projeto soviético de uma nova sociedade com vistas à formação de um novo homem socialista. Como escreveu certa vez Zoia Prestes (estudiosa e tradutora de obras de Vigotski), “muito do que ele disse ainda não foi compreendido e muito do que escreveu ainda não foi divulgado.” (Prestes, 2012, p. 57).
Vigotski foi um pensador revolucionário de sua época e, penso, da nossa época também, ultrapassando os limites de uma psicologia subjetivista, inatista e fragmentada. De sua Lei Geral do Desenvolvimento Humano, os outros conceitos podem ser depreendidos, compreendidos e relacionados entre si: nós nos tornamos nós mesmos através dos outros; todas as funções propriamente humanas foram, antes, relações de colaboração entre pessoas.
O acesso às ferramentas culturais, e a unidade pensamento e fala, segue do plano social para o individual, em uma relação dialética entre natureza e cultura, indivíduo e sociedade, desenvolvimento e ensino, normal e patológico. Desenvolvimento é processo extremamente complexo e ininterrupto de surgimento do novo por meio de saltos qualitativos. Seus estudos e ensinamentos sobre a deficiência não estão restritos aos textos sobre Defectologia (estudo das deficiências) justamente devido à concepção de desenvolvimento que ele desenvolve. No entanto, a concepção – que inverte a lógica da psicologia de modo geral – de que é importante estudar o comportamento atípico para compreender os processos comuns ou típicos é uma novidade epistemológica, uma revolução conceitual que me moveu/move em direção aos estudos sobre educação e saúde.
Para tanto, a partir de estudos de outros autores, Vigotski desenvolve conceitos que foram decisivos para a minha compreensão do desenvolvimento cultural de pessoas com graves comprometimentos afetivo-cognitivos: a teoria do sistema funcional e o conceito de compensação social. Eis a articulação conceitual que teve importante impacto na minha forma de compreender o desenvolvimento humano, se bem que, apropriar-me desses conhecimentos como fundamentos da prática, supõe (e exige) outros estudos, tanto da obra de Vigotski quanto dos seus seguidores.
Considerando os 100 anos dos primeiros textos de Vigotski sobre a deficiência, qual é a atualidade e pertinência dessa obra?
AMLP: Passa um século e ainda não foi suficiente para que pudéssemos nos apropriar das propostas de Vigotski sobre o processo humanizador. Um século depois, nos deparamos com pensamentos hegemônicos não só diferentes como opostos aos de Lev Vigotski, dificultando a socialização de seus ensinamentos. Justamente porque carecemos de profundos conhecimentos sobre o desenvolvimento humano na perspectiva materialista e dialética e nos faz tanta falta reconhecer as possibilidades de superação da visão biologizante de saúde e de educação, é que a obra de Vigotski é tão promissora e pertinente.
As ideias deste autor e de seus discípulos começaram a ser conhecidas no Brasil entre os anos 1970 e 1980 e sofreram deformações por causa de omissões e traduções equivocadas e, também, devido ao fato de Vigotski propor uma nova sociedade – socialista – que constituísse pessoas também socialistas. Isso significa que ser coerente com a teoria Histórico-Cultural de Lev Vigotski e seus companheiros e seguidores exige de nós a tomada de posições políticas diante da chamada história da educação especial no Brasil. Mas não só isso!
A proposta de Vigotski de uma escola que desse conta de, nela, estarem aprendendo crianças e jovens deficientes, colide com os modos como estão organizadas as políticas e as práticas da inclusão social, cultural e escolar, no Brasil.
Sabe-se que as ideias de Vigotski têm sido estudadas e compartilhadas em várias partes do mundo, mostrando-nos a pertinência de sua obra para vários países. Se nos atentarmos para o que diz Vigotski sobre a Defectologia (estudo das deficiências), sentimos que ainda estamos precisando de muito avanço nas leituras, nas pesquisas e na prática do ensino. Dando apenas um exemplo, mesmo que de modo bem resumido, que lição impressionante temos que aprender, ao ler o que ensinou Vigotski! Ele faz uma crítica à ideia interiorizada, à época dele e ainda na nossa, de que os princípios da educação e do ensino da criança normal não pudessem ser transferidos para a educação das crianças com atrasos. Chamava de ponto de vista pessimista e minimalista que resultava em pouco ensino, pouco esforço dos educadores, poucas exigências e aspirações e, com isso, a redução das possibilidades de desenvolvimento.
Este pensador, que transformou e reconstruiu a psicologia, tratou da formação da consciência e das funções psíquicas superiores/culturais; da psicologia da arte e das emoções; da relação entre pensamento e fala; da psicologia e sua relação com a pedagogia; do ensino que antecede o desenvolvimento e não o segue como uma sombra; pesquisou e escreveu sobre a elaboração conceitual e o papel da escola e, se dedicou a estudar o desenvolvimento cultural atípico das crianças defectivas: cegas, surdas, com deficiência física, com deficiência intelectual e, também, crianças difíceis.
Ensinou sobre o que vem a ser deficiência primária e secundária, alertando para as consequências sociais danosas da deficiência devido ao modo como as pessoas com deficiência são tratadas, apartadas, segregadas, humilhadas, secundarizadas ou invisibilizadas. Chamou a atenção para a negatividade de se isolar as crianças deficientes do convívio com as outras crianças não deficientes e apontou o movimento dos processos de compensação. Tudo isso com rigor metodológico e de modo muito original. Essa é a melhor prova da atualidade e pertinência de sua obra.
Pensando nas questões que envolvem as pessoas com deficiência, como você observa o avanço das ideias vigotskianas na educação e na saúde? Considerando o contexto contemporâneo no âmbito da saúde e educação, quais os principais desafios para uma efetiva difusão e apropriação dos conceitos vigotskianos?
AMLP: Não consigo responder afirmativamente como eu gostaria de fazê-lo. Ainda não vejo avanços significativos no conhecimento e compreensão dos escritos de Vigotski, dos escritos sobre ele e a partir dele, no campo da educação e da saúde e nem no campo da própria psicologia. O pensamento hegemônico oculta/distorce os pressupostos materialista e histórico, essenciais desta teoria – a Teoria Histórico-Cultural do desenvolvimento humano.
Em um processo de avanços e recuos na elaboração de políticas públicas para a educação das crianças e jovens com deficiência (a chamada educação especial e/ou inclusiva), os próprios conceitos de deficiência, de normalidade, de saúde e de doença, por exemplo, apontam para uma compreensão mecanicista e organicista de desenvolvimento humano e aprendizado. Uma confusão teórica, fruto de múltiplas determinações sociais, políticas e econômicas, toma conta da formação dos educadores e dos psicólogos e de outros profissionais da saúde, o que se pode constatar ao ler os diagnósticos e os laudos que são entregues aos educadores e por eles aceitos como sendo a voz da verdade sobre a vida das crianças e jovens deficientes e/ou com o transtorno do espectro autista.
A própria proposta de ensino escolar no Brasil, a Base Nacional Comum Curricular, contraria os princípios, estudos e pesquisas vigotskianos e perpetua as desigualdades sociais. Temos no Brasil um número escandaloso de analfabetos e jovens que não concluíram o Ensino Básico.
Evidente que há estudos, escritos e pesquisas que procuram ser fiéis aos aportes vigotskianos, aqui, no Brasil e em outros países. Há também algumas raras propostas pedagógicas que se fundamentam na Psicologia Histórico-Cultural e na Pedagogia Histórico-Crítica (elaborada por Dermeval Saviani e em construção coletiva), ambas com fundamentos teórico-metodológicos do materialismo histórico e dialético. Porém, ainda, não alcançam espaços de tomadas de decisão e por isso não transformam as instituições responsáveis pela vida das pessoas com ou sem deficiência, com ou sem problemas de saúde mental.
Vale destacar que alguns conceitos fundamentais da teoria vigotskiana, como por exemplo: o conceito de desenvolvimento iminente, do coletivo como fator do desenvolvimento das funções psíquicas superiores e da relação pensamento e fala têm interpretações equivocadas, a-históricas e sem o devido fundamento metodológico proposto pelo autor. Infelizmente, os avanços são lentos e nosso trabalho precisa ser incansável.
Um outro ponto pode ser acrescentado: o esforço coletivo por uma sociedade socialista, como Vigotski desejava, ainda assusta professores, pedagogos, psicólogos, pesquisadores e profissionais da saúde, bem como os que elaboram políticas públicas para a saúde e para a educação.
Estamos diante de desafios de várias ordens. Considero que o modo como nossa sociedade capitalista e neoliberal está configurada e como estão organizadas as nossas instituições, já são desafiantes para a compreensão de uma visão que pretende superar esse modo de vida social e econômica, com vistas a uma nova sociedade.
Quero chamar a atenção para o que penso ser o maior desafio (antes de outro, de igual importância, que é a difusão dos conceitos vigotskianos nas escolas de formação de professores, de pedagogos, de psicólogos, de especialistas em educação especial e de médicos pediatras, psiquiatras e neurologistas). Falo do que o próprio Vigotski apontou no citado texto A transformação socialista do ho mem , escrito em 1930. Ele fala, justamente, da formação da consciência de que somos seres culturais, históricos – determinados e que também determinam a vida:
Como um indivíduo só existe como um ser social, como um membro de algum grupo social em cujo contexto ele segue a estrada do desenvolvimento histórico, a composição de sua personalidade e a estrutura de seu comportamento reveste-se de um caráter dependente da evolução social cujos aspectos principais são determinados pelo grupo. [...] As várias contradições internas que são encontradas nos diferentes sistemas sociais encontram sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutura da psicologia humana naquele período histórico. (Vigotski, 1930/2004)
Os desafios vão se ramificando, a partir da premissa geral. A educação, para Vigotski, deve desempenhar o papel central na transformação das novas gerações. Educação, para ele, e para quem assume a teoria dele como fundamento das práticas, promissora e atual, é a base para a alteração do velho homem, do homem do sistema capitalista: “As novas gerações e suas novas formas de educação representam a rota principal que a história seguirá para criar o novo tipo de homem” – disse Vigotski (1930/2004). Portanto, a difusão de suas ideias depende da apropriação integral delas, sem que se fragmente de acordo com um ou outro interesse momentâneo ou pontual. A teoria de Lev Vigotski não pode ser partida ou repartida de acordo com modismos pedagógicos ou psicológicos. Para tanto, é necessário estudo e envolvimento efetivo em um movimento de transformação cultural, em meio às contradições próprias de nossa sociedade de classes antagônicas, desigual, injusta, racista e patriarcal.
Considerando seus estudos na Teoria Histórico-Cultural e os desafios contemporâneos na interface da saúde e educação, o que você diria para a nova geração de profissionais?
AMLP: À nova geração de profissionais da educação e da saúde, tenho algumas palavras de incentivo: estudar – em profundidade – a obra de Vigotski e seus discípulos, lendo-a nas melhores traduções que temos até hoje. Ler o próprio autor, de preferência, para poder fazer uma seleção crítica mais consciente de como ler seus seguidores da atualidade. Estudar para compreender amplamente seus ensinamentos e fundamentar as práticas, evitando os modismos ou as receitas milagrosas que a sociedade do consumo nos apresenta.
A psicologia concreta de Vigotski, enquanto materialista e marxista, o método de estudo coerente com o materialismo histórico e dialético que a sustenta no desenvolvimento de sua teoria e seus escritos preenchem lacunas que eu sinto em relação à unidade teoria e prática. Isso significa a necessidade de um aprofundamento teórico que possa orientar as transformações nas práticas educativas, o que deveria acontecer na formação dos profissionais da educação e da saúde.
Tais estudos, desenvolvidos em algumas universidades do Brasil, não chegam a ser hegemônicos – e talvez isso esteja longe de acontecer – devido à força dos modos de produção capitalista da existência humana, que comprometem o conjunto das relações interpessoais – aquelas que são convertidas em intrapessoais, como ensinou Vigotski, em sua lei geral do desenvolvimento. A privatização da educação no Brasil e a fetichização da tecnologia, o aumento exponencial do ensino à distância (EAD) têm dificultado a apropriação do saber pelos professores e pelas crianças e jovens da classe popular. Eis um enorme desafio!
Às novas gerações de estudantes, pesquisadores e professores, reunir-se, organizar grupos para estudar e discutir as questões que enfrentam nos seus campos de atuação, de modo a ser coerente com os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural. Saber que vivemos uma construção coletiva e histórica dessa teoria para uma construção coletiva e histórica de uma nova sociedade. Finalizo com mais uma citação de Lev Vigotski, do mesmo texto de 1930:
Porém, esta mudança do comportamento humano, esta mudança da personalidade humana, tem que conduzir, inevitavelmente, à evolução do homem para um tipo superior, para a alteração do tipo biológico humano . Tendo dominado os processos que determinam sua própria natureza, o homem que hoje está lutando contra a velhice e doenças, ascenderá, indubitavelmente, a um nível mais elevado e transformará sua própria organização biológica. Mas esta é a fonte do maior paradoxo histórico do desenvolvimento contido nesta transformação biológica do tipo humano: que ela é alcançada principalmente por meio da ciência, da educação social e da racionalização dos modos de vida. A alteração biológica do homem não representa uma condição prévia para estes fatores, mas, ao invés disso, é um resultado da liberação social do homem.