Quanto mais o trabalho deste ano vai agora ficando para trás, mais satisfeito vou ficando com ele. A não ser com a bissexualidade! A respeito dela, você certamente tem razão. Estou até me acostumando a conceber cada ato sexual como um processo entre quatro indivíduos. Sobre isso haverá muito o que conversar.
SIGMUND FREUD, Carta 113, a Fliess
Para que 1 + 1 = 3, o sinal de mais precisa não só ser sexualizado mas também significar intercurso sexual com intento de gerar crianças em condições adequadas entre pessoas adequadas.
WILFRED BION
Damos início à largada. Estamos aqui no ponto originário, nascente do psiquismo, de onde a vida se origina e se expande, local mítico para onde sempre insistimos em regressar ou de onde, na realidade, nunca saímos. Diante de meus olhos, em uma travessia de Freud a Bion, o conceito de bissexualidade psíquica se desenhou como a marca de nossa origem - seria, assim, a chave que possibilita a abertura para a condição humana ou, ainda, o conceito que resguarda o nosso potencial para alcançar a dimensão do humano.
A bissexualidade como condição para o alcance da humanidade é uma reflexão que habita as entrelinhas do texto freudiano, feixes de luz de sua obra que serão desenvolvidos por autores contemporâneos, sobretudo os pós-bionianos. Como se sabe, o conceito de bissexualidade é tributário do diálogo apaixonado entre Freud e Fliess, envolvendo suspeitas de plágio, ciúmes e, por fim, a ruptura entre ambos. De herança, temos um conceito enigmático, uma vez que Freud nunca conseguiu incorporá-lo harmonicamente à teoria. Mesmo assim, nunca o abandonou, intuindo talvez um potencial subjacente ao tema da bissexualidade - tal qual um pensamento que aguardou outras mentes para pensá-lo.
A compreensão de Freud acerca da temática da bissexualidade diz respeito ao complexo de Édipo: a bissexualidade se constitui como o pavimento do complexo de Édipo, o solo no qual se sustenta e se desenrola a trama edípica. Nesse sentido, lidar com o Édipo é processar e perlaborar a bissexualidade inerente a todos os seres humanos: “Uma investigação mais penetrante mostra, em geral, o complexo de Édipo mais completo, que é duplo, um positivo e um negativo, dependente da bissexualidade original da criança” (Freud, 1923/2011b, p. 41).
Para Freud, a bissexualidade se entrelaça a duas correntes indissociáveis: a feminilidade e a masculinidade. Ambas constituem a subjetividade dando contornos singulares à nossa identidade, inescapavelmente sexual. Seriam, desse modo, o barro do qual somos feitos e o sopro de humanidade que anima a carne e a víscera. Tornar-se humano é da ordem do enigma, sempre próximo da magia e da religião, um mistério que a tradição cristã nos ensina com poesia: Deus nos moldou de barro e, sobre nós, soprou a vida.
Nesse sentido, não nascemos homens nem mulheres, mas com “uma predisposição originalmente bissexual” (Freud, 1905/2016, p. 28). O primeiro desafio, a meu ver, seria compreender a bissexualidade para além da binariedade, da lógica castrado/não castrado, o que corresponderia a uma cisão dos fenômenos mentais e, por essa razão, acabaria por nos arrastar para a anatomia - que já em Freud é sempre ressignificada pela fantasia. Assim, pênis e vagina/masculino e feminino, enquanto vertentes da bissexualidade, são qualidades psíquicas, ou melhor, estados de mente que transcendem a anatomia. Ademais, feminilidade e masculinidade, para além de uma ótica binária, seriam uma dualidade em constante interação e oscilação, em um movimento dialógico infinito. Valendo-nos das palavras de Gérard Bléandonu sobre a vida e a obra de Bion, “a verdade não está nos objetos, mas na relação entre eles” (1994, p. 313).
O modelo espectral pode iluminar essa discussão, pois, na visão de Arnaldo Chuster (2021), é essa proposição que nos permitirá alcançar a complexidade dos fenômenos psíquicos. Nesse sentido, ao vislumbrarmos masculinidade e feminilidade em um espectro, nos deparamos com pontos de indecidibilidade, de fusão, de incerteza. Essa perspectiva é desafiadora, pois nos convida a tolerar o paradoxo e o mistério, afinal masculinidade e feminilidade comportam uma cesura (Bion, 1977/1989), isto é, abrigam continuidade e ruptura.
O conceito de bissexualidade psíquica nos mostra um Freud além da segunda tópica, em busca da complexidade da mente: uma mente que se sustenta, sobretudo, pela existência de paradoxos. O olhar freudiano que deslindou a noção de bissexualidade revela o que Bion denominou visão binocular (Sandler, 1999). A ideia de visão binocular poderia ser descrita como a capacidade de confrontar e correlacionar distintos vértices, de integrar e não recorrer à clivagem, de suportar paradoxos e não se apressar a resolvê-los, o que nos leva na direção da complexidade dos processos mentais, que nos ensina a compreender os fenômenos psíquicos como coexistentes em uma constante relação e oscilação - o mental e o protomental, o simbólico e o não simbólico, a parte psicótica e a não psicótica da personalidade, o consciente e o inconsciente, o infantil e o adulto e, claro, a masculinidade e a feminilidade.
Sandler (1999) propõe um constante movimento entre masculinidade ↔ feminilidade, o que representaria uma permanente movimentação entre polos, e não uma clivagem. O autor acredita que essa oscilação estaria mais próxima a um monismo, ao uno - a O. Logo, se O é o marco zero, a origem ou o incognoscível, estamos às voltas com as cores de um espectro que nossos olhos não podem captar.
Só assim é que podemos expandir o conceito de bissexualidade e relacioná-lo à teoria bioniana, que de maneira muito original buscou dar contornos à pergunta misteriosa que sempre nos leva a um fantasiar científico: como nasce a mente, esse presente e esse fardo que nos distancia de um “alegre dinossauro”? “Então um alegre dinossauro, de repente, começou a se transformar em um mamífero, e então o pobre mamífero começou a desenvolver uma mente” (Bion, 1978/2020, p. 152).
Acreditamos, desse modo, que a bissexualidade é o berço da vida mental. A esse respeito, Freud e Bullitt nos dizem: “Nascer bissexual é tão normal quanto nascer com dois olhos; um homem ou uma mulher sem o elemento da bissexualidade seria tão desumano quanto um ciclope” (1967, p. 64). Sem o elemento da bissexualidade, estamos no terreno da desumanidade, seríamos monstros caolhos, criaturas bizarras, destituídos da magia que nos presenteia com a condição humana.
Quando Bion (1963/2004) se lançou na escuridão de nossos primórdios, ele nos presenteou com uma narrativa poética sobre o mistério mais profundo da humanidade: a procriação. A esse mistério, Bion deu o nome de preconcepção, conceito que abriga a ideia de que o bebê está capacitado para o encontro com a mente de seus cuidadores. Seria, por assim dizer, certa expectativa esperançosa de que o outro nos aguarda, paciente, para estimular o nosso crescimento mental.
Dessa forma, o bebê intui uma mente futura. Ele tem fé de que alcançará uma condição humana no encontro com a alteridade. De perto, a origem humana é um par, uma dupla, um casal. No entanto, se nos aproximamos um pouco mais, o casal só existe na fertilidade, e a fertilidade é sempre edípica. A condição edípica é o que possibilita o vínculo, a ligação, o pareamento, no entanto, em uma concepção bioniana, o Édipo vai além da ideia do terceiro entre a mãe e a criança (Green, 1980/1988).
A preconcepção é o Édipo encarnado em nós, pois não só nos possibilita o encontro com nossa narrativa edípica como porta uma condição edípica, porque esse conceito condensa o espectro que abriga masculinidade ↔ feminilidade: é feminilidade, é masculinidade e é por fim bissexualidade. A preconcepção representa, assim, a bissexualidade como potência monista - de um lado, a intuição receptiva do seio (♀); do outro, a busca ativa por outra mente (♂) (Sandler, 1999). Temos, então, uma preconcepção bissexual. E mais: ela é a janela para a vida, o arcabouço procriador da mente. Sua potencialidade? A de gerar vida mental.
Sobre isso, Chuster é categórico, correndo o risco de parecer radical, ao afirmar que “não pensamos que exista o humano fora do mental, e o mental é sinônimo de edípico. O pré-edípico não é humano” (2019, p. 57). Voltamos, nesse ponto, a Freud: sem a bissexualidade, que porta nossa condição edípica desde os primórdios, não há existência humana possível. A bissexualidade é de onde a vida humana eclode com força e vitalidade - uma explosão, uma espécie de big bang do nosso universo mental, complexo, infinito, impossível de ser desvendado em sua totalidade.
Chegamos, enfim, ao colo materno. Somos todos marcados pela cesura do nascimento, nos moldes que Freud (1926/2014) intuiu e Bion (1977/1989) desenvolveu: a cesura como um conceito que nos ensina que a mente se sustenta por paradoxos, binômios em constante relação, simetrias heterogêneas que só significam se vislumbradas no entre - enfim, continuidade e ruptura. A complexidade da mente nos permite “viver simultaneamente em pelo menos dois mundos”, diz Renato Trachtenberg (2023, p. 182). Permanecemos, portanto, no ventre e nos deparamos com um novo mundo. E esse mundo é a nossa mãe, a maternagem, a mãe-terra ou a mãe-universo.
Nos braços da mãe, a bissexualidade segue, então, o seu destino, em um movimento de interpenetração afetiva, alicerçado na díade penetrante/penetrado, termos sustentados pela psicanalista Dianne Elise (1998, 2019) em uma tentativa de transcender feminilidade e masculinidade e alcançar a dimensão visceral da bissexualidade. Cenários ternos e ardentes se desenrolam: é carne e mente, é víscera e abstração, é prosaico e poesia. Seio, mamilo, leite que jorra, lábios que sugam, boca que morde, nariz que cheira, dedos na superfície e nos orifícios, colo que acolhe, olhos que perfuram e uma mente receptiva e penetrante - uma mãe e seu rebento, a imagem do encontro fundamental e fundante entre corpos e mentes.
Dianne Elise, tão provocativa, é uma autora que nos obriga a manter a chama acesa para o erotismo pleno - faísca genuína de amor e calor. A teoria de Elise é idílica e, nela, a bissexualidade ganha relevo como potencialidade humana do corpo e da mente; é forma de agarrar, receber, penetrar e investigar. Assim, o conceito de bissexualidade ilustra a dialética entre penetrante e penetrado na vida psíquica. A autora, por sua vez, não dá relevo à dimensão traumática desse movimento de interpenetração entre corpos e mentes. Pelo contrário, ela nos convida a reconhecer o potencial de saúde da libido apaixonada que circula entre a mãe e seu bebê. Ao reler suas linhas e tocar em seu ventre fértil, eu me pergunto: sem o colorido traumático, é possível a existência? Será a psicanálise, de modo geral, uma teoria sobre a dor?
O confronto entre distintos vértices, do idílico ao traumático, pode nos trazer duas facetas da mesma experiência, em que os opostos se coadunam em uma experiência única e singular de cada sujeito. Laplanche (2015), em sua teoria da sedução generalizada, diferentemente de Elise, ressalta os aspectos traumáticos desse encontro erótico, pois ele se assenta em uma intensa sedução que se dá em uma situação antropológica de base, isto é, em uma situação inescapável em que estamos fadados à vulnerabilidade, a uma passividade radical: somos cuidados, manuseados, invadidos, dominados e penetrados.
A intimidade a dois, terreno do secreto e do indizível, acontece na “privacidade dos recintos reclusos”, como afirma Paulo Ribeiro (2000). O autor chama a atenção para o fato de que penetrar e ser penetrado coalescem nesse primeiro tempo, “criança e mãe são duas faces de uma mesma penetração” (2005, p. 251). Não há par de opostos, mas um gozo sem oposição, terreno que Ribeiro designa como recalcamento primário e que poderíamos articular, ainda que timidamente, à bissexualidade primária,3 marca das relações primitivas.
Nosso corpo e nossa mente à revelia dos enigmas do outro, que, segundo Marina Ribeiro (2011), nos constitui e traumatiza a um só tempo. No entanto, afirma a autora, podemos ser abençoados por uma “mãe sedutora suficientemente boa”, que amorteceria a violência do encontro com a alteridade. Acreditamos que essa capacidade de combinar sedução e ternura, calibrá-las de maneira a estimular o crescimento mental, pode estar atrelada ao que Green (1980/1988) denominou esquema triádico originário ou o outro do objeto. Temos aí a cena originária, como marca da bissexualidade psíquica, transposta para o olhar da mãe. Ali mora quem também fertilizou e deu origem a esse bebê. Se tivermos sorte, o pai e seus substitutos abrigam o desejo da mãe, deixando espaço para que o nosso desejo desabroche; poderíamos dizer: uma brisa leve, mas vital, que sopra entre a mãe e seu rebento.
Retornamos à dimensão da cesura: se houver brisa, estaremos paradoxalmente no colo da mãe e também alçaremos voos para além dos muros edípicos. Desse encontro fundante, levamos uma promessa do eterno reencontro com essa dimensão alteritária excitante e prazerosa. No melhor dos mundos, nos lançamos em novos braços, vivenciando outros encontros amorosos, em uma busca constante de manter vivo o poderoso Eros, herança valiosa de nossa trama edípica. Aqui, trauma e constituição, sempre lado a lado, assim como os futuros encontros amorosos, se assentam na noção de bissexualidade e suas vertentes indissociáveis: penetrar/ser penetrado, fora/dentro, dar/receber, possuir/oferecer, dispor/agarrar - tudo isso permeado por faíscas de amor, dor e desejo.
Parece, assim, que o descolamento da bissexualidade das vertentes femininas e masculinas nos permite compreender de maneira mais viva as raízes da nossa história e do nosso funcionamento mental. Freud, humilde e ancorado em uma postura científica admirável, passou grande parte de sua obra tentando desvendar as noções de masculinidade e feminilidade, sempre se deparando com algo da dimensão do impossível e nos convidando a um mergulho em direção à complexidade. Por isso ele diz que essas categorias seriam “confusas” (1905/2016), “de conteúdo incerto” (1925/2011a), que a “psicanálise não pode esclarecer” (1920/2011c), e que, por fim, atrelá-las à atividade e à passividade “é pouco” (1920/2011c).
Acabamos por nos defrontar com uma decisão psicanalítica: transcender as noções de feminilidade e masculinidade, adotando a dupla penetrante/penetrado com o intuito de alcançar o que Bion (1970/2007) chamou de language of achievement,4 que fosse capaz de expressar a fertilidade do conceito de bissexualidade psíquica como metáfora da interpenetração entre corpos e mentes. Na mesma esteira de pensamento, adotamos a ideia de que a mente porta uma condição andrógina: feminilidade/masculinidade, ou melhor, ♀♂, seriam representantes da capacidade humana de penetrar e se deixar penetrar.
Temos, assim, uma mente andrógina, que nos ensina que feminilidade-masculinidade, penetrante-penetrado, ♀-♂ se constituiriam como uma dualidade inexorável da vida psíquica, como eu-outro, amor-ódio, pulsão de vida-pulsão de morte. Essa reflexão, a nosso ver, alça um novo alcance, possibilitando uma discussão mais arejada e uma psicanálise mais próxima da experiência emocional, sempre ancorada em um corpo sensual - pois, como enfatiza Elise, “todos temos dedos e bocas” (1998, p. 361) e, caminhando lado a lado com a autora, diríamos: todos temos o potencial de acolher o outro em nosso espaço mental e habitar a mente de outrem.
O conceito de bissexualidade psíquica é carregado de paixão, relegado à dimensão do conservador ou caduco por, supostamente, defender uma norma heterossexual ou sustentar uma binariedade (Levy, 2019). Afinal, os termos masculinidade e feminilidade podem, equivocadamente, levar à noção de um binarismo, preto no branco, homem ou mulher, e fazer perder de vista três vértices valiosos com os quais esse conceito nos brinda: 1) a dimensão da existência de um binômio constitutivo da mente, em que feminilidade e masculinidade seriam como um “casal de palavras”, complexo como qualquer casal, permeado por amor e conflito (Trachtenberg, 2023), e marcado por um estado de cópula; 2) a dimensão da bidirecionalidade, que revela o fluxo, a oscilação e o movimento entre os polos masculino e feminino; 3) a busca por outra mente, sempre bidirecional, eu ↔ outro.
Como é possível vislumbrar, no coração da noção de bissexualidade, a alteridade, marcada pelo erotismo e pela paixão, encontrou o seu lugar, promovedora de nossa condição humana ou, poderíamos dizer, de nossa dimensão psíquica sempre atravessada pela sexualidade. Somos seres sexuais, e não há estados dessexualizados de mente. Do mesmo modo, o desenho de nossa sexualidade também nasce de uma trama bissexual que nos distancia do anatômico, do biológico e do desenvolvimento da espécie - terreno subversivo do perverso-polimorfo.
Se a anatomia é destino e, por consequência, estamos fadados a nos deparar com o outro sexo, a bissexualidade seria, nas palavras de Christian David (1975/2018), o antidestino. Afinal, todos somos portadores de vagina e pênis, de estados mentais marcados pela feminilidade e pela masculinidade. A bissexualidade psíquica seria uma possibilidade de desenvolver, criativamente, uma fórmula sexual própria, plástica e viva. Nessa perspectiva, cada um de nós é um gênero, uma nova letra que se imprimiria em uma bandeira infinita, representante da diversidade e defensora de uma singularidade.
Uma bissexualidade integrada, harmônica - lembrando que estamos em terreno onde a guerra sempre pode eclodir (Godfrind, 1997) -, possibilitaria não só o desenho de nossa identidade de gênero, mas de uma capacidade genuína de se identificar com o outro gênero, de abraçar amorosamente a alteridade, pois nossas identificações bissexuais nos propiciam ser um cidadão do mundo. O mundo em suas infinitas possibilidades, marca da dimensão polimorfa da sexualidade, está dentro de nós.
A bissexualidade, nas palavras de Dianne Elise (2019), estaria próxima a uma pansexualidade ou a um repertório de gênero ilimitado, marcas de um polimorfismo. Por isso, acreditamos que a bissexualidade poderia ser descrita tal qual uma gônada embrionária em que a indiferenciação e a capacidade de se diferenciar são as suas potencialidades. Desde uma fusão entre as vertentes masculinas e femininas, que ofusca qualquer diferenciação, até um livre trânsito entre esses polos. No que diz respeito à nossa sexualidade ou à nossa identidade de gênero, estamos em um espectro que condensa a masculinidade e a feminilidade - transitamos de um vazio sem forma para os contornos singulares de nosso ser.
Desse modo, idealmente, nós, psicanalistas, implicados em um constante processo de perlaboração de nossa bissexualidade, ancoramos nossa escuta em um pleno uso de nossa potência: somos, assim, capazes de explorar um polimorfismo subjacente a toda sexualidade (Nosek, 1996) e nos relacionar, sempre sexualmente, com cada um de nossos pacientes. Nosek observa que a bissexualidade estaria relacionada ao acoplamento de mentes, a formas de vincular-se e lançar-se em direção ao outro na busca constante de sentido, de uma verdade emocional, o alimento da alma - ou poderíamos dizer que, em cada encontro analítico fértil, nascem filhos subjetivos, necessários à nossa sobrevivência psíquica. O casamento edípico, em termos abstratos, é o movimento dos encontros humanos e da vida mental.
Temos, portanto, uma mente andrógina. A bissexualidade não só estaria associada às relações primordiais com o outro e à consequente arquitetura de nosso aparelho mental, assim como ao desenho de nossa identidade de gênero, mas também estaria no cerne de nosso funcionamento mental. Os termos bionianos continente/contido, assinalados pelos símbolos ♀♂, seriam a marca do próprio intercurso sexual, da condição edípica e bissexual da mente. Seus frutos? Os nossos pensamentos-filhos.
A dupla continente/contido poderia ser equiparada ao próprio pensamento, filho do movimento contínuo de impregnação entre essas dimensões da mente. Esse dispositivo é introjetado a partir da relação com a mãe que empresta sua capacidade de pensar a seu rebento. Do par boca-seio, que já revelaria a ideia de interpenetrabilidade, nasceria - sempre ancorada na capacidade de reverie da mãe e de sua função alfa ou, poderíamos dizer, de sua capacidade de transformar a brutalidade em sentido - a nossa capacidade de pensar. Se construíssemos uma narrativa, poderíamos contar assim: a mãe, solidária, oferece seu psiquismo, e o bebê mama o seu aparelho de pensar, introjetando a capacidade, exclusivamente humana, de gestar e gerar pensamentos. O funcionamento andrógino da mente evoca, desse modo, sexo, gravidez e nascimento.
Em uma das epígrafes deste texto, Bion equipara a adição ao intercurso sexual e diz que, onde acreditamos haver dois, há na verdade sempre três. Nesse ponto, poderíamos pensar em uma mente edípica primordial,5 capaz de gerar uma infinidade de filhos: nossos pensamentos-sonhos que enriquecem e possibilitam a vida psíquica. Também podemos ver aí o casal analítico, o qual, quando fértil, possibilita um encontro entre as mentes, que, em um estado de cópula, são capazes de pensar juntas ou, em outras palavras, de parir, procriar - enfim, gerar sentidos transformadores, o que caminha para a ética da psicanálise condensada em sua única finalidade: a criação poética de nós mesmos.
Essa criação só é possível em uma profunda entrega vivida na “privacidade dos recintos reclusos” entre a mãe e seu bebê, como poeticamente escreveu Paulo Ribeiro (2000), ou na intimidade revolucionária da vivência analítica. A entrega, a privacidade e a intimidade são transformadoras, mas também podem ser da ordem do terror. Elise (2019) e Nosek (1996) apontam que sexo, corpo, amor e paixão são constantemente colocados para fora da sala de análise - e essa façanha será possível? Será útil à psicanálise?
O conceito de bissexualidade remete à tensão explosiva e constante entre corpo e mente, entre desejo carnal e desejo de sentido - binômios em constante acordo, duas facetas da mesma experiência emocional. Sexo e sexualidade - dimensões indissolúveis, mas inconfundíveis. É a intimidade psíquica, essa grande aposta da psicanálise, sempre permeada pelo erótico, que nos legitima à entrega profunda de nosso corpo em um gozo que nos remete às vivências primordiais, reativando nossos desejos incestuosos, transgressores, e ativando nossa capacidade criativa. Somos sempre - em uma profunda relação de dependência com o outro - corpo e mente.
Sem dúvida, Freud foi o primeiro a investigar a sexualidade de um ponto de vista psíquico. Sua invenção? Uma sexualidade ampliada, que inunda todas as esferas da vida. Ele nos deixou de herança a cara noção de psicossexualidade, ou seja, uma sexualidade que encontra sua dimensão humana sempre atrelada à fantasia e que se sustenta em um polimorfismo subversivo, que nos assombra e fascina, nos aprisiona e liberta. O brincar da sexualidade polimorfa, sem pudores, asco ou repúdio, permeado de alegria e excitação, é transmitido por Daniel Delouya através de uma bonita passagem bíblica: “Que brinquem os moleques à nossa frente” (2003, p. 206). Podemos participar da brincadeira e convidar nossos pacientes: “Que brinquem os analisandos à nossa frente”.
Freud é barulho e revolução. Seu conceito de bissexualidade psíquica é tributário dessas revoluções. Nossa pequena contribuição foi a de tecer uma reflexão sobre a noção de bissexualidade ampliada, em uma tentativa de pensar sobre a preciosa intuição freudiana de que a bissexualidade é não só condição de “todos os seres humanos” (1896/1986), mas também condição para o vir a ser, para o tornar-se humanidade.