Introdução
O tema da sexualidade, muito caro à psicanálise, tem marcado forte presença na mídia e nas manifestações de ativistas, mas não havia sido alvo de um estudo mais aprofundado da minha parte.
Venho me dedicando à clínica e ao estudo da vida emocional de bebês, crianças e adolescentes, bem como a pesquisas sobre o atendimento psicanalítico de crianças com autismo, as quais envolvem o contato íntimo com aspectos primitivos do funcionamento mental, a constituição da subjetivação, da identidade, da vida psíquica de modo amplo.
Essas experiências não deixam dúvida de que a psicanálise é uma disciplina em constante transformação. Freud, construtor de seus alicerces, foi exemplo desse dinamismo pelas constantes revisões que fez de sua obra ao longo da vida. E muito evoluímos depois dele, com novas demandas que nos forçam a rever a metapsicologia que nos ampara e a buscar novas abordagens técnicas.
A contemporaneidade nos confronta com a rapidez de mudanças de paradigma e, por meio de uma postura crítica e reflexiva, procuramos lidar com elas da melhor forma possível.
Resolvi então me lançar ao estudo de um tema tão atual, polêmico e sobretudo de uma complexidade tal, que talvez precisemos ainda de muito tempo para ter mais clareza acerca dele.
Mais uma vez pesquisei na internet o significado da sigla lgbtqiap+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais etc.), e desta fui me lançando a outras pesquisas, até que me deparei com um texto sobre 52 gêneros (Gaspar, 2017), que me serviu de inspiração para batizar o artigo.
Organizando ideias e apresentando dados
Mergulhada no processo de elaboração do tema, pensei nas árduas tarefas que as crianças e especialmente os adolescentes enfrentam na construção de seu processo identitário.
Foram várias as descobertas.
A partir de 2018, a Organização Mundial de Saúde, na Classificação Internacional de Doenças (CID-11; World Health Organization, 2022), reformulou a questão da “disforia de gênero”, retirando-a da categoria dos transtornos mentais, rebatizando-a como incongruência de gênero e realocando-a entre as condições relacionadas à saúde sexual. Estamos aqui às voltas com um descompasso entre o corpo sexuado e o gênero social. Embora de fato se trate de um grupo de pessoas em que os problemas emocionais têm relevância – com altas taxas de suicídio, por exemplo –, provavelmente os protestos contra a patologização do diagnóstico, mas também a importância da necessidade de cuidados médicos, devem ter influenciado na mudança. É sabido que o grupo populacional representado nesse diagnóstico é mais exposto à infecção por hiv: algo em torno de 31%, contra 0,4% na população geral (Unaids, 2018). Desde 2017, tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação de gênero estão autorizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, as evoluções tecnológicas possibilitam a reprodução assistida, ampliando assim o leque das configurações familiares – embora muitas vezes a ciência desconsidere os desígnios do inconsciente.
São inúmeros os dados sobre o enorme aumento da ocorrência de casos de pessoas que se identificam como transgêneros, ou seja, aqueles que transgridem, que transcendem os gêneros binários masculino e feminino. Tal fato permite-nos pensar numa verdadeira epidemia – e desperta sérias preocupações em virtude de poucos estudos longitudinais acerca das terapias hormonais e das cirurgias de redesignação de gênero. Mesmo assim já existem relatos acerca dos arrependidos que buscam a destransição (Gryzinski, 2022), bem como dos que se dizem satisfeitos, inclusive constituindo família e até gerando filhos (Pai e mãe trans, 2022).
O tema da redesignação é bastante controverso e, no âmbito dos profissionais de saúde, há profundas divergências sobre ele.
Reinach (2018) afirma que a disforia de gênero seria relativamente rara, acometendo uma em cada 2 mil pessoas, mas que nos últimos 15 anos teria havido um aumento de mais de 100 vezes: de 20/ano em 2009 para 1.800/ano em 2016, na Inglaterra.
Naquele país o aumento foi de tal ordem que desestabilizou a Clínica de Identidade de Gênero da Tavistock. O número de encaminhamentos para o serviço passou de 138 em 2010 para 2.383 em 2020. A partir de uma difícil situação jurídica, deixou de ser o único centro de referência, e estão sendo criados outros, de forma que se consiga atender adequadamente essa demanda tão volumosa (“Clínica de identidade de gênero para crianças fecha na Inglaterra”, 2022).
Na Espanha o psiquiatra Celso Arango, chefe do Departamento Pediátrico e Juvenil do Hospital Gregorio Marañón, em Madri, informa que, na unidade de internação em que trabalha, costumava receber por ano um ou dois adolescentes que se diziam trans, e que agora eles representam de 15% a 20% dos pacientes (Alsedo, 2022).
Outro dado interessante é o de que ao longo da última década houve um aumento de 4.400% no número de meninas encaminhadas para tratamento de mudança de gênero na Grã-Bretanha (Gryzinski, 2022).
Que hipóteses poderíamos levantar a respeito disso? A sociedade já vinha lidando com as incongruências dos meninos? Em que medida o feminismo teria contribuído para isso? As complexas relações mãe-filha teriam também sua participação?
Um fato curioso é que o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não contempla as categorias de gênero. O ibge afirma que o tema não seria alvo do censo, mas sim de outra pesquisa (Carneiro, 2022). A partir de 2016 a Comissão de Direitos Humanos de Nova York passou a reconhecer 31 tipos de gênero, mas cheguei a encontrar descrições de 52, 72 e até de 112 gêneros (Nova York passa a reconhecer 31 gêneros diferentes, 2016).
Ao buscar dados estatísticos nacionais, descobri que desde 2018 o Conselho Nacional de Justiça autoriza as pessoas trans a alterar o prenome e o gênero na certidão de nascimento, o que também permitiu aos eleitores requerer que sejam identificados pelo nome social (Tribunal Superior Eleitoral, 2022). Naquele ano cerca de 8 mil pessoas fizeram a solicitação; já nas eleições de 2022 foram mais de 37 mil, o que representou um aumento superior a 370%.
Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que entrevistou 6 mil pessoas em 129 municípios do país, revela que quase 2% da população se identificam como transgêneros e não binários (Segalla, 2021).
Se considerarmos que, em 2020, o Banco Mundial calculou que somos 212,6 milhões de brasileiros, isso representaria 4 milhões de indivíduos, o que justifica a implementação de políticas públicas de saúde voltadas para esse grupo.
Sobre a identidade de gênero
Se tempos atrás se costumava falar em identidade sexual, hoje é habitual que se refira a sexo como algo anatômico, geneticamente determinado, e a gênero como uma complexa construção cultural, com a possibilidade de diversos direcionamentos eróticos.
Recentemente circulou pela internet a foto de uma bonequinha bebê com roupinha rosa e exibindo um pênis, acompanhada pelo vídeo de uma pediatra criticando a ideologia de gênero e utilizando politicamente, de modo raso e concreto, a perversidade polimorfa de Freud (1905/1972b), num claro exemplo de associação entre ideologias e fanatismo e de como as narrativas podem ser construídas de forma tendenciosa.
Em 2017, uma reportagem na tv sobre transgêneros que mostrava um garotinho de cabelos longos e vestidinho, andando alegremente de mãos dadas com os pais, levou-me a publicar no blog da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) alguns comentários a respeito, chamando a atenção para o fato de que nossa identidade de gênero tem raízes longas, que vêm da tenra infância e são profundamente ancoradas no inconsciente (França, 2017). Podemos mesmo dizer que elas são até mais antigas, provenientes das nossas heranças psíquicas transgeracionais. Sua construção se dá por meio de um processo dinâmico, no transcorrer da vida, ganhando destaque na adolescência.
Em 2018, por ocasião de uma jornada da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) sobre gênero, organizada pela equipe da Secretaria de Psicanálise de Crianças e Adolescentes da sbpsp, nos deparamos com um vídeo impactante: Quando o mundo enlouqueceu. Transcorridos quatro anos, ao rever o vídeo, o impacto não foi o mesmo. Realizado em países desenvolvidos da Europa, vemos crianças num escorregador em forma de pênis, brinquedinhos com formato de genitais, livros sobre homoparentalidade e transgeneridade, bem como escolas nas quais as crianças recebem um tratamento de gênero neutro. Hoje há vários depoimentos de pais que criam seus filhos dentro dessa proposta (Savage, 2022).
Seria mesmo possível destrinchar de forma precisa o que é da natureza e o que é criado pela cultura?
Há quem defenda a origem biológica da transexualidade com base em pesquisas que mostram que, durante a gestação, os genitais se formam antes do cérebro, que tende então a seguir a definição da genitália, mas que esse padrão pode ser alterado sob a ação de hormônios (Saadeh, citado por Jerusalinsky, 2018).
Há também quem afirme não existir evidências de que seria possível haver um cérebro masculino em um corpo feminino (e vice-versa), citando pesquisas sobre estruturas neurais que sugerem que o cérebro de pessoas trans consiste em complexas misturas de regiões masculinas e femininas, semelhante ao cérebro de pessoas cisgênero homossexuais e diferente do de homens e mulheres heterossexuais cisgênero (Guillamon, Junque & Gomez-Gil, 2016, citados por D’Angelo, 2020).
Em face da perplexidade que podemos sentir diante dessas novas formas, cabe lembrar o quanto Freud foi subversivo ao propor os fenômenos inconscientes e, mais ainda, ao afrontar a moralidade sexual da época e incluir as crianças no mundo da sexualidade, com a libido impregnando todos os seres humanos.
O que seria de nós se não fôssemos todos psicanalistas trans, no sentido de algo que transpassa, que atravessa os tempos e se relaciona com as mudanças, com o novo, mantendo, ao mesmo tempo, dentro de nós, o registro da essência da psicanálise?
O mergulho na leitura de textos gerou fortes correntezas internas, que ora faziam eu me sentir perdida, confusa – como no relato do atendimento de um paciente masculino gay cisgênero por um analista trans masculino (Hansbury, 2017) –, precisando alçar à superfície de referências mais familiares, ora me causavam indignação por perceber posturas rígidas, talvez até reacionárias.
Seriam estas uma forma de se contrapor ao poder do “politicamente correto” raso e igualmente empobrecedor? De todo modo sabemos o quanto conceitos saturados, preconceitos de toda ordem e mesmo rótulos podem oferecer ancoragem a navegantes sem bússola.
As pessoas são – realmente – quem elas dizem ser?
Talvez a frase “People are who they say they are”, do psicólogo clínico Colt St. Amand – sobre as pessoas serem quem elas dizem ser –, esteja descontextualizada na matéria em que foi publicada no jornal The New York Times (Bazelon, 2022). No entanto, ela se presta a pensar não apenas na desconsideração pela vida de fantasia da criança e nos transtornos de pensamento, mas sobretudo no risco que uma afirmação como essa representa para as pessoas de modo geral, e para as crianças e os jovens de modo especial, em seu dinâmico processo de construção identitária.
Quem, quando criança, nunca pensou em ser astronauta ou outras possibilidades que despertam a atenção e a curiosidade infantis? Quem não se deparou com adolescentes tomados por angústias frente a desarmonias na relação mente-corpo e se dizendo feios, altos ou baixos demais, gordos ou magros? Quem, em hospital psiquiátrico, nunca encontrou alguém que se dizia um enviado de Deus?
No início de nossa vida precisamos contar com a indiferenciação, a fusão narcísica, com o objeto primário, para progressivamente suportar a diferenciação eu-outro, noção que hoje acreditamos que, em algum nível, esteja presente desde sempre.
Entretanto, pela dor que ela envolve, lutamos contra essa noção com unhas e dentes, com funcionamentos adesivos, identificações projetivas, tentativas de controle sobre o objeto, angústias de separação. Embora nós, humanos, sejamos sobretudo seres relacionais, constituídos na intersubjetividade, a ideia de sermos sós é por demais dolorosa.
Ponce de León (2016) sugere que hoje faz mais sentido pensar em funções parentais do que em função materna ou paterna, e considerar que, entre as funções parentais, a função diferenciadora é a que nos abrirá portas para o reconhecimento das diferenças entre os sexos, entre as gerações – enfim, para a alteridade. Penso na aproximação dessa proposta à de Glocer Fiorini (2018) acerca da terceiridade como viabilizadora da relação com o outro, o diferente.
Freud (1905/1972b) chamou a atenção para a sexualidade psíquica e para a transformação de nossa bissexualidade ao longo do dinâmico processo de constituição identitária, que ganha protagonismo na adolescência.
O complexo de Édipo, proposto por ele como estruturante da vida psíquica, vem ganhando novas roupagens. Glocer Fiorini (2014) faz a interessante sugestão de não apenas ampliarmos o alcance desse complexo, transcendendo o modelo de família nuclear, tradicional (ela cita Deleuze), mas também de considerá-lo de uma perspectiva triádica (não só binária), o que demanda a condição de sustentar a tensão, a possibilidade de conviver com conflitos, e não somente resolvê-los, pendendo para um lado ou outro.
Quem sabe devêssemos pensar no modelo da lógica binária, base de todo o processamento computacional?
Acerca do complexo de castração, Glocer Fiorini propõe pensarmos na falta, na nossa incompletude, no reconhecimento da alteridade possibilitado pela terceiridade, que nos permite ingressar no maravilhoso mundo da representação, da criatividade, do simbólico e da cultura.
Mas se de fato há, na tenra infância, toda uma resistência à noção de separação do objeto primário, na adolescência a luta se dá no sentido inverso: há uma busca de autonomia, independência, e uma (re)criação identitária.
As transformações da puberdade impõem ao adolescente o confronto com um novo corpo, muitas vezes sentido como insatisfatório, ou mesmo perseguidor, frente a idealizações e expectativas inconscientemente guiadas. É o momento em que o adolescente faz ressignificações edípicas importantes, momento considerado como uma nova oportunidade de elaborar conflitos dos quais possa não ter dado conta anteriormente.
Ferrari (1996) propõe a ideia de segundo desafio – o primeiro se dá logo após o nascimento, em que a partir da fisicidade construímos o que ele chama de corporeidade (o corpo encarnado), até alçarmos à psiquicidade, pondo o corpo em eclipse. Na adolescência, o corpo novamente é protagonista e uma (re)construção da subjetividade se faz necessária. Não à toa Erikson (1973) propõe a crise adolescente, uma verdadeira crise de identidade.
Entretanto, embora a criação de uma nova identidade seja posta em movimento, forçada não apenas pelas transformações corporais decorrentes do surgimento das características sexuais secundárias, mas também pelas novas demandas sociais, não há como o corpo ficar eclipsado, nem a pulsionalidade pujante arrefecer.
Os corpos são investidos e customizados com piercings, tatuagens, cortes, cicatrizes, cabelos raspados, com dreads ou coloridos. Como tela de projeção do mundo interno dos jovens, são revestidos por roupagens que os escondem, sugerem personagens ou expressam suas visões sobre gênero e orientação sexual. Do meu ponto de vista, constituem-se em verdadeiras peles secundárias (Bick, 1987), frente às intensas angústias identitárias.
O caso de João
Retomando a frase citada na abertura da seção anterior, lembrei-me do caso de um menino que chegou para atendimento com 3 anos e 10 meses. A mãe achava que o problema era o ciúme da irmã, nascida quando ele tinha 2 anos, e que devido a isso andava querendo usar “coisas de menina”. Os pais descreveram a irmã como muito engraçadinha e cativante.
O pai considerava que as questões eram anteriores ao nascimento da irmã. Contou que, quando João nasceu, a mãe trabalhava demais e quem cuidava do filho era ele, o pai. Depois do nascimento da irmã, a mãe perdeu o emprego e conseguiu se dedicar aos cuidados dela.
Percebi da parte da mãe um movimento reparatório na direção de João, talvez causando certo desconforto no pai.
Outro dado mencionado pela mãe foi que, como João não tolerava frustração, ela se valia da seguinte artimanha: dizia para ele o contrário do que esperava que ele fizesse, contando que ele faria o que ela queria. Nos momentos em que João reagia às frustrações com raiva, a mãe ficava com medo de uma possível reação agressiva da parte do pai.
Quando João chega para a avaliação, vejo que se parece demais com a mãe – e eu o acho uma graça. Logo que o chamo, estende a mãozinha para mim e seguimos de mãos dadas para a sala. Penso que ele está em busca de uma ligação firme e segura.
Relatarei alguns trechos dos atendimentos iniciais.
João observa o que há na sala de semelhante com a escola e com sua casa – uma forma de se relacionar com o novo da situação.
Noto que o aspecto de imitação nele é muito forte, ao reproduzir gestos e comentários que faço.
Sabemos que a imitação é um importante passo no processo identificatório, mas aqui pensei na fragilidade de suas introjeções e da constituição da sua pele psíquica (Bick, 1987).
Enquanto desenha, cantarola feliz, e diz que azul é cor de homem e rosa é cor de mulher, e que ele gosta de rosa. Pede que eu pinte um palitinho de rosa e outro de azul. Ou seja, ele pesquisa as diferenças sexuais e se declara identificado com o feminino, muito à vontade, percebendo minha receptividade a ele.
Porém, o que representaria o feminino para ele? Uma forma de declarar amor à mãe e estreitar o vínculo com ela?
Olha para mim, observa o brinco que uso em formato de caracol e me desenha com cabelos coloridos e com o brinco. Detalhe: desenha de ponta-cabeça! Em seguida pede que eu o desenhe.
Penso na confusão de planos e de gênero. Ele, menino, fascinado pelas “coisas de menina”. Interessado em mim e pesquisando minha condição de vê-lo como pessoa – algo até mais amplo e anterior à sua identidade sexual. Noto também seu apego à sensorialidade no uso das cores.
Sente vontade de ir ao banheiro. Diz que vai sozinho, que a mãe deixa e que não é para eu ir vê-lo, que ele sabe chacoalhar seu pipi para a roupa não ficar molhada. Nesse momento, parece excitado e fica parado na porta da sala. Nota meu colar e comenta que a mãe tem um igual, só que é cor-de-rosa. Penso na conjunção das excitações excretória e sexual e na vivência de confusão entre ter um pênis – de menino – e sentir-se atraído pelas “coisas de menina”.
Quando ele se interessa por detalhes sensoriais a meu respeito, seria um fenômeno de angústia identificatória, aderindo a um elemento sensorial e tomando a parte pelo todo. Como se meu brinco e meu colar fossem um apego à feminilidade por desespero – e não por opção (R. Coimbra, comunicação pessoal, 12 de novembro de 2022).
Em outra sessão diz que quer ir ao banheiro fazer xixi, põe a mão nos genitais, mexe na cola e diz que a cola é nojenta. Será que sentia seus genitais masculinos nojentos como a cola?
Outro dia desenha uma cobrinha com o rabo bem colorido e diz: “Esse é o bebê. Agora vamos fazer a mamãe!”. O desenho do bebê/cobra é bem estruturado, mas João se atrapalha com o desenho da mamãe. Com isso, o resultado fica parecendo duas cobras confundidas em uma só. Ou seja, vale-se de um símbolo fálico para representar a função materna, mas acaba representando a confusão das funções parentais.
Em seguida diz que a cobra sobe até a boca do vulcão e que há um vulcão que fala e outro que não fala. Penso na união edípica. Relaciono o vulcão que fala com o pai (sua masculinidade e agressividade), e o que não fala, com a mãe.
O ciúme da irmã, sentida como usurpadora dos pais e detentora do sexo por ele idealizado, é possível de ser compreendido.
Em vários momentos no início do trabalho dizia algumas coisas incompreensíveis e parecia estar num estado de mente confusional, beirando o psicótico.
João ficou em análise durante quatro anos. Na sessão de despedida chutava a bola com tanta força e potência que precisei dizer a ele que tomasse cuidado para não nos machucar.
Penso que se os pais fossem adeptos da ideologia de criar os filhos de forma neutra, talvez João não teria chegado até mim e seria visto como a pessoa que ele dizia ser. Aí reside a importância de um olhar mais profundo para o entendimento do que se passa com as crianças, e não apenas aceitar e tomar suas expressões como algo fixo, estabelecido.
Coimbra (2014) relata o atendimento de um menininho de 3 anos e 8 meses que chegou dizendo que queria ser uma princesa. A postura dos pais, “politicamente correta”, de que essa seria a “escolha” do filho tentava dar conta de seus receios com respeito à homofobia. A avaliação psicanalítica revelou uma criança com falhas na relação primária, a existência de angústias depressivas e tentativas de reparação maníaca no apego excessivo à mãe e a tudo o que dizia respeito a ela.
Além disso, foram observados elementos de um casal combinado (identificação da criança com a fada-madrinha e sua vara de condão, representada por uma caneta), permitindo pensar numa configuração edípica pré-genital em que não há discriminação entre a identidade separada de cada um dos pais – tal como o desenho de João.
A autora também alerta para o risco de um momento do desenvolvimento se fixar. No lugar então de uma escolha, como acreditavam os pais ao chegar, poderíamos na verdade pensar numa falta de escolha?
Outro artigo interessante é o de um psicanalista – gay – sobre o atendimento de um paciente trans masculino, cuja vida colapsou após a cirurgia de redesignação de gênero, na qual havia depositado suas expectativas de que seria a solução para suas angústias, o que não se confirmou. O analista ressalta que por vezes o paciente pode se esconder por trás do gênero pelo qual quer ser reconhecido e que o gênero não seria a questão central das angústias (D’Angelo, 2020).
Transcrevo um trecho do artigo:
Perturbou-me saber que eu poderia ter feito a transição, caso tivesse nascido na época atual. Talvez, como eu, Josh pudesse ter sido ajudado a encontrar outra solução, que implicasse negar-se a ser definido pelo modo como nossa cultura constrói o gênero, antes de alterar cirurgicamente seu corpo. Goldner (2011) observou que as subjetividades trans “tanto minam quanto ratificam o gênero binário”. (D’Angelo, 2020, p. 118)
Quem já teve a oportunidade de conhecer as cirurgias de redesignação fica impactado com a concretude como tudo é tratado: seios extirpados ou implantados, pênis criados ou removidos, vaginas construídas, e assim por diante, num arremedo do que seria o corpo do gênero buscado.
O caso de Joana
A mãe de Joana, 14 anos, me procura. Peço que venham as duas e atendo Joana primeiro. Diz que veio porque a mãe se preocupa demais, que está tudo bem com ela, que faz terapia desde pequena e já teve várias psicólogas. Acha um absurdo pagar alguém para conversar, que é uma coisa que não adianta nada. Afirma que o que ela quer mesmo é fazer uma transição de gênero.
Conta que foi adotada aos 9 meses, que a mãe é solteira e que ela não tem irmãos. Na escola quase não é convidada para as festas e, quando vai, fica de lado, mas que não está nem aí. Ou seja, mobiliza defesas maníacas contra sua dor de não conseguir incluir-se no grupo de pares.
Joana é uma garota negra, gordinha. Não disfarça o mau humor e a má vontade para comigo. Quando a mãe entra para conversarmos juntas, passa a exibir franca hostilidade, falando palavrões, dizendo que a mãe enche o saco, que na verdade não tem preocupação, que o que quer mesmo é se meter na vida dela. Seriam para Joana formas de expressar uma força que identifica ao masculino, além de defesas contra uma angústia de violação ligada ao feminino?
A mãe diz estar preocupada com a insônia da filha e com o fato de ela se cortar. Diz que Joana se sente menino e que tirou o celular dela porque só frequentava páginas lgbt+ Amino.3
Percebo que, na intermediação da conversa entre as duas, exerço uma função paterna. Proponho que Joana volte para conversarmos. Ela diz que não quer fazer terapia. Sugiro que venha, mesmo contrariada. Diz que não voltará, e eu digo que a esperarei. E com isso estamos juntas há quase cinco anos.
Joana é fruto de gestação gemelar, em que o irmão foi natimorto. Assim que nasceu, foi levada para um abrigo, onde havia a orientação de rodízio entre as cuidadoras, para que não se apegassem aos bebês.
Quantas perdas concretas e simbólicas Joana teve de enfrentar desde muito cedo! Mais tarde, levantei a hipótese de que talvez ela tenha a fantasia de que, se tivesse nascido menino, não teria sido abandonada pela mãe biológica.
A mãe conta sua triste história: aos 3 anos, sua mãe se suicidou; o pai casou-se novamente, e a madrasta teve um papel importante; Joana tinha ótimo contato com o avô, hoje já falecido; atualmente, o tio é referência de figura masculina.
Quando a mãe comenta que Joana gosta de desenhar, penso que essa poderá ser uma via de acesso e resolvo atendê-la na sala de crianças. No transcorrer do processo, passamos à sala de adultos.
Quando Joana chega, diz que a psicóloga anterior não queria saber da história de ela se ver como homem e me pergunta se vou ajudá-la a conseguir fazer uma transição. Observo que não trabalho com encaminhamento para transição e que vou atendê-la como uma pessoa inteira, não só como alguém com questões de gênero.
Noto que tem várias cicatrizes no braço e lindos olhos amarelados, que me fazem fantasiar acerca da sua origem. Enquanto desenha, conversamos. Fico sabendo dos seus relacionamentos virtuais: tinha uma amiga homossexual e uma namorada trans feminina.
Logo após o início do nosso trabalho, chegou triste a uma sessão. Disse que, segundo a amiga, a namorada não queria mais saber dela. Ficou muito brava com a amiga por ter demorado a lhe contar o motivo de a namorada não falar mais com ela. Um triste “enrosco” edípico.
Embora eu soubesse que na escola queria ser reconhecida como Joca, Joana “me perdoava” por sempre chamá-la pelo nome de registro e tratá-la pelo pronome feminino. No início, ao referir-se a si mesma, oscilava entre pronomes masculinos e femininos. Atualmente utiliza apenas pronomes masculinos.
Depois desse namoro, Joana teve relacionamentos virtuais com três rapazes pansexuais (sic). Mas o que mais me preocupava era seu namoro com a morte – fortalecido pelas músicas que ouvia na Sadstation4 e pelas sugestões encontradas na internet sobre como cometer suicídio – e as ameaças de não retornar, de “fazer uma grande merda”, que me deixavam muito aflita.
Por algum tempo, manteve os cortes nos braços (dizia sentir-se viva ao fazê-los), mas os pensamentos suicidas foram uma constante no nosso trabalho, ficando exacerbados nas datas próximas ao seu aniversário. Foi muito chão até percebermos que, ao namorar a morte, incluía-se na família, identificando-se com a avó que se suicidou.
Ao lado dos pensamentos suicidas, apresentava também as vivências quanto ao preconceito de gênero e racial. Houve momentos de intensas angústias depressivas, defesas maníacas e vivências beirando a psicose.
Sua autoestima era sempre muito baixa. Às voltas com seus maus objetos internos, dizia ser um erro ambulante, um feto estragado, e que sua vida era uma merda. Embora se dissesse tranquila com respeito à adoção, raramente levava adiante uma conversa sobre o tema.
Passamos por tormentas terríveis no período em que se deixava ser abusada sexualmente na praça próxima ao meu consultório. Associamos essas experiências a uma identificação com as fantasias a respeito da mãe biológica. Sobre o pai biológico, imaginava que ele seria imigrante.
Durante a pandemia mantivemos nossos atendimentos online, com sessões difíceis, em que nos comunicávamos apenas por texto (o que já havia acontecido presencialmente), e com outras muito interessantes, em que me mostrava as plantas que cultivava, sua criação de girinos, o gato Solemio (uma adoção bem-sucedida!), seu quarto – ora sujo e desorganizado, o colchão no chão, ora com nova pintura, cama e arrumação.
Sobre seus namoros: por meio deles, fortalecia seus impulsos libidinais, podia amar e sentir-se amada. É interessante notar que os três últimos namorados eram do sexo masculino e pansexuais, o que funcionava bem com Joana, de sexo feminino e trans masculino. O primeiro relacionamento, com a namorada trans feminina, eu não acompanhei. O segundo foi com um rapaz mais velho do que ela, que morava numa cidade próxima. Com ele Joana encontrou-se apenas uma vez e veio à sessão na maior alegria, contando que ele era muito legal, que se “pegaram” e que ela quase perdeu a virgindade.
O terceiro foi com um rapaz que morava em outro estado. Nunca se encontraram, mas levavam a relação virtual de uma forma que a transformavam num arremedo de presencial: viam filmes e dormiam “juntos”. Começou a reunir utensílios domésticos, sonhando com a possibilidade de viverem juntos.
O atual namorado (o terceiro do sexo masculino e pansexual) vive no interior de São Paulo. No fim de semana do Dia dos Namorados, a mãe decidiu bancar a viagem para que ela fosse encontrá-lo. Armou-se com seu binder (faixa que aperta os seios), arrumou os cabelos de jeito masculino e apresentou-se à família dele com o atual nome social. Foi alvo de agressões por parte da mãe do rapaz, extremamente religiosa, mas adorou estar com ele.
No início, quando se atacava, dirigia também a mim o seu ódio. Hoje, no entanto, a qualidade do nosso contato é outra. Ela demonstra confiança e afeto. Ou seja, temos conseguido mitigar a força da sua pulsionalidade destrutiva.
As ideias suicidas deram trégua até próximo ao aniversário de 19 anos, quando as retomou, lembrando que havia prometido a si mesma se matar quando chegasse aos 18 se sua vida continuasse uma merda. Chegou aos 19 e não se matou, e não faz isso porque o namorado, o gato, a mãe e eu ficaríamos muito tristes. Ou seja, demonstra uma reparação de seus objetos internos.
Em sessão recente, fala da saudade que sente do namorado e de como faz falta a presença do corpo. Observa que, depois que esteve com ele, sabe que não é a mesma coisa, que o sexo virtual não passa de uma masturbação a dois.
É desnecessário falar das dificuldades escolares de Joana, bem como das dificuldades de socialização. Entretanto, ao lado dos sonhos de viver com o namorado, tem pensado no seu futuro profissional frente à possibilidade de terminar o ensino médio. Pensa em algo relacionado a animais, já que os ama tanto.
Espero ter deixado claro que, de fato, a questão de gênero é um aspecto importante no panorama das angústias de Joana, mas não é o que define tudo.
Considerações finais
Gostaria de abordar a questão do contágio psíquico. Um exemplo dessa situação se deu na Europa após a publicação do livro Os sofrimentos do jovem Werther(1774/2020), de Goethe, em que um rapaz se apaixona por uma mulher que está para se casar com outro homem e a desilusão amorosa o leva a tirar a própria vida. O que aconteceu foi que houve uma onda de suicídios na sequência, conhecida como efeito Werther, termo cunhado por David Phillips em 1974 (Brito, 2019). Hoje o efeito de contágio pela divulgação de suicídios é tão conhecido que se procura evitá-lo abafando a ocorrência de fatos trágicos.
Estudos realizados nos Estados Unidos demonstraram aumento na taxa de suicídios entre jovens em abril de 2017, um mês após o lançamento da série 13 reasons why (Brito, 2019).
Da mesma forma que se dá com os agentes infecciosos – em que não basta entrar em contato com eles; é preciso haver uma conjunção de fatores, entre os quais uma baixa imunidade, ou seja, uma vulnerabilidade –, o contágio psíquico afeta aquelas pessoas em que o impacto dos fatos produz forte ressonância afetiva.
Penso que algo assim está acontecendo com as questões de gênero, que encontram, especialmente nos adolescentes, terreno fértil para proliferar. Frente a tantas inseguranças e indefinições sobre o que o futuro lhes reserva, sem mais poder contar com a infância, que se tornou passado, agarram-se, por vezes até de modo fanático, a ideologias que sentem lhes trazer algum amparo no presente, em busca de saber quem são – e, quem sabe, poder ser tudo.
Creio que isso ocorre com as questões de gênero. A ideologia abre um leque de possibilidades e certezas aos jovens, oferecendo-lhes amparo.
Os valiosos movimentos sociais que levaram à emancipação das mulheres e a todas as lutas contra a repressão sexual e o machismo podem correr o risco de serem infectados pelos elementos gama (γ) e passarem a disseminá-los.
Segundo Sor e Senet de Gazzano (1992), esses elementos seriam os responsáveis pelos aspectos fanáticos da mente. Diferentemente dos elementos alfa (α), ligados aos aspectos psicanalíticos da personalidade e relacionados às transformações em pensamento, e dos elementos beta (β), ligados à parte psicótica e relacionados às transformações em alucinose, como proposto por Bion, eles não promovem transformações. Os elementos γ se valem dos α e β como vetores, resultando num funcionamento fanático: não abrem espaço para a dúvida. Só existem verdades absolutas e certezas irredutíveis, afetando severamente a capacidade de pensar e a consideração pelo diferente do outro. Quando veiculados pelos elementos β, sua qualidade fake é mais facilmente denunciada.
Assim, vejo tanto os riscos do fanatismo das bandeiras desfraldadas quanto os riscos para nós, psicanalistas, se não pudermos nos abrir ao novo.
O q de lgbtqiap+ corresponde a queer, ou seja, estranho. Hoje é uma forma de designar todos os que não se encaixam na heterocisnormatividade binária genética e biologicamente determinada.
Para Freud (1919/1972a), o sinistro, o tenebroso, teria a ver com algo secreto e ao mesmo tempo familiar, algo que provoca um transtorno pelo estranhamento – tal como nos sentimos diante dos enigmas e mistérios da sexualidade quando crianças e hoje, como adultos, diante da realidade com a qual nos confrontamos no que diz respeito a gênero.
Se de início eu me surpreendi com os 31, 52 e até 112 tipos de gênero, ao finalizar este artigo eu diria que isso é muito pouco, em face da diversidade do ser humano, em que cada qual só pode ser idêntico a si mesmo.

 
 









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