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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.52 no.3 São Paulo jul./set. 2018
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Acerca da multidimensionalidade da categoria sofrimento
On the multidimensionality of the suffering category
Sobre la multidimensionalidad de la categoría sufrimiento
A propos de la multi-dimensionnalisé de la catégorie souffrance
João Carlos GraçaI; Rita Gomes CorreiaII
IProfessor do Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade de Lisboa (ISEG-UL). Investigador do Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações, Universidade de Lisboa (Socius/CSG-UL)
IIPesquisadora do Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações, Universidade de Lisboa (Socius/CSG-UL)
RESUMO
O sofrimento constitui uma realidade complexa, devendo ser distinguido da dor e demandando um tratamento interdisciplinar. São nele identificáveis dimensões várias, nomeadamente físicas, psíquicas, culturais, políticas e socioeconómicas, sendo todavia plenamente legítimo considerá-lo um fato social. As tendências para a tecnologização das respostas ao sofrimento, nomeadamente a psiquiatrização, impõem elas próprias uma abordagem de pendor sociológico, nalguns casos vincando mesmo diversos traços estritamente políticos. Tanto os aspectos atinentes à cultura e à vida religiosa quanto as questões relativas à economia são relevantes na consideração dessa problemática. Em particular, torna-se necessário sublinhar a importância do consumo competitivo e sinalizador de status. Esse relevo do consumo pode, nalguns casos, contribuir para reforçar as desigualdades sociais, do que por sua vez se ressente o bem-estar social geral. Esse reconhecimento, porém, não constitui garantia de que medidas de redistribuição igualitárias sejam consideradas desejáveis, mesmo do ponto de vista dos seus beneficiários.
Palavras-chave: sofrimento, dor, multidimensionalidade, medicalização, cultura
ABSTRACT
Suffering is a complex reality, which we ought to distinguish from pain. Various dimensions, namely physical, psychological, cultural, political and socioeconomic, being identifiable, an interdisciplinary treatment is thus required. It is fully legitimate to consider it a social fact. Trends towards rendering responses to suffering a merely technical issue, namely psychiatrization, impose themselves a sociologically inclined approach, and in some cases even the consideration of strictly political traits. Both cultural aspects (including those related to religious life) and the economic facets are relevant to the consideration of this problem. Particularly, it is necessary to underline the importance of competitive consumption as a form of status signalization. This importance of consumption may, in some cases, contribute to reinforce social inequalities, which in turn may have negative repercussions in the general social welfare. This recognition, however, does not warrant that egalitarian redistribution measures are perceived as desirable, even from the point of view of its beneficiaries.
Keywords: suffering, pain, multidimensionality, medicalization, culture
RESUMEN
El sufrimiento constituye una realidad compleja, debiendo ser distinguido del dolor y demandando un tratamiento interdisciplinario. En él se identifican varias dimensiones en particular físicas, psíquicas, culturales, políticas y socioeconómicas, siendo plenamente legítimo considerarlo un hecho social. Las tendencias para la tecnología de las respuestas al sufrimiento, en particular la psiquiatrización, imponen por si mismas un enfoque de pendiente sociológico, en algunos casos viniendo incluso a varios rasgos estrictamente políticos. Tanto los aspectos relativos a la cultura y la vida religiosa como las cuestiones relativas a la economía son relevantes en la consideración de esta problemática. En particular, es necesario subrayar la importancia del consumo competitivo y el indicador de estado. Este relieve del consumo puede, en algunos casos, contribuir a reforzar las desigualdades sociales, de lo que a su vez se resiente el bienestar social general. Este reconocimiento, sin embargo, no garantiza que las medidas de redistribución igualitarias se consideren deseables, incluso desde el punto de vista de sus beneficiarios.
Palabras clave: sufrimiento, dolor, multidimensionalidad, medicalización, cultura
RÉSUMÉ
La souffrance constitue une réalité complexe qui doit être distinguée de la douleur et qui demande un traitement interdisciplinaire. On y identifie plusieurs dimensions, à savoir physiques, psychiques, culturelles, politiques et socioéconomiques. Néanmoins il est parfaitement légitime de la considérer comme un fait social. Les tendances pour rendre les réponses à la souffrance technologiques, telles que celles de la psychiatrie, imposent elles-mêmes une approche de penchant sociologique, dans certains cas marquant même plusieurs traits strictement politiques. Les aspects liés à la culture et à la vie religieuse, ainsi que les problèmes liés à l'économie, sont des questions majeures pour l'examen de ce problème. En particulier, il devient nécessaire de souligner l'importance de la consommation compétitive et qui sert à signaler le statut. Cet accent mis sur la consommation peut, dans certains cas, contribuer à renforcer les inégalités sociales dont, à leur tour, le bien-être social général éprouve les conséquences. Cette reconnaissance, cependant, n'est pas une garantie que des mesures de redistribution égalitaires seront considérées comme souhaitables, même du point de vue de leurs bénéficiaires.
Mots-clés: souffrance, douleur, multidimensionnalité, médicalisation, culture
Introdução: sofrimento e dor
Sofrimento e dor são realidades muito complexas, a cujo estudo toda uma multiplicidade de dimensões (físicas, psíquicas, socioculturais, políticas, econômicas...) deve ser referida. À guisa simultaneamente de distinção e de introdução podemos, duma maneira muito geral, referir sofrimento a qualquer sensação que provoca dor, mal-estar, desconforto ou infelicidade ao indivíduo, tanto no nível físico quanto no nível emocional. Embora seja razoavelmente clara a necessidade de definição exata do conceito de sofrimento, passando desde logo por distingui-lo relativamente a noções como desgosto e dor, esse empreendimento revela-se na verdade assaz espinhoso.
Em todo caso, e seguindo quanto a esse assunto a formulação sugerida por Paula Sapeta (2007), apesar de reconhecer estarem aqueles conceitos profundamente relacionados, importaria salientar que sofrimento não é o mesmo que dor. O sofrimento consiste na experiência da dor em cada indivíduo. Todavia, a dor física é apenas uma das dimensões e das causas potenciais envolvidas. De acordo com Manuela Fleming (2003), podemos dizer que ambos os termos, dor e sofrimento, designam emoções e afetos básicos, compreendidos entre a experiência mental e a experiência física. Entretanto, etimologicamente, sofrimento remete de forma predominante a uma condição generalizada e a uma capacidade de tolerância e resistência à experiência vivida, ao passo que dor é diretamente associado a um mal-estar com características e grau de intensidade determinados, sem levar em conta qualquer nível de tolerância a ele.
O fato de que, num largo número de casos, o sofrimento pode intensificar e prolongar situações de dor tende realmente a configurar uma inseparabilidade de conceitos, embora, em rigor, seja possível a existência de sofrimento sem dor e de dor sem sofrimento. Acresce ainda que, não sendo passível de estudo direto em laboratório nem de medição exata, o sofrimento apresentase como um fenômeno dependente de inúmeras variáveis. Podemos saber que determinado indivíduo sofre, mas não com que grau de intensidade. A dor não apresenta evidências, ela é simplesmente sentida. Por outro lado, deve-se sublinhar que, enquanto as experiências de prazer e de alegria são predominantemente consideradas normais, as situações de sofrimento ou dor tendem, pelo contrário, a revestir-se dum caráter de estranheza, frequentemente induzindo uma mudança nos hábitos de cada indivíduo, e não raro uma perda do interesse dispensado por este ao seu entorno social. De certo modo, é como se a consciência da existência de cada um tendesse então a sobrepor-se a tudo, suspendendo os controles exercidos pelos indivíduos relativamente às relações sociais (Le Breton, 2007).
Previsibilidade e controle são, de fato, inquestionavelmente aspectos importantes na consideração desse problema, segundo o que foi evidenciado por estudos feitos com animais e mostrado num texto de Jay M. Weiss (1972; cf. Graça & Correia, 2015), que descreveu os resultados de experiências realizadas com ratos de laboratório. Weiss submeteu dois ratos a choques elétricos de idêntica duração e intensidade, e apenas a um deles eram facultados meios de previsão e controle dos choques. Significativamente, e de acordo com o que esse investigador pôde então observar, o rato que não dispunha de meios de previsão e controle revelava uma perda de peso mais significativa, bem como úlceras gástricas e alterações neuroendocrinológicas, configurando um agravamento do estado de saúde global associado à apreensão da sua situação de impotência perante uma dor percebida como imprevisível e incontrolável.
Ainda quanto a esse grupo de temas, e seguindo a argumentação de Léo Pessini (2002), poderiamos definir a dor como uma perturbação, uma sensação no corpo, ao passo que o sofrimento constituiria um conceito mais abrangente e complexo. Em particular, no caso de doença, este corresponderia a “um sentimento de angústia, vulnerabilidade, perda de controle e ameaça à integridade do eu” (p. 60). Por conseguinte, é possível existir dor sem sofrimento e sofrimento sem dor: apenas cada um pode, em cada caso, senti-lo, e também aliviá-lo. Admitido isso, deve-se reconhecer que certo nível de dor e sofrimento pode ser tolerado, sendo na verdade utópico dizer que o alívio de toda dor e todo sofrimento deveria constituir um objetivo apropriado para o sistema de saúde.
A vulnerabilidade provocada pela doença exige uma resposta, chamada cuidado. Um dos principais perigos em negligenciar a distinção entre dor e sofrimento no contexto clínico é a tendência de os tratamentos se concentrarem somente nos sintomas físicos, como se fossem a única fonte de angústias para o paciente. (p. 60)
Esse fato resulta com frequência “na situação de pacientes que estão fisicamente mais confortáveis por causa da terapia da dor, mas cujo sofrimento continua presente” (p. 60). Mais amplamente, num contexto de crescente tecnologização do cuidado, seria portanto imperativo e urgente “o resgate de uma visão antropológica holística, que cuide da dor e do sofrimento humanos nas suas várias dimensões, ou seja, física, social, psíquica, emocional e espiritual” (p. 51).
Dimensões: física, psíquica, cultural, política, socioeconómica
Assumido que os indivíduos não são apenas corpos, mas também mentes (o que, embora possa parecer uma banalidade, é frequentemente esquecido), torna-se obviamente importante adotar uma abordagem transdisciplinar na reflexão sobre a problemática do sofrimento. Como diz Pessini, “ser gente é possuir um corpo, é ter um psiquismo e um coração, é conviver com os outros, cultivar uma esperança e crescer na perspectiva da fé em valores humanos” (2002, p. 66). Desse modo, o sofrimento assume por princípio múltiplas dimensões para além da meramente física (e mais diretamente referível à dor), dado que pode afetar o conceito que os indivíduos têm de si próprios e da sua ligação com os outros e com o mundo em geral.
Parece fazer sentido distinguir várias dimensões associadas ao sofrimento. Podemos, a princípio, considerar uma dimensão física. Trata-se da dimensão mais facilmente observável, resultando duma lesão corporal, momentânea ou progressiva, do indivíduo, a qual põe em causa o seu habitual desempenho físico e, consequentemente, a sua interação social. A dor, que em si mesma constitui um sistema fundamental de alarme sobre o funcionamento do corpo, em determinados contextos pode afetar um indivíduo em toda a sua globalidade (Pessini, 2002). Ela constitui na verdade uma resposta neurofisiológica complexa, que consiste na percepção de uma atividade produzida, através de estímulos, no sistema nervoso, que conduz à sensação de real ou potencial lesão nos tecidos (Sapeta, 2007).
Em simultâneo, existe aqui também, inegavelmente, uma dimensão psíquica. Trata-se duma dimensão complexa, com múltiplas causas possíveis e de difícil identificação e mensuração. Como assinala Pessini, essa dimensão surge habitualmente associada a “sentimentos caracterizados por mudança de humor, sentimentos de perda do controle sobre o processo de morrer, perda de esperanças e sonhos ou necessidade de redefinir-se perante o mundo” (2002, p. 61).
Devemos destacar que essa dimensão do sofrimento se encontra intimamente associada à problemática da medicalização. Essa tendência corresponde à propensão para a abordagem das questões do sofrimento essencialmente no plano individual, considerando as vertentes de imprevisibilidade e de conflito “como meras abstrações psicanalíticofilosóficas”. Os sofrimentos tornam-se, nesse âmbito, predominantemente “codificados em termos de uma nomeação própria do discurso médico, que se socializa amplamente e passa a ordenar a relação do indivíduo com sua subjetividade e seus sofrimentos”. Nesse contexto ainda, a produção de saber sobre o sofrimento psíquico, bem como o tratamento dele, passa a estar profundamente associada “à produção da indústria farmacêutica de remédios, que promete aliviar os sofrimentos existenciais”. Admitamos, quanto a isso, o que é absolutamente inegável: o uso dos psicofármacos trouxe importantes oportunidades de tratamento num significativo número de casos. Todavia, perante “o consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento exponencial da indústria farmacêutica”, é necessário evidenciar também “os efeitos de um discurso que banaliza a existência, naturaliza os sofrimentos e culpabiliza os indivíduos por seus problemas e pelo cuidado de si (racionalização própria da economia neoliberal)” (Guarido, 2007, p. 159).
João Matheus Acosta Dallmann (2013), depois de assinalar que assistimos a uma difusão social do conceito da doença através da sistemática midiatização dos sintomas, subscreve também a importante tese segundo a qual essa difusão visa propiciar que o próprio paciente possa diagnosticar-se, assim sugerindo ao médico os tratamentos a adotar. A propaganda tenderia, desse modo, a inculcar na generalidade das pessoas a noção de que medicar é equivalente a tratar, pelo que o bom médico seria aquele que medica: “Com os medicamentos psicofármacos, essa relação não será diferente” (p. 24).
Segundo Dallman, essa inclinação para a medicalização massiva teria ramificações políticas inegáveis, estando intimamente ligada à evolução das desigualdades sociais. Hoje em dia, sublinha o autor, quaisquer sinais de sofrimento psíquico tenderiam a ser considerados como passíveis de ser tratados, tomados enquanto mera patologia, cuja terapêutica ocorreria por excelência através da administração de psicofármacos. A referida tendência experimentou tal ampliação que poderiamos mesmo falar duma generalizada medicalização do social. Isso está, entretanto, muito longe de ser politicamente neutro, ou inocente. Na verdade, diante da impossibilidade de o Estado capitalista anular ou mesmo atenuar, por meio de políticas sociais ativas e bem-sucedidas, as profundas desigualdades sociais que constituem a origem dum inesgotável sofrimento das camadas sociais por elas mais atingidas, teríamos, como alternativa, a aceitação ou mesmo a escolha deliberada da trajetória da medicação em larga escala. A opção psicofarmacológica permitiria assim, de algum modo, suster o mal-estar dos sujeitos condicionalmente vinculados a uma política de governo.
Intimamente associada a essa propensão para a medicalização do sofrimento, ocorreria também, segundo Ceres Victora (2011), uma dificuldade cultural crescente em enfrentar o desafio apresentado pela indissociabilidade das dimensões físicas, psicológicas, morais e sociais do sofrimento, fato esse que suscitaria problemas significativos às formas usuais de lidar com uma componente importante dos fenômenos humanos. Na verdade, segundo corroborado por Eduardo Guedes Leal, o sofrimento incluiria tanto um aspecto somático como um outro, eminentemente psíquico, apesar do caráter artificial dessa distinção, visto que finalmente “o corpo é um lugar privilegiado, se não o único, para a manifestação do padecer psíquico” (2005, p. 56). Qualquer que seja a delimitação considerada mais adequada, genericamente o sofrimento manifestar-se-ia sempre de forma ativa, impondo-se ao indivíduo, sendo essa faceta passiva daquele que sofre contemplada precisamente na própria acepção comum do termo sofrimento.
Em todo caso, a inclinação para a psiquiatrização da vida afigura-se nos nossos dias amplamente consolidada, sendo muito amplo o conjunto das razões que motivam tal evolução. É verdade que, do lado dos psiquiatras, se expandiram as possibilidades de inclusão de realidades muitíssimo vastas dentro dos quadros da patologia. Por outro lado, há que levar em consideração igualmente os pacientes, da parte dos quais se registra outrossim “uma maior procura e uma aceitação de que seu sofrimento é do volume requerido para ser chamado de doença”. Desse modo, tanto da perspectiva acadêmica quanto da perspectiva leiga, registrar-se-ia uma clara redução, e mesmo um declínio consistente, das noções tradicionais de angústia moral e/ou existencial. A súmula das ideias contemporâneas corresponderia às interrogações: “Sofrer para quê? Não posso tomar uma medicação e abolir isso que me incomoda?”. Uma consequência possível dessa psiquiatrização da vida seria o aumento da “incidência de doenças mentais observada na clínica institucional e também em pesquisas”. A configuração fundamental da resposta subjetiva atual diante do sofrimento corresponde, em brevíssima síntese, ao seguinte quadro: 1) considera-se a maior parte dos sofrimentos “catalogável e tratável como doença psiquiátrica”; 2) fica consagrada uma menor resistência ao sofrimento, ocorrendo uma apreciável redução das dimensões daquilo que é entendido como tolerável; 3) aumenta a automedicação, ocorrendo uma significativa identificação com os modelos de doença apontados no primeiro item, e portanto também o autodiagnóstico; 4) tem lugar uma busca de modelos culturais inatingíveis e, na maior parte dos casos, meramente idealizados, um fato que pelo seu lado “pode acionar o item anterior” (Leal, 2005, pp. 59-60).
Ainda segundo Leal, devemos igualmente registrar, a psicanálise tenderia a proceder de modo consideravelmente diverso dos processos típicos da psiquiatria. Estando interessada em considerar de forma exaustiva quaisquer casos específicos, ela daria pouca importância às possibilidades de elaboração duma teoria geral qualquer, pretensamente aplicável a outros casos de configuração semelhante. Na verdade, e de acordo com a famosa doutrina iniciada por Freud, genericamente o sofrimento tem origem em causas muitas vezes não acessíveis ao sujeito em virtude duma série de motivos e condições. Mais radicalmente, essa realidade mesma do sofrimento “nunca chegou a se constituir como verdade, e precisa ser criada”. Assim, a própria possibilidade de nos referirmos a essa irracionalidade, da qual o sofrimento seria uma das expressões, “demanda uma tecnologia especial chamada linguagem, que subverte a experiência original, deixando o usuário da língua faltante ou, no mínimo, nostálgico” (p. 64). A questão fundamental, implicada pela clínica, interpela assim dois aspectos fundamentais:
Qual é o sofrimento (seu grau e qualidade) do indivíduo que é impermeável à palavra? E, não menos importante e mais suscitador de dúvidas, qual é o tipo de sofrimento imposto aos outros (sobretudo aos familiares) em razão da conduta do indivíduo em que a intervenção psicofarmacológica se faz indispensável? (p. 67)
Na formulação de Cristiane Daniel e Mériti de Souza (2006), a medicina habitual, por contraste, tendo as suas práticas fundadas no princípio de racionalidade, procura assim usualmente um grupo de causas ditas racionais, as quais são oficialmente explicáveis de forma científica, visando elucidar os males humanos. Essa atitude resultaria da assunção duma visão do homem como ser fundamentalmente consciente e racional. Nessa perspectiva, a medicina pensa o sofrimento humano enquanto doença, apelando a referenciais biológicos como forma de explicá-lo: “No caso específico da psiquiatria, vê-se que a preocupação principal é encontrar as causas biológicas para as psicopatologias e desenvolver formas de tratamento ideais calcadas no uso de psicofármacos”, fato do qual resultaria uma tendência consistente para desconsiderar a singularidade enquanto “aspecto constitutivo da existência humana” (p. 118).
Por confronto, a psicanálise adotaria uma concepção de sujeito como entidade perpassada pelo desejo, o sujeito do chamado inconsciente, o qual é constituído no meio duma realidade psíquica e social. Dessa outra perspectiva, a psicanálise enquanto teoria relativa à constituição subjetiva reporta-nos “os modos de organização psíquica e como os sintomas são produzidos na interação do psíquico com o social, ou seja, do homem com o outro” (Daniel & Souza, 2006, p. 118).
A dimensão cultural e religiosa do sofrimento decorre do fato de que os indivíduos necessitam encontrar uma explicação, um motivo e, mais amplamente, um sentido para as diversas circunstâncias com que se defrontam ao longo da vida, entre as quais a morte. Como nem sempre é possível alcançar tal desiderato, emerge um sofrimento que resulta da “perda de significado, sentido e esperança” (Pessini, 2002, p. 62). Na verdade, deve-se sublinhar que para os diversos sistemas religiosos o sofrimento humano é parte da explicação da maneira como o universo está organizado e opera. A sua vivência encontra-se, desse modo, associada a uma constante busca de significado, ou luta pelo significado. As formas como os sistemas religiosos operam são, todavia, muitíssimo variáveis. A tradição cristã, por exemplo, tende a relacionar o sofrimento e a dor com o pecado original, encarando-os assim como uma fatalidade inerente à própria condição humana. O sofrimento e a dor não constituem um castigo divino, sendo antes uma oportunidade de purificação da alma e de estreitamento da relação dos indivíduos com Deus. Para o islã, entretanto, o sofrimento e a dor constituem provações destinadas a medir a fé no Criador e, perante os desígnios da divindade, o ser humano deve submeter-se pacientemente. À semelhança do que se passa na tradição cristã, o sofrimento não é visto como castigo, mas, enquanto a tradição cristã é propensa a considerá-lo como natural e próprio da condição humana, o islã tende a percebê-lo como fruto da predestinação divina para um indivíduo, visando determinado objetivo, ainda que na maior parte dos casos tais objetivos e os seus encadeamentos factuais escapem ao entendimento humano.
Sobre esse assunto, deve-se registrar que já durante o século XIX, e no contexto simultaneamente dos conflitos de classe na Europa e do embate com outras civilizações induzido pela expansão colonial europeia, tanto Arthur Schopenhauer (1788-1860) quanto Friedrich Nietzsche (1844-1900), inicialmente seu discípulo, cultivaram um sentimento de admiração pela sociedade tradicional da Índia, ou seja, o sistema de castas e a correspondente crença hinduísta/budista na reencarnação. Segundo a interpretação desses filósofos, esse quadro configuraria o contrário do que acontecia com variedades ocidentais da religiosidade, nomeadamente o judaísmo e o cristianismo, nas quais identificaram uma inclinação escatológica fundamental relativa à história universal, a qual poderia ser considerada uma precursora de todas as teorias do progresso, aliás veiculando tendencialmente também uma ascensão de pontos de vista sociais igualitários. Se Schopenhauer retirou de tudo isso conclusões oficialmente pessimistas e uma atitude quietista em face da vida (a qual já levou comentadores a considerá-lo sobretudo um “genial farsante”), Nietzsche fez questão de confrontar explicitamente as implicações políticas de tais démarches filosóficas. Nesse sentido, quer as noções e crenças cristãs quer a variedade secularizada das mesmas disposições, isto é, fundamentalmente os ideários democráticos e socialistas, foram consideradas por ele uma expressão da canalha ou ralé, essencialmente denotando ressentimento, ou seja, as inconfessas e inconfessáveis inclinações vingativas por parte dos inadaptados, as quais teriam estado nos fundamentos de toda a agitação social nos últimos séculos, incluindo naturalmente a Revolução Francesa e os subsequentes ideários democráticos e socialistas. A essas inclinações macrohistóricas, Nietzsche contrapôs as suas próprias noções, ou mais exatamente os seus mitos: o eterno retorno do mesmo, o super-homem e a necessidade de viver perigosamente, como formas simultaneamente de afirmação de tudo aquilo que é vital e merecedor de permanência (daí a fundamental filosofia do sim, correspondente à ideia de que toda alegria quer a profunda eternidade) e dum sempre vigilante evitamento do que se encontra meramente inclinado para a rotina, invariavelmente denotando cristalização, declínio e decrepitude (Losurdo, 2002).
Quanto a essas cogitações, e independentemente da carga vastamente (e algo descontroladamente) especulativa delas, vale a pena sublinhar que, em todo caso, diferentes culturas tendem a perceber o sofrimento sob formas também muito diferenciadas. Uma pessoa vivendo hoje em dia num país do chamado Terceiro Mundo, por exemplo, está usualmente mais habituada a um modo de vida com recursos muito limitados. Por conseguinte, uma escassez de comida de curto prazo, ou mesmo a destruição de habitações, é não raro reconhecida como um evento relativamente normal, ao passo que as populações dos países mais desenvolvidos normalmente consideram qualquer escassez de alimento e/ou de habitação como ocorrências excepcionais, as quais são percebidas enquanto estrito sofrimento. Torna-se, todavia, muito difícil distinguir aquilo que pode com propriedade ser reportado a traços culturais mais perenes, nomeadamente as orientações religiosas predominantes na população, daquilo que corresponde a mudanças de atitude induzidas pelo próprio processo de desenvolvimento econômico (ou de enriquecimento) dos diversos países. A mesma inclinação religiosa de base pode, por conseguinte, induzir níveis muito diversos de resistência ao sofrimento, usualmente consoante o nível de riqueza e rendimento de cada sociedade.
O conceito de dimensão ético-política é especialmente utilizado por áreas como a psicologia, o serviço social ou a educação. Visa destacar acima de tudo as ideias de que o sofrimento não é apenas psíquico, que não se cinge ao aspecto individual e que os processos afetivos ocupam um lugar central na compreensão dos processos de sociabilidade. Na sequência da adoção desse tipo de abordagem, têm aliás sido fomentadas “intervenções mais comprometidas com a transformação da sociedade e ações mais voltadas às ações coletivas que colaborassem com o aumento da potência [ou empoderamento] das pessoas” (Bertini, 2014, p. 68).
Dimensões políticas do sofrimento foram sublinhadas por vários autores. Maria Cristina Rocha Barreto (2001) observa que ele assenta num conjunto de problemas e emoções, resultando das injustiças percebidas a que uma multiplicidade de forças sociais pode (e tende a) submeter a experiência humana. Como exemplo disso, é possível assinalar que certas ações do poder político, econômico e institucional influenciam o surgimento de determinados tipos de resposta a problemas sociais. A própria percepção do sofrimento, entretanto, varia significativamente consoante o poder de que dispõe aquele que sofre, tendo repercussões óbvias no processo de redefinição de limites entre o que se considera público e o que se considera privado: “O sofrimento social, com frequência, está associado às ações dos poderosos e tem a sua visibilidade na esfera pública, contrastando com aquele sofrimento que se desenrola dentro da esfera privada e tem o indivíduo como seu principal sujeito” (p. 17).
Segundo a mesma autora, assistiríamos na nossa época a um processo de hipertrofia do espaço público relativamente ao privado, acompanhado dum simultâneo esvaziamento de sentido da vida pública. Conflito e sofrimento, destaca, deveriam ser considerados formas de sociabilidade produzidas por essa conjugação de processos. Ocorrendo uma simultânea dispersão e fechamento do “espaço da individualidade”, aumentaria o “espaço do individualismo, enquanto sofrimento socialmente expresso”, ao mesmo tempo que o indivíduo, enquanto ser único, tenderia a recolher-se “às suas esferas mais íntimas” (Barreto, 2001, p. 30).
A dimensão social, em sentido muito estrito, está comumente associada a situações de dificuldade na interação social, nomeadamente casos de afastamento, isolamento, estigmatização, dependência ou perda do papel social (Pessini, 2002). Todavia, devemos registrar que a noção de sofrimento social ganhou importância crescente nas últimas décadas. Em concreto, segundo o que foi argumentado por Chiara Pussetti e Micol Brazzabeni, trata-se dum instrumento analítico particularmente apropriado para considerar “as relações profundas entre a experiência subjetiva do mal-estar e os processos históricos e sociais mais amplos” (2011, p. 468). De fato, enquanto sentimento humano, o sofrimento teria sido durante muito tempo imaginado como uma pretensa “experiência inata, ligada ao corpo natural e, portanto, universal - fenômeno pan-humano e pré-cultural, associado aos lugares simbólicos da interioridade -, pouco interessante, nesse sentido, e ainda menos acessível aos métodos da análise sociocultural” (p. 468). No entanto, considerando o assunto de forma mais atenta, descobrimos estar aqui perante um fato especificamente social. A noção de que o “mal-estar não pode ser observado e explicado independentemente das dinâmicas sociais e dos interesses políticos e econômicos que o constroem, reconhecem e nomeiam” (p. 468) surgiu oficialmente pela primeira vez em 1997, numa obra de Arthur Kleinman, Veena Das e Margaret M. Lock acerca da temática do sofrimento social. A narrativa do sofrimento, argumenta-se aí, necessita sempre ser interpretada tendo presente o contexto de relações de poder em que se insere, nomeadamente no que concerne à posição dos interlocutores e às ideologias predominantes nas diversas categorias. O sofrimento social decorre da ação da própria estrutura social, e não apenas de um indivíduo ou grupos de indivíduos, nomeadamente mediante as desigualdades patentes nas relações de poder das quais emergem inúmeros problemas que condicionam diretamente os indivíduos e as suas vivências quotidianas.
O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, econômico e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de poder podem influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento social é o resultado, em outras palavras, da limitação da capacidade de ação dos sujeitos e é através da análise das biografias dos sujeitos que podemos compreender o impacte da violência estrutural no âmbito da experiência quotidiana. (Pussetti & Brazzabeni, 2011, p. 469)
Quanto à dimensão econômica, várias componentes têm sido destacadas por múltiplas investigações, realizadas em diversos domínios disciplinares. Desde logo, uma clara correlação ficou evidenciada entre bem-estar e condição socioeconómica, a recuperação de eventos traumáticos importantes sendo mais lenta nos estratos inferiores de rendimento. O sofrimento bem como o stress que lhe está associado induzem também frequentemente à adoção de estilos de vida destrutivos, incluindo alcoolismo, tabagismo, abuso de drogas, inatividade física e alimentação de má qualidade, o que aumenta a propensão para a ocorrência de várias doenças crónicas.
Tomados em conjunto, esses acontecimentos devem ser considerados um fato social, na medida em que se trata iniludivelmente de algo que é generalizado e repetitivo, mas devemos registrar que eles tendem a ser percebidos pelos intervenientes diretos enquanto formas estritamente privadas de sofrimento. Por outro lado, as escolhas erradas feitas em resposta a condições de sofrimento e ao correlativo stress influenciam a condição psicossocial dos indivíduos, particularmente por promoverem condições de isolamento. Exercem igualmente uma influência negativa na trajetória dos indivíduos, em especial no que diz respeito a aspectos profissionais, promovendo até mesmo, em certas circunstâncias extremas, a perda quer de controle quer de recursos, incluindo negócios, investimentos e poupanças.
Economia e consumo: utilidade, felicidade e sofrimento
É igualmente importante, em qualquer discussão dos conceitos de dor e sofrimento, colocá-los em contexto e em confronto (lógico, psicológico e sociológico) com noções como prazer e utilidade, frequentemente tomadas pela tradição da ciência económica oficial, ou mainstream economics, como variável ou variáveis que o chamado agente racional deveria tender a maximizar, ou era suposto maximizar na sua conduta. Reconhecidamente, o modelo analítico da economics constitui uma simplificação abusiva e redutora, e de resto as próprias noções centrais de prazer e utilidade só de forma muito rara e pontual são analiticamente escalpelizadas de forma cuidadosa. É óbvio, num certo sentido, que uma pessoa “normal” deverá tender mais a buscar o prazer do que a dor, mas isso nem sempre é assim, pelo menos de forma inequívoca, e no sentido de incluir mesmo as exceções notórias a tendência prevalecente da economics corresponde à afirmação de que a função utilidade é simplesmente assumida e registrada pelo economista, através da observação da chamada procura manifesta dos agentes, sem que a sua formação das preferências, ou da referida função, seja objeto de mais considerações. Noutros termos, “gostos não se discutem”, ou pelo menos a mainstream economics não os discute e declara abertamente não pretender discuti-los.
Nesse âmbito, entretanto, várias questões espinhosas tenderam inevitavelmente a emergir. Entre outras, refiramos as seguintes: será que os setores mais ricos duma sociedade qualquer obtêm em geral mais prazer (ou mais utilidade, ou mais satisfação) do que os mais pobres? Que relações existem entre a evolução econômica geral num país e os progressos da satisfação da sua população? E que conclusões retiraremos nessas matérias procedendo a comparações entre países? Numa obra que ficou justamente famosa, The joyless economy (1992), Tibor Scitovsky mostrou que, apesar do crescimento do PIB per capita observado nas décadas anteriores nos eua, o nível geral de satisfação declarado da população norte-americana tinha permanecido aproximadamente o mesmo, e que um padrão de maior satisfação declarada continuou também a ocorrer no segmentos mais opulentos, por comparação aos mais pobres.
Quanto ao primeiro aspecto, a tese central de Scitovsky consiste em relacionar a satisfação não com o nível absoluto de riqueza, que toma como equivalente aproximado da noção de conforto, mas com o processo de saída de situações de desconforto para outras, ditas de conforto. Noutros termos, a fonte de verdadeira satisfação corresponderia não em permanecer num certo nível de riqueza, mas no processo de enriquecer, com o que se passaria dum desconforto relativo para uma situação de conforto acrescido. Essa tese, só por si, tem implicações já bastante significativas, porque sugere a necessidade dum crescimento continuado da riqueza e/ou do rendimento, medido através do PIB, como forma de simplesmente manter níveis gerais de satisfação, não de os aumentar. Entretanto, a simples permanência num nível de rendimento constante já tende a induzir um mal-estar crescente, e, por maioria de razão, as situações de retrocesso da capacidade aquisitiva implicam quase invariavelmente um enorme sofrimento.
Por outro lado, sublinha Scitovsky, esse mal-estar, associado a um nível mais elevado (mas apenas estável) de conforto, promove frequentemente o surgimento de práticas como o jogo fútil, o consumo meramente passivo e preguiçoso, e em geral a disposição para o confronto com outros, por vezes mesmo para práticas agressivas e violentas, associadas a uma margem de risco (pequeno, mas presente), do qual se aprende todavia a tirar prazer, sob a forma de um sentimento de, precisamente, ter sido capaz de evitá-lo em termos práticos, ter sido capaz de get away with it: de ter prosseguido a referida conduta nociva e arriscada sem chegar a sofrer quaisquer retaliações por isso.
Esse traço comportamental é posto por Scitovsky em relação direta com o aumento de tendências para a violência e o crime na sociedade norteamericana, frequentemente correspondendo a segmentos de rendimento não muito elevado, mas em todo caso bem acima do limiar absoluto da pobreza, e não raro associados a setores ociosos, como desempregados e jovens em situação de insucesso escolar e subsequente exclusão do sistema de ensino. Mas Scitovsky sublinha que, noutros contextos institucionais, como as sociedades europeias da Idade Moderna, por exemplo, tal ociosidade produzira outrossim práticas violentas e competitivas, que nessa altura costumavam ser associadas à prática política então considerada “normal” e às correspondentes lutas pela obtenção do poder. Noutro sentido, embora não seja essa a linha principal da investigação do autor, poderiamos decerto estender essas sugestões de pesquisa à análise do chamado crime do colarinho branco, hoje em dia tantas vezes referido, sobretudo no contexto das tendências mais recentes de irrupção de crises financeiras, com toda a componente de conduta lesiva (e não raro mesmo criminosa em sentido estrito) que lhes está normalmente associada. Que fazer com essa ociosidade cada vez mais frequente, que, em parte por desconforto e tédio, pode conduzir ou fazer propender a práticas agressivas?
Outra dimensão importante do estudo de Scitovsky é a que se refere à discussão das desigualdades. Reconhecidamente, os mais ricos estão em geral numa situação em que experimentam um maior nível de satisfação, o que em parte expressa uma mera satisfação de status, mas em parte também uma satisfação profissional: “quer o estímulo que o trabalho fornece, quer a autoestima que o trabalho bem desempenhado fornece”, escreve o autor (1992, p. 136). Noutros termos, geralmente os grupos mais ricos apreciam a posição que ocupam diretamente (pela condição elevada ou status a ela associado), mas também indiretamente, pelo maior envolvimento profissional genuíno que habitualmente pode acompanhar tais situações.
Todavia, acrescenta Scitovsky, a maior satisfação traduz na verdade sobretudo uma trajetória social ascendente. Noutros termos, são aqueles cuja situação relativa experimentou uma melhoria que produzem juízos positivos nessa matéria. Por quê? A explicação reside na importância do hábito e da viciação:
Muitos confortos são satisfatórios de início, mas depressa se tornam rotina e são considerados como garantidos. A procura do consumidor por eles não sofre redução, mas o motivo originário, o desejo de satisfação adicional, é substituído pela nova e muito diferente motivação de evitar a dor e a frustração de ter de desistir duma prática a que nos habituáramos. A inferência a partir do comportamento de mercado observável nunca revelará essa mudança na motivação, mas a justaposição duma significativa melhoria no bem-estar material com a escassa mudança na felicidade autoatribuída sugere a presença e a relevância de tal fator. (Scitovsky, 1992, p. 137)
Esses aspectos, conclui o autor, destacariam a importância do assunto que é a novidade, todavia um tema habitualmente desconsiderado no discurso econômico. Assim, estaremos perante uma componente incontornável de inveja na conduta humana? É esse, em boa medida, o tema abordado por Robert Frank em Falling behind: how rising inequality harms the middle class (2007), obra na qual discute algumas das consequências do aumento das desigualdades nos eua, em particular a sobrecarga de esforço imposta a vários segmentos usualmente designados como classe média, cuja posição estaria ameaçada de várias perspectivas, seja em termos econômicos, seja em termos de prestígio. As duas dimensões, de resto, estão estreitamente ligadas na análise de Frank, a qual porém remete menos para uma genérica componente de inveja, enquanto pretenso traço da condição humana, do que para o contexto concreto da evolução da sociedade norte-americana nas últimas décadas, sobretudo desde a chegada ao poder de Ronald Reagan em 1980, e o subsequente triunfo das concepções neoliberais em matéria de política econômica.
A argumentação de Robert Frank encontra-se estruturada em torno dos seguintes pontos fulcrais, enunciados pelo próprio autor: 1) as pessoas dão mais importância ao consumo relativo nalguns campos do que noutros (ou seja, a importância daquilo a que Frank chama bens posicionais é maior nalguns aspectos da existência do que noutros); 2) as preocupações com o consumo relativo levam a uma corrida armamentista posicional, ou a gastos com uma corrida armamentista centrada em bens posicionais, ou bens indicadores duma posição social relativa; 3) as corridas armamentistas posicionais fazem divergir recursos de bens não posicionais, causando significativas perdas de bem-estar; 4) para as famílias da classe média, as perdas provocadas por corridas armamentistas posicionais foram significativamente agravadas pelos níveis de desigualdade crescentes observados na economia e na sociedade norte-americana.
O bem posicional típico na análise de Robert Frank é a habitação, cuja dimensão média tendeu a crescer de forma muito significativa, sobretudo em virtude da sua condição de bem indicador de ranking social. A importância simbólica da habitação teria levado vários segmentos da classe média norteamericana a uma afetação excessiva de recursos nesse setor, conduzindo-os a descurar outros aspectos, como os gastos com a educação dos filhos, habitualmente prezados em nome duma possível mobilidade social ascendente destes ou, pelo menos, do evitamento da sua mobilidade social descendente. Também teria levado à crescente aceitação (ou mesmo adoção voluntária) de rotinas de trabalho excessivas e esmagadoras, comprometendo diversos aspectos da existência dos referidos membros da classe média, incluindo as suas possibilidades de trajetória social ascendente a longo prazo. E veio, enfim, diretamente associada a uma diminuição significativa dos níveis de bem-estar.
Essas interessantíssimas observações de Robert Frank (cf. também Powdthavee, 2007) devem ser consideradas num contexto já bem diverso daquele da obra de Scitovsky: nomeadamente, a convicção quanto às possibilidades dum crescimento econômico continuado, indefinido, é agora bem menor, e também é menor a própria possibilidade assumida de ascensão social. Contudo, podemos facilmente acoplá-las, fazendo-as completar-se: aceitando-se genericamente o quadro intelectivo de Scitovsky, o panorama aludido por Frank enuncia facilmente uma descida acentuada dos níveis de bem-estar, e mesmo um aumento vertiginoso dos níveis de pura e simples percepção de miséria pelos próprios norte-americanos, pelo menos os norte-americanos médios.
Mais amplamente, as cogitações de Scitovsky e de Frank se afiguram para nós como podendo e devendo ser reportadas ao próprio conceito de sofrimento psíquico (e social), que é, mais recentemente e num âmbito acadêmico muito diverso, avançado por Breno Bittencourt Santos (2017). Esse conceito visaria sublinhar acima de tudo o sofrimento subjetivo do indivíduo em face da nova organização social contemporânea, a qual tenderia a exigir graus crescentes de adequação dos indivíduos às normas sociais, desse modo gerando tensão nas relações entre indivíduo e sociedade. Essa noção estaria, assim, fundada no argumento de que,
para além de componentes biológicos, o sofrimento pode ter como causa as mudanças decorrentes da emergência da modernidade, marcada sobretudo pelo paradoxo existente entre, de um lado, o fortalecimento do individualismo, ou seja, a exigência para que o indivíduo aja por si mesmo, tome suas próprias decisões, tenha autodomínio e, logicamente, que seja responsável pelas consequências de seus atos, e, por outro lado, a ausência dos meios para a realização de sua subjetivação, especialmente nas situações de exclusão social. (Santos, 2017, p. 320)
Nesse contexto, a crescente importância da dimensão simbólica do consumo nas sociedades contemporâneas poderia e deveria ser pensada mais amplamente enquanto passagem duma sociedade de produtores para uma sociedade de consumidores. Se na sociedade de produtores o trabalho é considerado o fulcro da autonomia dos indivíduos, o trabalho sendo representado como o principal fator de integração dos indivíduos (dado que a lógica da sociedade de produtores corresponde ao desempenho, por cada indivíduo, dum papel produtivo na sociedade, sob pena de deslegitimação enquanto cidadão, no caso de não conseguir ocupar uma posição profissional socialmente aceita e legitimada dentro da hierarquia social), na sociedade de consumidores o lugar social ocupado por cada um tenderia “a ser determinado principalmente a partir da capacidade de consumo do indivíduo, sobretudo dos itens de maior valor social, isto é, aqueles mais desejados, em virtude especialmente dos apelos publicitários que são veiculados sobre eles” (Santos, 2017, p. 323).
Considerando esse assunto com mais atenção, porém, facilmente verificaremos que o sofrimento psíquico potencialmente experimentado na sociedade de consumidores não está confinado aos consumidores falhados, isto é, aos indivíduos desprovidos dos recursos monetários necessários para a sua manutenção na condição de consumidores ativos. De fato, o “sofrimento psíquico proveniente da exigibilidade do consumo pode abranger um universo muito maior de indivíduos, inclusive aqueles que estão permanentemente engajados no consumo, gerando assim uma espécie de segundo grupo de portadores de sofrimento psíquico” (Santos, 2017, p. 325).
Ainda de acordo com o autor, o ato de consumir, sem embargo de constituir uma poderosa fonte de prazer e de satisfação pessoal, pode também no limite - dado o fato de se tornar uma obrigação heteroimposta enquanto determinante da organização social contemporânea, mas ao mesmo tempo percebida como autoimposta - induzir diversas formas de sofrimento psíquico, particularmente a depressão e a compulsão,
seja pelo mal-estar causado aos indivíduos que não têm os meios necessários para satisfazer a condição de consumidores, existindo aí uma clivagem de classe social, seja pelo fato de o consumo significar um processo orientado para um fim cujo término nunca ocorre, tornando-se o consumo uma fonte de compulsões e de comportamentos repetitivos devido à impossibilidade de satisfação plena. (Santos, 2017, pp. 325-326)
Nesse sentido, apesar de o consumo constituir o principal meio para a aquisição e a demonstração de sucesso pessoal, simultaneamente e de modo radicalmente contraditório ele encontra-se também impossibilitado de conduzir os indivíduos a qualquer estado de satisfação plena, e isso precisamente em virtude da própria dinâmica interminável da acumulação capitalista, “realimentando de forma permanente o ciclo de desejo-aquisição-desilusão-desejo renovado, ... em que a satisfação de uma necessidade sempre leva, imediata e necessariamente, ao desejo de satisfação de outras necessidades, num processo inesgotável de geração de insatisfações e frustrações” (Santos, 2017, p. 326).
Dessa forma, bem longe de significar a possibilidade de alcance da plenitude por meio da aquisição de “objetos de desejo constantemente criados e recriados pela indústria”, a repetição dos atos de consumo pode facilmente desembocar, pelo contrário, em situações de verdadeiro sofrimento psíquico. A aquisição de bens materiais e simbólicos socialmente valorizados somente é tornada possível aos indivíduos através da obtenção de recursos financeiros adicionais, que por sua vez apenas são alcançáveis por meio de cargas de trabalho adicionais. “Isso significa que o indivíduo deve trabalhar cada vez mais para tentar obter mais recursos para a satisfação de suas necessidades de consumo, o que pode acarretar consequências prejudiciais ao próprio consumidor diligente.” Para além da própria insatisfação suscitada pelos produtos obtidos, dado que é impelido pela obsessão com a novidade, desejando sempre outros, defrontará também a diminuição do tempo livre, potencialmente fragilizando as suas relações com familiares e amigos, “tornando-o ainda mais isolado, dedicado somente às funções produtivas e de consumo” (Santos, 2017, pp. 325-326).
Na verdade, embora sem a mencionar, dir-se-ia que Breno Santos tem em mente a noção de heterogonia de objetivos (Heterogonie der Zwecke), discutida pelo economista Joseph A. Schumpeter (1943/1976) - a partir da obra de Wilhelm Wundt - como alegação a favor da ideia de vitalidade do capitalismo, precisamente em virtude das possibilidades abertas por mercados de consumidores reciprocamente invejosos e competitivos, perpetuamente insatisfeitos, permitindo, por isso mesmo, um crescimento incessante das atividades produtivas. Nesse regresso à consideração da economics, uma breve referência é devida aos estudiosos da chamada economia da felicidade, os quais têm sublinhado em diversos trabalhos recentes aspectos interessantes dessa problemática.
Segundo Richard Layard, numa sociedade moderna, em condições de ausência de fiscalidade, as pressões sociais competitivas rapidamente produziriam não a felicidade, mas a infelicidade coletiva: “Existe já evidência suficiente para demonstrar para além de qualquer dúvida que, na ausência de impostos, a rivalidade e o hábito levariam a um esforço excessivo e autodestrutivo” (2005, p. 17). Já Patrick Trumpy garante-nos que a hipótese de um acréscimo marginal continuado (embora decrescente) da felicidade, como consequência dos aumentos continuados de rendimento, contrasta com a evidência empírica, a qual sugere em vez disso “planaltos de felicidade depois de um certo nível” (2008, p. 66).
Por sua vez, Oded Stark e You Qiang Wang (2007) asseveram que a existência de desigualdades econômicas, associada às componentes psicológicas normalmente correlativas dos hábitos de consumo (nomeadamente as componentes sinalizadoras de status), conduz por princípio a um acréscimo de práticas de segregação recíproca, cada um tendendo a conviver habitualmente com os seus pares. Perguntando-se se poderíamos viver vidas mais felizes, Richard A. Easterlin declara apoiar-se nos dados da pesquisa para fornecer ele mesmo a solução: “A resposta aproximativa, baseada na evidência disponível, é, sugiro, a seguinte: a maioria das pessoas poderia aumentar a sua felicidade dedicando menos tempo a obter dinheiro, e mais a motivos não pecuniários, como vida familiar e saúde” (2004, p. 16).
Enfim, Bruno S. Frey e Alois Stutzer, debatendo a eficácia maior ou menor de diversas medidas de apoio social, umas apontando para subsídios aos pobres, outras para a provisão pública de empregos, optam decididamente por essa segunda variedade. A política fiscal deve, é verdade, levar em consideração em que medida os vários grupos sociais são por si afetados, pelo que os seus resultados no nível geral de felicidade são frequentemente duvidosos. Entretanto, se defrontarmos diretamente a questão de como podem os mais pobres ser ajudados, a resposta é:
Se o rendimento baixo é causado por desemprego, a pesquisa sugere que o resultado obtido é escasso se procedermos provendo um rendimento adicional às pessoas. Em vez disso, a política deveria ser dirigida ao fornecimento a essas mesmas pessoas de oportunidades de emprego adequadas. (Frey & Stutzer, 2002, p. 14)
Notas conclusivas
À maneira de breve súmula conclusiva, devemos pois destacar do conjunto das considerações feitas:
Dor e sofrimento são realidades muito complexas, do estudo das quais as dimensões psíquicas, socioculturais, políticas e econômicas não devem nunca ser apartadas.
A tendência para a medicalização, incluindo o uso de psicofármacos, é nos nossos dias inegável, devendo a sua consideração ter lugar no contexto da competitividade exacerbada e das compulsões para o consumo que também caracterizam o nosso tempo.
Tais realidades são eminentemente gerais, ou repetitivas, pelo que se impõe um diagnóstico delas enquanto fatos sociais.
Os grandes sistemas de crenças de índole religiosa (lato sensu) não devem ser desconsiderados no tratamento desses temas, mas tampouco devem ser tomados como realidades estanques, imutáveis e/ou impermeáveis a diversas outras dinâmicas sociais.
A promessa de felicidade associada ao consumo pode bem resultar predominantemente ilusória, danosa e mesmo contraproducente, tendo em conta as dificuldades de várias das economias contemporâneas (pelo menos, nos chamados países ocidentais e do Primeiro Mundo) em observar ritmos de crescimento constantes e continuados.
As questões relativas às desigualdades sociais são absolutamente fulcrais para esse tema, o aumento delas sendo, por princípio, correlativo de maiores níveis gerais de infelicidade.
A alínea anterior deve ser considerada tendo em conta, em particular, as pressões exercidas sobre a chamada classe média, associadas à compulsão para o consumo dos bens posicionais, nomeadamente a habitação.
Ao mesmo tempo, meras medidas de redistribuição econômica dos recursos através de políticas sociais afiguram-se longe de poder ser consideradas satisfatórias, parecendo mais recomendável uma aposta na promoção da realização pessoal generalizada, nomeadamente através da garantia do pleno emprego, ou da consagração material do chamado direito ao trabalho.
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Correspondência:
João Carlos Graça
Instituto Superior de Economia e Gestão
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Rita Gomes Correia
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Recebido em 28/10/2018
Aceito em 30/10/2018