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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.56 no.3 São Paulo jul./set. 2022  Epub 05-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/0486-641x.v56n3.05 

Artigo

O analista e a ação terapêutica da psicanálise: Reflexões sobre análise pessoal e formação analítica

El analista y la acción terapéutica del psicoanálisis

The analyst and the therapeutic action of psychoanalysis

L’analyste et l’action thérapeutique de la psychanalyse

João Baptista Novaes Ferreira França1 

1Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); São Paulo


Resumo

O autor parte do trabalho de Strachey sobre a ação terapêutica da psicanálise como objetivo e descrição do processo de análise. Pensa que esse conceito se aplica também ao analista, em sua análise de formação e quando for atender pacientes. Considera a importância da transferência e contratransferência no encontro analítico e comenta aspectos institucionais da formação analítica, como a procura de uma cidadania analítica, os conteúdos manifestos e latentes no dia a dia e nos regulamentos da instituição, e a presença de terceiros nas análises e supervisões. Destaca ainda questões de análise pessoal com sugestões, ajustes e perspectivas quanto à formação.

Palavras-chave ação terapêutica da psicanálise; transferência e contratransferência; formação psicanalítica; cidadania psicanalítica; análise pessoal

Resumen

El autor parte de la obra de Sstrachey sobre la acción terapéutica del psicoanálisis como objetivo y descripción del proceso analítico. Piensa que este concepto se aplica también al analista en su análisis de formación y cuando trabaja con su paciente. Considera la importancia de la transferencia y de la contra transferencia en el encuentro analítico y comenta los aspectos institucionales de la formación analítica como la búsqueda de una ciudadanía; destaca los contenidos manifiestos y latentes en el cotidiano y también en las regulaciones de la institución, como la presencia de terceros en el análisis y supervisiones. Después de centrarse en las cuestiones del análisis personal, termina por presentar consideraciones y sugerencias sobre la formación

Palabras clave acción terapéutica del psicoanálisis; transferencia y contratransferencia; formación psicoanalítica; ciudadanía psicoanalítica; análisis personal

Abstract

Taking as starting point the article of Strachey on the therapeutic action of psychoanalysis, the author refers to the goal and description of the analytic process, thinking that this concept applies to the analyst as well, during his training and when he is going to work with his patient. He considers the importance of transference and countertransference in the psychoanalytic encounter, and comments on the institutional aspects of the analytic training, such as the search for a citizenship, the manifest and latent contents of the institution, as well as its rules, and the presence of thirds in the analysis and supervisions. After considering questions of personnel analysis, he presents suggestions on the analytic training.

Keywords therapeutic action of psychoanalysis; transference and countertransference; psychoanalytic training; psychoanalytic citizenship; personal analysis

Résumé

L’auteur part de l’œuvre de Strachey sur l’action thérapeutique de la psychanalyse en tant qu’objectif et description du processus analytique. Il croit que ce concept s’applique également à l’analyste dans leur analyse de formation et lorsqu’il commencera à travailler avec des patients. Il considère l’importance du transfert et du contre-transfert dans le cadre analytique et commente des aspects institutionnels de la formation analytique tels que la recherche d’une citoyenneté, les contenus manifestes et latents dans le quotidien et les réglementations de l’institution, la présence des tiers dans les analyses et les supervisions. Il souligne les questions de l’analyse personnelle, en présentant des suggestions, des ajustements et des perspectives concernant la formation.

Mots-clés action thérapeutique de la psychanalyse; transfert et contre-transfert; formation psychanalytique; citoyenneté psychanalytique; analyse personnelle

Neste artigo, vou partir da ideia de ação terapêutica da psicanálise tal como exposta por Strachey em seu artigo de 1934, baseado nas concepções de Freud e Klein sobre o processo analítico. Penso que esse conceito também se aplica ao analista, e não só ao paciente, uma vez que o analista também foi objeto dessa ação durante a sua análise pessoal.

A elaboração da análise de sua transferência, enquanto foi paciente, juntamente com outros elementos de sua formação, prepara o analista para observar sua contratransferência no atendimento clínico.

Os objetivos da psicanálise e a ação terapêutica da psicanálise

Em 1934, James Strachey publicou no International Journal of Psychoanalysis um artigo intitulado “Sobre a natureza da ação terapêutica da psicanálise”, o qual pela sua importância foi republicado, sendo objeto de estudos e comentários de diversos autores.

Nesse trabalho, Strachey detalha a dinâmica da transferência, baseando--se na segunda tópica de Freud no que se refere ao objeto ao qual é dirigida a transferência, vista como projeção do superego do paciente no analista; este por sua vez, através do que o autor chama de interpretação mutativa, propicia a referida ação terapêutica, que consiste na elaboração e transformação da vivência de superego do paciente, de figura benevolente ou persecutória, correspondendo a um superego arcaico, em uma figura realista, processo que constitui a ação terapêutica privilegiada pelo autor e um dos objetivos da psicanálise clínica.

A dinâmica descrita por Strachey, centrada em um aspecto da concepção de transferência, é fruto de uma relação intersubjetiva entre paciente e analista, com uma transformação do psiquismo daquele.

Minha proposta neste trabalho é de que podemos encarar outro lado da questão, focalizando o analista e sua formação e a circunstância de ser ou ter sido um paciente, raiz de sua capacitação para exercer seu ofício, no atendimento clínico.

Em 1999, Robert Caper publicou o livro A mind of one’s own, traduzido para o português com o título Tendo mente própria. Essa obra tem como subtítulo Uma visão kleiniana do self e do objeto. O autor reúne diversas contribuições anteriores sobre o tema e focaliza o trabalho citado de Strachey sobre a ação terapêutica da psicanálise, mas prioriza a diferenciação entre o eu e o outro, a partir da evolução do narcisismo.

Considero fundamental o propósito e meta de desenvolver uma mente própria de um paciente em análise, seja na clínica em geral, seja na análise de formação, independentemente do embasamento teórico adotado.

Pretendo agora abordar o percurso do paciente e o do analista, a partir das origens da psicanálise com Freud, e como isso se ampliou nas instituições psicanalíticas que visam à formação de analistas.

Tornar-se analista é um percurso árduo, que se inicia com uma necessidade pessoal, inquietações, às vezes sintomas, e que prossegue com a necessidade de obter ajuda, de se entender, de alcançar alívio para um sofrimento ou adoecimento. Mantendo essa analogia com os adoecimentos físicos, o sentimento é o do desejo de “curar-se”.

Prossegue ainda com a ideia de “curar” os outros, transformando tais vivências em profissão. A palavra cura tem conotação imediata de adoecimentos físicos e pertence ao universo médico.

Freud (1912/1974a), mesmo tendo formação médica e dentro de uma filosofia positivista, fez advertências sobre o desejo de curar, em um trabalho sobre técnica.

O percurso - da necessidade pessoal à profissão - foi vivido por Freud, que experimentou semelhantes inquietações quando jovem, filho de uma família judia que se estabeleceu em Viena no fim do século 19. Graças a sua genialidade - leia-se: a combinação de dotes, um senso acurado de observação, a criatividade, sua história de vida e muito trabalho - criou a psicanálise. Prosseguindo com suas pesquisas e achados, desenvolveu um conjunto notável de insights e teorizações, que foi ajustando e modificando por mais de 40 anos.

Constitui tema instigante definir o objetivo de uma psicanálise clínica não por meio do desejo de cura, palavra que carrega a mencionada ligação com a origem médica da psicanálise e o sofrimento físico ou emocional dos pacientes.

Procuramos tornar consciente o inconsciente, ou então, onde haja id que haja ego, alcançar a posição depressiva? Contemplar crescimento, desenvolvimento, ressignificação? Encontrar um lugar para viver uma vida verdadeira, e não com um falso self? Ter experiência emocional, elaborar K, intuir ou viver O?

Como Roussillon (2012/2019), penso que no encontro analítico acontece um contrato narcísico, de acolhimento do paciente em suas manifestações conscientes e inconscientes, evoluindo para um contrato simbólico, no qual se experimentam e se realizam os aspectos de assimetria e diferença entre analista e paciente, com a possibilidade de desenvolvimento da mente própria deste.

Num trabalho de Steiner (1992), encontramos uma descrição primorosa dos objetivos da psicanálise quando esse autor ilustra a evolução das ideias de psicanalistas sobre o processo de análise e sua fundamentação teórico-clínica.

Com uma ilustração clínica muito elucidativa, o autor parte das ideias de Freud; a seguir focaliza sucessivamente as contribuições de Klein, antes e depois de formular o conceito de identificação projetiva, e as contribuições de Bion; termina o artigo focalizando as ideias de Money-Kyrle sobre preconcepção e desenvolvimento cognitivo.

No artigo “Dois verbetes de enciclopédia” (1923/1974b), Freud definiu três campos, limitando aquilo que poderia ser chamado de psicanálise: uma técnica para a investigação de processos mentais (a revelação do inconsciente através de procedimentos técnicos), um método para o tratamento de desordens neuróticas (a clínica psicanalítica) e concepções que em conjunto constituem uma teoria sobre a natureza humana.

No que diz respeito à teoria da natureza humana, a psicanálise tem se constituído num rico conjunto de elementos da cultura e num campo do saber que muito contribuiu para o conhecimento do ser humano e suas relações sociais.

Nesse acervo de conhecimento, vários pesquisadores da natureza humana e mesmo do bebê humano se destacaram, como médicos, neurologistas, filósofos e artistas. A literatura, o cinema e a arte em geral se tornaram parceiras de nossa disciplina.

Como teoria particular do psiquismo (da natureza humana), a psicanálise constitui uma das bases da clínica - por isso estudamos a constituição do psiquismo, as pulsões, as defesas, as relações de objeto, o narcisismo etc.

Um estudo abrangente dessas ideias e a construção e assimilação desses conceitos são pilares na formação de um psicanalista. A curiosidade sobre quem sou eu, quem é o outro, não é exercício meramente intelectual, mas faz parte das angústias inerentes ao ser humano, às voltas com as vivências de vida - a apreensão temerosa da beleza - e os fantasmas da morte.

No entanto, dos três campos definidos por Freud, vamos destacar neste trabalho o da clínica, que figuramos como o encontro de dois seres humanos na sala de análise, com toda a sua história pessoal aí presente, base das transferências e contratransferências, um deles procurando ajuda e o outro fornecendo o que seu crescimento pessoal e sua expertise podem proporcionar.

O que vai caracterizar a psicanálise como profissão, como ofício a ser aprendido, é a clínica, o atendimento como atividade paciente, trabalhosa e artesanal. Procuramos descrever os aspectos essenciais do trabalho de um psicanalista no dia a dia de sua clínica. É a ele ou ela que se destinam os institutos de formação em sua complexidade e em seus desafios.

O que é um psicanalista? Quem é ele? O que ele faz?

Ser psicanalista clínico refere-se à prática de uma função complexa, exercida por alguém que adquiriu determinada identidade a serviço dela.

O que é a função analítica? A que se propõe o psicanalista em seu mister?

Freud iniciou seu percurso pela invenção de um método para revelar o inconsciente, fonte oculta dos conflitos e sofrimentos, e logo sentiu que no encontro e no processo analítico aparecia e se desenrolava a transferência.

Transferência e ação terapêutica da psicanálise

Desde o caso Dora (1905/1974c), Freud percebeu e conceituou a ocorrência da transferência no processo de análise. Vou destacar a seguir a transferência e a contratransferência presentes no encontro analítico e a maneira como seu conhecimento e sua experiência na análise de formação influem na aquisição de uma mente própria e na formação do analista.

As primeiras concepções de Freud sobre transferência descrevem o fenômeno, em uma visão da primeira tópica, como um deslocamento para a figura do analista das questões edípicas do paciente. A ênfase estava posta no inconsciente e na possibilidade de seu conhecimento por meio da relação com uma pessoa especial, revestida de idealização, e através de um método especial.

O desenvolvimento das ideias de Freud sobre a transferência foi ampliado por autores como Klein (1951/1985), Kohut (1971/1988), Ogden (1994/1996b) e Roussillon (2012/2019), que trouxeram desdobramentos e vértices diversos. Penso que um estudo exaustivo do fenômeno da transferência é essencial para o pensamento clínico, e - de acordo com Betty Joseph (1989/1992) - que todo o passado do self de nosso paciente, suas pulsões, desejos, defesas, experiências de vida, tudo se atualiza em um plano de realidade, para a nova experiência emergente, na procura e no encontro, na sala de análise com o analista.

Ainda que no início Freud tenha pensado a transferência como fenômeno predominantemente intrapsíquico, ele mesmo prenunciava uma visão mais ampla, que incluía necessariamente a relação intersubjetiva.

A ideia de contratransferência, prenunciada por Freud, se desenvolveu no decorrer do século passado, principalmente a partir dos anos 1950, e nos dias de hoje é fundamental para a teoria e a prática clínica.

Contratransferência e análise pessoal

Freud, Klein e muitos de seus discípulos pensavam que a contratransferência consistia na transferência do analista. Essa compreensão parcial do fenômeno contratransferencial ganhou mais densidade quando Heimann (1949/1995), discordando de Klein, percebeu que a contratransferência do analista poderia ajudá-lo a compreender o paciente. Na mesma época, Racker (1957) chegava a conclusões semelhantes, tornando o conceito bastante mais complexo.

O termo contratransferência já indica um contraponto com a transferência do paciente. A função de comunicação da transferência surge como fator que amplia o conhecimento do paciente pelo analista. As ideias de campo analítico e de terceiro analítico se baseiam em um desdobramento e sofisticação do interjogo de transferência e contratransferência.

Com a ampliação da ideia de identificação projetiva, tornou-se mais conceituai a ideia de Freud de comunicação entre inconscientes, seja para cumprir a função analítica de ajudar o paciente, seja para perturbar o analista em sua função.

Conforme dizem Ogden (1994/1996b) e Roussillon (2012/2019), tanto o analista como o paciente são sujeitos no processo analítico - cada um com sua função e identidade própria, necessidades e propósitos próprios. No processo analítico, a subjetividade do analista deve se subordinar à função que exerce.

É como se o analista, na função de atender o paciente, tivesse que atender duas pessoas, dois pacientes: seu paciente - e essa é sua função precípua - e a si mesmo. Ele deve estar com a mente organizada, para atender primordialmente o paciente.

Entendo a contratransferência como uma das precursoras do conceito de intersubjetividade, fator imprescindível para o desempenho da função analítica.

Ressalto a enorme influência da contratransferência no atendimento clínico. Sua conscientização se torna clara em certos momentos da análise, mas é fator permanente na composição da função analítica.

O analista deve ter a experiência de ser analisado, e se possível ter tido uma formação analítica adequada para, no fim das contas, ter adquirido uma mente própria, a fim de administrar seu trabalho.

A análise pessoal é fundamental para o analista exercer a função analítica. Ele deve conhecer seu modo de ser, ter consciência de que tem uma área inconsciente em seu self e da maneira como tem administrado seus impulsos, desejos, afetos e relações, as íntimas e as públicas. Assim, pode alcançar uma integração adequada, uma independência relativa, e adquirir uma mente própria, na medida do possível compatível com a função complexa de ser um analista.

Ser analista: uma cidadania particular

Tornar-se analista significa adquirir a profissão de analista, uma profissão que requer anos de trabalho - de trabalho psíquico - e uma formação especializada.

Os percalços que Freud enfrentou por ocasião da comunicação para o meio médico de suas descobertas clínicas são bem conhecidos, pela difícil aceitação e mesmo pela rejeição de suas descobertas por seus pares. Outros colegas e intelectuais de sua e de outras áreas ficaram cativados e entusiasmados pelas novas ideias e foram se reunindo em torno do mestre.

Um primeiro grupo de analistas, germe de que brotaram as instituições psicanalíticas, surgiu no início do século 20, após um período solitário vivido por Freud. Como em todo grupo em constituição, ocorreram adesões, dinâmicas, crescimentos e cisões.

Freud conheceu Jung em 1907. Este trabalhava com Bleuler, médico já famoso numa instituição de prestígio, não em Viena, mas em Zurique. Interessado em ter um grupo para reforçar a si mesmo e a psicanálise nascente, bem como para adquirir reconhecimento científico, Freud se associou ao grupo suíço. Começava assim a expansão da psicanálise.

Em 1910 foi fundada a Associação Psicanalítica Internacional (IPA), e em 1920 o primeiro Instituto para o ensino da psicanálise, em Berlim. De lá para cá, é conhecida a expansão e o crescimento do movimento psicanalítico institucional. Os psicanalistas como que adquiriram cidadania. Tornaram--se um subgrupo internacional, pequeno mas influente e culturalmente ativo dentro da sociedade. Em grande parte desconhecido, em boa parte idealizado, em boa parte encarado com alguma desconfiança.

O século 20 assistiu a um boom da psicanálise, turbinado pelo cinema, pela literatura, pelos intelectuais que sentiram a enorme riqueza de suas ideias ou práticas, pelos muitos e muitos que tiveram alguma experiência de serem analisados, ou por outros que se submeterem a psicoterapias com tinturas de psicanálise.

Gerações e gerações no Brasil e no mundo têm procurado uma formação em psicanálise. Apesar das incertezas do momento atual e de uma terrível pandemia, a formação em institutos de psicanálise ainda é motivo de grande interesse, quer por constituir um objeto de escolha refletida, quer por refletir uma procura idealizada de pertencer a essa cidadania.

A busca de um pertencimento e o desejo de uma formação aceita por profissionais considerados experts levam à procura de uma formação institucional, que é sui generis e independente dos cursos universitários de pós--graduação em psicanálise.

Os muitos terceiros da formação analítica

A análise pessoal é uma situação que se estabelece a dois. Terceiros há na fantasia, como os terceiros edípicos. Um terceiro que muitas vezes está presente na sala de análise é a própria psicanálise, a imagem de Freud.

Numa instituição de formação analítica, porém, o terceiro não é virtual. Existe e precisa ser administrado.

Na análise pessoal (chamada de didática em alguns Institutos), há uma privacidade. No entanto, existem fatores que intervêm nela. O corpo dos didatas da instituição, as fantasias sobre o próprio didata, o lugar que ele ocupa na instituição são fatores que interferem numa análise regulamentada ou que tem lugar numa instituição.

Os seminários constituem a parte pública da instituição, mas há também escolhas transferenciais propiciadas pelo rumor dos corredores. Diversas influências orientam as escolhas.

A supervisão institucional me parece a parte mais complexa do terceiro da instituição. Se numa supervisão fora de um Instituto a tarefa a cumprir já é multiforme, isso acontece mais ainda no seio de uma instituição. No primeiro caso, temos três sujeitos e o mundo interno de cada um: o paciente, o analista e o supervisor. No caso da supervisão oficial, temos ainda uma quarta instância e influência: a instituição a que o supervisionando (e mesmo o supervisor) tem de prestar contas.

Conteúdo manifesto e conteúdo latente da instituição

Um instituto de formação em psicanálise - como o da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - segue os estatutos da Sociedade e os regulamentos aprovados por uma comissão de ensino, referendados por todo o corpo societário.

Os três pilares da formação, o tripé aceito de maneira quase unânime por todas as organizações de formação dentro e mesmo fora da IPA, são regulamentados de modo a haver exigências básicas e certa flexibilidade na escolha do quadro funcional e das pessoas que o integram. Assim, por exemplo, a escolha de um analista didata é limitada a um subgrupo de analistas da Sociedade. Existe a exigência de um tempo de análise e de frequência das sessões, mas a escolha do didata é livre, obedecendo-se à formatação mencionada.

A supervisão obedece a padrões semelhantes, quanto a subgrupo de supervisores, tempo, privacidade e livre escolha. Ao contrário da análise pessoal, as supervisões comportam situações públicas, como a aprovação do supervisor e os relatórios.

Os seminários clínicos e teóricos, coordenados pelo corpo docente, também permitem livre escolha pelos alunos.

Até agora, mencionei os aspectos manifestos da regulamentação de muitos institutos de psicanálise. Os laços que unem e se negociam entre os membros, entre o corpo docente e o discente, entre analistas consagrados e analistas em formação, obedeceriam a alguma dinâmica latente, além da manifesta?

A seguir, vou me referir a algumas contribuições de Freud e Bion a respeito de grupos que talvez lancem luz sobre aspectos latentes da instituição psicanalítica.

Em 1912-1913, Freud escreveu Totem e tabu, levantando hipóteses instigantes sobre a organização social do homem primitivo e a maneira como se formam os grupos e a sociedade.

Em 1921, publicou Psicologia de grupo e a análise do ego, retomando as antigas questões da sugestão e da hipnose. Estudou o tema da identificação e os fortes laços emocionais com um líder, vivo ou morto, correlacionando isso com a gestação de suas ideias sobre o superego.

Nesse trabalho, para abordar suas concepções, descreveu dois subgrupos especiais: o Exército e a Igreja.

Freud tomou como exemplo a Igreja católica. A ideia da Igreja, como esposa de Cristo, é a de uma instituição que atua como guardiã dos ensinamentos, tradições e práticas cristãs. Ela defende certos ideais e se propõe à caridade, ao congraçamento e à defesa do amor contra o ódio. Freud associa a coesão em torno de Cristo e da Igreja com o amor a um líder, laço que também une seus seguidores.

Em sua estrutura, a Igreja é uma organização com acentuada hierarquia. Sua origem é sagrada. Há um papa, cardeais, bispos e outros religiosos com posições e funções com menos poder ou importância.

Na Igreja, existe a ideia de ortodoxia, de inclusão e exclusão de membros. Essa ideia também estava presente em Freud quando formou a instituição psicanalítica. Na história das igrejas, as consequências da interpretação de ideais cristãos foram trágicas, como vemos nas Cruzadas ou nas lutas entre católicos e protestantes. Nas sociedades psicanalíticas, os derivados da noção de ortodoxia se observam em torno da discriminação de verdadeiros e falsos seguidores de Freud, de quem seriam os mais fiéis e perfeitos.

Ao focalizar as instituições de formação psicanalítica, vemos que nelas o aspecto hierárquico está presente, porém mais limitado. Há liberdade para escolher os analistas didatas e supervisores, liberdade para substituí-los, e liberdade para escolher muitos dos seminários oferecidos.

Será que as liberdades propostas em nossos regulamentos são suficientes para desfazer a sombra de uma instituição como a que Freud expôs no trabalho de 1921? Ou será preciso rever certas disposições nos próprios regramentos institucionais?

Nossas instituições psicanalíticas assemelham-se, se não a uma igreja, a uma grande família, com figuras respeitadas, sábias, inatacáveis e com um corpo de membros filiados unidos em torno de disposições manifestas e latentes.

Bion (1948/1963) também escreveu sobre dinâmicas de grupo que poderiam se aplicar às nossas instituições. No início de suas publicações psicanalíticas, ele estudou grupos pequenos num texto em que diferenciou o que chamou de grupos de trabalho e grupos de supostos básicos. Descreveu três tipos de grupo de supostos básicos: de dependência, de acasalamento e de luta e fuga.

Bion fez suas observações e apresentou suas ideias a respeito de grupos pequenos de terapia. Nossas instituições de formação psicanalítica são grupos médios, maiores do que grupos terapêuticos e do que terapia de casais, mas são instituições sujeitas à mentalidade e à cultura grupai, como diz Bion no trabalho citado.

Lanço a hipótese de que nossas instituições psicanalíticas, grupos institucionais de tamanho maior do que os observados por Bion, correm o risco de conter uma forte presença de agrupamentos de mentalidade e cultura impregnadas de supostos básicos pesando no grupo de trabalho.

Temos (in)dependência relativa nos nossos regulamentos, mas no plano latente a dependência já não parece ser tão relativa.

Grupos de acasalamento surgem nas diversas ligações dos membros. Formam-se subgrupos, alguns unidos ao redor de pressupostos cristalizados numa cultura grupai que reúne adeptos, os quais ao mesmo tempo excluem outros participantes - uma atividade política, muitas vezes racionalizada, em torno de ideais ou da presunção de serem donos de uma verdade psicanalítica.

O suposto básico de luta e fuga lembra a força e a persistência de correntes de pensamento de intolerância, de escolas ou vertentes com a atividade política subsequente, em vez da disposição pluralista de conhecimento.

O exercício de um grupo de trabalho é muito difícil - não somente nas instituições psicanalíticas. No entanto, o aprimoramento de dispositivos reguladores da instituição poderia encaminhar para isso.

Muito se tem falado sobre a instituição psicanalítica infantilizar ou, de alguma forma, cercear o desenvolvimento de seus membros em formação. Em que medida a instituição facilita ou obstrui o desenvolvimento de uma mente própria, arejada? A seguir, apresento algumas reflexões que podem nortear mudanças em nossos dispositivos e regulamentações.

Ajustes e perspectivas

A formação analítica tem um quê de artesanato, ao contrário do que acontece nas instituições universitárias. As pós-graduações universitárias são compostas de regulamentos explícitos, aulas geralmente com grande número de alunos e metas claras a serem cumpridas - uma dissertação ou uma tese, que precisa ser finalizada e defendida em tempo limitado e inflexível.

A psicanálise lida com a realidade interna, o subjetivo, e no entanto tem que se compor com a realidade externa.

Os seminários teóricos dos Institutos se aproximam das aulas acadêmicas, mas há diferenças sutis. Os seminários clínicos, as supervisões e a análise pessoal têm o caráter de um artesanato sui generis.

Os institutos de formação têm a difícil tarefa de combinar tradição e inovação, uma espécie de habilidade política para definir sua identidade institucional e as finalidades a que se propõe.

Freud era um espírito ao mesmo tempo científico e aberto às circunstâncias culturais. Embora persistisse em manter certas ideias e descobertas iniciais, em sua longa produção científica foi atualizando diversos conceitos, ajustando seu modo de entender a psicanálise e a natureza humana.

Na psicanálise, como nas religiões, houve dissidências e reformas. Algumas correntes de pensamento se cristalizaram em muitas das nossas instituições.

Penso que a era das escolas não foi inteiramente superada, ao contrário da expectativa de Figueiredo (2009). Por mais que haja liberdade no currículo dos Institutos e nas reuniões científicas, a mentalidade grupai, os subgrupos e os supostos básicos prevalecem em graus variáveis em diversas instituições de formação psicanalítica, na contramão de um pluralismo desejável no desenvolvimento de um analista.

O peso das transferências e adesões a líderes e ideias sentidas como ortodoxas permeia o clima das instituições e suas regras, o que impõe reflexão e reformulações.

Freud inventou a psicanálise a partir da descoberta do método da associação livre, num setting analítico, para revelar o inconsciente. Mas contribuições analíticas de alguns pensadores estimularam a revisão de conceitos consagrados. No artigo “Reconsiderando três aspectos da técnica psicanalítica” (1996a), Ogden propõe uma reformulação das sugestões técnicas de Freud com base em suas ideias sobre intersubjetividade, reverie e terceiro analítico. Esse exemplo raro me leva a refletir sobre a liberdade de pensamento em relação às postulações de Freud, ao método proposto por ele, questionamento às vezes difícil de ser feito nos Institutos.

Análise pessoal

A análise pessoal é a pedra fundamental da formação psicanalítica. Como em toda análise, o trabalho do analista consiste em analisar e dissolver a transferência, promover a integração do paciente, efetuar um trabalho de ressignificação e facilitar a aquisição de uma mente própria.

Alguns se sentem integrados e satisfeitos com a análise dentro do Instituto e capacitados a seguir seu rumo como analistas. Mas com certa frequência outros procuram uma nova experiência de análise, após a análise regulamentar nos Institutos. Essa prática parece indicar que a análise chamada didática foi sentida como insuficiente.

Será que a experiência vivida nos quadros institucionais não cumpriu os objetivos de uma análise pessoal mais livre de terceiros, um trabalho pessoal sem interferência na sua privacidade e nos seus objetivos? Ou o analista sentiu a necessidade de ver outros aspectos de sua personalidade, conflitos ou situações que não foram elaborados (e por que não o foram)?

As figuras de autoridade em um instituto de formação, sentidas como herdeiras de Freud, correspondem a imagos que muito lembram as estruturas familiares (parentais) e impregnam a análise didática, por mais que sejam interpretadas e elaboradas nesse contexto de análise.

Os aspectos latentes nas complexas interações que ocorrem no seio da instituição, o acréscimo de fatores perturbadores na análise chamada didática, acentuam aspectos regressivos da personalidade e interferem na criatividade do analista em formação. O chamado membro filiado é um adulto do qual já se espera alguma maturidade. Nesse sentido, ter mais de uma análise, antes ou depois do período de análise no Instituto, seria conveniente para abranger os diversos aspectos do crescimento e da integração da personalidade do analista.

Penso que o fato de o analista ter analistas diferentes em seu percurso formativo, e eventualmente fora da instituição a que pertence, pode ajudá-lo a adquirir uma identidade própria, a mind of one’s own, como diz Caper (1999/2002).

Os regulamentos de uma instituição de formação psicanalítica deveriam passar por revisões periódicas, por mais trabalhoso que isso seja e apesar das resistências que devam ser enfrentadas.

Acredito que poderíamos estudar criativamente algum modelo próprio de formação, levando em conta nossa tradição e vendo o que há de vantajoso nos modelos adotados pela IPA OU mesmo em outros, para ousar uma solução brasileira customizada, num mundo pós-pandemia, 100 anos depois de Eitingon.

Referências

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Recebido: 10 de Agosto de 2022; Aceito: 19 de Agosto de 2022

João Baptista Novaes Ferreira França jb-franca@uol.com.br

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