Introdução
Conforme a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, indivíduos com altas habilidades/superdotação (AH/SD) apresentam um alto potencial, que pode ser isolado ou combinado, nas áreas intelectual, acadêmica, liderança e psicomotricidade. Além disso, eles demonstram elevada criatividade, engajamento com a aprendizagem e dedicação à realização de tarefas de seu interesse (Brasil, 2008). Tais estudantes são incluídos na chamada educação especial e, por isso, têm direito a atendimento educacional especializado (Peranzoni et al., 2024).
No entanto, para que esses direitos sejam atendidos, o primeiro passo consiste na sua identificação. Tal processo deve envolver uma diversidade de ferramentas, incluindo testes psicológicos (para avaliação da inteligência, criatividade, traços de personalidade, aspectos emocionais, dentre outros construtos), análise de rendimento escolar, indicação de professores, de modo a se investigar a presença de indicadores de um potencial elevado (Sternberg, 2024). A utilização de métodos que vão além da aplicação de testes é recomendada durante o processo de identificação, de modo a incluir outros procedimentos complementares (Dal Forno et al., 2023).
Dadas as diferentes áreas em que as AH/SD podem se manifestar, o processo de identificação desses indivíduos deve considerar a multidimensionalidade do fenômeno (Nakano et al., 2016). Nessa perspectiva, é essencial considerar que as AH/SD não se resumem à presença de uma inteligência elevada obtida a partir da resposta a testes psicométricos padronizados (Costa e Silva et al., 2021; Rocha et al., 2021). Diversas pesquisas têm demonstrado a heterogeneidade de perfis (Dai, 2020), cujas características vão se manifestar de forma diferente dependendo do contexto, oportunidades, área em que o potencial elevado se manifesta, bem como a possibilidade de haver outros quadros associados. Assim, os indivíduos com AH/SD diferem não somente em relação aos que não apresentam essa condição, mas, também, entre si, no que se refere a aspectos como desenvolvimento cognitivo, psicossocial, emocional, entre outros (Akgül, 2021).
Como exemplos, podemos citar a classificação proposta por Renzulli (2012). Segundo o autor, a superdotação poderia assumir dois tipos. O primeiro, chamado de intelectual-acadêmico, caracteriza-se pelo excelente desempenho nas atividades escolares, sendo mais facilmente identificado a partir do uso de testes de inteligência (Reis & Renzulli, 2023). O segundo tipo é o produtivo-criativo, no qual se encontram presentes características como originalidade, intuição, manifestações artísticas, de modo a valorizar o desenvolvimento de ideias e produtos que causem impacto em um público-alvo (Renzulli, 2012). Este último tipo ainda é pouco identificado (Renzulli, 2016).
Além disso, é crescente o número de trabalhos que investigam a dupla-excepcionalidade, isto é, a ocorrência da alta performance, talento ou habilidade, características das AH/SD, em conjunto com transtornos do neurodesenvolvimento, sensoriais ou físicos (Pfeiffer, 2015). A combinação de potencial elevado e déficit ou transtorno faz com que tais indivíduos apresentem diferenças importantes em relação àqueles que apresentam somente um dos quadros (Josephson et al., 2018). É comum a presença de características que fogem do desenvolvimento típico e que, inclusive, podem se contradizer ou anular (Vilarinho-Rezende et al., 2016), intensificando a dificuldade da identificação correta do quadro (Costa e Silva et al., 2021).
Entretanto, a ideia de que a condição das AH/SD pode aumentar a vulnerabilidade para transtornos psiquiátricos, como depressão e ansiedade ou problemas de ajuste psicossocial, ainda é controversa (Guénolé et al., 2013; Guignard et al., 2012; Tasca et al., 2022). Ora afirma-se que o potencial elevado pode atuar como ferramenta de proteção a desajustes, ora como fator que pode ampliar suas vulnerabilidades (Matta et al., 2019).
Nesse sentido, a Avaliação Neuropsicológica (ANp) pode auxiliar na compreensão dos processos neurofuncionais, possíveis comorbidades, bem como servir como apoio para o planejamento de intervenções com foco no desenvolvimento de potencialidades, considerando os aspectos cognitivos, sociais e emocionais do indivíduo superdotado (Campos et al., 2019; Silva et al., 2016). A ANp é um procedimento sistemático e técnico para a investigação das relações entre o funcionamento cerebral e o comportamento (Lezak et al., 2004; Spreen & Strauss, 1998).
Um dos objetivos da ANp é a caracterização do diagnóstico funcional, isto é, descrever o perfil neuropsicológico identificando a presença ou ausência de disfunções cognitivas e seus níveis de impacto na vida do indivíduo, abrangendo aspectos acadêmicos, ocupacionais e psicossociais (Mäder, 1996; Spreen & Strauss, 1998). Para atingir esse objetivo, são empregados diversos métodos e técnicas, incluindo entrevistas, observações comportamentais, escalas clínicas e a administração de instrumentos (Malloy-Diniz et al., 2016).
Alguns estudos de caso de crianças com AH/SD têm sido apresentados na literatura. Martins e Chacon (2016) conduziram estudo de observação não participante de um aluno do 1º ano do ensino fundamental que apresentava características de AH/SD. A coleta de dados ocorreu durante nove semanas e seguiu um roteiro estabelecido pelos pesquisadores, assim como uma entrevista semiestruturada com os pais. Os resultados mostraram que o menino apresentava diferentes características de AH/SD, agrupadas em gerais, pensamento criativo e aprendizagem. Dentre as características descritas, destacaram-se a imaginação, criatividade, ideias originais, pensamento crítico, amplo vocabulário, boa memória e agilidade mental. No que se refere à inteligência, os autores denominaram que ele apresentava “prazer pela atividade intelectual”, uma vez que ficava entusiasmado em falar sobre os assuntos aprendidos com a leitura de textos e por meio de pesquisas, ao responder perguntas orais e ao aprender inglês. A criatividade foi observada na elaboração dos seus desenhos e na criação de um nome original para um animal por ele imaginado. O menino mantinha-se concentrado e engajado por longos períodos somente em atividades de leitura e naquelas que o desafiavam.
Campos et al. (2019) realizaram estudo de caso de avaliação e intervenção psicológica com uma menina de 11 anos. Ela sempre apresentou desempenho acadêmico acima da média e facilidade para aprender. Porém, exibia comportamento de isolamento e dificuldades no relacionamento social. A partir do 6º ano, começou a apresentar alterações comportamentais, como interrupções das explicações dos professores, atrapalhava os colegas, não terminava tarefas, se aborrecia com atividades consideradas fáceis e dificuldades para manter sua atenção. Os resultados da avaliação evidenciaram desempenho cognitivo acima da média em instrumentos de inteligência, criatividade, habilidades escolares e habilidades sociais. Escores médios foram obtidos no teste de atenção. Durante as sessões, foi possível observar algumas dificuldades nas habilidades sociais. Os resultados sugeriram perfil de AH/SD acadêmica. Posteriormente, a menina foi encaminhada para psicoterapia, com ênfase nas habilidades sociais. Durante a intervenção, também foram propostas atividades de enriquecimento e aprofundamento no contraturno escolar. O processo interventivo apresentou resultados positivos no desenvolvimento psicossocial da menina. De acordo com as autoras, a avaliação auxiliou na identificação das potencialidades da menina, assim como no direcionamento das intervenções.
Bergamin et al. (2022) conduziram um estudo de caso com um menino de 9 anos, encaminhado pela escola para o serviço de avaliação de um projeto de extensão universitária. O menino foi submetido às avaliações pedagógica, psicológica e psicomotora, utilizando diferentes métodos, como: entrevistas, observações, checklist, instrumentos psicométricos, questionário de autonomeação e nomeação por colegas. Os resultados apontaram habilidades superiores nos testes de inteligência, criatividade para a resolução de problemas e alto nível de envolvimento com as tarefas do seu interesse. Após a avaliação, o menino participou de atividades de enriquecimento intracurricular e extracurricular durante dois anos, enfatizando áreas do seu interesse. A reavaliação evidenciou avanços nos resultados encontrados inicialmente, melhora nas habilidades sociais e ampliação das áreas de interesse.
A literatura sugere a necessidade de estudos que explorem as diversas características das pessoas com AH/SD. Com isso, evidencia-se a contribuição da ANp no delineamento do perfil cognitivo e comportamental desses indivíduos, que vão além da mensuração da inteligência. Os resultados obtidos nessas avaliações são importantes para orientar intervenções em contextos clínicos e educacionais.
Diante do exposto, o objetivo do artigo é descrever e analisar os resultados da ANp de um menino com características de AH/SD em um contexto de extensão universitária, bem como discutir os aspectos relevantes obtidos a partir da avaliação.
Método
Participante
Trata-se de um estudo descritivo com delineamento de caso único. Participou um menino de 8 anos e 5 meses, doravante designado pela letra L., estudante do 3º ano do Ensino Fundamental em uma escola particular de um município no interior de São Paulo. A família procurou o Serviço Escola de Psicologia (SEP) da Universidade para reavaliação de L., uma vez que a ANp realizada anteriormente levantou a hipótese de AH/SD.
Instrumentos
Tendo em vista a demanda, a ANp foi planejada para investigar os aspectos cognitivos, afetivos e sociais de L., tanto de forma quantitativa quanto qualitativa. Para isto, foram utilizados métodos e técnicas, como: anamnese, observações clínicas, administração de testes psicológicos restritos e não restritos, análise de tarefas, observações de comportamento, tarefas lúdicas e análise de fontes secundárias de informação.
Para a investigação das funções cognitivas, foram utilizados: (I) Escala Wechsler de Inteligência para Crianças, 4ª edição (WISC-IV), utilizada para mensurar a capacidade intelectual, as habilidades de resolução de problemas, para rastreamento do funcionamento cognitivo, além de possibilitar aferir o Quociente de Inteligência (QI) (Wechsler, 2013); (II) Teste de Atenção Visual (TAVIS-4), utilizado para investigar a atenção seletiva, alternada e sustentada para materiais visuais (Mattos, 2019); (III) Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey (RAVLT), que avalia a memória episódica, fornecendo informações sobre aprendizagem auditivo-verbal, susceptibilidade a distratores e memória de curto prazo (Paula & Malloy-Diniz, 2018); (IV) Tarefas de fluência verbal para a avaliação da habilidade de produção de palavras, iniciação verbal, organização e velocidade de acesso ao léxico (Fonseca et al., 2015); (V) Exame das sincinesias, derivada do exame neurológico evolutivo (Lefèvre, 1976); (VII) Teste dos Cinco Dígitos (FDT), para avaliar funções executivas (flexibilidade e controle inibitório) (Sedó, 2015); (VII) Tarefa de Span de Blocos de Corsi, utilizada para avaliar a memória de curto prazo visuoespacial (Ordem direta) e alça visuoespacial da memória operacional (Ordem indireta) (Dias et al., 2019) e (VIII) Teste de Trilhas (Trail Making Test - A/B) que auxilia na avaliação das funções executivas (flexibilidade mental) (Fonseca et al., 2015).
A avaliação das habilidades acadêmicas foi conduzida por meio das seguintes técnicas: (I) Avaliação de leitura de palavras e pseudopalavras isoladas (LPI-Anele 1), a qual permitiu a análise da habilidade de leitura oral por meio do reconhecimento de palavras (Salles et al., 2017); (II) Escala de percepção de fluência leitora nos domínios fluidez, pausas, velocidade, expressividade e entonação (Alves et al., 2021); (III) Tarefa de leitura e compreensão leitora de texto narrativo (Corso et al., 2015); (IV) Técnica Cloze para a avaliação da compreensão leitora (Oliveira et al., 2012); e (V) Produção de texto narrativo escrito (Santos & Befi-Lopes, 2016).
A avaliação dos aspectos psicossociais envolveu: (I) Versão brasileira do Emotional Regulation Checklist (ERC), que investiga o nível de regulação emocional em crianças (Reis et al., 2016); e (II) Inventário de Comportamentos na Infância e Adolescência (CBCL) (Achenbach & Rescorla, 2001), respondido pela mãe, para avaliar queixas comportamentais e psicossociais.
Por fim, foram utilizados o Teste de Criatividade Figural Infantil (TCFI) (Nakano et al., 2011) e a Triagem de Indicadores de Altas Habilidades/Superdotação (TIAH/S), respondido pela professora de L. O instrumento visa mensurar as características do indivíduo em cinco áreas do desenvolvimento: capacidade intelectual geral, habilidades acadêmicas específicas, liderança, criatividade e talento artístico (Nakano, 2021).
Aspectos éticos
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 6.500.042). Os pais concordaram com a divulgação do caso e realizaram a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Procedimentos
A ANp foi conduzida no período de 10/2022 a 12/2022 no Serviço Escola de Psicologia da Universidade São Francisco (SEP-USF), como parte integrante do projeto de extensão “Núcleo de Avaliação Neuropsicológica - NAN”. Os atendimentos foram individuais, ocorreram semanalmente e cada sessão teve duração de 60 minutos.
Na sessão inicial foi realizada a anamnese com os pais de L. Nesta sessão também foram apresentadas as normas institucionais de atendimento do SEP. Posteriormente, foram conduzidas sessões com L. para a administração dos métodos e técnicas selecionados no plano de avaliação. Os dados obtidos ao longo da avaliação foram utilizados para discussão do caso no grupo de extensão. Na última sessão foi realizada a devolutiva com os pais, na qual o laudo neuropsicológico foi entregue, bem como explicados os resultados obtidos, esclarecidas as dúvidas e orientadas as condutas clínicas necessárias.
Resultados
Na entrevista de anamnese os pais relataram que L. possui facilidade para o aprendizado, sendo que a escola precisa oferecer outras atividades, além daquelas planejadas para os demais alunos. Em contrapartida, ele possui dificuldades motoras (ex.: andar de bicicleta e jogar futebol) e dificuldades para expressar suas emoções, apresentando reações emocionais desproporcionais. Além disso, se cobra excessivamente em relação ao desempenho de atividades.
L. foi recém-nascido a termo, adequado para idade gestacional (IG=37 semanas; P=3125kg, E=48,5 cm; APGAR=9/10), de parto cesáreo e sem intercorrências. O desenvolvimento neuropsicomotor ocorreu de forma apropriada para idade. Em relação à linguagem, ele falou palavras com 1 ano, frases entre 1 ano e 6 meses e 2 anos. Ele sempre foi muito comunicativo, utilizando palavras complexas na construção de suas frases. Além disso, apresenta interesse por assuntos específicos e atípicos para a sua idade. Não possui dificuldades para a compreensão de linguagem figurada.
Não foram apresentadas queixas sobre o sono e alimentação. Ele sempre teve boa saúde física e não houve relato de doenças específicas, cirurgias ou uso de medicamentos. Ele faz uso de óculos desde os 3 anos para astigmatismo.
Sobre o histórico escolar foi relatado que L. começou a ler precocemente aos 3 anos. Desde o Ensino Infantil sempre teve motivação para ir à escola e para aprender. No início do 1º ano do Ensino Fundamental as aulas passaram a ser remotas em função da pandemia da COVID-19. Durante as aulas, ele prestava atenção, queria responder todas as perguntas e aprendia rapidamente. Quando finalizava as tarefas antes de todos os colegas, se envolvia em outras atividades (ex.: ler um livro). Inicialmente, a escola enviava uma quantidade maior de lições para ele fazer. Atualmente, a escola adota projetos paralelos (ex.: escrever uma peça de teatro e escrever um livro). As aulas presenciais retornaram no segundo semestre de 2021. Conforme o relato dos pais, ele costuma desenvolver o seu próprio método para aprender um determinado conteúdo. Assim, os pais não precisam monitorá-lo para os estudos. No geral, o seu desempenho está acima da média em todas as disciplinas. Ele manifesta muito interesse pela leitura de livros.
Do ponto de vista psicossocial, os pais relataram que L. “é muito intenso” e à flor da pele” [sic]. Ele consegue identificar suas emoções, mas parece apresentar reações emocionais “desproporcionais” à situação. Apesar de não ser rígido, quando pensa que está certo tem dificuldades para flexibilizar sua opinião. Já apresentou episódios de ansiedade intensa, evidenciada, inclusive, por sintomas físicos. Quando os pais chamam a sua atenção por algum comportamento, sente-se culpado, chora muito e já teve episódios de autoagressão. No geral, diante de comportamentos que consideram inadequados, os pais fazem uso de conversa e punições por restrição. L possui padrão extrovertido e tem amigos que, conforme os pais, parecem gostar dele. Ocasionalmente, ele tem dificuldades para compreender situações sociais.
Os resultados e as classificações obtidas nos instrumentos administrados podem ser visualizados na Tabela 1.
Tabela 1 : Síntese dos resultados da ANp
Aspecto avaliado | Escore | Classificação |
---|---|---|
Funcionamento intelectual | ||
Quociente de Inteligência Total (QI) | P=99 | Muito superior |
Índice de Compreensão Verbal (ICV) | P=98 | Muito superior |
Índice de Organização Perceptual (IOP) | P=99,6 | Muito superior |
Índice de Memória Operacional (IMO) | P=94 | Superior |
Índice de Velocidade de Processamento (IVP) | P=94 | Superior |
Raciocínio | ||
Subteste Semelhanças (SM) | PP=16 | Muito superior |
Subteste Conceitos Figurativos (CN) | PP=16 | Muito superior |
Subteste Raciocínio Matricial (RM) | PP=17 | Muito superior |
Subteste Raciocínio com Palavras (RP) | PP=19 | Muito superior |
Atenção | ||
Subteste Código (CD) | PP=16 | Muito superior |
Subteste Procurar Símbolos (PS) | PP=12 | Média superior |
Tarefas das Trilhas (TMT-A, tempo) | Z=0,77 | Média |
Tarefas das Trilhas (TMT-A, erros) | Nc | - |
TAVIS-4 - Tarefa 1 | tm=0,66 | Inferior |
TAVIS-4 - Tarefa 2 | tm=0,76 | Médio inferior |
TAVIS-4 - Tarefa 3 | tm=0,75 | Muito inferior |
Memória | ||
Subteste Dígitos (DG - ordem direta) | PP=13 | Média superior |
RAVLT: A1 ao A5 | P>95 | Superior |
RAVLT: B1 (Distrator) | P95 | Superior |
RAVLT: A6 (Evocação imediata) | P>95 | Superior |
RAVLT: A7 (Evocação tardia) | P>95 | Superior |
RAVLT: índice de aprendizagem (total) | P=95 | Superior |
RAVLT: índice de aprendizagem (ALT) | P>95 | Superior |
RAVLT: velocidade de esquecimento (VE) | P=50 | Médio |
RAVLT: interferência proativa (IP) | P>25 | Médio |
RAVLT: interferência retroativa (IR) | P=75 | Médio Superior |
Cubos de Corsi (ordem direta) | PP=123 | Alta |
Subteste Vocabulário (VC) | PP=16 | Muito superior |
Aspecto avaliado | Escore | Classificação |
Linguagem | ||
Subteste Semelhanças (SM) | PP=16 | Muito superior |
Subteste Vocabulário (VC) | PP=16 | Muito superior |
Subteste Compreensão (CO) | PP=14 | Superior |
Subteste Informação (INF) | PP=15 | Superior |
Subteste Raciocínio com Palavras (RP) | PP=19 | Muito superior |
Fluência verbal fonológica (FVF) | Z=0,97 | Média |
Fluência verbal semântica (FVS) | Z=1,30 | Média superior |
Funções executivas | ||
Dígitos (DG - ordem inversa) | PP=13 | Média superior |
Sequência de Números e Letras (SNL) | PP=15 | Superior |
Cubos de Corsi (ordem inversa) | PP=137 | Muito alta |
FDT - Inibição | P>75 | Média superior |
FDT - Flexibilidade | P>75 | Média superior |
TMT-B (tempo) | Z=0,80 | Média |
TMT-B (erros) | nc | - |
Habilidades escolares | ||
Subteste Aritmética | PP=16 | Muito superior |
LPI - Palavras reais | P=90 | Muito superior |
LPI - Pseudopalavras | P=90 | Muito superior |
Fluência | EB=25 | Muito superior |
Número de palavras lidas por minuto (ppm) | 126 | Muito superior |
Compreensão por recontagem oral Microestruturas Macroestruturas Total | 36% 82% 54% | Média Superior Média |
Compreensão leitora por meio de questões | 100% | Muito superior |
Técnica Cloze | 80% | Independente |
Triagem de altas habilidades/superdotação | ||
Capacidade intelectual geral | P=99 | Superior |
Habilidades acadêmicas específicas | P=99 | Superior |
Liderança | P=76 | Médio superior |
Criatividade | P=76 | Médio superior |
Talento artístico | P=88 | Médio superior |
Criatividade | ||
Enriquecimento de ideias | P=30 | Média |
Emotividade | P=95 | Superior |
Preparação criativa | P=60 | Média |
Aspectos cognitivos | P=93 | Superior |
Total | P=80 | Acima da média |
Escalas comportamentais | ||
CBCL - Atividades | T=35 | Normal |
CBCL - Social | T=37 | Normal |
CBCL - Escola | T=55 | Normal |
CBCL – Competências total | T=36 | Normal |
CBCL - Sintomas internalizantes | T=60 | Limítrofe |
CBCL - Sintomas externalizantes | T=59 | Normal |
CBCL -Total | T=56 | Normal |
ERC - Labilidade/Negatividade | Z=3,58 | Acima da média |
ERC - Regulação emocional | Z=-1,04 | Abaixo da média |
Total | Z=-2,52 | Abaixo da média |
CBCL - Inventário de Comportamentos da Infância e Adolescência; EB – Escore Bruto; ERC - Emotional Regulation Checklist; FDT – Teste dos Cinco Dígitos; LPI – Leitura de Palavras Isoladas; nc – não calculado, pois não teve erros; P – Percentil; PP – Ponto Ponderado; RAVLT – Teste de Aprendizagem Auditivo-Verbal de Rey; tm – tempo médio; T – Escore T; Z – Escore Z.
O desempenho cognitivo-intelectual geral de L. foi classificado como muito superior à média em relação à sua faixa etária. Sua habilidade cognitiva geral supera aproximadamente 99% das crianças da sua idade (QI total = 138; Intervalo de Confiança 95% = 132-142). Ele apresentou resultados muito superiores à média tanto em tarefas que envolveram raciocínio verbal (Índice de Compreensão Verbal - ICV) quanto em tarefas de raciocínio não verbal (Índice de Organização Perceptual - IOP). A análise de discrepância mostrou que não houve diferença significativa entre os dois tipos de raciocínio (ICV=IOP; p>0,05). Adicionalmente, foi obtido um resultado muito superior à média em tarefa de inteligência fluida (Gf) envolvendo estímulos visuais (Subteste “Raciocínio Matricial”). Ele também demonstrou desempenho superior à média em diferentes tarefas que envolveram abstração verbal (SM), abstração visual (CN), raciocínio abstrato (RM) e raciocínio verbal (RP).
No que se refere à atenção, o desempenho de L. foi mais comprometido no instrumento computadorizado (TAVIS-4), sobretudo na tarefa de atenção sustentada visual. Ele mencionou que essa tarefa foi “entediante” [sic]. Contudo, a quantidade de erros cometidos nas tarefas não foi diferente dos outros indivíduos da mesma faixa etária (Erros por omissão: Tarefa 2 = 1 erro; Erros por adição: Tarefa 1 = 2 erros, Tarefa 2 = 1 erro, Tarefa 3 = 1 erro).
L. apresentou resultados acima da média em tarefas de memória (curto prazo e longo prazo – semântica e episódica). Especificamente, no RAVLT, a partir do terceiro ensaio, ele já conseguiu evocar as 15 palavras na sequência apresentada. Além disso, não apresentou intrusões, ou seja, não evocou palavras que não faziam parte da lista apresentada.
Não foram realizados testes psicométricos para a avaliação motora. No entanto, em relação à coordenação motora fina, foi observado que ele possui preensão adequada; durante atividades de desenho, apresentou destreza; e foram notadas sincinesias contralaterais e de boca, discretas, durante a realização da tarefa de pianotagem, principalmente com a mão esquerda (sua mão não dominante).
Em relação ao raciocínio lógico-matemático, ele exibiu resultado acima da média na resolução de problemas aritméticos (Subteste Aritmética, AR). Nessa tarefa, ele não solicitou releitura dos problemas e realizou cálculos mentalmente. Na escrita temática, apresentou letra cursiva com qualidade gráfica médio inferior. Sua escrita pode ser classificada no nível alfabético. Produziu um texto narrativo com oito linhas, com parágrafos curtos, mas seguindo uma cronologia. O texto não abrangeu todos os elementos do gênero narrativo, mas fez uso adequado dos sinais de pontuação, utilizou vocabulário simples e não apresentou erros ortográficos. Durante a realização dessa atividade, observou-se que ele demonstrou preocupação com o próprio desempenho.
Ele não cometeu erros na leitura de palavras e pseudopalavras isoladas. Na leitura oral de texto do gênero narrativo, apresentou um nível ortográfico, utilizando predominantemente a rota lexical. Respeitou as pontuações e acentos, teve entonação adequada e não fez uso de apoio digital. Demonstrou fluência leitora sem dificuldades: (a) Acurácia – ausência de dificuldades para decodificar palavras; (b) Velocidade - leu um total de 126 palavras por minuto (ppm), estando muito acima do esperado para o seu nível de escolaridade (Martins & Capellini, 2019); (c) Expressividade - demonstrou entonação e variações melódicas durante a leitura. A compreensão leitora foi avaliada utilizando três métodos: recontagem oral, resposta a questões e técnica Cloze. Não demonstrou dificuldades em nenhum dos métodos utilizados.
Do ponto de vista qualitativo, destacam-se as seguintes observações clínicas:
L. demonstrou uma atitude geral cooperativa ao responder aos instrumentos; demonstrou raciocínio e capacidade para a resolução de problemas;
Exibiu motivação para realizar as atividades, sobretudo quando eram desafiadoras;
Manteve-se atento durante as sessões; não solicitando repetição de itens, e não apresentou perda de setting;
Demonstrou capacidade para recordar detalhes sobre situações vivenciadas;
Manteve contato visual e sua expressão verbal foi adequada, com discurso organizado e contextualizado. Não foram identificadas dificuldades nos componentes da linguagem, incluindo aspectos fonológicos, semânticos, sintáticos e pragmáticos. Além disso, demonstrou habilidade em manter um bom diálogo, aguardando sua vez de falar e esperando o término de perguntas para responder, indicando uma boa troca de turno.
Quanto ao funcionamento executivo, L. demonstrou capacidade de planejamento mental; não exibiu respostas impulsivas; apresentou capacidade para automonitorar e autoavaliar o próprio desempenho; fez uso de estratégias para auxiliar seu desempenho; ocasionalmente, durante a realização das tarefas, usou a fala para regular o seu comportamento; demonstrou padrão de autoexigência e ansiedade em relação ao seu desempenho, aumentando o tempo de realização de algumas tarefas; foi flexível para mudar estratégia, a partir da percepção de erros; frequentemente, revisou cada item da tarefa após sua conclusão.
Do ponto de vista emocional, ele exibiu ansiedade de desempenho.
Discussão
O estudo objetivou descrever e analisar os resultados da ANp de um menino com características de AH/SD. O funcionamento intelectual foi mensurado pela WISC-IV, na qual L. demonstrou desempenho e facilidade na resolução dos subtestes e seu QI foi igual a 138, muito superior em comparação aos indivíduos da mesma faixa etária. Considerando o QI um escore padronizado, a média é igual a 100 e o desvio padrão é 15 (Wechsler, 2013). Para as AH/SD, comumente é utilizado o critério de dois desvios padrão acima da média, isto é, QI de 130 (Erden et al., 2020; Newman, 2008; Pfeiffer, 2009).
A utilização do QI como único indicador de AH/SD tem sido debatida na literatura, considerando o papel preditivo limitado dos instrumentos psicométricos, sobretudo na primeira infância (Gottfried et al., 2009; Pfeiffer, 2012). Sabe-se que a inteligência contribui para a resolução de problemas no dia a dia e consiste em um indicativo do desenvolvimento de cada sujeito, além de retratar o conjunto de experiências vivenciadas e retidas ao longo do tempo (Gallegos, 2013). Para uma abordagem mais abrangente, sugerem-se técnicas de avaliação dinâmica, as quais levam em consideração variáveis pessoais e sociais (Calero, 2011).
Na avaliação psicométrica da atenção sustentada, L. apresentou resultados inferiores à média nos escores de tempo de reação do TAVIS-4, sobretudo nas tarefas de alternância e sustentação. É importante destacar que os subtestes de atenção (CD e PS) da WISC-IV possuem um tempo de execução limitado a dois minutos. Nesses subtestes, L. teve classificação acima da média. Em contrapartida, a tarefa 3 do TAVIS, que avalia atenção sustentada visual, possui seis minutos, e L. a considerou “entediante”, pois tinha que manter-se olhando para a tela do computador, e pressionar uma tecla toda vez que o estímulo alvo (um relógio) aparecesse.
As observações clínicas não evidenciaram dificuldades atencionais. Além disso, os pais e professoras não mencionaram queixas de desatenção. Contudo, observa-se que L. pode exibir um comportamento desatento diante de tarefas menos motivadoras e pouco desafiadoras.
Nesse sentido, a literatura sugere que características de desatenção em indivíduos com AH/SD são comuns e podem estar relacionadas à motivação, visto que podem exibir um padrão desatento diante de atividades de menor interesse ou nas quais não necessitam de tanto engajamento para sua conclusão (Bergamin et al., 2022; Campos et al., 2019). No contexto da ANp, essa análise é importante, pois as AH/SD podem estar associadas ao Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) na condição de dupla excepcionalidade (Silva et al., 2021).
Dessa forma, essa hipótese deve ser investigada clinicamente, considerando que o indivíduo com AH/SD pode mimetizar sintomas e características do TDAH em situações específicas, mas não apresentar esse diagnóstico. Por exemplo, em sala de aula pode desengajar a atenção diante de conteúdos que possui muita facilidade para o aprendizado ou conteúdos que já aprendeu anteriormente. Ainda que essa característica seja explicada pela condição de AH/SD, do ponto de vista do desenvolvimento, pode requerer manejo educacional, e eventualmente clínico.
O desempenho de L. nos diferentes tipos de memória avaliados merece destaque, visto que apresentou escores superiores à média para a idade. Não foram identificadas dificuldades nas etapas de processamento, armazenamento e recuperação das informações auditivas e visuais. Esse resultado pode ser um preditor para a capacidade de aprendizagem, sugerindo uma potencialidade em seu perfil neuropsicológico. Resultados semelhantes foram notados na linguagem oral (expressiva e receptiva), nos quais se destacam escores acima da média nas habilidades de vocabulário e compreensão.
Apesar das queixas dos pais, não foi conduzida avaliação específica das habilidades motoras. Entretanto, na tarefa de pianotagem, L. apresentou discretas sincinesias contralaterais e de boca, sobretudo quando usou a mão esquerda, que é a sua mão não dominante.
As sincinesias são movimentos que ocorrem simultaneamente com aqueles que estão sendo realizados de forma ordenada e voluntária. Elas podem aparecer em outras regiões do corpo, por exemplo, um movimento voluntário da mão acarretar um movimento involuntário na face e vice-versa. Do ponto de vista semiológico, as sincinesias podem representar um soft sign (sinal sutil) indicando imaturidade neurológica e, consequentemente, motora, mas também podem fazer parte do desenvolvimento típico. Tais sinais devem ser analisados em conjunto com outras queixas e sinais clínicos (Lefèvre, 1976). Portanto, avaliações com outros profissionais podem ser indicadas para o caso de L.
Quanto ao perfil das FE, L. exibiu resultados acima da média nos instrumentos psicométricos que avaliaram os componentes principais, como a memória operacional, o controle inibitório e a flexibilidade. As observações clínicas também evidenciaram que, diante de atividades cognitivas, ele demonstrou capacidade de planejamento, se monitorou e teve flexibilidade cognitiva para mudar de estratégia diante dos erros.
Os resultados corroboram com os estudos que sugerem que indivíduos com AH/SD podem apresentar melhor desempenho em testes de FE (Rocha et al., 2020; Sastre-Riba & Ortiz, 2018). Uma possível explicação para esse achado se deve às relações entre a inteligência e as FE. No entanto, estudos mostram que somente alguns componentes das FE se correlacionam à inteligência fluida ou geral, sugerindo que tais relações são complexas e multifacetadas (Arffa, 2007; Friedman et al., 2006; Godoy et al., 2010). Dessa forma, os resultados são inconsistentes, de forma que um domínio não pode ser compreendido como preditor do outro. Isso fica um pouco mais claro nos casos de indivíduos com transtornos do neurodesenvolvimento, os quais podem apresentar funcionamento intelectual preservado e, ainda assim, exibirem características de disfunção executiva (Lima et al., 2013; Merchán-Naranjo et al., 2016).
Outros dois aspectos que devem ser considerados são a diversidade de modelos teóricos/explicativos e os métodos utilizados para caracterizar o funcionamento executivo. No primeiro aspecto, existem diferentes modelos que visam identificar os componentes principais das FE. De modo geral, do ponto de vista psicométrico, as FE são divididas em memória operacional, controle inibitório e flexibilidade cognitiva (Friedman & Miyake, 2017). Em outra classificação as FE são divididas em frias e quentes, de forma que os componentes frios possuem relação com domínios cognitivos e os quentes, com os mecanismos de regulação da motivação e emoção (Zelazo, 2020). Os instrumentos psicométricos utilizados na presente avaliação enfatizaram os aspectos frios das FE.
No segundo aspecto, a avaliação das FE em crianças pode incluir testes psicométricos, atividades lúdicas, escalas, observações comportamentais, análise do processo de resposta e tarefas ecológicas (Hamdan & Pereira, 2009). Portanto, é incorreto afirmar que um indivíduo possui suas FE preservadas ou alteradas somente a partir do resultado nos testes psicométricos.
No que tange às habilidades escolares, L. não apresentou dificuldades no raciocínio lógico-matemático, escrita e leitura. Além disso, não foram referidas queixas familiares ou escolares de dificuldades de aprendizagem. Conforme o relato dos pais, ele começou a ler precocemente e sempre teve muita motivação e engajamento para o aprendizado.
Inicialmente, o colégio adotou a estratégia de disponibilizar uma quantidade maior de tarefas para ele fazer, considerando sua capacidade, desempenho e velocidade de execução. Posteriormente, a estratégia de enriquecimento intracurricular (Renzulli, 2014) envolveu o planejamento de projetos paralelos para ele, mas que também permitiram o envolvimento dos colegas de sala. Até o presente momento, não foi considerada a possibilidade de aceleração dos estudos.
Durante o processo avaliativo, foi enviado ao colégio um instrumento para o levantamento de indicadores de AH/SD (Nakano, 2021). Conforme os resultados, nota-se que L. possui capacidade elevada para processar informações e solucionar problemas relacionados à memória, linguagem, raciocínio e pensamento abstrato. Destaca-se nas habilidades acadêmicas específicas que envolvem a linguagem escrita (leitura e escrita) e raciocínio lógico matemático em comparação aos colegas. Possui capacidade de liderança, toma decisões que influenciam os demais, lida de maneira criativa diante de problemas e situações, flexibiliza seu pensamento e é curioso, além de apresentar interesse por áreas artísticas, como a música, dança, teatro, desenho e pintura.
A utilização de instrumentos para rastreio de indicadores de AH/SD como o TIAH/S permite ampliar as possibilidades de identificação de características das AH/SD que superam as habilidades intelectuais e acadêmicas, uma vez que avaliam outros aspectos como criatividade, motivação e empenho com as tarefas, fluência verbal, memória e pensamento divergente (Campos et al., 2019; Costa et al., 2022; Martins & Chacon, 2016; Nakano & Primi, 2020).
Adicionalmente, na avaliação da criatividade por meio do TCFI, L. apresentou resultados dentro da média em enriquecimento de ideias e preparação criativa. Já nos fatores emotividade e aspectos cognitivos, o desempenho foi superior em comparação às crianças da mesma idade. Com isso, obteve um escore total acima da média, sugerindo o envolvimento de recursos cognitivos e emocionais durante a realização de tarefas criativas, além de buscar por soluções diferenciadas e originais para lidar com as situações.
A criatividade pode manifestar-se em todos os seres humanos, assumindo características diferenciadas em indivíduos com AH/SD. Sua expressão pode ser influenciada pelo ambiente, que pode tanto obstruir quanto estimular manifestações criativas em pessoas superdotadas (Nakano & Wechsler, 2006). Nesse sentido, Fleith (2006) destaca o desafio enfrentado tanto pelas instituições escolares quanto pelas famílias no que tange ao estímulo da expressão da criatividade.
Para a investigação dos aspectos psicossociais, foram selecionadas duas escalas, utilizadas em contextos de pesquisa, respondidas pelos pais (CBCL e ERC). No CBCL destaca-se o escore de condutas internalizantes situado no nível limítrofe para a consideração clínica. Os principais sintomas referidos pelos pais e observados ao longo da avaliação foram de ansiedade e a dificuldade para regulação emocional, principalmente em situações de desempenho. Os resultados do ERC também indicaram tendência a apresentar labilidade emocional, dificuldades de tolerar frustrações, bem como em expressar e regular suas emoções. Tais achados podem representar componentes quentes das FE.
Este é um aspecto importante a ser considerado, tanto do ponto de vista clínico quanto educacional, pois L. demonstra alta eficiência intelectual, engajamento e motivação em atividades cognitivas, além de uma exigência desproporcional consigo mesmo. Adicionalmente, foram mencionados exemplos de episódios nos quais tais características o conduziram a experiências de sofrimento.
A literatura enfatiza que crianças e adolescentes com AH/SD possuem necessidades emocionais distintas, resultantes da complexidade de sua cognição e da hipótese de dissincronia entre os ritmos do desenvolvimento de capacidades intelectuais, perceptuais, linguísticas, psicomotoras e emocionais (Virgolim, 2003, 2021). Esses indivíduos podem apresentar características específicas da personalidade, imaginação vívida, interesses singulares, sensibilidade emocional, respostas emocionais mais intensas, enfrentando desafios que os distinguem de seus pares da mesma faixa etária (Ourofino & Guimarães, 2007; Virgolim, 2003, 20, 2021).
Em resposta a essas necessidades, é comum em indivíduos com AH/SD a manifestação de comportamento social desajustado, desregulação emocional, agressividade, baixa autoestima, insegurança, frustração, raiva e sentimentos de inadequação (Virgolim 2003, 2021). Os problemas emocionais e comportamentais são mais frequentemente descritos em indivíduos com AH/SD de ordem internalizante, isto é, depressão, ansiedade, retraimento social, baixo autoconceito e autoestima e perfeccionismo (Guénolé et al., 2013; Guignard et al., 2012; Oliveira & Bolsoni-Silva, 2022).
Assim, esses indivíduos precisam de investimento significativo para desenvolver-se emocionalmente e para adquirir a capacidade de percepção e autoconsciência sobre seu estado emocional (Virgolim 2003, 2021). Nesse sentido, o suporte escolar é fundamental (Valentim et al., 2014).
Após a caracterização do perfil neuropsicológico de L., foram consideradas algumas condutas, orientadas em entrevista de devolutiva com os pais. Considerando as queixas iniciais, considera-se relevante avaliação e conduta profissional especializado, como psicomotricista ou fisioterapeuta, para a investigação das habilidades motoras. Também se sugere continuidade da atividade física.
Outra conduta foi o encaminhamento de L. para psicoterapia. De acordo com a literatura, é necessário atentar-se para o desenvolvimento emocional de indivíduos com AH/SD sobretudo na infância como estratégia de promoção de saúde, redução da vulnerabilidade psicológica e prevenção do adoecimento psicológico (Valentim et al., 2014; Veloso & Monte, 2022). É importante que a intervenção psicológica seja acompanhada por orientação parental e escolar.
Do ponto de vista escolar, é fundamental a manutenção dos programas de enriquecimento curricular e elaboração do Plano Educacional Individualizado (PEI). Esses programas curriculares são adaptáveis e deverão contemplar os interesses e necessidades de cada aluno (Matos et al. 2016; Negrini et al., 2016; Rech et al., 2023; Virgolim, 2007).
Por fim, é importante considerar que a avaliação foi conduzida em um Serviço Escola de Psicologia, como parte de um projeto de extensão universitária (Pinheiro et al., 2022). Portanto, além de oferecer o serviço à comunidade, toda a prática da ANp teve como objetivo auxiliar na formação profissional dos estudantes de graduação, integrantes do projeto. Dessa forma, os estudantes participaram das etapas de: entrevista com os pais; elaboração e discussão sobre o plano de avaliação; sessões de avaliação para a administração dos métodos e técnicas selecionados; correção e interpretação dos instrumentos; elaboração do laudo psicológico de avaliação neuropsicológica; e entrevista devolutiva com os pais. Tais práticas podem auxiliar no desenvolvimento de habilidades e competências necessárias para a prática da neuropsicologia durante o curso de graduação e que serão aprimoradas em outros níveis educacionais.
Considerações
O estudo de caso permitiu caracterizar o perfil neuropsicológico de um menino com AH/SD. De modo geral, L. apresentou pontuações elevadas nos instrumentos psicométricos, com desempenho que variou de médio a muito superior. Entretanto, destacam-se as queixas apresentadas pelos pais, resultados obtidos nas escalas comportamentais e observações clínicas, que revelaram sintomas internalizantes e dificuldades para regulação emocional. Do ponto de vista qualitativo, durante a administração dos testes, foi possível observar ansiedade de desempenho e dificuldades para controlar a atenção em tarefas que exigiam maior engajamento, corroborando com o relato dos pais.
Com base no histórico e resultados obtidos, confirma-se AH/SD do tipo intelectual-acadêmico e criativo-produtivo. Indivíduos com essas características podem apresentar desempenho acima do esperado para a idade em testes cognitivos e em tarefas acadêmicas, bem como habilidades acima da média em criatividade, curiosidade e resolução de problemas, em contrapartida, podem apresentar dificuldades no desenvolvimento quando não recebem suporte adequado, especialmente o atendimento educacional especializado.
Considera-se que o estudo pode contribuir com a literatura sobre neuropsicologia e AH/SD, sobretudo na utilização de multimétodos para a caracterização do perfil neuropsicológico e condutas clínicas.