O tema Sexualidade e gênero: indagações contém dois conceitos que requerem análise: sexualidade e gênero – enfoques amplos no tempo e espaço, podendo ser considerados multidisciplinares. A teoria da sexualidade criada por Freud está à disposição para a leitura de seus muitos artigos. Os autores posteriores a Freud e suas muitas teorias concordam sobre a presença da sexualidade humana em um universo somatopsíquico expresso pelas pulsões libidinais a partir dos primeiros momentos de vida do bebê. Gênero, por sua vez, é um conceito mais recente, com forte componente de outras áreas, como sociologia, antropologia e psiquiatria. Busca definir a masculinidade e a feminilidade que se expressam na maneira de falar, andar e vestir-se, por exemplo.
Para conversar com vocês será sobre as indagações, vou apresentar ideias que se sustentam em minha experiência clínica como psicanalista, que valoriza a linha do desenvolvimento emocional. Vou começar ressaltando a importância de conhecermos os estados mentais primitivos e sua função estruturante, pois na falta dessa competência haverá prejuízos na construção da subjetividade, com repercussões em várias áreas do desenvolvimento emocional. Esse será o vértice da apresentação das minhas ideias, com indagações que têm me acompanhado.
A psicanálise, desde a de bebês até a de adultos, se apoia nos mesmos conceitos fundamentais que constituem o método psicanalítico. Assim, não existem duas psicanálises, mas uma só, com peculiaridades e especificidades técnicas próprias de cada faixa etária: desde o bebê/criança/latente/adolescente até o adulto. São momentos de passagem e transitoriedade dialética da corporeidade para a constituição da subjetividade, a caminho da vida mental adulta, com repercussões nas áreas de sexualidade e gênero.
Entre os muitos autores que falam sobre a dupla pais-bebês, consideremos alguns. Winnicott afirmou que um recém-nascido sozinho não existe. No início da vida psíquica, o bebê não existe fora da relação com a mãe (ou seus cuidadores). Portanto, a vida psíquica é uma criação compartilhada entre o bebê e a mãe.
Não nascemos pais, tornamo-nos pais... A parentalidade se fabrica com ingredientes complexos. Alguns deles são coletivos, pertencem à sociedade como um todo, mudam com o tempo, são históricos, jurídicos, sociais e culturais. Outros são mais íntimos, privados, conscientes ou inconscientes, pertencem a cada um dos dois pais enquanto pessoas, enquanto futuros pais, pertencem ao casal, à própria história familiar do pai e da mãe. (Moro, 2005, p. 259)
É interessante observar que Moro começou pelo coletivo, onde estão o social e a cultura, bem como as ideias sobre gênero, para depois acrescentar a intimidade emocional e a qualidade do encontro pais-bebês.
Assim, podemos pensar que o coletivo faz parte do palco das experiências emocionais primitivas e constitutivas, principalmente trazendo a inter e a transgeracionalidade em seus vários matizes. Eu me refiro aqui ao fenômeno da transmissão psíquica transgeracional, que ocupa um lugar fundamental ao lado da transmissão genética. O que não pode ser elaborado e introjetado por uma geração será projetado na geração seguinte, como traumas inconscientes que a criança não viveu diretamente e a alienam de si mesma, induzindo-a a viver uma história que não é sua.
Quando pensamos nas mentes dos pais como participantes da constituição da mente do filho, chegamos ao conceito de parentalidade, definido por Serge Lebovici: “A noção de parentalidade não inclui apenas o sentido biológico do termo. Mais, ser pai ou mãe não é só ter um filho, mas é também uma oportunidade para refletir a respeito de sua descendência” (Lebovici & Solis-Ponton, 2004, p. 21).
Aqui tem lugar o bebê imaginário, o corpo imaginário e uma história imaginária. Um filho estará mais a salvo se a mãe puder pôr no colo o bebê imaginário e nele descobrir o bebê real.
O bebê vai colaborar com os pais para constituir as funções de parentalidade. Aliás, um trabalho de mão dupla: haverá participação ativa das competências do bebê, apresentando-se aos pais, buscando-os e estimulando-os narcisicamente, tornando-os disponíveis para construir a inscrição de seu bebê em suas mentes. Do contrário, o filho não existirá: eles olham, mas enxergam outra criança. Esse modelo de pensamento de dupla participação na constituição da subjetividade é a perspectiva que vou abordar.
Acrescento as ideias de Bernard Golse (2004) e seu trabalho com os bebês. Esse autor discorre sobre como nos sentimos ao estarmos próximos deles, ao nos depararmos com nossas angústias primitivas de todas as naturezas, ao sermos mobilizados a entrar em contato com o bebê que existe em nossa história, com impactos transgeracionais e intergeracionais, presentes na criança mítica, imaginada, narcísica e fantasmática.
Victor Guerra afirma: “A construção do vínculo entre uma mãe e seu bebê pode ser vista como uma história de encontros e desencontros, de claridades e opacidades, de harmonias e desarmonias” (2020, p. 61).
O autor faz um longo estudo sobre o padrão desse ritmo ambiental, ressaltando sua importância dentro das seguintes perspectivas: previsibilidade, organização no tempo, continuidade psíquica, integração de polaridades, integração de polissensorialidades, lei materna e criação artística como metáfora da subjetivação.
No caso de dificuldades no desenvolvimento, a instabilidade dos fatores indicados põe a questão dos ritmos no centro da cena, condição que estimula o funcionamento de busca de controle do objeto primário, pelo temor da angústia de desmantelamento.
Frances Tustin, no seu célebre artigo “O ritmo da segurança” (1990), ao abordar a questão do ritmo da segurança e sua função no setting terapêutico, diz que, no espaço transferencial, a experiência da dupla é similar à encontrada na relação ambiente e bebê. Para a autora, o ritmo relacional dependerá do ritmo individual de cada elemento da dupla. Quando isso acontece no espaço analítico, pode favorecer que o paciente realize a diferenciação psíquica entre ele e o outro. Vemos assim que os ritmos fornecem, no início da vida, um padrão de experiência no qual o previsível se entrelaça com o novo, a continuidade com a ruptura.
Portanto, Tustin e Guerra falam sobre ritmo: quando há o compartilhar de um ritmo, os contrastes e as diferenças são experimentados com segurança, prevenindo-se as experiências de intrusividade e indiscriminação eu-outro.
A função de pele psíquica como delimitadora corporal e de espaço psíquico apresentada por Bick (1968/1987) e a função alfa descrita por Bion (1962) favorecem a construção da continência, possibilitando a constituição da subjetividade em ritmo compartilhado entre intervalos de descontinuidade/continuidade. Trata-se de um momento em que os contrastes, as diferenças e os limites vão se constituindo como ingredientes fundamentais para o desenvolvimento emocional.
Como as diferenças se constituem? A participação das instâncias primitivas na discriminação eu-outro será o ponto de partida da minha proposta para pensar as consequências psíquicas do tumulto das diferenças.
A construção do modelo, inicialmente interpessoal e dual, será a matriz para a expansão de duas para três ou mais pessoas, construindo a presença dos pais, da família e de seu entorno: a escola, a cultura e o social. Portanto, penso ser importante discriminar que a cultura e o social chegam até o bebê pela interação com os estados emocionais dos pais. Os impactos acelerados da cultura contemporânea estão aí diante de nós, a efemeridade do tempo deixa marcas fugazes no mundo interior das pessoas. Há riscos dessas marcas se transformarem apenas em retalhos tatuados em superfícies, como sugerem Bick (1968/1987) e Meltzer (1986), ao definir a constituição da segunda pele, mecanismo defensivo usado como proteção às ameaças de desmantelamento.
As experiências vividas na bidimensionalidade (Meltzer, 1986) terão continuidade na qualidade de objeto parcial, quando coisas e pessoas são percebidas de maneira confusa, funcionando em sistema binário e protos-simbólico. Não há memória, são raras as noções de espaço e tempo, com características onipresentes e oniscientes. As angústias persecutórias prevalecem, enquanto as percepções concretas do corpo, das diferenças sexual e de gênero estão distantes de um significado emocional. São vividas muitas vezes como situação edípica absoluta, podendo a criança experienciar ser pai/mãe, homem/mulher, masculino/feminino simultaneamente; ou ainda viver as partes pelo todo, em estado absoluto, ser o criador de si mesma, por meio do triunfo narcísico.
É importantíssimo lembrar que, nos momentos iniciais da vida neonatal e de constituição da subjetividade, a criança não tem condições de perceber a totalidade do corpo da mãe ou do cuidador, apenas partes isoladas. A percepção de detalhes precede a de conjunto, que para constituir-se exigirá a síntese dos dados sensoriais, fato não compatível com esse momento. Também é importante lembrar que a criança vai receber por identificação projetiva as fantasias inconscientes a respeito dos corpos da mãe e do pai.
Será apenas num segundo momento que a criança perceberá a pessoa da mãe a partir de experiências mais realistas, que se estendem ao mundo além da mãe, pai e irmãos. O mesmo acontece com as experiências emocionais funcionando pela perspectiva de relações de objeto total, com a presença de desenvolvimento simbólico, discriminação de fora e dentro (realidade interna e externa), noção de temporalidade instalada, capacidade de viver a ambivalência em nível da bissexualidade psíquica, e relação mais realística e amorosa com os pais.
Leticia Glocer Fiorini (2015) aponta uma interessante conexão, o que ela chamou de pensamento triádico no interjogo entre diferença sexual e diferença de gênero que se produz no marco da heterogeneidade anatômica. Propõe que a subjetividade sexuada se constrói na intersecção de três categorias: os corpos, as ideias de gênero e os desejos fantasmáticos no campo das diferenças sexuais.
O pensamento triádico de categorias heterogêneas entre si, que por sua vez são indissociáveis e não há uma harmonia concordante entre elas, e por isso o processo de subjetivação sexuada se constitui em clima de tensão. ... “Os corpos” reconhecidos por suas identidades de sexo biológico ao nascer: masculino e feminino; “as ideias de gênero” transmitidas pelo inconsciente parental e os impactos vindos da cultura; “os desejos fantasmáticos no campo das diferenças sexuais”. (p. 199)
Concordo com a autora e me encantei com suas ideias. As indagações que proponho no campo das fantasias inconscientes primitivas se aproximam à compreensão do que ela chama de “desejos fantasmáticos no campo das diferenças sexuais.”
Em continuidade, quero ressaltar a função diferenciadora parental, apresentada pela colega Ema Ponce de León, psicanalista de criança e adolescente pela Associação Psicanalítica do Uruguai, que nos auxilia a pensar na importância da presença parental, colaborando para dar significado às experiências arcaicas de constituição psíquica:
Meu ponto de partida para esta reflexão é a importância do trabalho com os pacientes, principalmente na relação pais-filhos, o aspecto narcísico dos vínculos. Surge marcado pela procura do idêntico, do espelho, da negação da separação e das diferenças em múltiplos planos: dos corpos, das psiques, das ideias, dos comportamentos, do geracional, e podemos continuar a enumerar um conjunto de planos que envolvem semelhanças e diferenças. O registro e a incorporação de semelhanças e diferenças na percepção do mundo conduzem às vicissitudes no reconhecimento daquilo que nos torna humanos: o plano de identificação com o outro, com o semelhante, mas também a alteridade, a noção de que o outro é outro. Isso abre um paradoxo: a constituição do próprio psiquismo, a emergência da linguagem e da cultura; tem uma dupla face de apropriação singular e única daquilo que vem de um outro diferente, e isso marcará o sempre fugidio esforço de comunicação. Apoiado nesse duplo andaime entre o semelhante e o diferente, o reconhecimento da alteridade é uma tarefa dolorosa e complexa que começa no nascimento e apresenta dificuldades ao longo da vida. (2017, p. 69)
Os pais serão solicitados a entrar em contato com suas próprias angústias primitivas, ao serem mobilizados pela curiosidade das crianças pequenas a respeito de suas origens e das diferenças dos corpos. Há fontes que subsidiam os pais, em livros, reportagens em periódicos e nas escolas. O teor do apresentado aos pais costuma estar no plano do senso comum, subsidiado pela popularização de conceitos psicanalíticos. Indago se nesse movimento haveria certo teor disfórico e de rapidez na busca de definições classificatórias com caráter de imediatismo, sem considerar o tempo necessário para o complexo desenvolvimento psíquico, que é um longo, inacabado e incompleto processo.
Considerações finais
Para encerrar, deixo a vocês algumas indagações.
Será que, na atualidade, busca-se sair das situações de angústia que a complexidade da vida apresenta acreditando em caminhos sem conflitos, admitindo a precoce “escolha” de sexualidade e gênero das crianças? De modo a esquivar-se da função do adulto em oferecer-se como referência para as gerações seguintes, como a descrita na função diferenciadora exercida pelos pais? Seria a nova versão da autoalienação parental? A busca facilitadora para complexidades inevitáveis, atribuindo aos filhos funções que seriam dos pais/cuidadores?
Nas entrevistas com os pais, tenho observado uma evidente complacência sobre a sexualidade dos filhos, diante do contexto social que os pressiona pelo “politicamente correto” e do temor de expressarem preconceito à homossexualidade e homofobia. Dizem que, se a “escolha” do filho for seja qual for, eles a aceitariam sem problemas.
No entanto, bem próximo dessas propostas, há também as que ficam evidentes em outra perspectiva, quando relatam esperanças de encontrar no filho a expressão identitária masculina ou feminina, em ressonância com seus corpos biológicos. Quanto sofrimento!