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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.57 no.4 São Paulo  2023  Epub 04-Nov-2024

https://doi.org/10.69904/0486-641x.v57n4.16 

Resenhas

O pacto da branquitude

Elias Mallet da Rocha Barros1 

1Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), São Paulo. erbarro@terra.com.br

Bento, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das Letras, 2022. p. 152


Convidado a dialogar com o livro O pacto da branquitude, de Cida Bento, eu o li, de um lado, com muito prazer, por ver um conceito tão essencial quanto pacto da branquitude sendo elaborado, e de outro, com grande consternação, dando-me conta da seriedade da questão abordada. Este livro teve, tem e terá importância capital na elaboração de políticas antirracismo. Não por acaso, a autora foi considerada uma das 50 pessoas mais influentes do mundo pela revista The Economist.

O livro pode ser comentado de muitos pontos de vista, já que uma das qualidades essenciais de uma autora é ser inspiracional. Quanto a mim, só posso contribuir trazendo à baila conhecimentos das áreas que conheço melhor - no caso, a psicanálise, a psicologia social e alguma coisa da teoria política.

Para evitar qualquer mal-entendido, devo começar dizendo que sou a favor de todas as políticas positivas em relação às vítimas de discriminação racial, etnológica e política (exilados) e àqueles que são e foram vítimas de preconceito de qualquer espécie. Também considero que temos uma grande dívida que nos foi legada pela escravidão de vários povos.

Concordo com a noção de pacto da branquitude, e não poderia deixar de dizer que todos nós, brancos, fomos favorecidos em maior ou menor grau por esse pacto racista. Quem de nós não foi beneficiado pela degradação do salário dos negros? Das domésticas que, mesmo quando brancas, foram tratadas como negras, “morenas”, mulatas, e quando de fato negras, ainda mais desqualificadas. Todos aqueles que tinham algum recurso para contratar esse tipo de mão de obra se beneficiaram. (Devo dizer, para que não tapemos os olhos, que também as ditas shiksas em certas comunidades ganharam o status de “negrinhas”, mesmo quando brancas.)

Os baixos salários para os negros são epidêmicos até quando se trata de bônus distribuídos no mercado financeiro. O problema é horizontal e vertical.

Além de ser odiento de qualquer ponto de vista, o racismo é cientificamente indefensável. Não existem raças entre humanos. O Nobel de Medicina de 2022, Svante Pääbo, do Instituto Max Planck, sepultou de vez (ou pela décima vez) o conceito. Sugiro que todos leiam o recém-lançado livro A jornada dos nossos genes, do bioquímico alemão Johannes Krause (também do Instituto Max Planck) em parceria com o jornalista de ciência Thomas Trappe.

Dentro de minha área de conhecimento, pergunto: em que espaço opera esse pacto da branquitude? De que natureza ele é? Ele existe inconscientemente, sem dúvida, embora com frequência opere conscientemente. Mas qual inconsciente habita?

Para responder a essas perguntas, precisamos fazer algumas distinções entre o plano da cultura, o da ideologia, o da psicanálise e o da psicologia. Cada um desses planos é tratado por um campo de conhecimento diferente, embora se entrecruzem. Quando falamos em ideologia, devemos saber que, entre a estrutura social que a produz e as crenças ideológicas, existem múltiplos níveis de mediação. A relação nunca é direta.

A psicanálise usa a palavra inconsciente em pelo menos três acepções. Falamos de um inconsciente habitado pelo reprimido, de um inconsciente constituído por impulsos que nunca foram conscientes e de um inconsciente (antigo subconsciente) que se caracteriza simplesmente por não ser consciente, no qual as coisas, as ideias e as representações no sentido filosófico existem em estado de pregnância.

Existem também crenças inconscientes na cultura, e entre elas algumas tornam-se mais precisas se as qualificamos de ideológicas. A meu ver, a branquitude se converteu numa categoria ideológica superestrutural inconsciente. Como todo conceito superestrutural, ele torna-se inconsciente (é naturalizado na sombra) e passa a fazer parte da cultura. (Cultura é a naturalização de ideias e atos que, repetidos à exaustão, chegam a se inserir na ordem natural das coisas. Não nos esqueçamos de que as tradições têm o estatuto coletivo de código.) Como analistas nos perguntamos de que inconsciente estamos falando aqui. Não é nem o reprimido, dinâmico, nem o estrutural, povoado por impulsos do id. Seria então o que Freud caracterizou como pré-consciente. Sua inacessibilidade é de natureza ideológica. A ideologia turva as lentes, e somos socialmente identificados a visões de classe e estamento social. Essas tentativas de esclarecimento terão consequências práticas, como veremos mais à frente.

Já o que Cida Bento e René Kaës chamam de pacto narcísico ou pacto denegativo tem uma existência no inconsciente estrutural. Não como pacto diretamente, mas como fruto de um narcisismo e de uma dupla negação (daí a denegação) que facilitam uma pactuação ideológica. O pacto é ideológico ainda que inconsciente no primeiro sentido. É dessa forma que tornamos a questão do preconceito mais universal, aplicando-se também aos lgbt+.

O narcisismo é fruto de um sentimento de pequenez diante do outro que ameaça apenas por ser diferente. O diferente aqui assume várias conotações. É diferente porque tem outra cor, outra religião ou ainda outra cultura e língua. No caso da denegação, algo distinto acontece. A diferença é percebida, reinterpretada e desqualificada como inferioridade: o outro não é humano ou não tem individualidade. Com tal redução projetiva do outro, este se transforma numa grande ameaça. Diante dessa nova situação, é fácil pactuar com a exploração, o assassinato, a tortura do outro. Ainda aqui a pactuação é cultural e ideológica. Rejeita-se outra cultura, cujos indivíduos podem ser maltratados, torturados, marcados a ferro e mortos porque não são iguais a nós - um nós muito esquisito e difícil de ser claramente definido, mas com tinturas de uma estrutura mental intermediária.

Estou fazendo uma distinção entre o cultural e o ideológico, ainda que o narcisismo esteja presente em ambos no que tange ao comportamento derivado desses dois planos. Acredito que René Kaës concordaria comigo, e essa distinção está presente em seu texto.

Quais seriam as implicações práticas dessa distinção? Por que seria importante fazê-la?

Eu diria que as implicações das ações políticas daí derivadas seriam diferentes ainda que se superpusessem em certa medida.

As reações circunscritas ao racismo, quando este é centrado apenas na cor, produzem revolta, ressentimento, rancor, desejo de vingança; convocam um certo individualismo (ainda que justificável), mesmo que possa redundar em associações dos indivíduos com os grupos. A questão racial corre o risco de ser majoritariamente identitária e assim se descolar de outras alianças necessárias para que todos os preconceitos sejam combatidos e eliminados. Só uma luta por um mundo novo, a meu ver e espero que de muitos outros, teria o caráter universal de combate contra os submetidos, minorias ou não.

A luta pelo reconhecimento só de uma identidade corre o risco de ser individualizada, redundar apenas em revolta, num movimento sem uma ideologia clara, que supõe uma aliança maior com todos os submetidos, índios, brancos pobres, habitantes das periferias sem acesso a educação, saúde e renda digna. Penso que só no dia em que um branco puder se sentir negro ou indígena ele será sensibilizado pela não diferenciação por cor ou etnia.

É nesse contexto que vejo com preocupação os movimentos só identitários. Estes podem se tornar apenas defensivos no sentido psicanalítico. Identidade é um conceito amplo e dificilmente pode se limitar à questão da cor da pele. Uma identidade se define também pelo lugar na cultura, na sociedade e no sistema político em que se está inserido. Aproveito a oportunidade para dizer que não foram somente em regimes capitalistas que os submetidos foram oprimidos pela cor da pele, pela etnia ou por crenças de caráter cultural ou religioso. Exemplos não faltam em todos os continentes e em todas as épocas.

O identitarismo pode inibir a luta por um mundo melhor para todos os oprimidos como bandeira principal, em que as ações positivas antirracismo seriam bandeiras parciais, junto com outras, referentes a outras questões. A problemática é mais social que racial, embora esta seja primordial.

Ao apresentar estas ideias numa conferência via Zoom, alguns poucos participantes (brancos) protestaram contra um branco ousar fazer comentários ou expandir ideias a partir do texto de Cida Bento e pediam que eu me calasse, ou seja, queriam cassar minha palavra quando eu havia sido convidado a participar de uma roda de conversa com a autora. Confesso que fiquei surpreso e assustado ao constatar que existem pessoas que se comportam como bolsonaristas de esquerda. Ainda que eu possa compreender que certas pessoas (sobretudo negras) se sintam feridas quando se comentam as eventuais limitações das pautas identitárias, não posso compreender uma atitude de censura ao pensamento reflexivo num contexto democrático.

Elias Mallet da Rocha Barros

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