Introduzindo o conceito de superego e sua relação com o Édipo: Freud e Klein
Neste artigo pretendo abordar a íntima correspondência entre o percurso edípico e os percalços do superego, sua evolução, rupturas, paralisias, sob o vértice do pensamento de Wilfred Bion. Na parte final do trabalho, ilustrarei a apresentação teórica com um caso clínico de desilusão. Para que o leitor possa seguir meu pensamento, é imprescindível iniciar abordando o tema pelo vértice de Freud e Melanie Klein.
O mito de Sófocles foi um instrumento que auxiliou Freud a reunir elementos esparsos e conhecidos em conjunções constantes que identificam um determinado padrão observado na clínica. Ao descortinar o complexo de Édipo, Freud descobriu uma manifestação da nova ciência, a psicanálise.
No trabalho O ego e o id (1923/1990a), Freud abandona a utilidade do critério de consciência para pensar a mente e introduz novos avanços clínicos, incluindo as três entidades: id, ego e superego. O superego é apresentado como o derivado de uma transformação das catexias objetais primitivas da criança em suas identificações e toma o lugar do complexo de Édipo. Contudo, essa síntese é fruto de seus trabalhos anteriores, seu interesse pela neurose obsessiva e pela culpa. A relação clínica entre superego e narcisismo, tão cara aos psicanalistas, surge em seu artigo “Sobre o narcisismo” (1914/1990c), ao sugerir a substituição do narcisismo da primeira infância pela devoção a um ego ideal, erigido dentro de si próprio. Nesse texto, o autor utiliza de maneira indiscriminada os termos ego ideal e ideal de ego. No artigo “Luto e melancolia” (1917/1990b), Freud torna essa instância responsável por estados psicopatológicos do luto na melancolia. Embora o ideal de ego desapareça como termo técnico, apenas citado em algumas frases nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933/1996), ele constitui o superego, no sentido de “veículo ideal pelo qual o ego se mede” (Freud, 1914/1990c, p. 110), ou seja, como meta de superação e aprimoramento ou como distância sempre presente no indivíduo entre o que é possível ser e o que almeja ser, uma hipérbole plausível de ser revisitada numa análise.
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu” (1913/1990d, p. 160), a famosa citação de Goethe feita por Freud, que encontramos em Totem e tabu, sintetiza com efeito a apropriação de um legado, algo que se transmite e representa a entrada na cultura. Entretanto, existe uma contrapartida inerente à citação de Freud que precisa ser iluminada: há algo psíquico e único naquele sujeito, um mistério que precisa ser gestado com cuidado e publicado. Contudo, os psicanalistas sabem que a expressão dos próprios talentos pode ser facilitada se, internamente, o herdeiro do Édipo – o superego – autorizar, “abençoando” e até mesmo indicando o melhor caminho para a criatividade.
Melanie Klein (1928/1981b), no artigo sobre as fases primitivas do complexo de Édipo, afirma que a estrutura do superego é constituída por identificações que remontam a períodos e estratificações da vida psíquica muito diferentes. Por isso, ao lado da extrema bondade, coabita a mais intensa violência. Os protótipos de uma futura existência se encontram no exórdio de angústias: devorar e ser devorado na relação direta entre a formação do superego e as fases pré-genitais sádico-orais/sádico-anais, nos sentimentos de culpa e de punição. Klein observou a hostilidade que bloqueia e inibe o instinto epistemofílico, a curiosidade, na análise de crianças pequenas. Cogitou um ego precoce e muito incipiente frente às demandas edípicas de sexualidade e curiosidade já presentes nos primeiros meses de vida. Ressaltou que a vivência de impotência diante de registros de uma época pré-simbólica – de não entendimento, de impossibilidade de se expressar em palavras – incide na relação entre sadismo e epistemofilia.
Esta primeira conexão entre o impulso epistemofílico e o sadismo é muito importante para todo o desenvolvimento mental. Este instinto, ativado pelo surgimento das tendências edípicas, está a princípio relacionado com o corpo da mãe, que se supõe ser o palco de todos os processos e desenvolvimentos sexuais. A criança está ainda dominada pela situação sádico-anal da libido, que a impele a desejar apropriar-se dos conteúdos do corpo. Deste modo, começa a ter curiosidade pelo que contém, como é etc. Assim, o instinto epistemofílico e o desejo de tomar posse chegam logo a estar intimamente ligados um com o outro e, ao mesmo tempo, com o sentimento de culpa provocado pelo incipiente complexo edípico. (p. 256)
Melanie Klein descreve como as fantasias maníacas, de controlar o seio e os genitores internalizados, são empregadas para combater o alcance e a possibilidade de conviver com as ansiedades relativas à posição depressiva. Klein cita a ideia de festim descrita por Freud: na presença do seio, após sua perda, o ego se sente identificado com o ideal de ego.
De modo breve, mesmo correndo o risco de simplificar e reduzir um tema tão profundo, o pensamento psicanalítico estabelece uma correlação entre o sadismo e a curiosidade, duas vertentes de abordagem, presentes desde a vida mental precoce, que determinarão as questões edípicas e a formação do superego.
Ao realizar uma síntese de seus trabalhos precedentes no artigo sobre a psicogênese dos estados maníaco-depressivos, Klein (1934/1981a) descreve a passagem das angústias esquizoparanoides para as depressivas, apontando as relações da criança com os objetos parciais percebidos de maneira confusa – porções do mundo real hostil e persecutório, mas também do satisfatório.
Donald Meltzer expande as vivências parciais de objetos, pensando na mente do bebê estimulada ao entrar em contato com o corpo-mente da mãe. O autor descreve a experiência do impacto estético de beleza, paralisação, e o terror de aprisionamento, o claustrum.
Voltando a Klein, com o passar do tempo, a criança se dá conta melhor da pessoa total da mãe, e essa percepção do mundo se estende para além. A autora afirma que, nesse momento, as fantasias canibalísticas se encontram no auge. Acontece inevitavelmente uma mutação da criança frente à figura materna e à sua vida mental, o que leva o ego, povoado por sentimentos destrutivos e amorosos pelo mesmo objeto, aos primeiros contatos com a realidade psíquica.
A criança reconhece o objeto em sua totalidade, e em seu desenvolvimento se identifica como pessoa total, real e amada. Citando Freud, Klein (1934/1981a) continua explorando as fantasias de defesas maníacas e obsessivas como tentativa de combater a posição depressiva e controlar os genitores interiorizados: o ponto de fixação mais profundo da tendência depressiva deve ser investigado no perigo de perda do amor.
Nesse sentido, Klein e Freud concordam que a intolerância à dor mental pela perda do objeto amado põe em movimento processos maníacos em que o ego e o ideal de ego coincidem. Bion, ao citar Klein, observa que o objeto ausente pode ser vivido como o objeto mal presente. Em Transformações (1965/2004b), fazendo uma correspondência entre a geometria espacial e a vida mental, o autor afirma que o ponto seria o “lugar” em que o seio estava e não está mais, sentido pelo paciente como “o lugar onde ele costumava estar” (p. 113, grifo nosso), ou seja, a ausência é o seio mal presente. O “costumava” é um funcionamento superegoico que impossibilita a abertura a novas experiências; o paciente retorna sempre ao “ponto”. São estados mentais de intolerância à realidade, de lamentações contínuas e retornos recorrentes à falta, um raciocínio circular causa-efeito.
Os psicanalistas se ocupam da questão de como cada ser humano, desde o início da vida, lida com a falta, a ausência do objeto. Aceitação e elaboração do luto e os mecanismos de defesa foram investigados por Freud e depois por Klein, que antecipa a investigação da vida mental na mente primitiva. Um leitor desavisado poderia entender esses fatos como experiências concretas realmente ocorridas no passado, dentro de uma perspectiva histórica. No entanto, a natureza da vida mental é efêmera e, na sua complexidade, constituída por múltiplas dimensões que coabitam no momento presente.
Estudioso de Freud, lendo seus textos nas entrelinhas, e analisando de Klein, Bion utiliza esses autores como base, expandindo a metapsicologia psicanalítica. Podemos advertir essa profunda influência em seus textos, em que essa interlocução é expressa como numa conversa contínua consigo mesmo. Ele propõe suspender temporariamente a discussão da concepção da mente como tendo um conteúdo, até que tenha lidado com o Édipo em sua função de pré-concepção (Bion, 1963/2004a).
Freud abriu a marca da mente humana às amplas avenidas para investigar o psiquismo; Bion expandiu isso investigando a correspondência entre os mitos privados, descobertos na experiência emocional com seus pacientes, e os mitos universais. Os conteúdos, nesse sentido, são como os invólucros possíveis nos quais a personalidade se “agarra” para amarrar seu modo próprio de funcionar, expressão de seu aparato, seu arsenal primitivo, como uma energia que percorre uma linha de montagem.
Breve panorama da obra de Bion
Em Experiências com grupos (1961/1970), Bion já estabelece um paralelo da abordagem psicanalítica realizada pelo indivíduo e pelo grupo, citando Freud em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2011). Ele afirma se tratar de diferentes facetas do mesmo fenômeno, que fornecem ao profissional uma visão binocular: “Quando examinados por um dos métodos, centralizam-se na situação edipiana, relacionada com o grupo de acasalamento (pairing group) e, quando examinados pelo outro, centram-se na esfinge, relacionada com os problemas de conhecimento e método científico” (1961/1970, “Introdução”, par. 4).
O trabalho terapêutico no centro Tavistock ofereceu a Bion uma noção de como a vivência edípica é a entrada na “mentalidade de grupo”, e nela o indivíduo pode ou não estabelecer condições para um grupo de trabalho consigo mesmo e com outros.
Os textos do livro Second thoughts (1967/1994a) trazem à luz o funcionamento psicótico que opera em toda mente, ao lado do funcionamento não psicótico da personalidade. O caráter psicopatológico e o próprio termo psicótico perdem seu peso e estigma, já que pertencem à mente humana em geral.
Cabe à psicanálise focalizar os aspectos “psicóticos” da personalidade, o ódio à realidade psíquica, o que, como Freud assinalou, estende-se aos aspectos que contribuem para a “percepção” dessa realidade, ou seja, aos ataques à percepção, aos vínculos, sejam estes internos ou externos.
O artigo “Sobre a arrogância” trata do Édipo, que é abordado como método com o qual o paciente se aproxima da realidade: “Com alusões à curiosidade, arrogância e estupidez de tal modo dispersas e distanciadas umas das outras que sua correlação pode passar desapercebida” (1957/1994b, p. 101).
O distanciamento e a falta de correlação entre os elementos envolvidos podem resultar na constatação de que aconteceu um desastre, uma catástrofe psicológica ainda viva e ativa, que cabe ao analista enfrentar. O autor propõe:
Visando esclarecer uma conexão entre as mesmas, abordarei o mito de Édipo por um prisma que torna o crime sexual um elemento periférico de uma história em que o crime central é a arrogância de Édipo ao jurar que desnudaria a verdade a qualquer preço. (p. 101)
A teoria da causalidade edípica, que muitas vezes aprisiona o sujeito, pode ser transformada se a catástrofe for percebida em seu movimento, e não como um raciocínio circular. A proposta é não tomar o objeto parcial como total – sabemos o quanto, para Klein, as relações parciais de objeto são predominantes na fase esquizoparanoide. Passa a ser útil retirar o peso conferido ao conteúdo ou aos objetos em si para construir ligações entre eles, links entre os elementos numa relação, configuração adquirida ao participarem de uma função da personalidade. O malogro em estabelecer ligações entre os elementos pode conduzir ao desastre edípico e acarretar dificuldades da função pensante da personalidade (função alfa) para aprender com a experiência.
Esse ponto leva o autor a apresentar o trabalho “Uma teoria sobre o pensar” (1962/1994c), no qual se propõe o estudo do pensar e seus distúrbios. O pensar está intimamente ligado à maneira como o indivíduo vive seu próprio Édipo e à identificação projetiva. Assim, Bion correlaciona em sua obra pressupostos de Freud e Klein. Para ilustrar essa concepção, ele inicia o livro O aprender com a experiência com o seguinte exemplo:
Vejo um homem caminhar. Digo que sua marcha é função de sua personalidade e deduzo, após investigações, que seu amor por uma jovem e sua inveja do amigo dela são os fatores dessa função. ... Minhas observações se aproximam da teoria kleiniana da identificação projetiva. ... A função caminhar constitui sinal de que o paciente acredita ter incorporado a amada, com quem se identifica, e o rival, que inveja, mas com quem igualmente se identifica, e que controla ambos os objetos, incluindo-os em suas pernas. (1962/1966, p. 13)
Para Bion, o Édipo é o eixo central da vida mental e, portanto, da psicanálise. Ele assinala a investigação da criança quanto à sua própria vida mental e a de seus pais. A vivência de elementos dispersos que passam a ser correlatos precipita um modelo que se destina a unir a experiência emocional da criança em busca de um sentido:
A este respeito, o mito do Édipo é a sobrevivência do modelo que se destinava a reunir a experiência emocional da criança. Se o caso apresenta um distúrbio do pensamento, descobrir-se-á que o modelo nunca se formou adequadamente. Em consequência, a situação edipiana mostrar-se-á imperfeitamente desenvolvida ou inexistente. A análise de tal paciente revelará as tentativas de formular esse modelo. (p. 72)
Em suas sucessivas investigações, Bion comenta que a dispersão e a falha no vínculo entre os elementos edípicos se dão pela tensão presente na oscilação entre angústias esquizoparanoides e depressivas e continente ↔ conteúdo (♀♂), o que requer lidar com ansiedades ligadas ao luto depressivo e às vivências de desamparo. O analista observa o uso que o paciente faz da situação analítica e da mente do próprio analista. Bion associa a busca de autoconhecimento ao mito edípico: “Como uma forma primitiva de pré-concepção e um estágio de publicação, isto é, na comunicação do conhecimento privado do indivíduo para o seu grupo” (p. 102).
A entrada no grupo ou na realidade passa pela publicação de quem se é, a realização da pré-concepção edípica. Desse modo, Bion inclui na discussão não apenas a acepção das fases precoces do complexo de Édipo, apresentadas por Klein, mas
algo que pertence ao ego como parte de seu aparelho para entrar em contato com a realidade. Em suma, postulo um mito edipiano privado em uma versão elemento alfa que é o meio, a pré-concepção, em virtude da qual a criança é capaz de estabelecer contato com os pais como estes existem no meio da realidade. A correspondência desta pré-concepção edipiana – elemento alfa – com a realização dos pais reais origina a concepção dos pais. (p. 103)
O autor faz uma conexão com as ideias de Klein, ao pressupor que, quando a criança não consegue tolerar a dor mental diante da inveja, do sadismo e da voracidade provocados pelo contato com a relação parental, isso resulta no ataque à própria mente, à percepção, e a personalidade fica fragmentada pela violência dos ataques de clivagem. Bion conclui sua teoria sobre a pré-concepção edípica afirmando que, se as pré-concepções privadas nunca se tornam públicas, a criança nunca alcança a realização de suas investigações pessoais e únicas sobre sua própria vida mental e a de seus familiares. Há um desastre pelo ataque à pré-concepção edípica. A pessoa é assim impedida de aprender com a experiência da relação entre os pais; a “resolução do complexo de Édipo”, com o desenvolvimento de um superego menos onipotente e mais sábio, fica obstruída, e a análise, gravemente prejudicada.
Em Elementos de psicanálise (1963/2004a), Bion propõe utilizar a grade para compreender o material clínico. A natureza dos elementos e a trajetória edípica estão determinadas pela sua posição nos dois eixos, dos usos (1-6) e genético (A-H). O interjogo entre continente ↔ conteúdo (♀♂), e entre as posições esquizoparanoide e depressiva (fato selecionado),2 fornece o vínculo de cada linha da grade.
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | |
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Hipótese definitória | Ψ | Notação | Atenção | Investigação | Ação | ... n | |
A Elementos β | A1 | A2 | A6 | ||||
B Elementos α | B1 | B2 | B3 | B4 | B5 | B6 | ... Bn |
C Pensamentos oníricos, sonhos e mitos | C1 | C2 | C3 | C4 | C5 | C6 | ... Cn |
D Pré-concepção | D1 | D2 | D3 | D4 | D5 | D6 | ... Dn |
E Concepção | E1 | E2 | E3 | E4 | E5 | E6 | ... En |
F Conceito | F1 | F2 | F3 | F4 | F5 | F6 | ... Fn |
G Sistema científico dedutivo | G2 | ||||||
H Cálculo algébrico |
A grade, de Bion.
Em seu livro mais emblemático e considerado difícil pelos leitores psicanalistas, Transformações: do aprendizado ao crescimento, Bion trata da encruzilhada edípica de Tebas em seu estreito relacionamento com o superego: “A transformação não pode ocorrer sem uma experiência emocional específica, cujo modelo apropriado é a cena de violência na encruzilhada de Tebas” (1965/2004b, p. 111).
Em Atenção e interpretação (1970/2007), Bion correlaciona essa força superegoica, que aniquila a experiência, com a impossibilidade do paciente de “sofrer o sofrimento” pela insatisfação dos seus desejos, de experimentar a “não coisa”. A emoção é substituída por uma não emoção. Na prática, assistimos a uma emoção como a cólera, emoção com a função principal de negar outra emoção.
O retraimento da investigação – na presença de um superego primitivo, invejoso e severo – visa obstaculizar a curiosidade e o crescimento edípico, matando sua própria pré-concepção. Ou seja, a grade descreve a trajetória edípica do sujeito, iniciando a investigação pela primeira coluna, denominada hipótese definitória; essa investigação não se realiza quando não se pode tolerar ausência, dúvida e incerteza. Na impossibilidade de ser representada, a ausência é vivida como coisa em si. O autor propõe o conceito de uma não existência e de um estado de estupor no qual a representação fica equiparada àquilo que a pessoa é (e não a uma possível ideia; a representação “é” a coisa).
É possível refletir sobre o superego com vínculos compatíveis com o respeito pela verdade, portanto, ético. O superego, cujo vínculo seria compatível à onisciência, é moralista e contrário ao crescimento.
Braga e Junqueira de Matos, estudando as supervisões realizadas por Bion entre 1973 e 1978 no Brasil, rastrearam referências a uma configuração específica no complexo funcionamento do psiquismo, para a qual Bion utilizou a expressão primitive conscience, traduzida pelos autores como “consciência moral primitiva”:
Bion conjecturou estar esta consciência moral primitiva associada a registros talâ-micos e glandulares de experiências ocorridas ainda antes do nascimento. Esta condição primitiva, caracterizada por impor apenas o que não deve ser feito, aponta sua anterioridade ao aprender com a experiência. Este caráter inato é também destacado pela analogia com o pecado original. Outras tentativas de denominação, medo talâmico e medo subtalâmico, chamam a atenção para sua base somática. Os conceitos anteriores de terror sem nome e mudança catastrófica parecem-nos tentativas prévias de formular a experiência da mente desenvolvida, ao não conseguir continência para estes registros primordiais. (2009, p. 142)
Breve apresentação de caso
Material clínico3
Ester é uma moça de 32 anos, à qual, quando me procurou, solicitei uma segunda entrevista. Quando o segundo encontro aconteceu, ela disse com ênfase não ter entendido essa solicitação. Eu me senti esnobada por ela. Só apareceu um ou dois anos depois, e aceitou minha proposta inicial de nos encontrarmos três vezes por semana. Ela dificilmente respeitava o término do horário.
Nos primeiros meses, Ester parecia muito aflita, como alguém em “carne viva”. Ligava deixando recados, chorando e berrando. Certa vez, com muito ódio, disse que os pais não a prepararam para o casamento (sua maior ambição), e sim para estudar e trabalhar. Eles são separados. Desprezava o pai a ponto de comentar que ele não existia e criticava as escolhas da vida afetiva da mãe. A mãe tinha dificuldade para se aposentar, pois as filhas ainda eram dependentes dela. Ester gritava:
ESTER: A culpa da insatisfação da minha vida é dela, e ela vai ter que me sustentar!
ANNE: A sua afirmação é subjetiva e ligada aos seus próprios interesses. Sua mãe pode muito bem resolver descansar ou viajar. Afinal, você e sua irmã são adultas e criadas.
ESTER: É por isso mesmo. Quero que ela me dê tudo antes que isso passe pela cabeça dela.
Ester parece sentir um ódio à realidade mental dos pais, à sua própria e à da analista. Sua falta de empatia e de curiosidade pelo outro denota um Édipo que, diante da encruzilhada da vida, escolhe o caminho da onipotência e da arrogância. A falência de seu percurso edípico rumo ao autoconhecimento me faz pensar que “em algum lugar está presente um superego que é cruel, despido de todas as características geralmente associadas ao superego e, por fim, da própria ‘existência’” (Bion, 1970/2007, p. 36).
Sessão
Com pose de modelo, deitada no divã, fala com voz afetada e mistura expressões em inglês. Algumas palavras, eu nem compreendo. Será que existem? Ela me lembra o jornalista Paulo Francis. De onde ela é? Qual é a sua proveniência? Fico embasbacada pela pompa. É difícil seguir o que diz – às vezes, pelo absurdo do conteúdo.
“Eu trabalho, sabe, com o mercado do luxo, luxooou...”
Há vários termos com “wow”, “wown”, usados pela sua especificidade sonora. Ocorre-me uma onda, muito alta, que logo desmorona.
“Quando eu gosto de um cara, saio da festa com ele, mas antes eu olho bem para ele...”
Ela faz um gesto com os dedos como se indicasse a pessoa na sala e a chamasse para si. Sente-se mágica? Capaz de hipnotizar as pessoas?
Se saio com fulano e ele não paga a conta, é a sua última vez! Quero casar com alguém que me sustente e, assim, o dinheiro que ganho será só para os meus gastos e não me matar de trabalhar. Desfilo pelo salão como uma princesa, sem olhar para ninguém, sabendo que sou linda.
Retrata-se como uma princesa. E de repente tira a blusa, como alguém que arranca a roupa e grita: “Liga o ar! Abre a janela! Faz alguma coisa! Isso aqui está muito, muito quente, abafado. Não suporto! Como você não viu isso, Anne Lise?!”.
Há ali um pedido desesperado de socorro.
O clima emocional é angustiante, de extrema violência, como uma dupla “surda-muda”, sem palavras compartilháveis. Surge a imagem de uma uTi pré-natal. Sou sonhada por uma antiga lembrança. Uma visita à uτι pré-natal do Ospedale Cristo Re, em Roma. Enquanto os residentes, resistentes em entrar em contato com a experiência viva e frágil dos bebês, apoiavam suas coisas no vidro das incubadoras e discutiam casos muito graves como se nada fosse, dirigi meu olhar a um pequeno bebê que também parecia estar olhando atentamente em minha direção. Seu olhar fixo me enterneceu.
Ester pergunta algo quanto a se deveria ou não ligar para um rapaz. Digo que aquela foi a primeira vez que percebi seu interesse por minha presença na sala: “Sinto seu desejo de minha ajuda, incondicional, para se segurar em mim”.
Surge a menina desesperada que até então estava entretida tentando negar seu desamparo. Nesse ponto, o horário está terminando, e eu me levanto diante da sua resistência em se levantar.
“Mas o que eu faço? Vim aqui para você me ajudar, e você não me deu nenhuma solução!”
Cerca-me, obstinadamente, em guarda entre o divã e a porta. Sinto sua raiva e irritação quanto à sua condição, como se eu tivesse uma solução mágica para o seu sofrimento e cruelmente me omitisse.
Algumas reflexões finais
Procurei na presente escrita correlacionar a evolução do superego com o mito de Édipo. O mito torna-se assim um objeto para a investigação em uma análise, como no caso apresentado. O mito edípico privado de Ester, seu registro e notação da experiência, era de que o mundo devia tudo a ela. Seus objetos internos, genitores fracassados no casamento, não davam esperança em parcerias psíquicas de intimidade verdadeira. Eles deveriam ressarci-la, urgentemente, materialmente. Um superego onipotente, onisciente e cruel a impedia de rever suas convicções e o andamento de sua análise.
Do meu vértice, registro a dificuldade de relacionamento com alguém que apresenta uma categorização das coisas da vida de um modo rígido e já determinado, quase negando a minha presença. Ester refuta sua condição humana de dependência de maneira geral e, particularmente, em nosso trabalho. Já chega ditando as regras de modo autossuficiente, subestimando o método psicanalítico como busca pela verdade (pré-concepção humana), optando por permanecer em um meio mental regido por transformações em alucinose (Bion, 1965/2004b).
Vendo a situação pelo vértice deste trabalho, penso nas ruínas de um Édipo que não pôde ser vivido – nem sua dor mental, nem sua busca. Por conseguinte, o superego surge como uma profunda intolerância à realidade, à vida psíquica e às frustrações. Eu sentia muitas vezes seu superego “imitativo”, como alguém que não tem valores próprios e precisa copiar os outros, ou ainda inflexível, como nas “relações” com a mãe, com a analista e com as demais pessoas. Não existe alteridade. O superego é algo imposto, uma força sentida fora dela mesma, sem compaixão humana.
Se considerarmos o complexo de Édipo uma parte essencial do aparelho para pensar, presente nos estágios primitivos do desenvolvimento, e até mesmo na formação do superego, aproximamo-nos das concepções esdrúxulas do mito privado de minha paciente. Nesse caso, o distanciamento entre suas crenças, seu mito privado e o mito público a impossibilitava de ajustar seus talentos à realidade e a mantinha num estado de desespero e sofrimento insuportáveis.
Nas sessões, quando eu conseguia apontar algo que por algum tempo parecia útil a ela, logo depois ela precisava diminuir o valor disso. Essa desconstrução era frequente e evocava a desintegração de seu mito por um superego cruel e sempre insatisfeito. No entanto, ao final das sessões, costumava permanecer na frente da porta, implorando que eu lhe desse a solução para seus sofrimentos para que ela pudesse sair.
Esse relato clínico ilustra uma vivência de desilusão experenciada pela dupla, o que requer do psicanalista que ele mantenha sua “fé” na psicanálise. Uma passagem pelas agruras do Édipo favorece a tolerância à frustração e oferece uma visão mais realista. Ester defendia uma versão própria da vida, dificilmente compatível com o senso comum, o que dificultava seus relacionamentos. Sua postura obstinada levava a sucessivas e dolorosas desilusões para ela e para mim, como sua analista.
A disponibilidade do analista de permanecer na experiência emocional – frente a estados não integrados, despertados por um superego implacável – produz grande turbulência e desamparo, como no caso clínico escolhido. Para a psicanálise, a fé é um valor maior do que a crença, pois esta está relacionada com a moralidade e as exigências superegoicas.
Em O futuro de uma ilusão (1927/2014), Freud encantou-se com o escrito sobre “o sentimento oceânico”, de Romain Rolland. Descreveu a ilusão não como algo certo ou errado, mas como defesa humana. É do humano utilizar a crença e a religião quando o contato com a realidade em sua “transcendência” e mistério não pode ser tolerado. As pessoas sofrem quando esperam da realidade da vida algo que não é...