Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.20 no.2 São Paulo dez. 2012
ARTIGOS INÉDITOS
Original Articles
Das relações entre espontaneidade, saúde e doença
About the relationships between spontaneity, health and illness
António-José Gonzalez
Ph D; Professor Auxiliar no ISPA- Instituto Universitário, Lisboa, Portugal; Membro Didata da Sociedade Portuguesa de Psicodrama; Membro do Research Committee da FEPTO (Federation of European Psychodrama Training Organisations); Fundador, coordenador e encenador do dISPArteatro, grupo de teatro de pesquisa do ISPA-IU
RESUMO
Após enquadramento do termo "espontaneidade", é explorada a definição dada a este por J. L. Moreno. Segue-se uma apresentação do "Spontaneity Assessment Inventory" (SAI) e sua versão revista (SAI-R), desenvolvidos por David Kipper e colaboradores, bem como de alguns dos resultados obtidos em estudos que correlacionaram os resultados nestes inventários com diversos outros construtos ligados à saúde e aos diversos tipos de sintomatologias e sofrimentos de ordem psíquica e física. Por fim, o autor apresenta um conjunto de investigações levadas a cabo por colaboradores, correlacionando os resultados obtidos com a versão portuguesa do SAI-R e diversas outras variáveis associadas ao bem-estar, à autoestima, às variáveis de personalidade, à presença de doenças ou indicadores do foro psicossomático, como psoríase e lúpus, e à impulsividade.
Palavras-chave: Moreno, espontaneidade, bem-estar, autoestima, alexitimia, psoríase, lúpus, personalidade, impulsividade.
ABSTRACT
After placing the term "spontaneity" into a conceptual framework, J. L. Moreno’s definition of this term is explored. Following this, I introduce the Spontaneity Assessment Inventory (SAI) and its revised version (SAI-R) as developed by David Kipper and his colleagues, as well as the outcome of some studies that correlate the results of this Inventory with other variables related to health and different forms of psychological and physical symptoms and issues. Finally, the author presents the outcome of various studies, correlating the results of the Portuguese version of SAI-R with other variables such as well-being, self-esteem, aspects of personality, the presence of illnesses or psycho-somatic type indicators, such as psoriasis and lupus, as well as impulsivity.
Keywords: Moreno, spontaneity, well-being, self-esteem, alexithymia, psoriasis, lupus, personality, impulsivity
Deus é pura espontaneidade.(...)
Por isso, pois, o mandamento será:
Seja espontâneo
(J. L.MORENO, As palavras do pai, Campinas: Editorial Psy, 1992, p. 29)
INTRODUÇÃO
Em virtude de suas fortes ligações, históricas e culturais, tanto com o pensamento filosófico como com o senso comum, a psicologia sempre se debateu com a questão da terminologia, tendo em vista que muitos dos seus conceitos são utilizados frequentemente fora de contexto, com significados por vezes muito diferentes daqueles contidos nos termos sugeridos pelos autores que os defendem. Esse é o caso do conceito central deste artigo: a espontaneidade. A espontaneidade a que nos referimos foi sugerida, definida e explorada por Jacob Levy Moreno, criador do sociodrama e do psicodrama, que via nela um dos aspectos fundamentais da saúde mental.
No entanto, essa espontaneidade moreniana nem sempre corresponde ao conceito usado cotidianamente ou àquele definido nos dicionários. Vejamos, a seguir, algumas alusões a ele. No senso comum, muitas vezes a referência a um ato espontâneo sugere uma ação imediata, não controlada. Podemos observar um exemplo a partir de uma frase comum: "Ela fez aquilo impulsivamente, espontaneamente, nem pensou. Saiu-lhe!". Nesse contexto, "espontâneo" remete a "impulsivo", sem controle.
Nos dicionários, podemos encontrar diversas definições para a palavra "espontâneo", tal como a de Cândido de Figueiredo, a seguir:
espontâneo (do lat. Spontaneus) 1. adj. Que se pratica de livre vontade, de moto-próprio: ato espontâneo. 2. adj. Natural. 3. adj. Independente de causa exterior, aparente. 4. adj. Que nasceu sem cultura: vegetação espontânea.
Se é verdade que, ao colocar a tônica na "livre vontade"1, nos aproximamos da perspectiva moreniana, há ainda um aspecto que é central a esta e que está ausente dessas definições: seu carácter adequado ao contexto.
A ESPONTANEIDADE EM MORENO
Vejamos as palavras do próprio Moreno, em sua obra Psicodrama. "O termo ‘espontâneo’ é frequentemente usado para descrever indivíduos cujo controle de suas ações está diminuído. No entanto, esse emprego do termo espontâneo não está de acordo com a etimologia da palavra que (…) deriva do latim sponte, ‘de livre vontade’. (…) A conduta desordenada e os acessos emocionais que decorrem de ações impulsivas estão longe de constituir desideratos do trabalho da espontaneidade. Pertencem ao domínio da patologia da espontaneidade." (MORENO , s.d., p. 175). Esta passagem não deixa dúvidas quanto à diferença, que Moreno quer sublinhar, entre a sua visão do termo e a perspectiva do senso comum. O ato espontâneo, para Moreno, não é um ato impulsivo.
Essa ideia fica ainda mais reforçada quando analisamos outras definições do autor, em seu famoso livro As palavras do pai: "A espontaneidade é um estado de prontidão do sujeito para responder mais rapidamente quando lhe for solicitado. É uma condição – um ajustamento – do sujeito, uma preparação dele para uma ação livre" (MORENO , 1992, p. 152). Em outro local, Moreno (1966, in Greenberg, 1974, p. 76) refere "… a espontaneidade conduz o indivíduo a uma resposta adequada para uma situação nova ou a uma resposta nova para uma situação antiga".
É incontestável o papel central da espontaneidade na visão que Moreno tinha do humano. Nas suas palavras, em uma "teoria do comportamento e da motivação humanos, o lugar central deve ser dado à espontaneidade" (Moreno , s.d., p. 155). Esta podia também ser vista como um agente terapêutico ou, como relatam Kipper e Hundal (2005), um fator de cura específico, que Moreno acreditava aumentar a abertura à experiência, reduzir as inibições e promover o bem-estar psicológico. A importância do conceito leva o psicodramatista espanhol Daniel Valiente Gómez a afirmar que "resgatar o indivíduo da engrenagem social e promover a produção de atos espontâneos seria uma das finalidades do psicodrama" (VALIENTE, 1995, p. 27).
Temos, portanto, duplo carácter presente na definição moreniana:
1. a espontaneidade é uma "prontidão", algo que "prepara", que "conduz" e;
2. a resposta a que dá origem é adequada ao contexto. Por ser uma predisposição, apresenta-se a questão de como avaliar a espontaneidade. Moreno deu resposta a essa necessidade, de forma criativa e útil: criou diversos formatos, que, quase sempre, implicavam provas resolvidas presencialmente e na prática pelos avaliados2. Nas décadas que se seguiram à morte de Moreno, houve várias tentativas de construir testes que medissem, de forma econômica e replicável, esse importante conceito. Em particular, David Kipper, nos Estados Unidos, desenvolveu trabalhos que serviram de inspiração a algumas das investigações que apresentaremos adiante.
A AVALIAÇÃO DA ESPONTANEIDADE APÓS MORENO
Entre os testes psicométricos de avaliação da espontaneidade, discorreremos sobre dois. O primeiro, o Personal Attitude Scale (PAS), um inventário de 58 itens que foi desenvolvido por Collins e colaboradores (1997) e passou por uma revisão, o PAS II (Kellar et al., 2002), com 66 itens, com níveis de validade de construto e confiabilidade satisfatórios.
O segundo instrumento, mais recente, é o Spontaneity Assessment Inventory (SAI) e a sua versão revista, o SAI-R.
David Kipper, da Universidade de Roosevelt, em Chicago e um dos grandes nomes da cena internacional do psicodrama, recentemente falecido, foi o principal responsável pela investigação que deu origem a ambas as escalas.
Para a construção do questionário, foram consultados 20 especialistas em espontaneidade e(m) psicodrama europeus e americanos, com pelo menos 25 anos de experiência, a quem foram pedidas listas de adjetivos que descrevessem a sensação de estar em um estado espontâneo. A partir desse material, construiu-se um inventário que, após sucessivos estudos e melhoramentos, deu origem ao SAI-R (para obter mais detalhes, ver KIPPER & HUNDAL , 2005).
ALGUNS RESULTADOS OBTIDOS COM O SAI-R NOS ESTADOS UNIDOS
Por intermédio desse precioso instrumento, tornou-se possível tentar comprovar ou infirmar alguns dos postulados de Moreno. A equipe liderada por David Kipper conseguiu, recorrendo ao SAI e ao SAI-R para medir a espontaneidade, estabelecer várias correlações de enorme interesse tanto para a teoria como para a prática do psicodrama, com implicações também na conceitualização do papel desta variável na saúde mental. Vejamos, a seguir, alguns desses resultados.
Em um estudo no qual o SAI foi usado paralelamente com outro inventário, construído para medir o deficit de espontaneidade – o Spontaneity Deficit Inventory (SDI) – (por motivos práticos, esse inventário não será aqui apresentado), Kipper e Hundal (2005) obtiveram os resultados de 106 estudantes de psicologia nessas provas e em outras duas escalas, uma de Desejabilidade Social, Marlowe-Crowne Social Desirability Scale (MCSDS) e outra de Bem-Estar, Friedman Well- Being Scale (FWBS), que se subdivide em 5 subescalas. Os resultados mostraram uma correlação positiva entre as pontuações no SAI-R e as das escalas de Desejabilidade Social (r(96) = .36, p <.01) e de Bem-Estar (r(97) = .36, p <.01).
Em outro estudo, Christoforou e Kipper (2006) aplicaram o SAI e o SDI a duas amostras distintas, uma de 85 estudantes universitários e outra de 35 trabalhadores de uma grande empresa. Além desses instrumentos, foram também aplicados a estes sujeitos o State-Trait Anxity Inventory (STAI), de Spielberger et al., 1983 (Christoforo u e Kipper , 2006), que mede separadamente a ansiedade traço e a ansiedade estado, o Obsessive-Compulsive Inventory-Revised (OCI-R), de Foa et al., 2002 (Christoforo u e Kipper , 2006), que avalia sintomas de desordem obsessiva-compulsiva e o Temporal Orientation Scale (TOS), de Jones et al, 2004, (Christoforo u e Kipper , 2006), escala que mede a orientação temporal dos respondentes, isto é, se sua atenção e suas respostas estão mais ligadas ao passado, ao presente ou ao futuro.
Como previsto pelos autores, foi encontrada uma correlação negativa significativa entre a espontaneidade e o deficit de espontaneidade. Assim, a correlação de Pearson entre os resultados do SAI e do SDI foi: r = - .48, com p < .01.
Também se confirmou a previsão de que a espontaneidade apresentaria uma correlação negativa com a ansiedade, com valores de r = -.67, p < .01 para as relações do SAI com a escala de ansiedade traço do STAI, e de r = -.44, p < .01 com a ansiedade estado da mesma escala. A mesma tendência se verificou com as pontuações obtidas no instrumento que mediu a predisposição obsessiva-compulsiva (OCI-R), com uma correlação negativa de r = -.21, p < .05 com o SAI.
Por fim, Christoforou e Kipper (2006) encontraram resultados que permitem sugerir que as pessoas com pontuações mais elevadas no SAI têm também pontuações mais elevadas na subescala de orientação temporal dedicada ao tempo presente (r = .24, p < .05) e que as pessoas com maiores pontuações no SDI têm igualmente resultados superiores na subescala ligada ao passado (r = .42, p < .01). Ou seja, as pessoas mais espontâneas têm maior tendência a se concentrar no presente, e aquelas com deficit de espontaneidade concentram-se mais no passado.
Em outro estudo, Kipper e Shemer (2006), trabalhando já com a versão revista do SAI, procuraram relações entre a espontaneidade, o bem-estar (medido através da Friedman Well-Being Scale, ver acima) e o estresse, medido pela Perceived Stress Scale (PSS), de Cohen, Kamarck e Mermelstein. Para isso, pediram a colaboração de 105 adultos, na maioria trabalhadores.
Os resultados mostraram uma correlação positiva e significativa entre os resultados do SAI-R e do FWBS (r = .58, p < .001), que se confirmou para todas as subescalas de Bem-Estar. A correlação entre a espontaneidade (SAI-R) e o estresse (PSS) foi também significativa (p < .001) mas de direção negativa (r = -.45). Como seria de esperar, os resultados nas escalas de estresse e de bem-estar também mostraram correlações negativas e significativas.
Davelaar, Araujo e Kipper (2008) aplicaram o SAI-R, o General Perceived Self-Efficacy Scale (GSES), de Schwarzer e Jerusalem, escala que mede a autoeficácia percebida e o Rosenberg Self-Esteem Scale (RSES), medida da autoestima global, a 88 estudantes universitários e encontraram correlações positivas tanto entre o SAI-R e o GSES (r = .47, p < .01) como entre o SAI-R e o RSES (r = .35, p < .01).
ESTUDOS COM O SAI-R EM PORTUGAL
Em colaboração estreita com David Kipper, fizemos a tradução, a retrotradução e as adaptações necessárias para construir uma versão em português do SAI-R (artigo em preparação). Na posse desse instrumento, concluímos diversos estudos, tanto réplicas de trabalhos de Kipper e colaboradores como estudos originais.
Tendo por base os trabalhos correlacionais de Kipper e Shemer (2006) e Davelaar, Araujo e Kipper (2008), e com a colaboração de Simão (2010) e Dias (2010), foi concluída uma investigação que recolheu os dados de 216 indivíduos. Destes, 72% eram mulheres e 28% homens, com idades compreendidas entre os 18 e os 58 anos, sendo a média 29 anos. A coleta dos dados foi efetuada no ISPA-Instituto Universitário e em duas empresas (uma na área das telecomunicações e outra na área da gestão de contabilidade). Os instrumentos utilizados foram, para além do SAI-R, as escalas de autoestima, de Rosenberg, e a de Bem Estar Psicológico, de Ryff3. Os dados permitem afirmar que:
– a espontaneidade e a autoestima (medida pelo RSES) estão correlacionadas de forma positiva (r = 0.597) e estatisticamente significativa (p ≤ .000)
Esses resultados confirmam, em geral, os obtidos por Kipper e colaboradores, relacionando os resultados elevados em espontaneidade com os índices igualmente elevados nas medidas de autoestima e de bem-estar psicológico (Kipper e Hundal, 2005; Kipper e Shemer, 2006; Davelaar, Araujo e Kipper, 2008).
Outra investigação foi desenvolvida por Batista (2009), ao tentar relacionar os resultados obtidos por uma amostra de 84 doentes de lúpus4 na SAI-R e na Toronto Alexithymia Scale (TAS-20). A TAS-20 é uma escala de autopreenchimento que mede a alexitimia. Esse construto, introduzido por Sifneos na década de 1970 (ver Lumley et al., 2007), refere-se a uma sintomática verificada em um conjunto de pacientes que mostravam dificuldades na expressão emocional (etimologicamente, alexitimia pode ser traduzido como "sem palavras para as emoções"), pobreza onírica e preferência pelo mundo operatório, concreto.
Os resultados trouxeram interessantes indicadores: os doentes com lúpus (n = 84) tinham pontuações elevadas em alexitimia, baixas em espontaneidade, e correlacionadas de forma negativa e significativa (r = -0.418, p < 0.01). Assim, podemos afirmar que nesses doentes, não apenas a capacidade de exprimir e exteriorizar emoções se encontra limitada, como a espontaneidade aparece relacionada de forma invertida com essa característica: quanto maiores as dificuldades de expressão emocional, menores as pontuações obtidas na escala de espontaneidade.
Batista (2010), em um estudo que contou com a colaboração da Sociedade Portuguesa de Psoríase, passou os mesmos instrumentos acima referidos (TAS-20 e SAI-R, bem como a Escala de Bem-Estar Psicológico – EBEP) a 175 participantes (109 mulheres e 66 homens), de idades compreendidas entre os 19 e os 73 anos, dos quais 112 eram doentes de psoríase5. Apesar de não terem sido encontradas diferenças significativas em termos dos resultados na escala de espontaneidade na comparação entre os doentes e os não doentes (t = -1.047; α = .297), confirmaram-se as correlações negativas entre alexitimia e espontaneidade (-.410, p ≤ 0.01) e positivas entre esta e o Bem-Estar Psicológico (p= .624; p ≤ 0.01).
Em uma sequência desses estudos, Ricardo (2009) escolheu uma amostra de estudantes de teatro (n = 51), na qual essas correlações, tal como esperado, não se mantiveram. Foram usadas as mesmas escalas – SAI-R e TAS-20 –, observando-se que a correlação entre elas se revelou negativa, muito fraca (r = -0.033) e não significativa (p = 0.818). Esses estudantes, escolhidos precisamente pelo fato de, por razões acadêmicas, trabalharem quase diariamente com a expressão emocional, não revelaram a mesma relação negativa entre alexitimia e espontaneidade que os pacientes do estudo anterior.
Em outro estudo em que pudemos contar com uma amostra recolhida por uma empresa profissional, que permitiu obter dados, on-line, de cerca de 2.940 sujeitos, Ana Paula Santos, além de várias características demográficas, obteve as respostas destes no SAI-R (espontaneidade) e na TAS-20 (alexitimia) (Santos, 2009). Os dados permitiram confirmar os bons resultados psicométricos das versões portuguesas das escalas (artigo em preparação), mas, mais importante para nós, é confirmar, em uma amostra da população não escolhida por qualquer critério diferenciador (sofrendo de uma doença ou estudando determinada área, como tinha sido o caso de dois dos estudos citados), a correlação negativa e significativa entre espontaneidade e prevalência da alexitimia: r = -0,234, α = 0,01.
Esse tipo de estudo, de natureza correlacional, apesar das limitações que daí advêm, não deixa de indicar que algumas das propostas feitas, há mais de meio século, pelo pai do psicodrama, parecem confirmar-se empiricamente: se aceitarmos que o SAI-R mede algo semelhante ao que Moreno chamava de espontaneidade, então as pessoas mais espontâneas possuem também características que as aproximam mais dos critérios da saúde psíquica e física: tem mais bem-estar psicológico, autoestima e maior capacidade de exprimir as emoções, variável que, por seu lado, se relacionou de forma inversa com a presença de doenças do foro psicossomático.
Em dois estudos mais recentes, Rocha (2010) e Silva (2010) analisaram as relações entre espontaneidade e alguns aspectos da personalidade, tendo para isso utilizado o modelo dos cinco fatores (Big Five) e, em particular, o inventário de personalidade NEO Personality Inventory-Revised (NEO-PI-R),desenvolvido por Costa e McCrae, adaptado para Portugal por Lima, em 1997, e a sua versão reduzida, o NEO-Five Factor Inventory (NEO-FFI) (Lima , 2008). Em ambos os estudos, participaram 90 sujeitos, 58 dos quais estudantes de Psicologia e na maioria mulheres (67).
Rocha (2010) encontrou uma correlação negativa (r = -0.280) e significativa (p = 0,008) entre a dimensão "neuroticismo" do NEO-PI-R e a espontaneidade medida pelo SAI-R, bem como uma correlação positiva (r = 0.578) e significativa (p = 0,00) entre a espontaneidade e a faceta "Extroversão", medida pelo NEO-PI-R. Esses resultados permitem-nos afirmar que as pessoas mais espontâneas têm maior probabilidade de obter resultados elevados em indicadores de extroversão e resultados baixos no que se refere aos níveis de neuroticismo.
Silva (2010) utilizou a subescala da impulsividade da versão portuguesa do NEO-PI-R (Lima , 1997; Lima e Sim ões , 1997), juntamente com o SAI-R. Pôde-se verificar que a correlação entre os resultados nestas escalas é de sinal positivo (r = 0.197), mas não significativa (p = .063). Uma vez mais, esse resultado vai na direção indicada pelos escritos de Moreno, que sugeria a não associação entre espontaneidade e impulsividade.
CONCLUSÕES
Este conjunto de trabalhos que acabamos de apresentar permite-nos confirmar algumas importantes asserções relativas à natureza e ao papel da espontaneidade e suas conexões com a saúde. Assim, os estudos expostos confirmam as correlações entre a espontaneidade (medida pelo SAI-R) e a autoestima e o bem estar psicológico (Dias, 2010; Simão, 2010), resultados que vão em sentido semelhante aos encontrados pela equipe liderada por David Kipper (Kipper e Hundal , 2005; Kipper e Shemer , 2006; Davelaar , Ara ujo e Kipper , 2008).
Por outro lado, a partir da utilização da versão portuguesa da Escala de Alexitimia de Toronto (TAS-20), foi possível registar a correlação negativa entre este constructo e a espontaneidade, tanto em doentes de lúpus (Batista , 2009), como de psoríase (Batista , 2010) como ocorreu em uma amostra de grandes dimensões (n= 2.940) de sujeitos pertencentes a uma base de dados on-line (Santos , 2010).
Parecem-nos particularmente interessantes os resultados dos dois últimos estudos que apresentamos. Rocha (2010) encontrou correlação positiva entre a dimensão da personalidade "extroversão" (medida pelo NEO-FFI) e a espontaneidade, e negativa entre esta e o neuroticismo, reforçando, portanto, a leitura moreniana das ligações entre espontaneidade e saúde mental. Por fim, o estudo de Silva mostra como a própria definição de Moreno, que diferencia a espontaneidade da impulsividade, pode ser comprovada recorrendo-se a estudos psicométricos. De fato, parece que medimos variáveis diferentes quando avaliamos esses dois conceitos.
Esses trabalhos permitiram, no seu conjunto, verificar as boas qualidades psicométricas da versão portuguesa do SAI-R (artigo em preparação). Com esse importante recurso, será possível continuar a estudar as relações da espontaneidade com outras variáveis ligadas à saúde, bem como desenvolver estudos comparativos e experimentais que permitam compreender melhor como se pode promover a espontaneidade, nomeadamente em contexto psicodramático. Se a espontaneidade é a capacidade de dar respostas adequadas a novas situações, o mundo em que vivemos – se quiser continuar a ser um lugar em que se possa viver – necessita, como da água e do ar, de mais espontaneidade. Agora!
Referências
BATISTA, C. Sentimos muito, mas não contagiamos: Estudo comparativo – Níveis de alexitimia, espontaneidade e bem-estar psicológico em sujeitos com e sem psoríase. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2010.
BATISTA, V. O psicodrama como abordagem psicoterapêutica à alexitimia: Espontaneidade e alexitimia em pacientes com lúpus . Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2009. [ Links ]
COLLINS , L. et al. The Personal Attitude Scale: A scale to measure spontaneity. International Journal of Group Psychotherapy, Psychodrama and Sociometry, v. 49, p. 147-156, 1997. [ Links ]
CHRSTOFOROU, A.; KIPPER, D. The Spontaneity Assessment Inventory (SAI), Anxiety, Obsessive-Compulsive Tendency, and Temporal Orientation. Journal of Group Psychotherapy, Psychodrama, and Sociometry, v. 59, p. 23-34, 2006. [ Links ]
DAVELAAR, P.; ARAÚJO, F.; KIPPER, D. The Revised Spontaneity Assessment Inventory (SAI-R): Relationship to goal orientation, motivation, perceived self- efficacy, and self-esteem. The Arts in Psychotherapy, v. 35, p. 117-128, 2008. [ Links ]
DIAS, F. O bem-estar psicológico na espontaneidade: estudo correlacional. Dissertação (Mestrado). ISPA- Instituto Universitário, Lisboa, 2010. [ Links ]
FIGUEIRED , C. de. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Betrand Editora, 1996. [ Links ]
FERRAZ, D.; REIS, L. Psoríase. Farmácia Portuguesa, v. 182, p. 38-45, 2009. [ Links ]
FOX , J. O essencial de Moreno. Textos sobre psicodrama, terapia de grupo e espontaneidade. São Paulo: Editora Ágora, 2002. [ Links ]
KELLAR, H. et al. The Personal Attitude Scale – II: A revised measure of spontaneity. International Journal of Action Methods, Psychodrama and Role Playing, v. 55, p. 35-46, 2002.
KIPPER, D. Spontaneity: Does the experience match the theory? International Journal of Action Methods: Psychodrama, Skill Training and Role Playing, v. 53, p. 33-47, 2000. [ Links ]
__________. The canon of spontaneity-creativity revisited: The effect of empirical findings. Journal of Group Psychotherapy, Psychodrama, and Sociometry, v. 59, p. 117- 125, 2006. [ Links ]
KIPPER , D.; Hundal , J. The Spontaneity Assessment Inventory (SAI): The relationship between spontaneity and nonspontaneity. Journal of Group Psychotherapy, Psychodrama, and Sociometry, v. 58, p. 119-129, 2005. [ Links ]
KIPPER , D. A.; Shemer , H. The Revised Spontaneity Assessment Inventory (SAI): Spontaneity, Well-Being, and Stress. Journal of Group Psychotherapy, Psychodrama, and Sociometry, v. 59, p. 127-136, 2006. [ Links ]
LUMLEY, M.; NEELY , L.; BURGER, A. The assessment of alexithymia in medical settings: implications for understanding and treating health problems. Journal of Personality Assessment, v. 89, ed. 3, p. 230-246, 2007. [ Links ]
LIMA, M. P. NEO-FFI – Versão portuguesa. XIII Conferência Internacional - Avaliação psicológica: formas e contextos. Braga: Universidade do Minho, 2008.
LIMA, M. P.; SIMÕES , A. O inventário de personalidade NEO PI-R: resultados da aferição portuguesa. Psychologica, v. 18, p. 25-46, 1997. [ Links ]
MORENO , J. L. Psicodrama. São Paulo: Ed. Cultrix, s.d. [ Links ]
__________. The creativity theory of personality: spontaneity, creativity and human potentialities. In: I. Greenber g (ed.) Psychodrama: theory and therapy. New York, Behavioral Publications, 1974. [ Links ]
__________. Espontaneidade e catarse. In: J. FOX (ed.) O essencial de Moreno. São Paulo: Editora Ágora, p. 81-109, 2002. [ Links ]
__________. As palavras do pai. São Paulo: Ed. Psy, 1992. [ Links ]
PRAZERES , N. Alexitimia: uma forma de sobrevivência. Revista Portuguesa de Psicossomática, jan.-jun.,v. 2, n. 1, p.109-121, 2000. [ Links ]
PRAZERES , N.; TAYLOR , G.; PARKER, J. Escala de Alexitimia de Toronto de Vinte Itens (TAS-20). In: Avaliação Psicológica: Instrumentos validados para a população portuguesa, Coimbra: Quarteto, 1ª ed., v. II, p. 87-99, 2004. [ Links ]
ROCHA, A. Espontaneidade e personalidade: um estudo correlacional. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2010. [ Links ]
RICARDO, A. Relação entre alexitimia e espontaneidade em estudantes de teatro. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2009. [ Links ] SANTOS , A. Alexitimia e espontaneidade: quando meia palavra afinal não basta. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2009. [ Links ]
SILVA, N. Espontaneidade e impulsividade definições, avaliação e relações mútuas. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2010. [ Links ]
SIMÃO, A. Espontaneidade e autoestima: estudo correlacional. Dissertação (Mestrado). ISPA - Instituto Universitário, Lisboa, 2010. [ Links ]
VALIENTE , D. Psicodrama y psicoanálisis. Madrid: Editora Fundamentos, 1995. [ Links ]
WALLACE , D. J. The lupus book: a guide for patients and their families. New York: Oxford University Press, 2000. [ Links ]
À memória de David Kipper (1939- 2010), apaixonado pelo psicodrama e pela espontaneidade, exemplo de espírito aberto, mente criativa e pesquisador incansável. Obrigado por suas orientações, perguntas e sugestões.
To the memory of David Kipper (1939, 2010), open mind, creative soul, restless researcher. Thank you for your guidance, questions and suggestions.
Endereço para correspondência
António-José Gonzalez
ISPA – Instituto Universitário
Rua Jardim do Tabaco, 34 1149-041
Lisboa – Portugal
e-mail: gonzalez@ispa.pt
Recebido: 11/04/2012
Aceito: 24/06/2012
Nota:
1. A expressão em língua portuguesa "De livre e espontânea vontade" parece adequada a duas das características da espontaneidade moreniana: seu carácter simultaneamente livre, não condicionado, portanto, e o fato de estar ligado à vontade do sujeito. A este propósito, gostaríamos de ter intitulado este artigo de "De livre e espontânea vontade, na saúde e na doença, até que a morte os separe: alguns estudos sobre a espontaneidade", mas a adequação aos critérios das revistas científicas pesaram mais que a nossa espontaneidade. E se o senso de humor dos revisores desta revista assim o permitir, gostaríamos ainda de deixar sugestão para futura investigação aqui mesmo: será possível avaliar porcentagem das vezes em que o "Sim" que se segue à pergunta: "Aceita, de livre e espontânea vontade, para seu esposo / sua esposa..." é verdadeiramente espontâneo?
2. Em virtude dos objetivos específicos deste artigo, não vamos descrever aqui os testes propostos por Moreno para avaliar, in vivo, a espontaneidade. Para obter mais detalhes a esse respeito, ver o livro de Moreno, Psicodrama (s. d.), nos capítulos dedicados à mensuração da espontaneidade. Em um desses testes, por exemplo, Moreno propunha ao sujeito avaliado situações inesperadas, vitais. Este deveria ser avaliado individualmente, na sua interação com um ator (ou ego-auxiliar), essa avaliação era feita por dois observadores, em função de vários critérios preestabelecidos.
3. A utilização das versões portuguesas desses instrumentos foi autorizada pelos autores das adaptações (Paulo Jorge Santos, escala de Rosenberg; Rosa Novo e equipe, escala de Ryff; Nina Prazeres e equipe, TAS 20, ver a seguir), a quem agradecemos.
4. O lúpus é considerado doença crônica e autoimune que, por sua etiologia e sintomatologia, é habitualmente citado como doença psicossomática (Wallace, 2000).
5. A psoríase é considerada uma doença inflamatória crônica hiperproliferativa e descamativa da pele, com forte impacto emocional nos seus portadores (Ferraz & Reis, 2009).