O tema proposto pela editoria da rbp teve grande repercussão entre os colegas, e recebemos uma quantidade considerável de artigos que o abordaram, o que nos levou a desdobrar a publicação: em vez de um número, dois.
Nossas origens estão sempre no cerne de nossas questões mais profundas. Considero, juntamente com alguns colegas próximos, que toda investigação cósmica ou biológica sobre onde e como tudo começou está sempre relacionada à curiosidade associada à cena primária (o Big Bang?). Quem foram nossos pais? O que aconteceu para estarmos aqui? “– O que é aquilo papai? – É um elefante. – Por que ele é um elefante? – Porque o pai dele também era um elefante. – Por que o pai dele era um elefante?” ... E a indagação pode ir ao infinito.
Freud pôs a situação edípica no cerne de toda a dinâmica psíquica humana. Nos Três ensaios(1905/1969c), ele destacou a curiosidade sobre nossas origens (cena primária), o que se manifesta desde o início.
Para Bion (1962/1977b), a formulação da teoria do complexo de Édipo feita pelo pai da nossa ciência era fraca, não em sua relevância (sempre viu nela o principal pilar da psicanálise), mas por carecer de suficiente abstração para alcançar novas realizações em contextos aparentemente distantes, pois estaria demasiado atrelada aos elementos sensoriais do mito e da tragédia,1 que serviram de fato selecionado para que Freud apreendesse os elementos constantemente conjugados às situações que observava em sua clínica.2
Ao propor que o ponto nodal do problema do personagem Édipo seria sua arrogância e a dificuldade de desenvolvimento para pensar ligada à intolerância à frustração, levando adiante a proposta de Freud (1911/1969a) dos dois princípios do funcionamento mental, Bion (1963/1977a) elaborou sua famosa grade com os elementos de psicanálise que evidenciariam as dimensões não sensoriais da situação edípica, permitindo que ela fosse percebida na maneira peculiar de caminhar de um paciente, num gaguejar ou numa dificuldade de aprendizado formal ou de leitura. Pela relação entre continente e contido – uma nomenclatura mais abstrata para o par feminino-masculino e sua expressão de forma “algébrica” pelos símbolos –, seria possível verificar a situação edípica nos atritos que um analisando “precisa” criar com seu analista ou com seu desenvolvimento pessoal, no relacionamento consigo mesmo e com seus colegas de trabalho ou familiares, em que todo acasalamento é atacado e perturbado, na impossibilidade de permitir que uma palavra se junte com outra numa relação contínua e coerente, ou que uma letra pareie com suas vizinhas e venha a ter filhos (sentidos), e assim por diante.3
Maud Mannoni, em Venfant arriéré et sa mere (1964), ressalta a necessidade de os pais tornarem os filhos depositários das perturbações do grupo familiar e a frequência com que os atendimentos de crianças costumam ser interrompidos à medida que a criança se desenvolve, deixando de ser o bode expiatório (essa expressão é minha, não dela) dos pais, que acabam se desorganizando e revelando seus próprios problemas graves.
As relações de crianças com os pais também podem ficar evidentes na “necessidade” de líderes carismáticos e autoritários, um timoneiro, um Führer, um duce e congêneres, que guiam seus filhos/crianças dando-lhes certezas e garantias, evitando que angústias profundas da percepção da condição humana, em que a ausência de garantias e certezas é a constante, se evidenciem.4 Durante a Revolução Francesa, foi necessário um tempo para que se concebesse um mundo em que não existissem um rei e uma rainha. Somente em 1793, após quatro anos da Queda da Bastilha, foi levada a cabo a execução de Luís 16 e, pouco depois, a de Maria Antonieta. No início, tentou-se organizar uma monarquia constitucional aos moldes da britânica, que era parlamentarista, mas a conspiração dos monarcas, despojados do poder absoluto, para que potências estrangeiras invadissem o país e desfizessem as conquistas da revolução levou à sua captura em Varennes (ao tentarem fugir da França), à extinção da monarquia, à prisão no Templo e depois na Conciergerie (para a rainha viúva), e à guilhotina. O mesmo se deu na Rússia com a queda do czar: os mujiques se viram atordoados ao se depararem com uma existência sem o “paizinho”. Em um viés psicanalítico,5 poderíamos considerar que a dificuldade de estar em um mundo sem figuras ungidas por Deus levou a própria França de volta ao mundo monárquico, com Napoleão se coroando imperador, depois à restauração dos Bourbon, com Luís 18 e Carlos 10º,6 e a um breve período de revogação da monarquia, para logo outra ser instituída com Luís Felipe e os Orléans. Com a queda desse último em 1848, seguiu-se um brevíssimo período republicano, no qual o presidente deu um golpe de Estado para se tornar o imperador Napoleão 3º em 1852. Somente no começo da década de 1870, após a Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris, que incendiou o palácio das Tulherias, o imperador foi exilado e a república finalmente tornou-se a forma de governo em que a figura do pai-imperador-rei foi definitivamente afastada naquele país.
Mais recentemente, vimos a rebeldia dos jovens nas manifestações de maio de 1968, em Paris, que repercutiram pelo mundo ocidental, num esforço para afrouxar as tensões de uma sociedade patriarcal extremamente hierarquizada, autoritária e conservadora, da qual o general De Gaulle era a representação emblemática. Em contraponto, também nos deparamos, em outro extremo, com os excessos em sentido contrário, quando se tenta desvirtuar e facilitar as formações universitárias e de pós-graduação, com os formandos ainda sem suficiente experiência e conhecimento querendo determinar o que é necessário e desnecessário para sua qualificação, sem levar em conta a experiência de seus decanos, numa iconoclastia pouco refletida. Um importante e renomado professor de cardiologia de uma das mais importantes universidades do Brasil, há pouco tempo me disse que, ao propor a residência em sua área, muitos se inscreviam. Entretanto, ao se depararem com a extensa bibliografia e a disciplina de trabalho requisitadas, poucos efetivavam a matrícula, enquanto o restante ia fazer “relações públicas” pelos corredores da faculdade, na tentativa de pular etapas e rapidamente assumir funções de poder. Ele teme pelo tipo de medicina que se imporá em breve com esse tipo de “qualificação”. Está evidente, nesse contexto, a expressão da situação edípica em que os filhos querem se apoderar da condição dos pais e da casa deles sem terem alcançado a real condição para sustentá-la de forma consistente.
Neste número 2 de A criança e os pais, contamos com os trabalhos temáticos de Gina Khafif Levinzon, que discorre sobre a importância do conhecimento das origens na análise de pessoas adotadas; Helga de Souza Machado Quagliatto et al., que procuram iluminar o entrelaçamento das ações do trauma com o caráter das fantasias inconscientes que gerariam crenças subjetivas; Diva Aparecida Cilurzo Neto, que apresenta o atendimento de uma criança em que, “através das confidências e das inconfidências vividas dentro e fora do campo analítico, ... vão sendo revelados núcleos psíquicos de dor carregados de auto e heteroagressividade mortífera”; Fátima Maria Vieira Batistelli, que relata a experiência com uma criança com transtorno de espectro autista de 2 anos e meio de idade; Cristiane da Silva Geraldo Folino et al., que construíram um artigo com base na experiência de um grupo de observação de bebês, o qual, ao iniciar essa atividade, sofreu o impacto do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19; Martha Pereira Almeida Pinedo e Rosa Maria Tosta, que visam compreender o papel do ritmo no processo de subjetivação do bebê; e Camila Young Vieira e Marina F. R. Ribeiro, que consideram que o conceito de campo dinâmico e intersubjetivo instrumentaliza a clínica da infância.
Os não temáticos são os instigantes trabalhos “Bion e as cesuras entre o Homem do Subsolo, de Dostoiévski, e o Homem ao Relento, de Beckett”, de Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho, sobre as cesuras vividas por ambos os personagens na busca do amor verdadeiro, e “Pensamentos em transição”, de Maria Helena de Souza Fontes, construído a partir de reflexões fomentadas pelos desenvolvimentos desconcertantes da inteligência artificial e pelas vantagens do método psicanalítico para lidar com angústias acrescidas pela complexidade do mundo neste momento de transição.
Uma boa leitura para todos.