A não recomendação da psicanálise para idosos
O primeiro texto de Freud que descreve a relação da psicanálise com os idosos é “A sexualidade na etiologia das neuroses” (1898/1978). Nesse texto, Freud argumenta que a psicanálise
fracassa também com as pessoas muito idosas porque, devido ao acúmulo de material nelas, o tratamento tomaria tanto tempo que, ao terminar, elas teriam chegado a um período da vida em que já não se dá valor à saúde nervosa. (p. 257)
Nesse fragmento, Freud afirma que o aglomerado psíquico, analisado durante o tratamento psicanalítico, seria tão extenso que, ao chegar ao fim da análise, o paciente não conseguiria usufruir dos resultados. De certa forma, direciona para uma perspectiva de fragilidade quanto à possibilidade do idoso de enfrentar naquele momento o conteúdo das sessões psicanalíticas. Além disso, permite inferir sobre a brevidade da vida: as pessoas da terceira idade não teriam tempo suficiente para elaborar o que foi alcançado pelo tratamento psicoterápico.
De acordo com Soares (2021), o posicionamento nesse texto pode ser relacionado com a época que Freud passou na Salpêtrière, na França, de outubro de 1885 a fevereiro de 1886, ao frequentar as aulas do professor de neurologia Jean-Martin Charcot. Surpreendido com as explicações sobre o tratamento da histeria, Freud se debruçou sobre os trabalhos desenvolvidos por Charcot. Uma importante obra do autor com a qual ele provavelmente teve contato foi Leçons cliniques sur les maladies des vieillards et les maladies chroniques. Nesse texto, o argumento principal girava em torno da existência de patologias exclusivamente senis (por exemplo: artrite, artrose), ou seja, a partir dessa perspectiva, ao envelhecer as pessoas iriam naturalmente adquirindo determinadas enfermidades. Portanto, a velhice era sinônimo de doença. O contato de Freud com essa teoria pode ter acontecido durante a tradução do francês para o alemão das obras de Charcot sobre neuropatologia. Como lembra Saraiva Júnior (2017), essa hipótese é baseada na redação do texto “Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim” (1885/1996), no qual Freud relata: “Quando tomei conhecimento de que Charcot tencionava publicar uma nova coletânea de suas conferências, ofereci-me para fazer uma tradução alemã; graças a essa tarefa, entrei em contato pessoal mais próximo com o professor Charcot” (p. 40). Em outro trecho do relatório, Freud descreve a construção da Salpêtrière:
A Salpêtrière, que foi o primeiro local que visitei, é um amplo conjunto de edifícios que, por seus prédios de dois andares dispostos em quadriláteros, assim como por seus pátios e jardins, lembra muito o Hospital Geral de Viena. Com o passar do tempo, a Salpêtrière serviu a finalidades muito diferentes, e seu nome (assim como a nossa Gewehrfabrik) provém da primeira dessas finalidades. Os edifícios foram, afinal, convertidos em lar de mulheres idosas (Hospice pour la Vieillesse (Femmes), [1813]) e proporcionam asilo a cinco mil pessoas. (p. 39)
Nesse fragmento, temos uma percepção do volume de pacientes idosos que eram cuidados por Charcot e sua equipe no hospital, refletindo a importância dos escritos de Charcot sobre essa fase da vida.
Ao relembrarmos a forma como Freud não indicava a psicanálise para pessoas mais velhas, percebemos a presença de critérios organicistas e fisiológicos na defesa de sua posição. De alguma maneira, ao falar da velhice, parece que Freud manteve uma ênfase no processo de degeneração do cérebro, como defendia Charcot.
Em 1905, Freud apresenta o ensaio “Sobre a psicoterapia” no mesmo local onde, anos antes, discursou sobre seu texto com Joseph Breuer, Estudos sobre a histeria (1893-1895/1976). Com isso, Freud volta aonde primeiramente recebeu inúmeros questionamentos referentes ao processo psicanalítico, que estava começando a ser estruturado. Ele esclarece que, naquela primeira oportunidade, ainda não tinha muitos dos achados que permitiram desenvolver a teoria psicanalítica. Nesse segundo momento, pretende esclarecer de modo didático o que de fato está circunscrito à psicanálise. O ponto que iremos focalizar nesta comunicação diz respeito ao item 3 no texto:
A idade dos doentes é relevante na seleção para o tratamento psicanalítico, na medida em que às pessoas próximas ou acima dos 50 anos, por um lado, costuma faltar a plasticidade dos processos anímicos nos quais a terapia se fia – pessoas idosas não são mais educáveis – e, por outro lado, o material a ser trabalhado prolonga a duração do tratamento até o imponderável. (Freud, 1905/1977, p. 274)
Nesse fragmento, Freud reafirma a indicação que fez em 1898, de que a psicanálise não deveria ser proposta para pessoas idosas. No artigo de 1905, especifica a idade próxima ou acima de 50 anos como limítrofe para o atendimento psicanalítico. Os argumentos seriam a dificuldade em lidar com aquilo que aparecerá na análise, bem como o prolongamento do tratamento, que exigiria vários anos de acompanhamento. É interessante observar que os argumentos são muito parecidos com os do texto de 1898. Sobre as diferenças, em 1905, de maneira mais clara, Freud estipula uma idade de corte (50 anos). Além disso, se antes havia uma preocupação quanto ao fim da análise, agora ela se torna algo que se direciona para o “imponderável”. Outro ponto que merece destaque nesse fragmento é quando Freud diz que “pessoas idosas não são mais educáveis”. A primeira indagação é: o que Freud quis dizer com “educáveis”? Acreditamos que seria a capacidade do paciente de, uma vez que eventos se tornem conscientes, elaborar e aprender uma nova forma de enfrentar esses eventos. Seja este ou outro o significado da frase, ela mostra ainda a influência da visão médico-fisiológica do envelhecimento como algo degenerativo.
Para debatermos a idade estipulada por Freud, devemos analisar a questão da expectativa de vida na época. De acordo com dados do Office for National Statistics (2015), do Reino Unido, entre o fim do século 19 e o começo do século 20, época na qual Freud escreveu esses textos, a expectativa de vida na Europa era de 51,5 anos para homens e 55,4 anos para mulheres. Portanto, Freud pode ter embasado sua recomendação no conhecimento da baixa expectativa de vida. Contudo, a realidade hoje é extremamente diferente. Afinal, houve ampliação da cobertura médica à população, bem como desenvolvimento de ações de prevenção e tratamento de doenças em muitos países. No caso do Brasil, por exemplo, as Tábuas Completas de Mortalidade de 2021, disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que a expectativa de vida dos brasileiros é de 73,6 anos para homens e 80,5 anos para mulheres. Isso representa uma diferença de 22,1 anos a mais para homens e 25,1 anos a mais para mulheres em comparação aos dados da época de Freud. Esse aumento na expectativa de vida é um argumento para defender que, se antes as pessoas não teriam tempo para trabalhar com o conteúdo das suas sessões, agora, com o envelhecimento da população, o prolongamento das sessões não seria um problema.
Outro ponto levantado é a idade que Freud tinha quando escreveu o texto de 1905: ele estava com quase 49 anos completos. Portanto, causa estranheza que ele não tenha recomendado a psicanálise para uma faixa etária que estava muito próxima de sua idade. King (1974) observa:
O que me surpreende nos comentários de Freud é que ele se refere a pessoas da sua idade – perto ou acima dos cinquenta anos – e, no entanto, a sua própria experiência deve ter lhe mostrado que os seus processos mentais ainda eram elásticos e ele era, até certo ponto, capaz de aprender com a experiência. Talvez indique quão difícil é aceitar que nós mesmos envelhecemos, assim como outras pessoas.
É importante lembrar que, mesmo vivendo até os 83 anos, Freud não alterou nem fez qualquer observação contrária à não recomendação da psicanálise para pessoas da terceira idade. O último texto em que abordou o tratamento de idosos foi “Análise terminável e interminável” (1937/1974a). Nesse texto, com 82 anos, Freud escreve:
Com os pacientes que tenho em mente, porém, todos os processos mentais, relacionamentos e distribuições de força são imutáveis, fixos e rígidos. Encontrase a mesma coisa em pessoas muito idosas, em cujo caso ela é explicada como sendo devida ao que se descreve como força do hábito ou exaustão da receptividade – uma espécie de entropia psíquica. (p. 236)
Como explica Soares (2021), nesse fragmento Freud enfatiza a rigidez psíquica das pessoas idosas, indicando o quanto nessa época ainda estava presente o caráter senil da velhice. A autora observa que a “entropia psíquica” seria uma forma de dizer como essas pessoas vivem dentro de um sistema de constante repetição. É interessante perceber que não houve mudança na concepção de Freud em relação aos idosos, mesmo ele já fazendo parte dessa faixa etária.
No próximo tópico, abordaremos algumas das situações enfrentadas por Freud durante a velhice. Usaremos como recorte biográfico os acontecimentos na vida dele a partir dos 50 anos. Selecionamos esse número porque foi essa a idade que ele definiu como a faixa etária que não deveria passar pela terapia psicanalítica. A ideia do artigo não é narrar toda a velhice de Freud, mas mostrar a relação entre as situações vividas, aquilo que foi escrito e como ele via sua própria velhice.
O passar pela velhice: o enfrentar as perdas
Para começar este tópico, levantamos alguns dos escritos de Freud a partir dos 50 anos, ou seja, a partir do ano 1906. O objetivo é perceber o quanto ele teorizou durante essa fase da vida:
– 1910: Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância
– 1911: “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides)” (o caso Schreber)
– 1913: Totem e tabu
– 1915: “O inconsciente”
– 1917: “Luto e melancolia”
– 1920: Além do princípio do prazer
– 1923: O ego e o id
– 1924: “Neurose e psicose”
– 1927: O futuro de uma ilusão
– 1930: O mal-estar na civilização
– 1939: Moisés e o monoteísmo
– 1940: Esboço de psicanálise
Como podemos ver através desse breve levantamento, Freud teve grande parte de sua teoria desenvolvida durante a velhice, o que permite reafirmar o quanto essa fase da vida pode ser produtiva, a despeito de todas as questões individuais que devem ser enfrentadas.
Para iniciarmos o tema da velhice de Freud, o primeiro fato que vamos discutir é a Primeira Guerra Mundial, que começou em 1914. Como explica Jones (1957/1989), os filhos de Freud foram para a frente de batalha e, curiosamente, a questão da morte passou a ser mais problematizada em seus escritos a partir desse período. Alguns textos que representam esse momento são “Reflexões para os tempos de guerra e morte” e “Sobre a transitoriedade”. De acordo com Peter Gay (1988/2021), a belicosidade humana esteve presente nos escritos de Freud dessa época, e termos como agressão foram ganhando cada vez mais espaço em sua teoria. Em 1917, escreve “Luto e melancolia”, obra em que mergulha nas considerações sobre as perdas enfrentadas pelas pessoas e como elas atravessam esse momento. Tanto Jones (1957/1989) quanto Gay (1988/2021), ao falarem sobre o comportamento de Freud neste ano, afirmam que ele acreditava muito em seu fim iminente. Nas palavras de Gay: “Como sempre, Freud, ao se deter sobre a morte, detinha-se sobre a sua própria” (p. 387). Esse ensaio metapsicológico pôs a morte no centro do debate em uma época em que estavam acontecendo inúmeras baixas nos exércitos. Com a derrota do exército alemão, a preocupação quanto à vida dos seus filhos fazia-o fumar de maneira compulsiva inúmeros charutos (Jones, 1957/1989).
A morte se aproximou de Freud no ano de 1920. A primeira foi a de seu amigo e benfeitor da psicanálise Von Freund, devido a uma recidiva de câncer. De acordo com Gay (1988/2021), a morte do amigo fez com que Freud pensasse em sua própria morte; é importante lembrar que, nesse momento, Freud não sabia de seu câncer. Um golpe maior aconteceu apenas cinco dias após a morte do amigo: Freud perdeu a filha Sophie, grávida do terceiro filho. Ele sofre um enorme impacto com essas perdas. Em 27 de janeiro de 1920, escreve a Oskar Pfister: “Trabalho o máximo possível e me alegro que isso me impeça de pensar demais. A perda de um filho parece produzir uma grave ferida narcísica. O que se conhece como luto chegará provavelmente depois” (Meng & Freud, 1963, p. 84). Em 4 de fevereiro de 1920, também escreve a Sándor Ferenczi sobre essas perdas:
A morte, embora dolorosa, não afeta minha atitude diante da vida. Estive durante anos preparado para aceitar a perda de nossos filhos, mas agora foi a vez de nossa filha. Como ateu convicto, não posso acusar ninguém. … No fundo de meu ser sinto, não obstante, uma ferida amarga, irreparável e narcísica. (Brabant et al., 2000, p. 78)
Nessa carta, Freud explica de maneira clara o quanto está sofrendo devido àquela perda. Mostra que, por mais que se possa estar preparado para a morte, nunca se está de fato. Na mesma época, escreve para Eitingon: “O Além do princípio do prazer está finalmente acabado. O senhor poderá comprovar que o livro já se encontrava escrito pela metade quando Sophie ainda estava viva e saudável” (citado por Goldfarb, 1997, p. 85). Nessa obra, pela primeira vez apareceu o termo pulsão de morte e, de acordo com Max Schur, doutor que acompanhou Freud de 1929 até sua morte, esse termo pode ter aparecido pela primeira vez um mês depois dessas perdas, em uma carta enviada a Eitingon. Gay (1988/2021) reforça que o termo apareceu na correspondência de Freud uma semana depois da morte de Sophie. Nessa perspectiva, aquilo que estava acontecendo na vida de Freud exerceu influência em sua teoria (Goldfarb, 1997). Gay (1988/2021) explica que a morte da filha nunca foi superada pela família Freud, de modo que, quando acontecia de alguma pessoa do círculo próximo da família perder um filho, na carta de condolências havia uma menção a Sophie. Freud, por exemplo, passou a carregar uma foto da filha no relógio de bolso, e quando surgia o assunto, ele dizia: “Ela está aqui”, e mostrava o retrato de Sophie.
Segundo Gay (1988/2021), na primavera de 1923, Freud começou a apresentar os primeiros sinais de que estaria com câncer no palato. No entanto, ele manteve em segredo sua suspeita, pois imaginava que a primeira indicação seria que suspendesse o consumo de tabaco. Escreve para Ernest Jones nesse ano: “Eu estava certo do caráter benigno do problema, mas como o senhor sabe, ninguém pode garantir o comportamento dele quando se permite que aumente ainda mais” (p. 562). Nesse trecho, podemos perceber que Freud, médico, tentava de alguma maneira tranquilizar-se quanto à gravidade do problema. Pode ser essa a razão que o conduziu à escolha de Marcus Hajek para fazer a cirurgia de remoção do tumor, porque era alguém que não estava no círculo próximo de amigos médicos – talvez, uma forma de ocultar para os outros o que estava acontecendo. A cirurgia, porém, teve várias intercorrências, fazendo com que Freud fosse levado ao hospital. Ao sair, escreveu para as pessoas suavizando o problema e até dizendo, em algumas cartas, que o consumo de tabaco estava liberado, com moderação. Em 1924, escreve para Lou Andreas-Salomé:
Eis aqui uma pessoa que, em vez de trabalhar duramente até uma idade senil e então morrer sem escalas preliminares, contrai uma doença horrível na maturidade e deve submeter-se a tratamentos e cirurgias, gastar neles o dinheiro que tanto lhe custou adquirir, gerar descontentamento e depois se arrastar um longo tempo indefinido na qualidade de inválido. … Não posso me acostumar a viver como um sentenciado. (Pfeiffer, 1972, p. 139)
Gay (1988/2021) explica que os médicos que trataram Freud, principalmente no início da doença, não lhe contaram da gravidade do que haviam encontrado, pois temiam as consequências disso na saúde dele. Outro fator importante era a maneira como Freud conversava com seus médicos sobre a própria morte. Em um encontro com o doutor Deutsch, pede que o ajude a “desaparecer desse mundo com decência” (p. 752), se acontecesse de ter que passar por um sofrimento prolongado. O receio era que, caso a verdade sobre a gravidade da doença fosse contada, Freud escolhesse não passar por todos os sofrimentos que passou. A última cirurgia que ele realizou se deu em 1939, totalizando aproximadamente 30 ao longo do tratamento do câncer. Foi uma operação coordenada pelo doutor Max Schur, com o radiologista Hans Pichler, na qual fizeram uma incisão lateral no rosto de Freud para alcançar a ferida suspeita. A cirurgia foi muito debilitante, impedindo-o de escrever e atender pacientes.
Em 1927, acontece um dos episódios que mais marcaram a vida de Freud: a morte de seu neto Heinele, filho de Sophie. Ele escreve para um casal de amigos: “Acho esta perda muito difícil de suportar. Não acredito ter experimentado jamais uma tristeza tão grande. … Tudo perdeu o significado para mim. … Para mim, ele significava o futuro e com ele me arrebataram o futuro”. Escreve também para o amigo Binswanger: “Desde a morte de Heinele, não me interesso mais pelos meus netos, e também não encontro mais encanto algum na vida” (Fichtner, 2003, p. 185). Uma importante observação de Gay sobre esse episódio é a seguinte descrição de Freud: “Minha filha mais velha e seu marido praticamente o adotaram e se apaixonaram tão profundamente por ele de um modo que ninguém poderia ter previsto. Ele era realmente uma pessoa encantadora” (1988/2021, p. 653, grifo nosso). O ponto de reflexão é que, quando Freud escreveu esse texto, o neto ainda estava vivo. Da mesma forma, quando o pai de Freud também estava perto da morte, ele usava o pretérito para falar dele. Podemos pensar que era uma maneira de encarar e aceitar o inevitável.
No ano de 1938, Freud sofre o luto pela perda de sua pátria. A saída dele de Viena envolveu uma série de relações diplomáticas estabelecidas, bem como sua persistência em não sair do país. Como relata Jones (1957/1989), foi apenas com a invasão nazista em Viena que ele aceitou a transferência. O biógrafo comenta:
Em várias ocasiões de sua vida, ele aventara a possibilidade de dar esse passo [sair de Viena] e em várias outras fora convidado a dá-lo. No entanto, algo profundo de sua natureza sempre se opôs a essa decisão, e mesmo nesse momento final e crítico ele ainda se mostrava sobremaneira relutante em admiti-la. (p. 223)
Vemos nessa descrição o quanto foi difícil para Freud sair de sua cidade. Podemos pensar na dor e no luto de perder a pátria, como ele mesmo teorizou em “Luto e melancolia”, em 1917. A detenção de seus filhos Anna Freud e Martin Freud pela Gestapo foi o estopim para que a dor da possibilidade de perder mais um filho fosse maior do que a dor de deixar a pátria.
Quando chega a Londres, escreve para Eitingon: “O sentimento de triunfo por estar livre está fortemente misturado com o pesar, pois sempre amei imensamente a prisão de que fui solto” (Jones, 1957/1989, p. 234).
Através desses escritos, percebemos o quanto a velhice de Freud foi marcada por perdas bastante significativas. Podemos observar que parte da sua produção teórica foi permeada por aquilo que estava acontecendo com ele e ao seu redor. No próximo item, abordaremos o modo como Freud enxergava a sua velhice.
Freud velho: a negação da terceira idade
Como dissemos anteriormente, até o momento de sua morte, Freud não mudou sua oposição em relação ao tratamento psicanalítico para idosos. No entanto, a psicanálise, como já vimos, atravessa toda a sua velhice. Segundo Gilleard (2022), Freud conseguiu atravessar vários desafios, tanto na vida pessoal quanto no desenvolvimento da teoria psicanalítica. Entretanto, a sua própria velhice foi um assunto pouco refletido por ele. Nos momentos nos quais ela aparece, está atrelada a questões de adoecimento e morte. O autor acrescenta:
A velhice para Freud sempre permaneceu apenas como uma posição objetal. Para ele, a idade não era uma característica da subjetividade, nem uma experiência interior sobre a qual se poderia refletir. Freud permaneceu externo a esse debate, como se um “Freud velho” tivesse existido como uma terceira pessoa, um reconhecimento de como ele era visto, e não de como ele se sentia. (p. 334)
A argumentação de Gilleard se baseia no conceito de irrealizável, discutido por Sartre e Simone de Beauvoir. Esta defende que “nosso inconsciente não conhece o que é ser velho” (De Beauvoir, 1970/1977, citada por Gilleard, 2022, p. 335). A autora prossegue dizendo que há uma profunda diferença entre reconhecer e perceber a velhice. Para ela, foi a falta dessa percepção que não permitiu a Freud explorar sua própria experiência com o envelhecer. Outra autora que se debruçou sobre essa questão foi Woodward (1991). Segundo seu levantamento da correspondência de Freud com Lou Andreas-Salomé, quando ela tentava discutir com ele as virtudes e os ganhos da velhice, ele rapidamente rejeitava essa perspectiva. Um exemplo é a resposta que Freud escreveu quando ela o parabenizou pelo 71º aniversário. Introduziu a carta felicitando a ela e ao marido por poderem desfrutar do sol e continuou: “Mas para mim chegou o mau humor da velhice, a desilusão completa, comparável ao congelamento da lua, o resfriamento interno” (Pfeiffer, 1972, citado por Gay, 1988/2021, p. 371). Outro dado interessante apontado por Woodward (1991) é a intensa ocorrência conjunta das palavras doença e velho na obra de Freud, o que remete à influência que Charcot parece ter exercido sobre ele na conclusão da velhice como doença.
Lipson (2018) também busca compreender as razões pelas quais um psicanalista não atenderia uma pessoa idosa. Para ele, as atitudes do próprio analista em relação à sua velhice são uma forma de entender como ele aborda essa temática. No caso de Freud, vimos que, em todos os momentos em que ele falou sobre a pessoa idosa e sobre a própria velhice, estavam juntas palavras que passavam o significado de fragilidade, doença e morte.
Ao completar 70 anos, Freud deu uma entrevista a George Sylvester Viereck (1926/2010). A primeira pergunta foi se Freud ainda praticava a psicanálise, e a resposta foi: “Certamente. Neste momento estou trabalhando em um caso muito difícil, tentando desatar conflitos psíquicos de um paciente novo interessante”. Portanto, o próprio posicionamento de Freud permite questionar como por um lado há impossibilidade de atender um paciente idoso, mas por outro é permitido ser um psicanalista idoso.
Nessa entrevista, vários temas são discutidos, entre eles a velhice. Em determinado momento, Freud comenta: “A velhice, com seus manifestos incômodos, chega para todos. Atinge um homem aqui e outro ali. Seus golpes sempre atingem um lugar vital e a vitória final pertence inevitavelmente ao Verme Vencedor”. Sua fala parece bastante carregada com “o peso” da velhice, ou seja, com as mudanças intrínsecas na vida de cada pessoa, que deverão ser, de alguma forma, enfrentadas. Outra característica é a presença da morte no discurso sobre a velhice, dando a entender que essa fase da vida seria simplesmente um esperar que a morte chegue. A luta contra o câncer também esteve presente na conversa: “Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção”. Aqui ele expõe as dificuldades advindas do tratamento do câncer e das várias cirurgias feitas. A cada nova intervenção, aumentava a dificuldade em fazer as atividades mais habituais, como comer, falar e beber, e principalmente realizar atendimentos.
Mais adiante na entrevista, quando questionado se gostaria de voltar à vida de outra forma, Freud fala sobre a morte:
O desejo de morte e o de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos, governam o mundo. Na sua origem a psicanálise assumia que o amor era o mais importante. Atualmente, sabemos que a morte é igualmente importante. Biologicamente, cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Podemos jogar com a ideia de que a morte nos alcança porque a desejamos. Talvez pudéssemos vencer a morte, se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.
Nesse trecho, Freud faz uma análise muito próxima daquilo que escreveu em Além do princípio do prazer, em que conceitua a pulsão de morte. Novamente vemos que a questão da morte é muito mais elaborada do que a do envelhecimento. É interessante pensar que a questão do suicídio foi algo que acompanhou Freud. Lembremos o já mencionado pedido para que os médicos o ajudassem a desaparecer desse mundo com decência. Podemos refletir sobre as complicações e desconfortos que Freud sentia em decorrência das diversas cirurgias pelas quais passou. Podemos pensar também em seu receio de se tornar alguém sem forças, sem vontade, sentindo imenso desconforto, impedido de realizar atividades de forma independente, ou seja, “aquilo” que absorveu de sua experiência com Charcot: a degeneração do ser na velhice.
Ao completar 77 anos, Freud escreve a Jones:
Com as pessoas velhas, devemos ficar contentes quando a balança se equilibra entre a inevitável necessidade de descanso final e o desejo de aproveitar ainda um pouco do amor e da amizade dos que lhe são próximos. Creio ter descoberto que essa necessidade de repouso não é algo elementar e primário, mas expressa o desejo de se livrar de um sentimento de insuficiência em relação a detalhes dos mais significativos da existência. (Jones, 1957, citado por Goldfarb, 1997, p. 81)
Nesse trecho da carta, Freud parece ter certos momentos nos quais vislumbra algum lado positivo no envelhecimento, refletindo sobre a importância de apreciar determinadas situações da vida.
Uma abordagem próxima a essa visão alternativa àquela que apenas vislumbra a degeneração do ser é a carta escrita por Freud em 1936, aos 80 anos, “Um distúrbio de memória na Acrópole”. Nesse texto, ele conta sobre uma viagem de férias cujo destino mudou para Atenas. Ao chegar à cidade, Freud exclama: “Então tudo isso realmente existe mesmo, tal como aprendemos no colégio!” (1936/1987, p. 244). E passa a explicar o efeito de ver algo que, até então, era apenas falado e explicado, como algo que talvez fosse revisitado. Na conclusão da carta, diz: “E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci, agora que tenho que ter paciência e não posso viajar mais” (p. 247). Nesse fragmento, podemos apontar, de um lado, a noção de debilidade que Freud tinha em relação à velhice, pelo fato de não conseguir mais viajar; de outro, o quanto as memórias continuam vivas na terceira idade e como, através da maturidade e da paciência que os anos fornecem, permitem revisitar o que aconteceu e refletir sobre as percepções e os sentimentos que envolvem uma lembrança.
Para auxiliar na argumentação da entrada do idoso na clínica psicanalítica, podemos lembrar uma das primeiras lições de Freud (1915/1974b): o inconsciente é atemporal. Ou seja, dizer que um idoso não deveria ser tratado pela psicanálise devido à sua idade é um argumento que questiona esse princípio. No texto sobre a viagem a Atenas, o trecho destacado mostrou que as lembranças continuam vivas durante a velhice, e o passar dos anos fornece mais subsídios para interpretar o que se viveu.
Conclusão
Conforme as pessoas envelhecem, cada vez mais as teorias precisam acompanhar esse movimento. Diante de todo esse panorama, tentamos discutir, ao longo do trabalho, como a psicanálise é uma ferramenta que pode ser implementada no tratamento de idosos. Como observamos, o impedimento defendido por Freud pode ser interpretado dentro de seu contexto de aprendizado sobre o envelhecimento: a visão degenerativa do cérebro defendida por Charcot e a baixa expectativa de vida na Europa quando ele escreve os textos de 1898 e 1905.
O contexto histórico no qual Freud poderia ter se baseado para postular que a psicanálise não fosse aplicada aos idosos mudou. Por essa razão, e por entender que a existência do psicanalista idoso4 permite a coexistência do paciente idoso com a atemporalidade do inconsciente, buscamos estudar o paradoxo de como o envelhecimento esteve na obra de Freud e como ele viveu essa fase da vida.
Outro ponto importante é pensar na dualidade que Freud viveu entre aceitar e não aceitar o envelhecimento. Do lado profissional, o passar dos anos contribuiu para um amadurecimento teórico e o surgimento de textos imortais. Do lado pessoal, as perdas que marcaram sua velhice, o câncer e as guerras contribuíram, aparentemente, para reforçar a perspectiva da degeneração fisiológica e psíquica ocasionada pela velhice.
O aumento da expectativa de vida fortalece a importância da escuta psicanalítica para pessoas idosas. Além disso, a genialidade dos textos de Freud continua atravessando gerações e sendo essencial também para auxiliar no atendimento e na reflexão sobre a velhice.