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Estudos de Psicologia (Natal)

versão impressa ISSN 1413-294Xversão On-line ISSN 1678-4669

Estud. psicol. (Natal) vol.28 no.1 Natal jan./abr. 2023  Epub 23-Set-2023

https://doi.org/1022491/1678-4669.20230012 

ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DAS INTERAÇÕES ENTRE PESSOAS E DIVERSOS CONTEXTOS SOCIOAMBIENTAIS

Atendimento Psicológico com Refugiados no Brasil

Mental health support for refugees in Brazil

Atención psicológica a refugiados en Brasil

Gesa Solveig DudenI 
http://orcid.org/0000-0002-3196-0755

Júlia de Souza LopesII 
http://orcid.org/0000-0002-1764-5118

Vitoria Nathalia do NascimentoII  III 
http://orcid.org/0000-0002-2272-3301

Lucienne Martins BorgesIII  IV 
http://orcid.org/0000-0003-4323-116X

1IUniversidade de Hagen

2IIUniversidade do Vale do Itajaí

3IIIUniversidade Federal de Santa Catarina

4IVUniversité Laval


RESUMO

Este artigo investiga como psicólogos no Brasil percebem o acolhimento psicológico e a psicoterapia com refugiados. Foram entrevistados 32 psicólogos, sendo 18 psicoterapeutas e 14 psicólogos atuando no acolhimento psicológico. Os participantes indicaram facilitadores e obstáculos em oito níveis diferentes: paciente, profissional, relação, dispositivo clínico, abordagem, contexto brasileiro, contexto do paciente e contexto do profissional. Os obstáculos incluíram a falta de intérpretes e de preparo para a inclusão dos refugiados, a desconfiança dos pacientes e atuação num contexto precário e xenófobo. Os facilitadores incluíram uma relação terapêutica baseada na confiança, a competência cultural dos psicólogos e o trabalho em redes. Aponta-se a necessidade de campanhas antidiscriminação, de políticas inclusivas aos refugiados e de investimentos em serviços de saúde mental.

Palavras-chave: refugiados; saúde mental; competência cultural; inclusão social; psicologia

ABSTRACT

This article investigated how psychologists in Brazil perceive the psychological care and psychotherapy with refugees. Thirty-two psychologists were interviewed, 18 of whom were psychotherapists and 14 psychologists working in psychological care. Participants indicated facilitators and obstacles on eight different levels: patient, professional, relationship, clinical setting, therapeutic approach, Brazilian context, patient's context and professional's context. Obstacles included lack of interpreters and lack of preparation for the inclusion of refugees, mistrust of patients and working therapeutically in a precarious and xenophobic context. Facilitators included a therapeutic relationship based on trust, the cultural and structural competence of psychologists, and networking. The present study points to the need for anti-discrimination campaigns, inclusive refugee policies and investments in mental health services in Brazil.

Keywords: refugees; mental health; cultural competence; social inclusion; psychology

RESUMEN

Este artículo investiga cómo psicólogos en Brasil perciben la atención psicológica y la psicoterapia con los refugiados. Se entrevistó a 32 psicólogos, 18 de los cuales eran psicoterapeutas y 14 psicólogos que trabajaban en la atención psicológica. Los participantes indicaron facilitadores y obstáculos en ocho niveles diferentes: paciente, profesional, relación, dispositivo clínico, enfoque, contexto brasileño, contexto del paciente y contexto profesional. Los obstáculos fueron la falta de intérpretes y de preparación para la inclusión de los refugiados, la desconfianza de los pacientes y la actuación en un contexto precario y xenófobo. Los facilitadores fueron la relación terapéutica basada en la confianza, la competencia cultural y estructural de los psicólogos, y el trabajo en red. Se señala la necesidad de campañas contra la discriminación, políticas inclusivas para los refugiados e inversiones en servicios de salud mental.

Palabras clave: refugiados; salud mental; competencia cultural; inclusión social; psicología

Observa-se atualmente um aumento global no número de refugiados, com mais de 89 milhões de pessoas em deslocamento forçado em todo o mundo (United Nations High Commissioner for Refugees [UNHCR], 2022). O Brasil acompanha a tendência mundial e é um dos principais destinos para refugiados na América Latina, sobretudo nos últimos anos com a acolhida de um grande número de venezuelanos (UNHCR, 2022). Só em 2019, de acordo com os últimos dados disponíveis anteriormente à pandemia da COVID-19, mais de 82 mil pessoas solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado no país, maior número de solicitações já registrado até então (Rezende & Fraga, 2020; Silva et al., 2021).

A lei brasileira de refúgio nº 9474/1997, conforme definido pela Organização das Nações Unidas (ONU, 1951), define como pessoa refugiada aquela que (i) devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; ou que (ii) não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias anteriores; ou que (iii) devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigada a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (Lei n. 9.474/1997). Neste artigo o termo refugiado será usado para designar, independentemente do status oficial no Brasil, pessoas que foram forçadas a deixar seu país por diversas razões, como guerra, perseguição ou miséria extrema.

Podendo ser classificadas também como migrantes involuntários, estas pessoas foram forçadas a deixar seu lugar de origem, uma vez que a permanência implicava uma ameaça à vida. Portanto, são migrações permeadas pela ausência ou precariedade de um planejamento de partida e projeção no lugar de chegada, bem como com impossibilidade de retorno (Martins-Borges, 2013). Tal compreensão é fundamental para analisar seus impactos na saúde mental, assim como os recursos disponíveis ao sujeito em deslocamento.

Saúde Mental de Refugiados

Nem todos os refugiados apresentam problemas de saúde mental, mas observa-se neste grupo maiores taxas de diagnósticos de transtornos mentais e sintomas psicológicos, quando comparado com a população geral dos países de acolhimento (Fazel et al., 2005). Diversos estudos demonstram taxas elevadas de depressão e ansiedade (Turrini et al., 2017) e transtornos de estresse pós-traumáticos em refugiados (Fazel et al.; 2005). Explicações para essas taxas elevadas incluem fatores pré-migratórios, como experiência de guerra, fome, violências extremas e perseguições; o período de deslocamento associado com muitas perdas e violações de direitos humanos; e fatores pós-migratórios, como a insegurança relacionada ao status legal, a falta de estruturas de acolhimento, isolamento social, dificuldades econômicas, experiências de racismo e discriminação e a perda das referências culturais (Codrington et al., 2011). Os fatores de estresse pós-migração são principalmente moldados por questões legais, estruturais, culturais e sociais dos países anfitriões e que variam consideravelmente. Isto faz com que as experiências de sofrimento dos refugiados sejam específicas a cada contexto (Duden et al, 2021). No Brasil, um estudo sobre imigrantes haitianos observou sintomas depressivos em 10,6% dos participantes (Brunnet et al. 2018). Um estudo sobre imigrantes bolivianos em São Paulo indicou a alta probabilidade de transtorno mental em mais da metade dos participantes, tendo maior prevalência de sintomas depressivos e ansiedade (Bustamante et al. 2019).

Atendimento Psicológico com Refugiados

A vulnerabilidade dos refugiados em relação a questões de saúde mental torna os serviços de saúde mental para esta população indispensáveis. No entanto, a atenção à saúde mental dos refugiados necessita de um suporte especial. Primeiro, porque as experiências de refugiados e sua relação com a saúde mental são únicas e claramente ligadas a um contexto sócio-político. Segundo, porque o paciente refugiado vem com frequência de uma outra cultura que a do psicólogo que lhe atende na maioria dos casos (Bustamante et al., 2016).

A barreira linguística limita o acesso de refugiados ao atendimento psicológico e complica o processo terapêutico - os custos financeiros de mediadores culturais não são cobertos em muitos países e há uma falta geral de intérpretes qualificados (Yick & Daines, 2017). Além disso, há desafios para os psicólogos quando se trabalha com refugiados como, por exemplo, estar cientes do fato de que muitos refugiados não têm um "lar seguro" para retornar após uma sessão (Knobloch, 2015).

Em vários países foram desenvolvidas modalidades de atendimento psicológico que lidam com as consequências da migração para o sujeito como, por exemplo, modelos clínicos baseados na etnopsiquiatria (Nathan, 2001). No entanto, existe uma incerteza quanto à aplicabilidade universal das modalidades de atendimento psicológico da Europa e dos Estados Unidos (Patel, 2003). Embora 86% das pessoas deslocadas sejam acolhidos por países em desenvolvimento e não ocidentais (UNHCR, 2021), a maioria dos estudos que investigam os serviços de atendimento psicológico a refugiados provêm de países ocidentais e de alta renda.

No Brasil, apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) oferecer a toda pessoa em território nacional, independente da sua nacionalidade, acesso integral, universal e gratuito a serviços de saúde (Lei n. 8080/1990), refugiados muitas vezes não recebem um atendimento adequado por falta de condições que atendam suas especificidades. A pesquisa sobre práticas de atendimento psicológico aos refugiados no Brasil é escassa se comparada ao número crescente de pessoas que buscam refúgio no país.

Este artigo faz parte de um projeto de pesquisa maior realizado em 2019, com o objetivo de investigar como psicólogos no Brasil percebem o acolhimento psicológico e a psicoterapia com refugiados. O "acolhimento psicológico" é uma estratégia de intervenção na saúde mental brasileira que envolve a disponibilização de um espaço de escuta e vínculo com pessoas com preocupações psicológicas e acompanhamento no processo de melhoria de seu bem-estar mental (Ministério da Saúde, 2010). Outras partes da pesquisa já foram publicadas em inglês (Duden et al., 2021; Duden & Martins-Borges, 2020, 2021), e o presente artigo busca apresentar uma integração dos dados em português, identificando limites e facilitadores relacionados a estas práticas, bem como indicadores para o futuro.

Método

Este estudo parte de uma perspectiva da psicologia clínica-cultural (Ryder et al., 2011) e utiliza métodos qualitativos de investigação. Fundamenta-se em uma compreensão da experiência subjetiva dos participantes, o que significa que o conhecimento é reconhecido como dotado de valor, pois é "sempre filtrado através das lentes da língua, gênero, classe social, raça e etnia" (Denzin & Lincoln, 2005, p. 21).

Os critérios de inclusão dos participantes foram possuir um diploma universitário brasileiro em psicologia (ou revalidação de diploma estrangeiro), e pelo menos um ano de experiência em atendimentos psicológicos com refugiados. As estratégias de recrutamento incluíram o uso de uma rede de contatos composta por líderes de ONGs e professores universitários de psicologia, e subsequente estratégia de amostragem "bola-de-neve".

No total 32 psicólogos (Tabela 1) foram entrevistados por meio de um roteiro de entrevista semi-estruturado, sendo 18 psicólogos atuando como psicoterapeutas e 14 no acolhimento psicológico (PAP). Em maioria mulheres (25), tinham idade entre 22 e 61 anos e atuavam de 1 a 38 anos como psicólogo. A prática com refugiados, contudo, era relativamente mais recente, variando de 1 a 20 anos. Além disso, todos os participantes estavam com inscrição ativa no Conselho Regional de Psicologia da respectiva região de atuação e nenhum deles trabalhava exclusivamente com refugiados.

Tabela 1: Caracterização dos Participantes (N = 32) 

Características N
Estado de trabalho Paraná 10
Santa Catarina 8
São Paulo 7
Roraima 6
Rio Grande do Sul 1
Nível de escolaridade Graduação em Psicologia 14
Mestrado 14
Doutorado 4
Abordagem Psicoterapêutica Psicanálise/Psicodinâmica 14
Etnopsiquiatria 8
Psicologia Social e Comunitária 4
Humanista, Existencialista 3
Terapia Cognitivo Comportamental 2
Psicoterapia de Abordagem Sistêmica 1
País de origem Brasil 26
Argentina 1
Colômbia 1
Líbano 1
Peru 1
Síria 1
Uruguai 1
Idiomas de atuação* Português 32
Espanhol 22
Inglês 11
Francês 6
Árabe 2
Trabalho financiado por* Voluntário 15
Universidade 6
Igreja Católica 5
ONG 4
ONU 3
Estado Brasileiro 2
Local de atuação* Clínica-Escola Universitária 13
ONG 11
Abrigo para refugiados 5
Consultório Privado 3
Centro de Referência de Atendimento ao Imigrante 2
Hospital 2

Nota.* Múltiplas respostas possíveis.

O presente trabalho foi submetido e aprovado no Comitê de Ética da Universidade de Osnabrueck, Alemanha, e no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o CAAE nº 55200916.9.0000.0121. Anteriormente às entrevistas, os participantes deram seu consentimento por escrito. O roteiro semiestruturado foi testado previamente em uma entrevista-piloto. As entrevistas duraram entre 40 minutos a 2 horas e foram realizadas presencialmente no local de trabalho dos psicólogos (n= 19) ou via Skype (n= 13). Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra. Para verificação de seu conteúdo pelos participantes, as transcrições das entrevistas foram enviadas aos mesmos, mas não foram recebidas demandas de revisão. Todos os dados de identificação dos participantes foram omitidos com o intuito de garantir o sigilo.

As transcrições foram analisadas adotando princípios de análise temática (Braun et al., 2014) por três pesquisadoras psicólogas: uma alemã e duas brasileiras. Cada entrevista foi lida minuciosamente e recebeu um título de acordo com seu tema central. Posteriormente, a primeira autora identificou unidades nas transcrições e as agrupou em categorias de significado, desenvolvendo assim uma árvore de codificação. O conteúdo da árvore foi definido após discussões e o consenso entre as pesquisadoras. Por fim, o software de análise qualitativa MAXQDA (VERBI-Software, 2020) foi utilizado para organizar o texto de todas as entrevistas de acordo com os temas.

Resultados

A integração dos resultados indica que os participantes perceberam obstáculos e facilitadores em seu trabalho com refugiados em oito níveis diferentes: paciente, profissional, relação, dispositivo clínico, abordagem, contexto brasileiro, contexto do paciente e contexto do profissional. A maioria dos pacientes atendidos pelos participantes veio da Venezuela, Haiti, Síria e Colômbia. No entanto, conjuntamente os psicólogos atenderam pessoas de mais de 30 nacionalidades diferentes.

Obstáculos

Paciente

a. A desconfiança dos pacientes foi um dos obstáculos encontrados pelos psicólogos participantes, mas foi percebida como compreensível considerando as experiências anteriores dos pacientes e seu desconhecimento sobre psicoterapia.

b. A dificuldade dos pacientes em falar sobre seu sofrimento foi um obstáculo citado por alguns profissionais.

Profissional

a. Superar o etnocentrismo foi um desafio, na medida em que exigia dos profissionais tomar consciência da própria cultura. Consequentemente, muitos experienciaram um choque no contato com pessoas de diferentes culturas, especialmente relacionado aos papéis de gênero. A dificuldade de entender o "quadro cultural de referência" dos pacientes foi percebido como um obstáculo para construir uma relação de confiança. Não agir por presunções ou adotar comportamento moralizante ao encontrar diferenças culturais também foi citado como uma dificuldade.

b. O fato de se sentirem sobrecarregados pela exposição contínua a histórias traumáticas e por se tornarem cientes das causas estruturais do sofrimento dos pacientes, sobretudo as limitações do sistema público brasileiro, também foi nomeado como dificuldade. Essas limitações incluíam a falta de possibilidades de encaminhar seus clientes em caso de necessidade de atendimento psiquiátrico ou médico. Adicionalmente, os PAPs descreveram uma sensação de sobrecarga com a quantidade de casos atendidos, culminando em uma diminuição da capacidade de escuta.

c. Os PAPs apontaram ansiedade e desconforto como resultado de "sempre ter que dizer não às demandas dos clientes" (PAP 5) devido à falta de recursos. Os profissionais mencionaram explicitamente o esgotamento e, em certos casos, quadros de estafa profissional, como uma consequência potencial de uma carga demasiada de trabalho e limitações estruturais no contexto brasileiro. O esgotamento foi também percebido como resultado do sentimento de que o seu próprio trabalho seria sempre insuficiente e de não ter esperanças de uma melhoria da situação dos refugiados: "Às vezes as coisas mexem muito com a gente. Mexem muito com nosso processo, nossa saúde mental. Então aqui é muito comum que as pessoas fiquem estafadas, tenham um Burnout, esse tipo de coisa é muito comum, depressão também" (PAP 1).

d. Alguns psicólogos viam os sentimentos relativos ao poder e à impotência como dificultadores. Eles experimentaram impotência diante dos problemas de seus pacientes, mas também se sentiam em uma posição de poder devido ao alto grau de vulnerabilidade dos pacientes.

Relação

a. Vários profissionais descreveram o vínculo com pacientes refugiados como difícil devido à desconfiança dos pacientes, às diferenças culturais ou à falta de familiaridade com psicoterapia. Também apontaram risco de desenvolver uma relação de dependência devido ao alto grau de vulnerabilidade dos pacientes.

b. Os participantes relataram confusão quanto à relação paciente-profissional, quando os pacientes se referiam aos psicólogos como sendo um amigo ou parte de sua família. Eles explicaram que isso se dava devido à proximidade física no local de trabalho e ao fato de que eles representavam a única rede ou relação estável do paciente no novo contexto. Eles também se sentiram emocionalmente mobilizados pelas histórias de deslocamento e de violência dos pacientes. Para alguns participantes, a proximidade surgiu da conexão com suas próprias experiências de imigração.

Dispositivo Clínico

a. Uma dificuldade apontada pelos profissionais foi ter que improvisar o espaço físico da terapia, uma vez que não existiam estruturas estabelecidas.

b. Os psicoterapeutas descreveram a falta de intérpretes como um obstáculo, pois gerava problemas na comunicação com os pacientes.

Atuação Profissional

a. Os psicoterapeutas relataram lutar contra a "armadilha do assistencialismo", ou seja, o desejo de ajudar os pacientes imediatamente em tudo.

b. Ao levar em consideração a cultura como um aspecto importante em sua abordagem, os psicoterapeutas tematizaram a camuflagem cultural como um obstáculo. A camuflagem cultural é um termo que se refere ao risco de ignorar os problemas psicológicos dos pacientes devido ao foco único na sua cultura (Friedmann, 1982).

c. Alguns profissionais consideraram difícil adaptar sua psicoterapia convencional às necessidades específicas dos pacientes refugiados.

Contexto Brasileiro

a. Todos os participantes referiram-se ao contexto brasileiro como um obstáculo para o cuidado em saúde mental de refugiados. Segundo eles, a questão do refúgio e o suporte em saúde mental para refugiados não recebem muita visibilidade no país, o que está mudando lentamente: "Eu vejo isso: é tudo muito novo para o Brasil" (PAP 5). Como exemplos, citam a carência de literatura científica e de dados sobre o refúgio no Brasil.

b. Os participantes destacaram a falta geral de financiamento público e falta de comunicação dentro do sistema de saúde mental. Eles mencionaram que os serviços de saúde mental no Brasil não formam uma rede bem estruturada. Os psicólogos compartilharam que havia falta de profissionais nos serviços e problemas de acesso para os usuários, como longas listas de espera e falta de intérpretes. Alguns pacientes não tinham recursos financeiros para pagar pelo transporte e até os serviços. Os psicólogos também apontaram que a sua profissão ainda é elitista no Brasil e considerada disponível apenas para quem tem recursos financeiros. Para os psicólogos, trabalhar com refugiados significava trabalhar com pouco ou nenhum recurso financeiro. Portanto, o acesso dos profissionais a estruturas de apoio para si, como supervisão e a própria psicoterapia, era precário.

c. Os participantes perceberam o país como despreparado para acolher e incluir refugiados. As necessidades básicas dos pacientes refugiados permaneceram frequentemente não atendidas, suas preocupações quase sempre pareciam muito urgentes e o trabalho de cuidado improvisado. Especialmente os PAPs apontaram a falta de projetos e estruturas estabelecidas para o acolhimento de refugiados. A consequência disso foi a dificuldade em planejar o processo de atendimento psicológico, assim como a sensação de trabalhar em uma situação caótica. Os participantes compartilharam seu dilema moral de querer dar suporte aos refugiados através de seu trabalho nas ONGs, mas, ao mesmo tempo, não querer assumir uma responsabilidade que deveria ser do Estado.

Contexto do Paciente Refugiado

a. As necessidades básicas não atendidas dos pacientes (alimentação, moradia) configuraram-se como um dos temas mais descritos pelos participantes. Estas, aliadas à elevada instabilidade jurídica e econômica, faziam com que os pacientes tivessem carências a serem supridas em vez de frequentar a psicoterapia, dificultando sua regularidade: "Não dá para falar sobre o trauma porque você está ali numa realidade muito perversa" (PAP 2).

b. Os psicoterapeutas apontaram a discriminação, a xenofobia, o racismo e a exclusão social sofridas no Brasil pelos pacientes, somada às constantes dificuldades burocráticas e de inclusão, como obstáculos. Estes fatores levaram os refugiados a desconfiar das instituições e da sociedade brasileira e impactavam negativamente em seu bem-estar e nos atendimentos.

c. O sentimento de isolamento dos pacientes em decorrência de sua separação da família, bem como a falta de reparação pelas violações de direitos às quais foram submetidos no processo migratório, também foram citados como obstáculos.

Contexto do Profissional

a. Os terapeutas afirmam que o trabalho voluntário e o atendimento a um grande número de casos limitavam o tempo que podiam dedicar a cada paciente. Estas condições de trabalho também reduziam suas oportunidades de troca com outros profissionais e de aprender sobre a cultura de seus pacientes.

b. Trabalhar sozinho foi percebido como um obstáculo, pois aumentava o fardo e o senso de responsabilidade que sentiam individualmente.

c. Alguns participantes se sentiram despreparados para o trabalho com refugiados, principalmente aqueles cuja formação não abordou questões sociais ou culturais. Os PAPs percebiam que a falta de experiência com pacientes refugiados levava profissionais e instituições a tratá-los com uma atitude paternalista, baseada numa relação de dependência.

Facilitadores

Paciente

A resiliência e os recursos de enfrentamento dos pacientes, bem como seu desejo de falar sobre o sofrimento e de se engajar no processo terapêutico foram tematizados como facilitadores no trabalho pelos psicólogos.

Profissional

a. Boa parte dos facilitadores mencionados são características dos profissionais, tais como o descentramento cultural e uma atitude de respeito à alteridade. O descentramento cultural foi explicado como tornar-se consciente da própria cultura, descentrar-se dos próprios valores, questionar o próprio conhecimento e estar aberto à visão de mundo e caminho de cura dos pacientes. Os efeitos positivos de buscar ativamente aproximar-se da cultura dos pacientes foi um dos subtemas mais proeminentes em todas as entrevistas.

b. Os participantes acharam necessário demonstrar consciência da situação política dos pacientes, estudando os contextos geopolíticos de deslocamentos a fim de buscar entender a posição social dos pacientes no Brasil e em seu país de origem.

c. A importância do descentramento teórico, definido como uma flexibilidade em respeito ao conteúdo e processo terapêutico, foi enfatizado, já que o trabalho era raramente previsível. Destacou-se a necessidade de adaptação das abordagens de atendimento às necessidades dos pacientes neste contexto.

d. Um interesse e uma escuta autêntica e uma forte dedicação ao trabalho foram mencionados como requisitos essenciais para o sucesso terapêutico: "tem que gostar, tem que acreditar e se jogar, se doar pois muitas vezes não é um trabalho bonitinho no consultório apenas" (T 16). Esse aspecto envolveu demonstrar-se empático e disponível aos pacientes e dar espaço para eles desabafarem.

e. Alguns psicólogos enfatizaram a importância da autoconsciência, incluindo a percepção de seus limites e das situações que evocavam sua ansiedade.

f. Os PAPs consideraram uma alta tolerância à frustração como um facilitador em seu trabalho. Isso foi explicado por seu confronto constante com obstáculos e limites estruturais. Para manter essa tolerância e sua própria saúde mental, vários participantes enfatizaram a importância de se sentir valorizado pela instituição de trabalho.

Relação

a. O vínculo com seus pacientes foi o elemento de maior suporte para terapia, os profissionais enfatizaram que "estar e permanecer lá" dava aos pacientes uma sensação de estabilidade que faltava em sua situação atual.

b. Aconfiançana relação foi considerada crucial e fortalecida pela transparência, enfatizando a confidencialidade e confirmando as necessidades dos pacientes. Falar as línguas dos pacientes, mostrar um interesse ativo em suas culturas e ter passado por experiências semelhantes às deles foram vistos como facilitadores para o desenvolvimento de confiança. No entanto, a existência de experiências semelhantes também foi discutida como um risco de superidentificação.

c. Enquanto ter limitesclarosna relação eram um facilitador para alguns, outros preferiam uma compreensão mais flexível da relação, rejeitando a posição de neutralidade do terapeuta.

Dispositivo Clínico

a. Trabalhar fora do próprio consultório foi visto como facilitador pela maioria dos participantes. Isso foi alcançado especialmente visitando refugiados em casa, conversando com eles nos corredores, acompanhando-os em eventos e visitando outras instituições relevantes.

b. Os participantes enfatizaram a terapia de grupo como facilitador, por possibilitar uma representação simbólica familiar e permitir que os pacientes encontrassem outras pessoas em situações semelhantes e criassem redes de apoio mútuo. O trabalho em grupo foi o subtema mais recorrente dos PAPs: ". É importante que as pessoas possam se ver e se reconhecer umas nas outras" (PAP 11). Os grupos também possibilitam um espaço de cuidado aos refugiados e minimizam a lista de espera para psicoterapia individual, dada a limitação de vagas para essa modalidade.

c. O trabalho em co-terapia, definido como a presença de mais de um terapeuta em uma sessão com um único paciente, foi percebida como um suporte para os psicoterapeutas. Isso porque a presença de outras pessoas e a possibilidade de discutir sobre o caso após as sessões atenuou a sensação de estarem sobrecarregados. Além disso, a co-terapia foi descrita como possibilidade para perceber múltiplas perspectivas sobre os casos.

d. Alguns participantes destacaram a importância de trabalhar com intérpretes ou mediadores culturais. No entanto, apenas quatro participantes tinham acesso, esporadicamente, a mediadores culturais. Descreveram também as tecnologias de comunicação como úteis para lidar com as dificuldades de linguagem. Complementarmente, alguns psicólogos defenderam a condução da psicoterapia em grupo em português, permitindo que os pacientes descobrissem a sua capacidade linguística em um espaço seguro e utilizando a língua portuguesa como ferramenta de integração.

e. A utilização de métodos não verbais (por exemplo, arteterapia) foi mencionada como facilitadora do vínculo terapêutico e como apoio à autoeficácia dos pacientes.

f. A psicoterapia de longo prazo foi referida pelos participantes como benéfica, na medida em que a continuidade permitia a formação de uma boa aliança de trabalho.

Atuação Profissional

a. Em relação à condução do trabalho dos psicólogos, a constante adaptação da própria abordagem - profissional, teórica e prática - foi referida como um facilitador importante do atendimento. Realizada, segundo os profissionais, por meio da escuta das necessidades dos pacientes antes de intervir e da co-construção de um trabalho de maneira flexível.

b. Sair da esfera psicoterapêutica individual foi destacado como um facilitador. Alguns terapeutas relataram diretamente a necessidade de dar suporte aos pacientes de formas não psicoterapêuticas, reconceituando seu trabalho como clínico-político:

A gente acredita que a clínica precisa estar atenta a essas questões da política pra ser clínica efetiva. A cura ela não é, não passa só pelos sentimentos ou pelas emoções. Ela passa por condições sociais para a pessoa ter uma estrutura para se estabelecer. (T12)

Outros se referiram mais indiretamente à função de apoio ao trabalhar fora do domínio psicoterapêutico, tal como se envolver em atividades políticas e mobilização social, a fim de transformar o contexto dos pacientes. Analogamente, o acolhimento psicológico foi descrito como trabalhar além das tarefas psicológicas "clássicas". Os participantes sublinharam a importância de se envolver no trabalho comunitário, e focar no trabalho em rede com profissionais de diversas disciplinas.

c. Referente ao manejo clínico, os participantes enfatizaram a importância de focar nos fatores de proteção dos pacientes.

d. Consequentemente, isso contribuía para apoiar a autonomia e a emancipação dos refugiados, a fim de auxiliá-los a estruturar os próximos passos em suas vidas. Os participantes recomendaram enfaticamente não reforçar uma atitude paternalista, mas ajudá-los a encontrar suas próprias soluções e respeitar que seus conhecimentos sobre saúde mental e cura fossem potencialmente diferentes.

e. Os participantes destacaram também a importância da transparência no atendimento, isto é, evidenciar os próprios limites profissionais, da relação terapêutica e do atendimento psicológico ajudava a ajustar as expectativas dos pacientes.

f. Um espaço seguro de escuta e reflexão para os pacientes, que proporcionava o encontro com testemunhas - profissionais e outros pacientes - do seu sofrimento e, assim, a possibilidade de reconstruir a confiança nas relações e em si mesmo, foi também identificado como facilitador.

g. Os psicólogos apontaram a importância de abordar questões de identidade dos pacientes, estimulando, por exemplo, conversas sobre os países de origem deles, como uma possibilidade de reconstrução e fortalecimento do sujeito.

Contexto dos Pacientes Refugiados

Fatores de suporte no contexto dos pacientes refugiados foram necessidades básicas atendidas, estabilidade, reparação pela injustiça sofrida nos países de origem e inclusão dos pacientes na sociedade brasileira. Outro aspecto visto como apoio era o contato social com brasileiros e outros conterrâneos.

Contexto do Profissional

a. Estar inserido e receber apoio em redes interdisciplinares amenizava a sensação de sobrecarga nos profissionais, possibilitando o encaminhamento e o tratamento contínuo dos pacientes em colaboração com o sistema de saúde e outras instituições públicas. Essas redes seriam compostas, idealmente, por advogados, psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, que trabalhariam juntos em casos, transfeririam pacientes entre si e permitiriam o aprendizado interdisciplinar.

b. Razões semelhantes foram apontadas para a utilidade do trabalho em equipe, pois permitia múltiplas perspectivas sobre os casos, fazendo com que os psicólogos se sentissem apoiados e aprendessem com profissionais mais experientes.

c. Os participantes também enfatizaram a importância da supervisão e da sua própria psicoterapia. No entanto, devido à falta de financiamento, muitos não podiam custear sua própria psicoterapia e raramente tinham acesso à supervisão.

d. A formação universitária em psicologia intercultural foi considerada relevante principalmente pelos participantes que cursaram uma universidade no Brasil que oferecia disciplinas de etnopsiquiatria e psicologia intercultural. Estes sentiram que tal formação aumentou sua consciência sobre os contextos sociopolíticos globais, o que, por sua vez, ajudou-os a não ficarem sobrecarregados ao entrar em contato com os desafios estruturais enfrentados pelos pacientes. O acesso a essas disciplinas também os ajudou a desenvolver uma sensibilidade cultural e a perceber as diferenças culturais com abertura e curiosidade.

Discussão

Esta seção do artigo propõe discutir os resultados apresentados a partir da literatura científica referente ao atendimento psicológico de refugiados. Para isso, as temáticas foram organizadas nos seguintes tópicos: (a) Pensar em vários níveis no atendimento; (b) Formação dos profissionais; (c) Falta de políticas públicas e barreiras de acesso aos serviços; e (d) Desconfiança dos pacientes e discriminação.

Pensar Em Vários Níveis No Atendimento

Para que o trabalho do psicólogo com pessoas refugiadas responda às mais diversas necessidades por elas apresentadas, o presente estudo aponta para a importância de incluir vários níveis de compreensão, isto é, pensar o paciente refugiado, o profissional, a relação profissional, o dispositivo clínico e atuação profissional, os contextos do país de acolhimento, o contexto do paciente refugiado e o contexto do profissional.

Estudos vêm problematizando o atendimento em saúde mental e a atenção psicossocial de imigrantes e refugiados no Brasil (Knobloch, 2015; Machado et al., 2019; Organização Internacional das Migrações [OIM], 2021). Com enfoque sobretudo nas organizações que oferecem esses serviços e nos diversos profissionais envolvidos, aponta-se o comprometimento dos profissionais em proporcionar cuidado, apesar das inúmeras barreiras estruturais e contextuais. Defende-se a importância de se ter uma ótica crítica em relação à patologização crescente dos imigrantes dentro dos serviços de saúde mental brasileiros, o que implica, segundo Knobloch (2015) numa posição ético-política do trabalho clínico-institucional.

Um dos pilares para uma efetivação dessa posição ético-política no atendimento de refugiados é o descentramento cultural e teórico dos psicológicos na sua prática. Como nosso estudo demonstra, o trabalho psicológico com refugiados convoca o profissional à questão da alteridade, fazendo questionar os seus métodos, dispositivos, saberes e técnicas (Duden & Martins-Borges, 2020).

Os profissionais que participaram do estudo ressaltaram também que o trabalho de adaptação da própria abordagem acompanha sua prática profissional. Orienta-se, dessa forma, por uma escuta ética das necessidades dos pacientes antes de intervir e da construção de um trabalho coerente com a realidade deles. Drožđek (2007) também aponta que engajamento sócio-político dos psicoterapeutas pode ser visto como uma expansão do papel profissional do terapeuta, facilitando a confiança. Nessas atividades, percebe-se uma atuação dos profissionais que ultrapassa o âmbito do trabalho clínico e busca atender a alguns dos principais problemas relatados pelos refugiados, gerando impactos positivos para seu bem-estar e sua inclusão. De fato, grande parte da literatura sobre saúde mental de pacientes refugiados mostra a importância de endereçar as necessidades contextuais e sociais dos refugiados através de trabalho psicossocial, advocacia e assistência prática (Codrington et al, 2011; Duden & Martins-Borges, 2021).

Como possibilidades para manejo dessas situações, torna-se fundamental uma formação constante da equipe, a partir de conhecimentos culturais e geopolíticos, bem como a possibilidade de trabalho coletivo: apoio em rede, supervisão, trabalho em equipe e co-terapia (Duden et al., 2020). Nesse sentido, reuniões de equipe para troca de informações, estudos de caso e aprimoramento dos conhecimentos sobre cultura foram apontados no Relatório da OIM (2021) como boas práticas. A compreensão da organização sociocultural e religiosa dos grupos, suas concepções de mundo e de saúde-doença também são práticas que auxiliam a compreensão intercultural e baseada na alteridade (OIM, 2021). O trabalho coletivo pode oferecer possibilidade, particularmente em contextos mais precários, de evitar a sobrecarga, oBurnoute a sensação de trabalhar sozinho.

As instituições e profissionais que fornecem um trabalho interdisciplinar também foram apontadas como as que conseguem dar um suporte mais completo, auxiliando no processo de inclusão. Como o trabalho coletivo, o trabalho interdisciplinar oferece a possibilidade de profissionais de várias áreas apoiando-se, evitando que cada um precise sair demasiadamente da área de especialização própria. Assim, o risco da armadilha do assistencialismo, mencionado pelos profissionais do nosso estudo, poderia ser diminuído e os profissionais teriam apoio em comunicar com transparência os limites do próprio trabalho. O trabalho assistencial e psicológico, como discutem Prado e Araújo, ao buscar possibilidades de uma melhor inclusão no Brasil, deve auxiliar para que os sujeitos possam atuar na construção de uma nova realidade. Isto porque contornos meramente adaptativos não agem sobre as instâncias que geram esse sofrimento (Prado & Araújo, 2019).

Formação dos Profissionais

Para melhorar o atendimento de refugiados no Brasil, um ponto importante concerne a formação dos profissionais. O desafio é permitir aos profissionais ampliar os modos de cuidar e agregar ao modo dominante outras referências, de forma que não se homogeneízem vivências e sofrimentos dos imigrantes evitando, assim, atitudes universalistas, organicistas, biomédicas e de abordagens psicológicas reducionistas. Uma formação que possa introduzir outros olhares, valorizar as práticas e saberes terapêuticos que os imigrantes trazem com eles e buscar estratégias clínico-institucionais abertas ao diálogo com a diferença, baseadas na competência cultural. É um grande desafio político, clínico e pedagógico proporcionar este tipo de formação. Além de introduzir novos paradigmas que irão definir novos saberes, práticas e competências clínicas, isto implica em um deslocamento pessoal para se apropriar de outras racionalidades, o que pode levar a uma desestabilização de certezas (Knobloch, 2015).

O presente estudo demonstra, como outros no contexto internacional, uma demanda dos profissionais no Brasil para uma formação universitária em psicologia intercultural integrando os aspectos acima apontados. A formação contribuiria com o desenvolvimento da sensibilidade cultural nos profissionais e com a redução dos obstáculos provocados pelo etnocentrismo no atendimento com refugiados. Além disso, uma formação poderia contribuir com a tomada de consciência da situação política e social dos pacientes refugiados, o que inclui a inter-relação entre a saúde mental e o contexto mais amplo da pessoa. Os nossos participantes perceberam a necessidade de melhorar as estruturas de atendimento e de empregar mais profissionais de saúde mental culturalmente sensíveis em centros de atendimento. Ainda que o treinamento de profissionais para fornecer o apoio de saúde mental adequado seja essencial, nenhum grau de educação ou de experiência intercultural pode compensar a falta das estruturas mais fundamentais (Duden & Martins-Borges, 2021).

Falta de Políticas Públicas e Barreiras de Acesso aos Serviços

Responsabilizar os profissionais que atuam com refugiados acaba por eximir o Estado de sua parcela de responsabilidade em criar e executar políticas públicas que amparem esta população. Assim, os participantes deste estudo perceberam o Brasil como despreparado para acolher refugiados e relataram uma falta de financiamento dos serviços de acolhimento e atendimento, uma falta de assistência, condições técnicas e materiais para quem trabalha no acolhimento de refugiados no Brasil. Mesmo o Brasil tendo recebido um número progressivamente maior de refugiados na última década (Silva et al., 2021), observa-se que o país ainda não conta com serviços de saúde específicos para esta população, que se relaciona à falta de financiamento. Apesar de o acesso a serviços de saúde no Brasil ser gratuito e universal, ou seja, garantido a toda e qualquer pessoa, independente da origem e nacionalidade, os participantes desta pesquisa apontaram que os serviços não se sentem habilitados para receber pessoas de diferentes culturas e que falam outros idiomas que não o português, pois os serviços raramente contam com intérpretes. Corroborando esta percepção, o Relatório da OIM (2021) e a literatura científica internacional também apontam as barreiras linguísticas. O problema de como incluir intérpretes no acolhimento e na psicoterapia tem sido discutido, uma vez que não há um caminho claro para realizar o financiamento desses profissionais e que há uma falta geral de intérpretes qualificados para atuação em serviços de saúde (Yick & Daines, 2017).

As barreiras de acesso e falta de serviços adequados fazem com que organizações da sociedade civil assumam o papel do Estado. Assim, no contexto brasileiro atual, o acolhimento e a inclusão de imigrantes dependem de ONGs ou de instituições religiosas, haja vista a falta de políticas públicas específicas que garantam o acesso à saúde e ao bem-estar previstos nos dispositivos legais supracitados (Boeira-Lodetti & Martins-Borges, 2020). Muitos dos psicólogos atendem voluntariamente refugiados, sem receber remuneração para este trabalho, que é muitas vezes realizado em espaços improvisados e inadequados. Segundo Rezende e Fraga (2020), as políticas públicas existentes para a integração local de refugiados no Brasil são escassas e insuficientes. Corroborando esta ideia, os psicólogos entrevistados no presente estudo perceberam uma grande incapacidade do Estado brasileiro em amparar refugiados em relação a condições básicas de existência, como moradia, alimentação e acesso à saúde. Como resultado, os psicólogos relataram que os refugiados atendidos enfrentam grande dificuldade em dar continuidade aos atendimentos em função das condições precárias em que vivem.

Desconfiança dos Pacientes e Discriminação

Os profissionais do presente estudo descreveram um esforço para superar a desconfiança inicial dos pacientes refugiados e, ao mesmo tempo, a importância do desenvolvimento de uma relação terapêutica de confiança, situação também enfatizada na literatura internacional (Codrington et al., 2011). Os psicólogos consideravam a construção de um vínculo de confiança, entre profissionais e pacientes, como o fator mais importante para o trabalho. Este contato se constitui a cada relação, sendo defendida, por exemplo, tanto a definição de limites claros para alguns, quanto a criação de vínculos mais flexíveis para outros. Uma forte desconfiança em relação a profissionais da saúde mental, de pessoas em geral e de instituições públicas podem surgir de experiências traumáticas e de graves violações dos direitos humanos, do estigma de psicoterapia e de experiências de discriminação (Codrington et al., 2011; Duden et al., 2020).

As pesquisas sugerem que os refugiados, em particular os refugiados negros e outras pessoas racializadas, são discriminadas nos setores de saúde de muitos países. Atitudes racistas, xenófobas e discriminatórias também podem estar presentes nos profissionais de serviços de saúde mental. No Brasil, o ideal colonial do "bom migrante" como o "colonizador branco, saudável e trabalhador" ainda existe, e a xenofobia, discriminação e o preconceito contra aqueles migrantes que não correspondem a esta ideia são onipresentes (Barros & Martins-Borges, 2018). Portanto, xenofobia e discriminação, como outros fatores sociopolíticos, afetam fortemente o sofrimento psicológico de refugiados (Duden et al., 2020, 2021), bem como a possibilidade de inclusão na sociedade de acolhimento. Corroborando estas pesquisas, os profissionais deste estudo também perceberam que a discriminação, somada às constantes dificuldades burocráticas e de inclusão, teve grave impacto na saúde mental de seus pacientes refugiados e, consequentemente, no atendimento psicológico.

Conclusões

A decisão de incluir apenas psicólogos como participantes foi baseada no pressuposto que psicólogos que trabalham com refugiados podem oferecer entendimento aos processos psíquicos e de elaboração que não são facilmente acessíveis de outra forma. Os resultados deste estudo devem, então, ser interpretados na perspectiva de profissionais psicólogos e, pesquisas futuras, poderiam se beneficiar com a inclusão das perspectivas de pacientes e outros profissionais.

Uma limitação deste trabalho é o fato que as características dos pacientes, tais como seu status de imigração, seu país de origem ou história migratória não foram consideradas. Relacionada a isto, nas entrevistas a separação entre experiências de atendimento relacionadas a refugiados ou imigrantes foi difícil de ser estabelecida, uma vez que quase todos os participantes também atendiam imigrantes. É necessário reconhecer que as experiências dos profissionais podem ser profundamente afetadas pelas características e experiências dos pacientes. Pesquisas futuras buscando entender melhor os impactos destas características precisam ser delineadas com cuidado para não correr o risco de criar imagens estereotipadas de um determinado grupo de pacientes.

Um outro fator limitante desta pesquisa diz respeito à dificuldade de obter dados sistemáticos e contextuais, particularmente nos prontuários dos pacientes. Muitos dos participantes trabalhavam de forma voluntária e não mantinham rotineiramente registros de seus pacientes. Os participantes compartilharam que as informações sobre quem fornece apoio, sobre os tipos de apoio, para quem, onde e por quanto tempo eram escassas. No mais, constatou-se a falta de redes entre projetos e as diversas estruturas do sistema de saúde e assistência social. Esforços futuros são necessários para difundir de forma mais sistemática informações sobre serviços e projetos já existentes no atendimento de refugiados.

Finalmente, esta pesquisa foi focalizada no apoio à saúde mental de pacientes refugiados. Assim, ela lidou com uma parte específica da população refugiada que sofre e necessita de cuidados de saúde mental. Embora isto seja necessário e não deva ser visto como uma contribuição para uma patologização dos refugiados, reconhecemos que é igualmente importante investigar e reconhecer os recursos pessoais e psíquicos, além da profunda resiliência dos refugiados (Barros & Martins-Borges, 2018).

Em conclusão, essa pesquisa tentou elucidar as perspectivas de psicólogos que atendem refugiados no Brasil, tendo apontado como resultado principal, para uma necessidade de abarcar diversos níveis de compreensão no atendimento. Só se levarmos em consideração os contextos nacionais, culturais e fatores individuais dos pacientes refugiados, e se conseguirmos nos descentrar dos nossos próprios hábitos, costumes e abordagens, melhoraremos o atendimento psicológico de refugiados. Neste sentido, este artigo aponta especialmente para a criação de redes interdisciplinares de apoio entre os profissionais. Estas redes potencializariam o engajamento político de seus atores na busca de melhores condições de vida e de atendimento à saúde mental para pessoas refugiadas no Brasil.

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Recebido: 30 de Maio de 2022; Revisado: 05 de Março de 2023; Aceito: 30 de Abril de 2023

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