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versão impressa ISSN 1413-2907
Interações v.7 n.13 São Paulo jun. 2002
ARTIGOS
Romance policial e a pesquisa em psicanálise
Detective fiction and psychoanalytic research
Christian Ingo Lenz Dunker; Tatiana Carvalho Assadi; Maria Auxiliadora M. Bichara; Joëlle Gordon; Heloísa Helena Aragão e Ramirez*
Universidade São Marcos
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo estabelecer certas convergências entre a estrutura narrativa do romance policial e certas condições metodológicas da pesquisa em Psicanálise. Procura-se, com isso, contribuir para a distinção entre a Psicanálise como método de cura e como método de investigação ou pesquisa. A convergência entre ambos os campos já foi assinalada por inúmeros autores que apontam a contemporaneidade cultural dos dois discursos em questão. Diferenças substantivas igualmente já foram traçadas. Enfatizaremos os passos da investigação levando em conta o critério de verdade, a formulação de evidências, a construção de problemas e a teoria da prova envolvida em cada um dos discursos em questão.
Palavras-chave: Psicanálise, Literatura, Narrativa, Metodologia, Clínica.
ABSTRACT
This paper take as an aim the proposal of some convergences between the narrative structure of the police novel and some methodological conditions of research in psychoanalysis. We try to make a contribution to the distinction between psychoanalysis as a cure method and psychoanalysis as a research or investigation method. The convergence between the two fields was pointed out by some authors whom stressed the cultural proximity between the two discourses. Important differences was still marked. We emphasized the degrees of investigation examining the truth theory, the formulation of evidences, the problem construction and the theory of judge in both discourses.
Keywords: Psychoanalysis, Literature, Narrative, Methodology, Clinic.
1. Introdução
Quando falamos nesses dois personagens contemporâneos Sherlock Holmes e Freud muitas semelhanças surgem imediatamente. Ambos estão imersos na atividade profissional da resolução de mistérios. Ambos realizam tal tarefa utilizando princípios semelhantes: confiança na razão, atenção e importância conferida aos pequenos detalhes, revelação do sentido oculto em aparências desconexas, justificação límpida e persuasiva de suas conclusões.
A importância de um estudo comparativo entre romance policial e Psicanálise pode ser argumentada de diversas maneiras: confluência de paradigmas literários na construção da escuta analítica, vasta presença de metáforas que remetem ao romance policial no próprio texto de Freud e compartilhamento de figuras retóricas entre os dois estilos de escrita. Para além da proximidade estilística, entre o texto de Freud e essa forma específica do romance, há ainda que considerar o potencial de esclarecimento sobre os modos de subjetivação que tornam possível a emergência simultânea da Psicanálise e do romance na civilização ocidental. Em outras palavras, entender as possíveis relações entre esses dois campos nos ajudaria a compreender a formação discursiva na qual a Psicanálise emerge e, portanto, algo sobre sua própria condição de possibilidade histórica e cultural.
O próprio esgotamento da forma narrativa do romance já foi apontado como correlativo do esgotamento da forma investigativa freudiana. Spence (1992), por exemplo, apontou para os diferentes aplainamentos narrativos realizados por Freud na construção de seus historiais clínicos, bem como na seleção de peças clinicamente argumentativas. Ora, segundo Spence, o paradigma subjetivo no qual a Psicanálise emergiu não corresponde mais ao estilo subjetivo hegemônico em nossos tempos. Não acreditamos mais em uma única solução, inexorável e necessária para o drama subjetivo. Nossas narrativas de vida não são mais retilíneas e conclusivas, mas polifônicas e abertas.
A metáfora, usada por Freud (1937), de que no tratamento analítico tratar-se-ia de encontrar as peças e montar o quebra-cabeças de nossas histórias, de tal forma que todos os elementos se reúnam na figura da verdade, parece ter perdido sua força. Mesmo o seu adendo de que, se nem todas as peças do quebra-cabeças estiverem disponíveis, é preciso construir os elementos faltantes, soa-nos anacrônico. Assim como a confiança no aforisma de Holmes, soa-nos ingênua: “Quantas vezes eu disse a você que quando você tiver eliminado o impossível, o que quer que reste, por mais improvável que seja, deve ser a verdade” (Doyle, 1938, p. 18).
A subjetividade parece ter perdido sua espessura: nem profunda nem rasa, mas plástica, heteromórfica, mutante e transitória são seus atributos contemporâneos. A própria idéia do destino individual ou coletivo, como um enigma a decifrar, perde força diante dos aparatos discursivos de desencantamento, administração, hiperinterpretação do mundo. A descoberta, construção e cultivo de uma subjetividade enigmática a si mesma pressupõe paciência, interrogações constantes e uma certa confiança no compartilhamento e estabilidade das significações lentamente estabelecidas. Holmes e Freud são ícones de uma época em que o método se ligava indissociavelmente ao seu praticante na construção de uma experiência (Gay, 1997). O método não poderia, em ambos os casos, ser facilmente traduzido em uma técnica anônima, infinitamente capaz de reprodução e replicação. Ambos não descobriram apenas a singularidade do sujeito criminoso e do neurótico, mas também do pesquisador que sob eles se detém.
2. Os princípios da construção da narrativa
Como observou Todorov (1980, p. 68), o romance policial é constituído “pela relação problemática entre duas histórias: a história do crime, ausente, e a história da investigação, presente, cuja única justificativa está em nos fazer descobrir a primeira história”. O romance se desenvolve na produção de tensões, conflitos, transformações e equilibrações realizadas entre a conjectura metanarrativa, elaborada pelo leitor, e a narrativa apresentada pelo texto. A leitura do romance, assim considerada, é uma espécie de jogo, cujo objetivo é reconstituir, se possível antes do desenlace, qual a narrativa verdadeira. Temos, portanto, dois detetives: o personagem por exemplo, Holmes, Dupin, Poirot ou Marlowe e o leitor, que é convidado a situar-se no texto a partir de sua própria versão sobre o caso. Tal versão deve ser de fato uma narrativa, isto é, não basta que o leitor localize o autor do crime, mas deve também integrá-lo em uma rede que apresente os motivos, os meios, as circunstâncias e os acontecimentos de forma a produzir uma unidade lógica no conjunto. Em outras palavras, o leitor deve interpretar os signos de modo a construir uma versão com estrutura de verdade. O leitor deve persuadir-se a si mesmo, deve adquirir a convicção necessária sobre sua própria solução.
Os passos que organizam ambas as narrativas são mais ou me-nos conhecidos:
1) examinam-se as circunstâncias do acontecimento, colhendo exaustivamente indícios suspeitos;
2) indutivamente testa-se a consistência desses indícios, de modo a transformá-los em pistas;
3) pondera-se o valor das pistas de modo dedutivo e procura-se, a partir delas, construir evidências;
4) conjectura-se uma reconstrução lógica das evidências, de forma a desvendar o crime; e
5) a partir disso, a conjectura é apresentada a alguma forma de instância de julgamento que avalie seu valor de verdade.
É uma regra constitutiva desse jogo que os signos e indícios apresentados ao longo da narrativa admitam, necessariamente, mais de um sentido e que eles se coloquem como possíveis soluções para uma fratura de sentido; em outras palavras, para um problema. Um bom romance policial é capaz de, ao longo da trama, deslocar o problema originalmente proposto, reconfigurando indícios e evidências. Tal reconfiguração passa, muitas vezes, pela trama de contextos que se conjugam na narrativa: intenções amorosas, situações pendentes no passado obscuro, pactos por dinheiro ou poder, interesses políticos e segredos relacionais. Em outras palavras, um bom romance policial, assim como uma boa pesquisa, ressignifica várias vezes os mesmos indícios ou conceitos, formando, com isso, uma trama não completamente antecipável pelo leitor. Ambos devem reunir procedimentos de ambiguação, em que aumenta a valência semântica dos signos com procedimentos de desambiguação (Haroche, 1992), a qual diminui a valência semântica dos mesmos. Neste sentido, podemos estender uma linha imaginária da estratégia investigativa adotada pelo pesquisador. Em um extremo, estão os que procedem pelo espírito de finura (finesse), tal como descrito por Pascal. Nele, a verdade emerge das contínuas reviravoltas (renversements) do pró e do contra. Nenhuma afirmação é considerada sem a sua contrária, surgindo a conclusão de uma torção fulgurante das evidências, como por exemplo nos procedimentos de Miss Marple. No extremo oposto, estão os pesquisadores que operam pelo espírito geométrico. Nesse caso, a escrupulosa atenção ao detalhe, somada ao rigor dedutivo e à inexorável ordem das razões, compõem o arsenal básico desse tipo, bem representado por Hercules Poirot.
É interessante como alguns estudiosos da estilística de Freud e de seu método de construção de narrativas forneçam-nos indicações sobre como abordar seu texto, que parecem valer também como conselhos para um leitor médio de romances policiais. Holt (apud Souza, 1999) faz as seguintes recomendações:
1) cuidado para não retirar as afirmações de seus contextos;
2) esteja alerta para inconsistências;
3) não confie na estabilidade das definições;
4) adote um ceticismo benévolo; e
5) tenha cautela com o poder de persuasão de Freud.
A maior parte dessas indicações nos informa que é preciso estar preparado para surpresas e reviravoltas. Além do mais, desconfiar das evidências e asserções peremptórias sem, ao mesmo tempo, deixar de conferir crédito a tais movimentos ao longo do processo narrativo.
No caso do romance policial clássico, o problema primitivo, o ponto de partida para a trama, é colocado no início da narrativa sob a forma de um corpo. Um corpo de delito que geralmente é contextualizado do modo simples e compreensível. Como diz Zizek (1995), o corpo funda um conjunto de suspeitos (o círculo íntimo de suspeitos), que corresponde à cena inicial do romance, mas também da Psicanálise. Na pesquisa psicanalítica, ao contrário, geralmente há um longo percurso de consolidação do problema; ele não se coloca de forma imediata e auto-evidente, nem é consensualmente reconhecido. Outro agravante é que a meta-narrativa padrão já é bastante conhecida. Em outras palavras, um leitor médio de textos psicanalíticos dispõe de um repertório relativamente extenso de problemas colocados pela tradição à qual adere ou freqüenta. Uma pesquisa, se pretende acrescentar algo a essa tradição, deve tramar um duplo diálogo: com o leitor e com o conjunto de soluções já explicitado por outros autores. Caso contrário, incorre-se no risco de ter a solução antecipada e o efeito de surpresa e originalidade diluído. São conhecidos os exemplos de teses e artigos que, nas primeiras páginas, eliminam o problema, ficando a continuação como uma repetição dogmática do que já se sabe. Como o problema é indissociável de seu processo de investigação, o tipo de conhecimento assim produzido não se reduz apenas aos conteúdos, generalizável em certas conclusões, mas também, e fundamentalmente, depende da forma como se chegou a tais conclusões.
O conteúdo de um romance policial pode ser facilmente resumido em uma página, mas essa página, nela mesma, simplesmente não é mais uma narrativa policial. Nada acrescenta à tradição literária do romance. Note-se que isso estabelece uma séria diferença com relação a outras formas de investigação e de produção de conhecimento em que o produto é dissociável de seus meios narrativos de exposição.
Outro aspecto fundamental, ponto de semelhança entre o romance e a escrita investigativa, é a construção dos argumentos. Nessa via, o que se procura obter é o “assentimento intelectual do leitor” (Mezan, 1998, p. 290). Isto é, estão proscritas soluções de última hora, pistas não trabalhadas ou evidências descartadas sem motivos. Podemos acrescentar que a argumentação por autoridade geralmente sinalizada pelo uso excessivo ou não argumentado de citações, também colide com a estratégia de persuasão do leitor. Inversamente, o estilo poético, a utilização de figuras e formas de construção estilizantes, pode ser um recurso desejável, desde que não objetive diretamente o assentimento intelectual, mas o suponha como um ganho por acréscimo secundário.
Uma forma bastante útil de apresentar as regras do texto, em acordo com a regra do assentimento, se dá pela exploração do trivial, do sabido, que introduz o leitor a um universo de experiências que ele supostamente domina. Ao tratar da intriga e do mistério, Mezan mostra como este é geralmente produzido a partir da “regularidade no real e a necessidade de padrão” (1998, p. 359). O crime é, certamente, uma descontinuidade na rede de suposições e expectativas que compõe a realidade. O que torna o crime interessante e digno de investigação depende da revalorização de aspectos antes irrelevantes desta mesma realidade. São as marcas deixadas pelo assassino, as pequenas rotinas, os detalhes que nãose encaixam. É, por outro lado, essa reinvenção do cotidiano, explorada por Freud na sua escolha de temas, que produz o efeito de que a solução estava aí presente e clara desde o início, nós é que não a captamos. Holmes, Freud mas também Dupin, o detetive criado por E. A. Poe regem-se sempre pelo princípio de que o mais difícil de perceber é sempre o que está mais evidentemente mostrado. A busca de um problema intrincado, completamente inovador, como se esse, sim, conferisse relevância à pesquisa, não deixa de conter uma certa ingenuidade. A elegância da demonstração reside, muitas vezes, na sua simplicidade e parcimônia.
A força dessa estratégia de construção requer, em contrapartida, a atenção dirigida ao detalhe dissonante. O raciocínio clínico de Freud e Holmes não opera por exaustão, pela descrição completa, mas pela força do fragmento, pela produção do elemento único e irredutível. Freud dis-cute esse tema no início do caso Dora, intitulado Fragmentos da análise de um caso de histeria (Freud, 1905). Fragmentos que são compostos pela narrativa e que são isolados propositalmente pelo investigador.
Outra faceta desta estratégia de investigação aparece na correlação explicitamente apontada por Freud entre esta e o método de Morelli, desenvolvido para detectar falsificações em obras de arte. Um dos princípios de tal método está em evitar os grandes traços, característicos de um pintor, ou de uma escola. Tais traços são mais facilmente imitados do que os pequenos detalhes, como a composição de uma mão ou o desenho da curvatura de um dedo. Na análise da escultura de Moisés, feita por Michelangelo, Freud (1914) parte exatamente de uma injustificável tensão nas mãos de Moisés. Essa incompreensível tensão é o suficiente para desenvolver uma narrativa do que teria acontecido naquele instante, segundo a imaginação de Michelangelo, para que essa configuração das mãos fosse assim representada. Freud argumenta que essa tensão torna-se compreensível se ela se associa ao momento em que Moisés pretende levantar-se, irado pela adoração do bezerro de ouro. O gesto contém sua violência, transferindo esta ilação de afeto para um imperceptível movimento de apego das mãos às escrituras.
O método Morelli possui um interessante correlato naquilo que alguns biógrafos apontam como uma fonte decisiva para a invenção do personagem Sherlock Holmes (Lipari, 1996). Segundo alguns biógrafos, a grande fonte inspiradora para a construção do famoso detetive teria sido o médico chefe de Arthur Conan Doyle, em Edimburg: Dr. Bell. Diz-se que tal médico era capaz de diagnósticos complexos pela mera observação do modo como o paciente entrava no consultório ou relatava os primeiros sintomas. Dr. Bell comentou sua influência no caso da seguinte forma: “O único crédito que posso aceitar no que Holmes diz é o fato de ter sempre recomendado a meus alunos, e a Doyle entre eles, a vasta importância das pequenas diferenças e o significado infinito das pequenas coisas” (Shepherd, 1987, p. 16).
Falou ainda que essa habilidade já fora descrita por Rousseau, na forma do que o genebrino chamou de método de Zadig. Este seria a pedra angular de uma “ciência conjectural”, baseada na reconstrução narrativa e causal como solução para problemas. Não se pode deixar de lembrar que Lacan (1966), em um de seus textos fundamentais sobre a relação entre Psicanálise e Ciência, afirmava que a Psicanálise deveria ser pensada como uma “ciência conjectural”.
Mas a idéia de que a investigação psicanalítica procede pela montagem de um quebra-cabeças, em analogia com a investigação ilustrada pelo romance policial, tem também seus críticos. Como afirmamos anteriormente, Spence (1992, p. 157) afirma que a idéia de uma solução inferencialmente única para o problema levantado na esfera da subjetividade deriva, na verdade, de dois movimentos de “aplainamento narrativo”. Em outras palavras, o psicanalista seleciona fatos, supervaloriza evidências, descarta dissonâncias em dois níveis. Primeiro, durante a sessão, ocasião em que tem que eleger certos elementos em detrimento de outros; e, em segundo nível, na redação da pesquisa, quando valoriza certos aspectos, produzindo uma falsa unidade, requerida por uma exposição persuasiva e sistemática. Para Spence, levar a sério esse ponto corresponde a admitir que a Psicanálise é, no fundo, um gênero literário e que, correlativamente, ela deve abandonar suas pretensões a se estabelecer como ciência que busca a investigação da verdade.
A crítica de Spence destaca um aspecto irrefutável. Por exemplo, ao comprimir as mais de oitocentas páginas de notas que compõem o material clínico que serviu de base para a redação do caso clínico conhecido como Homem dos Ratos e ao apresentá-lo sob forma de uma narrativa coerente, muitas escolhas podem ser argumentadas como injustificáveis. Mas, como observa Mezan (1998, p. 369), a mestria da composição freudiana reside justamente nisso. O aplainamento narrativo, no sentido crítico, empregado por Spence, certamente não permite que olhemos para a análise de um caso como o espelho dos fatos linearmente ajustados sob forma da única explicação possível.
Mas isso só desloca o problema para a diversidade de formas narrativas possíveis em que uma investigação pode ser relatada e para o poder de verdade que a ficção pode esconder. Problema que, aliás, mostra-se na evolução do próprio romance policial. Como salientou Zizek, a forma do romance se modificou agudamente de modo a relocalizar a incidência do real:
(...)novas tecnologias literárias (dissociação da consciência, estilo pseudodocumentário etc) levam a testemunha para a impossibilidade de localizar um fato individual em uma história, ‘orgânica’, total e plena de sentido; mas em outro nível, o problema do romance policial, é o mesmo: o ato traumático (assassinato) não pode ser localizado na totalidade de sentido de uma história de vida (Zizek, 1995, p. 49).
A metáfora da investigação policial pode ser traiçoeira, se isso significar apenas a introdução da ordem onde antes governava o caos; o restabelecimento catártico do equilíbrio perdido. É preciso ter em mente que esse movimento se acompanha, tanto no romance, quanto na pesquisa em Psicanálise, do movimento inverso de introdução da desordem, onde antes reinava a continuidade estável do real. A produção da surpresa e do enigma onde antes havia a trivialidade do já sabido.
Spence (1992, p. 138) fixa-se em demasia no primeiro movimento, por exemplo quando afirma: “Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos estranhos e desconexos (sintomas), relatados por um cliente algo desesperado e desorganizado (paciente)”.
Poderíamos refazer a frase de Spence, invertendo os sinais e, mesmo assim, ela permaneceria válida para o contexto da pesquisa em Psicanálise: “Apresenta-se um detetive (terapeuta) que se vê diante de uma série de acontecimentos banais e coerentes (sintomas), relatados por um cliente algo tranqüilo e organizado”. Ocorre que, como o problema não é dado como um fato da natureza e, sim, construído pelo detetive, a banalidade, ou trivialidade, é apenas uma parte da história sobre a qual se engendrará uma segunda narrativa.
Sherlock Holmes, na investigação do caso conhecido como Estrela de prata, auxilia-nos novamente a compreender a questão. Tratase do desaparecimento de um cavalo de corrida e do assassinato de seu treinador, ocorridos durante a noite que antecede a grande corrida. O cuidador do animal talvez tenha sido dopado, uma sugestiva caixa de fósforos é encontrada no local, sinais de luta no corpo da vítima. Enfim, uma série de indícios acusam a presença de um outro na cena do crime, que é virtualmente constituído como suspeito. Várias coisas fora do lugar compõem o quebra-cabeças a ser reconstruído. No entanto, a solução não passa pelo mero recolhimento dessas pistas, mas também pela produção e constatação do que permanece, aparentemente, o mesmo. Como se nota no seguinte diálogo-chave:
É preciso entender o problema representado pelo cão diz Holmes. Mas qual problema? Ele permaneceu dormindo como sempre retruca Watson.
É justamente esse o problema, meu caro Watson (Doyle, 1938, p. 134).
De fato, o acontecimento crucial representado pela ausência de latidos do cão conduz à idéia de que foi o próprio treinador quem retirou o cavalo, a partir do que o caso se resolve pela inclusão dos demais detalhes.
A função de Watson é um elemento clássico do romance policial. Ele ocupa o lugar estruturalmente necessário do personagem que se engana. Não da mesma maneira que a polícia, como no caso da Carta roubada, de Poe, que se engana pela impossibilidade em isolar as diferenças que fazem diferença, que tudo olha mas nada vê, que trabalha pela exaustão e opera com um roteiro que universalize as ações, desconhecendo a singularidade do criminoso. Watson ou Hastings, o fiel companheiro de Hercules Poirot, são personagens de mediação entre o leitor e o detetive. Eles representam o senso comum, atraindo para si uma identificação do leitor. É com eles que o detetive argumenta, se justifica e presta contas de suas ações.
A função-Watson corresponde à figura tantas vezes utilizada por Freud do “interlocutor imparcial” ou presente, pela interpolação, no texto, de expressões como: “Sei que será difícil ao leitor me acompanhar neste ponto, mas...”; ou ainda: “Peço compreensão ao leitor, mas também quando o paciente relatou-me isso pela primeira vez não pude entender...”. Essa dissociação do autor do texto em vozes dissonantes e dialogantes, presentes na narrativa, aparece ainda no extenso uso da ironia como recurso retórico caraterístico do romance policial. Em detetives como Marlowe (Goldrub, 1994) e no romance policial americano, a ironia transforma-se quase em cinismo ou sarcasmo, na medida em que o investigador passa a trabalhar cada vez mais solitariamente. Outro recurso para indicar o distanciamento calculado do desejo do investigador diz respeito ao pagamento que contrasta com a ética e o engajamento intrínseco na descoberta, pelo simples amor à verdade ou pelo prazer intelectual.
Watson simboliza o que Zizek (1992, p. 54) chamou de necessária “falsa solução”. Necessária, pois é preciso contar com ela para que se possa chegar à verdadeira conclusão. Ela não é apenas um desvio, um erro ou uma estratégia para produzir suspense, mas é interna à lógica do processo. Por exemplo, nos Crimes ABC, de Agatha Christie, os nomes das vítimas seguem um complexo padrão alfabético, sugerindo a existência de uma mensagem, que conferiria sentido aos mesmos, bem como induzindo o leitor a pensar no assassino como uma espécie de lunático serial killer. Ocorre que é exatamente esta falsa solução que o assassino quer produzir, uma vez que, na verdade, ele é uma pessoa extremamente próxima da única vítima que ele realmente quer atingir.
A falsa solução desenrola-se sempre na função-Watson, que não deixa de estar presente em certos critérios da pesquisa psicanalítica. Por exemplo, a argumentação deve seguir passos, senão refutáveis, que ao menos considerem seriamente a existência de uma contraexplicação para o movimento proposto. A função-Watson é ainda importante para avançarmos um outro problema da pesquisa psicanalítica, especialmente quando esta se desenvolve no âmbito da universidade. De que lugar fala o pesquisador em seu texto? Certamente não é o de analista, mas talvez o de testemunha de uma experiência elaborada. Surge aqui uma importante diferença entre a Psicanálise como método de cura e a Psicanálise como método de pesquisa; ou, ainda, como campo de doutrinas e saberes articulados sobre o inconsciente. Freud oferecia esta tripla definição da Psicanálise, mas não desenvolveu inteiramente quais seriam suas conseqüências. Admitindo-se a proximidade entre a narrativa policial e a pesquisa psicanalítica, podemos postular que o lugar a partir do qual se escreve uma experiência analítica é muito semelhante ao ocupado por Watson. Ele compartilha a experiência da investigação; é ele quem narra as memórias de Holmes; é para ele que os argumentos e justificativas de Holmes são expostos. Sem ele, o efeito de surpresa se transformaria em uma tediosa exposição dedutiva, perdendo muito de sua plausibilidade. Sem ele, a pesquisa e a investigação policial perderiam sua estrutura essencial de diálogo. Como aponta Zizek (1992, p. 57), o detetive realiza a função que Lacan chamou de Sujeito Suposto Saber, articulador da transferência analítica. Ora, nem o psicanalista nem o pesquisador deveriam identificar-se com este lugar; no en-tanto, sem ele não há análise ou pesquisa. A função-Watson permite operar com essa suposição de saber, própria de uma ciência conjectural, aproximando-se, assim, da precipitação da verdade em sua estrutura de ficção.
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Heloísa Helena Aragão e Ramirez
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Recebido em 26/10/01
Aprovado em 25/06/02
*Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos, 1999