Neste trabalho, proponho estudar o processo de envelhecimento a partir do conceito winnicottiano de elaboração imaginativa. Sugiro estender seu uso para além da situação do bebê, como o fez Winnicott, e abordar todo 0 percurso de desenvolvimento do indivíduo, e em particular o processo de envelhecimento, sob essa ótica. Para estudar tal processo, adoto aqui o termo envelhescência, cunhado por Manoel Berlinck, que abarca bastante bem a complexidade de transformações psicossomáticas que se dão nessa etapa da vida, exigindo tanto um trabalho do eu quanto um trabalho do self. Ilustro alguns desses processos com um depoimento de Gilberto Gil ao completar 80 anos, no qual ele relata suas experiências pessoais e suas reflexões existenciais e estéticas sobre o tema.
Corpo e elaboração imaginativa: encontros e desencontros
A expressão elaboração imaginativa foi utilizada por Winnicott (1949/1992) em trabalho dedicado a formular algumas bases para pensar a relação entre psique e soma a partir da psicanálise e, com isso, estudar os processos de saúde e doença nesse âmbito. Trata-se de uma expressão que não vinha sendo objeto de maior visibilidade nos estudos de sua obra, mas que tem despertado, nos últimos tempos, um maior interesse.3 Podemos dizer que se trata, de fato, de um verdadeiro conceito, com grande potencial teórico-clínico. Para melhor compreendê-lo, é fundamental reconhecer que tal conceito é fruto de uma visão monista, segundo a qual a psique e o soma são facetas da pessoa em crescimento.4
Winnicott propôs uma definição de psique nos seguintes termos: trata-se da “elaboração imaginativa das partes, dos sentimentos e das funções somáticas, isto é, da vivacidade física” (1949/1992, p. 244). Assim, a vivacidade do corpo somático vai sendo paulatinamente objeto de uma elaboração imaginativa, dando ensejo a uma espécie de versão psíquica das experiências do corpo – poderíamos ver aqui os primórdios do trabalho de representação, simbolização etc. – e constituindo o que poderíamos chamar de faceta “psique” do psicossoma. Winnicott distinguiu ainda, e de maneira muito particular, psique (psyche) e mente (mind), considerando essa última um “caso especial de funcionamento do psicossoma” (p. 244): uma função que se especializa e que se desenvolve a partir da necessidade de fazer frente às inevitáveis inadaptações do ambiente humano às necessidades do bebê, “transformando falhas relativas de adaptação em um sucesso adaptativo” (p. 245). Ele descreveu, então, uma série de distorções que podem advir, no processo de desenvolvimento, quando a mente se dissocia do psicossoma e passa a funcionar como entidade autônoma.
A elaboração imaginativa pode ser compreendida, assim, como um elo de articulação,5 como um elemento de mediação entra o soma e a psique.6
Neste trabalho, sugiro um uso mais extenso do conceito de elaboração imaginativa, considerando-o nas diversas etapas do processo de desenvolvimento do indivíduo e, em particular, no processo de envelhecimento. Em cada uma dessas etapas, podemos considerar as diversas situações de encontros e desencontros entre a psique e o soma, em uma dialética muito particular e desafiadora, cheia de riscos, dores e impasses.
A arte de viver pode ser compreendida como um interjogo contínuo entre encontros e desencontros. O uso e o destaque que Winnicott deu ao termo meeting, especialmente no âmbito de sua teoria da transicionalidade, abriu caminho para uma verdadeira “metapsicologia do encontro”: o encontro possível entre o bebê e a mãe, entre o objeto criado e o objeto oferecido na hora e no lugar apropriados, entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido, entre o eu e o outro – todos esses encontros produzindo a experiência fundamental da ilusão. Mas é no interjogo entre a ilusão e o seu contraponto – a desilusão – que se desenrola o viver. Nosso grande poeta Vinícius de Moraes, em canção em parceria com Baden Powell, propôs, em famosíssima frase, que “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (1965/1993, p. 119). Trata-se de uma frase plena de sabedoria, mas talvez um pouco pendente para um dos lados da gangorra, e um tanto otimista: pois o desencontro é tão constitutivo da vida quanto o encontro, e talvez a vida seja a arte do encontro/desencontro, a arte do contínuo trabalho de navegação entre esses dois polos. Nesse sentido, o viver pode ser concebido como constituído pela dialética entre encontro e desencontro, entre ilusão e desilusão, ou entre o “estar só” e o “estar com”.7
Bem, ao olharmos para o desenvolvimento do ser humano em suas etapas, observamos como os desencontros entre a psique e o soma são vários, gerando desafios sucessivos. Para o bebê, as experiências do corpo, por vezes disruptivas, pedem um trabalho de protossimbolização, de onde emergem as primeiras formas psíquicas apoiadas nas experiências corporais. No período edipiano, a criança vive o que Bollas (2000) veio a chamar, de modo feliz, de epifania sexual, devido à qual novas significações e elaborações imaginativas são exigidas, acompanhadas de uma experiência de susto e de um potencial desencontro que, eventualmente, produz a predisposição às neuroses, como bem ressaltou Freud. Melanie Klein, que deslocou o complexo de Édipo para um tempo bem mais precoce, veio a complementar o estudo dessa problemática através do conceito de posição depressiva, etapa crucial, em que o peso da culpabilidade diante dos impulsos pulsionais agressivos nos atinge com toda a força, demandando um árduo trabalho de reparação. Com a adolescência, nos deparamos com um novo desencontro, e uma grande exigência de trabalho para o psiquismo: agora temos um corpo em erupção, com uma possibilidade real de perpetrar o crime – seja sexual ou agressivo; as transformações físicas são profundas e potencialmente traumáticas, causando enorme turbulência. Winnicott (1967/1990) resumiu bastante bem esse novo desafio: os adolescentes precisam ser capazes de cavalgar as pulsões, em vez de serem despedaçados por elas.8
Sugiro que, em cada uma dessas situações de desencontro, um trabalho de elaboração imaginativa é ativado, buscando algum tipo de re-encontro entre corpo e psique. Ora, é justamente a partir do desencontro que a alteridade do corpo próprio faz ruído, buscando novas reinvenções; enquanto o desencontro não se faz presente, a fluência silenciosa do vir a ser segue seu curso, sem sobressaltos. Afinal, é o desencontro que, ao fazer ruído, gera a pressão para o trabalho psíquico, trabalho no qual a elaboração imaginativa cumpre uma parte fundamental. E ali onde o reencontro não é mais possível, instalam-se os processos dissociativos, os quais, como bem assinalou Winnicott, por vezes incidem sobre a unidade psique-soma.
Envelhescência: novos desafios
Bem, e como as coisas evoluem no processo de envelhecimento?9 Quais desafios e desencontros entre o corpo e a psique emergem nessa etapa e pedem uma elaboração imaginativa, buscando o re-encontro possível?
Neste artigo, proponho pensarmos o processo de envelhecimento através da noção de envelhescência – termo cunhado por Manoel Berlinck, cuja abordagem me parece especialmente interessante. Primeiro por conceber a envelhescência como um desencontro – “o desencontro entre o inconsciente atemporal e o corpo, âmbito da temporalidade” (Berlinck, 1996/2008, p. 193) –, em uma leitura convergente com a que tenho apresentado aqui; mas também por propor uma distinção bastante frutífera entre o envelhecimento e a envelhescência, que é concebida por ele em paralelo à adolescência. A envelhescência é um processo psicossomático e elaborativo de grande complexidade, que acontece em maior ou menor grau para aqueles que envelhecem – ou pode nem mesmo acontecer.
O que ocorre nesse período da vida? Berlinck nos lembra:
Quando menos se espera, a vista não mais alcança, o ouvido não mais ouve, a pele enruga, os cabelos caem, o peso torna-se um problema, ... o corpo já não responde a certos estímulos do desejo, e esforços prolongados são inviáveis. (pp. 193-194)
Eu acrescentaria a essa lista de “sintomas” típicos as alterações do sono – afinal, conciliar o sono diante da exigência de trabalho psíquico para assimilar e administrar todo esse novo desencontro é, de saída, um grande desafio, que se soma e agrava sobremaneira a tensão advinda de outros tantos desafios conjunturais e estruturais de cada pessoa. Mas, quando falamos das tensões psíquicas e suas consequências, não devemos negligenciar os fatores somáticos envolvidos. Vale lembrar que também a pesquisa biológica tem reafirmado o fato evidente das transformações do sono com o envelhecimento: “Nosso ritmo circadiano e nosso sono mudam profundamente à medida que envelhecemos e, embora essa variação possa ser bastante acentuada de um indivíduo para outro, algumas tendências podem ser consideradas universais” (Foster, 2023, p. 167). Ora, se “padrões modificados não significam necessariamente padrões piores” (p. 167), deve-se considerar que os significados, manejos e adaptações – e, afinal, a elaboração imaginativa dessa nova experiência com o corpo próprio – cumprem aqui um papel fundamental, e podem contribuir sobremaneira para tais variações individuais. Como se vê, quando falamos em sono, trata-se de um processo eminentemente psicossomático.10
Com o envelhecimento, as perdas são, de fato, variadas e contundentes. A lista é grande, mas talvez pudéssemos resumi-la sob a rubrica de uma “redução considerável da energia vital”. Diante de tais perdas, a capacidade de sustentação depressiva da dor é colocada à prova, em uma luta para não sucumbir em uma melancolização crônica. Ou melhor, tal capacidade é mais uma vez colocada à prova, reeditando a travessia da posição depressiva da primeira infância e todas as suas reedições ao longo da trajetória de vida.
“Só a alma permanece jovem, em evidente descompasso com seu envelope” (Berlinck, 1996/2008, p. 194). Temos, assim, um novo desencontro, e nos vemos, mais uma vez, como Édipo, diante de uma encruzilhada: entre o luto, a depressão e a melancolia. Pois, diante de tal crise, uma nova onda de revolta e ódio emerge, muitas vezes com grande vigor: “Agora que eu conheço um pouco mais da vida, compreendo e administro um pouco melhor as tensões, e eventualmente tenho melhores condições de tempo e dinheiro para dela usufruir, o corpo me trai!”. Nessa revolta, o ódio inconsciente ao objeto traidor, típico do melancólico potencial, pode ser dirigido ao Destino traiçoeiro, à Natureza, ao Criador ou à própria vida; mas se tal rebelião do eu for passível de alguma elaboração, poderá advir também um insight renovado sobre a tragicidade do destino humano, assim como um trabalho de luto sobre as idealizações: “Que equívoco ter imaginado um desenvolvimento linear sempre para cima, com conquistas sem fim!”
Muito diferente de um grande triunfo, agora surge a necessidade de uma readaptação árdua e exigente, que pede a humildade do reconhecimento dos limites da realidade do corpo. Faz-se necessária uma reconfiguração da rotina diária em termos de atividades, trabalho e alimentação. Trata-se de uma espécie de novo regime – mais econômico e estrito no manejo, direcionamento, racionalização e disponibilização das energias. Reconhecemos aqui um verdadeiro trabalho do eu. Como sintetizou Berlinck, “a envelhescência é uma recriação do eu diante das exigências pulsionais e as novas exigências do corpo que se aproxima da morte” (1996/2008, p. 197). As dificuldades – ou mesmo a recusa – a aceitar tal readaptação leva por vezes à perpetuação do desencontro na forma de processos dissociativos crônicos e à recorrência de saídas maníacas, com performances triunfantes sobre a dor, as perdas e os limites do corpo. Tecnologia médica, substâncias e artifícios diversos são aditivos que muitas vezes vêm a calhar para tais propósitos, como próteses para um eu incapaz de reciclar seus ideais.
Além do enfrentamento da encruzilhada luto ou melancolia – e da reedição da travessia pela posição depressiva, colocando à prova a depressividade do humano (Fédida, 2002) –, também a problemática fálica é revisitada de forma pungente na envelhescência, período em que nos “chega a conta” dos resquícios da fase fálica que deixamos adormecidos debaixo do tapete. Tais resquícios, maiores ou menores em todos os humanos, perduram mascarados e alimentados pelas realizações performáticas possibilitadas pelo corpo jovem. Eles são constituídos pela fantasia – em homens, mulheres e demais identidades de gênero – da existência de um poder fálico, que produz concepções fantásticas, irreais e idealizadas da amálgama sexo/poder. Tais formações reativas à angústia fálica infantil de “ser pequeno” tem seus efeitos colaterais sintomáticos: o pudor e a vergonha pelo corpo próprio – visto como feio, velho, impotente, fraco e insuficiente –, a passividade infantil diante de desafios que a nova realidade impõe ao eu e a teimosia de uma aposta cega e negacionista em um corpo onipotente, com possibilidades ilimitadas. No entanto, mais cedo ou mais tarde cai o pano, e o corpo fálico é desmascarado de maneira mais contundente do que nunca. Os ideais fálicos se tornam um sério empecilho à vida, e urge serem reciclados e desinvestidos. Entre tantos setores da vida atingidos, é especialmente contundente a necessidade de uma considerável reconstrução dos hábitos sexuais, temática tão bem trabalhada por Ferenczi (1925/1993). Trata-se de um novo trabalho do eu de (re)investimento do corpo próprio, para que este possa seguir sendo amado de modo suficientemente bom.
Como se vê, a envelhescência pede um trabalho de (re)elaboração imaginativa do corpo real do presente, que se dá concomitante a uma dissolução de fantasias derivadas de elaborações imaginativas de outros tempos, agora anacrônicas. Bem, e qual será o destino de tais fantasias? Perduram enquanto “relíquias do passado”? Creio que elas não são inteiramente abandonadas, mas ressignificadas na reconstrução histórica de si próprio da envelhescência. Elas alimentam a típica memória levemente nostálgica dos “bons tempos” heroicos, que, se bem corre o risco de se tornar melancólica, pode também pender para o polo do humor e da sabedoria. E, nesse momento da vida, surge uma má noticia e uma boa notícia. A má notícia: ainda temos muito para aprender, pois a ilusão de que finalmente chegaríamos “lá” – a um suposto ponto culminante da vida na maturidade, preconcepção produzida pela fantasia fálica – precisa ser forçosamente abandonada, gerando grande tensão para o eu. E a boa notícia: se ainda temos MUITO para aprender, talvez o fim não esteja tão próximo...
E como pensar o paralelo entre envelhescência e adolescência, conforme sugeriu Berlinck? Alguns pontos de semelhança são apontados por ele. Em primeiro lugar, o susto produzido pelas transformações do corpo e o choque de perspectivas – no primeiro caso, o choque em relação a uma adultez desconhecida e misteriosa que se descortina pela frente; no segundo, devido a uma juventude que definitivamente ficou para trás. Se o adolescente se depara com um futuro desconhecido e assustador, o envelhescente se depara com a proximidade da morte. E, quanto aos ideais do eu, ambos enfrentam uma reviravolta: para o primeiro, o abalo por não poder mais sustentar a ilusão de ser o falo da mãe; para o segundo, a necessidade de assimilar que sonhos sonhados por muito tempo não poderão mais ser sonhados. Como se vê, esse paralelo entre adolescência e envelhescência mostra-se de fato bastante pertinente, e o que me parece fundamental aqui é percebermos que se trata, em ambos os casos, de uma travessia marcante, que envolve uma significativa reconfiguração vital. Nelas, os dados do destino são relançados – o que sempre envolve possibilidades de recriação e riscos significativos de extravio. Daí a importância de distinguirmos entre o simples envelhecer e a envelhescência. Para Berlinck, “a envelhescência é um ato de subjetivação” (1996/2008, p. 195), pois se ela é o encontro da alma sem idade com o corpo que envelhece, o reconhecimento desse estranho encontro produz um efeito de significante, tal como no sonho ou no chiste. Um desencontro que, afinal, talvez contenha alguma potencialidade de encontro.
Na envelhescência, além do trabalho do eu referido aos desafios do presente – exigindo a recriação de um novo regime –, também se faz necessária uma profunda reconfiguração psíquica em relação ao futuro: um redesenhar de projetos e uma contundente revisão dos ideais, por vezes cada vez mais inalcançáveis, anacrônicos e mesmo sem sentido. Essa reconfiguração da relação com o futuro toca na própria essência da função do sonhar, pois se uma das suas dimensões fundamentais é a concepção de um projeto futuro a partir do paradigma da realização de desejo, é exatamente tal função que entra em colapso quando a esperança e a capacidade de esperar minguam.11 Na envelhescência, apresenta-se o desafio de reciclar os sonhos, a fim de que o sonhar não entre em colapso.
A envelhescência implica, portanto, uma verdadeira reconfiguração existencial, na qual emergem as perguntas: “Para que mesmo eu estou vivo?”, “O que posso ainda realizar neste mundo?”. Ora, observamos aqui – para além de um trabalho do eu – um trabalho do self: aquele que busca reciclar o sentido do existir e do vir a ser. Note-se que, em contraste com a condição do bebê e seu mundo imaginativo ainda pouco habitado, agora a psique está saturada de construções, ideais e fantasias a serem revistos, reciclados e redimensionados. Precisamos diminuir o “excesso de peso” da bagagem acumulada para poder seguir navegando sem sucumbir. A elaboração imaginativa pede, nesse momento, um trabalho em negativo: uma limpeza geral, uma busca de despojamento – menos memória, menos ambições e até, em certo sentido, menos desejo, conforme propunha Bion. Trata-se de uma verdadeira desconstrução, que se dá em sentido inverso ao daquela obra recém-iniciada no bebê.12 E o que esperar dessa desconstrução? Que, no devido tempo, possa emergir algum impulso pessoal13 verdadeiro, oriundo do self, que anseie por novos sonhos, desejos e destinos.
Assim, se pensamos em termos de etapas do processo de desenvolvimento, podemos dizer que a envelhescência revisita, reedita e contém em si todas as idades: o bebê e suas elaborações imaginativas, os desafios da depressividade e da organização genital infantil, assim como a adolescência e seus possíveis descaminhos. Nesse amplo leque de camadas de tempo que se sobrepõem, talvez haja mesmo a oportunidade de um acesso mais incisivo ao inconsciente atemporal, agora contando com uma experiência acumulada e um enriquecimento derivado dessas diversas camadas sobrepostas e articuladas. Ainda que pareça equivocada a meta utópica de um encontro com uma totalidade na busca do self, conforme quis Jung,14 creio que tal ampliação de camadas temporais da experiência psíquica pode de fato favorecer algum avanço na elaboração possível da transitoriedade, da incompletude, do caráter fragmentário e da tragicidade do viver. A elaboração imaginativa da envelhescência pode facultar, no melhor dos casos, uma reconfiguração vital através da qual perdas e impossibilidades são contrabalançadas por memórias de realizações, identificação com os mais jovens e construções imaginativas de legados a serem deixados. Assim, algum apaziguamento da angústia do viver – com seu caráter fragmentado, sofrido e sem sentido – mostra-se possível devido a tal apropriação reflexiva de um ciclo vivido e – até o fim, o quanto for possível – ainda vívido.
A voz da maturidade: tolerância e flexibilidade
Gilberto Gil, grande artista e músico, nos brindou, à época dos seus 80 anos de idade, com uma entrevista que oferece subsídios interessantes para o nosso tema. Disse ele então: “Ao longo da vida, da infância para a adolescência, depois para a vida adulta e agora para a velhice, vai ficando cada vez melhor viver” (Gil, 2022, p. C4). Bem, ao lado dessa declaração de amor à vida, nos deparamos também com notícias de dores e espinhos. Gil teve vários problemas sérios de saúde nos últimos anos, atingindo, inclusive, suas cordas vocais. Sobre isso, o entrevistador Claudio Leal observou: “Em seu show mais recente, você conseguiu estabilizar sua voz, depois daqueles problemas com as cordas vocais”. E ele respondeu:
Acho que sim. Consegui uma voz madura, uma voz de serviço, como eu costumo dizer. Uma voz que serve à prática de um modo médio de manifestação vocal. Porque adotei disciplinas rigorosas no sentido de conservação do restante das cordas vocais. (p. C5)
Vemos aqui um grande trabalho de elaboração da envelhescência, que envolve a assimilação das perdas e a busca de um “novo regime”, articuladas a uma postura de profunda valorização da vida/voz que se tem. E que satisfação ter o privilégio de escutar sua voz madura – a voz da maturidade!
A envelhescência é, portanto, para além do envelhecimento do corpo, um processo complexo e árduo de elaboração imaginativa de tal experiência – como bem depreendemos do depoimento de Gilberto Gil. Trata-se de um processo pessoal que implica um trabalho do eu e um trabalho do self, em várias dimensões e bastante exigente: como reciclar a vida a partir de um velho-novo corpo? Nem todas as pessoas que envelhecem vivem esse processo e são capazes de realizar tal travessia – e o fazem em graus e formas os mais variados.
Na envelhescência se dá um trabalho com a memória que é, certamente, mais solitário: cada vez menos temos uma “comunidade de lembrantes” com quem compartilhar as lembranças, e o choque de gerações – com as rápidas mudanças de costumes – acentua esse isolamento anacrônico. Por outro lado, há nesse recolhimento um ganho de despojamento e de diminuição do peso do olhar e da expectativa do outro. E, como bem sintetizou Berlinck, a envelhescência implica um “pensar a velhice”, e assim “distingui-la do preconceito e do estigma para que possa ser vivida com dignidade. Este trabalho de pensamento é, via de regra, um esforço solitário, que pode enriquecer o mundo interno do sujeito” (1996/2008, p. 196). Bem, no âmbito do trabalho do self, nela reemerge a questão que Winnicott tanto levantou ao notar o terrível sentimento de futilidade e sem-sentido em seus pacientes fronteiriços: como viver uma vida que vale a pena ser vivida – ou como vivê-la de modo criativo?
Para finalizar, gostaria de propor dois atributos que penso serem ingredientes fundamentais nessa travessia: a tolerância e a flexibilidade. A tolerância é necessária para consigo mesmo, para com o corpo próprio e para com o outro, em uma provação contínua que sempre corre o risco de sucumbir diante da rebelião melancólica – que por vezes grita que todos os limites em termos da capacidade de tolerar frustração e castração já foram extrapolados! A flexibilidade implica, por sua vez, um gesto generoso de abertura e de disponibilidade de revisão dos estabelecidos. Pois temos na envelhescência uma nova oportunidade para remoldar os estabelecidos ao longo da vida, e que tendem a uma rigidificação: traços de caráter, hábitos, concepções, ideias e ideais, metas e sonhos, imposições e aprisionamentos etc. Como fruto desse trabalho, podem surgir novas chances: eventuais oportunidades para a emergência de um verdadeiro impulso pessoal a partir da pausa, do recolhimento e do silêncio, nesse novo corpo e nesse novo momento – uma oportunidade deveras preciosa e rara. Talvez o estar vivo seja justamente isto: ser capaz de ver e fazer uso das novas oportunidades que se apresentam – as cores vivas que somos capazes de ainda enxergar diante de nós.