Mundialmente, as sociedades têm passado por um processo de envelhecimento populacional, fenômeno que ocorre quando a quantidade de pessoas idosas em uma população é proporcionalmente maior que as outras faixas etárias (Oliveira, 2019). De acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2012) e a Organização das Nações Unidas (ONU, 2019), este processo é produto do aumento da longevidade e do declínio nas taxas de fecundidade, tornando-se possível devido a melhoras nas condições de vida da população, ocorridas desde o final do século XX (UNFPA, 2012). No Brasil, o envelhecimento da população se mostrou mais evidente nas décadas de 1960 e 1970, impulsionando a criação de projetos e leis voltados a esta população (Côrte & Brandão, 2018).
Embora o processo de envelhecimento englobe todas as etapas da vida desde o nascimento (Schneider & Irigaray, 2008), segundo a Lei 8.842/94, é considerada idosa a pessoa que tem 60 anos ou mais. Envelhecimento e velhice se configuram, portanto, como processo e etapa da vida, respectivamente (Neri, 2006; Schneider & Irigaray, 2008). Desse modo, torna-se importante compreender como o processo de envelhecimento e a fase da velhice são vivenciados por diferentes indivíduos, no contexto da qualidade de vida e dos serviços voltados à sua promoção (Miranda & Banhato, 2008). Configura-se como tarefa importante, também, entender como a pessoa idosa concebe sua própria qualidade de vida, principalmente no contexto da pandemia de Covid-19, com expressivos impactos a essa população (Costa et al., 2020; Silva et al. 2021). A presente pesquisa teve como objetivo, portanto, analisar as representações sociais de velhice e as práticas de qualidade de vida entre idosas frequentadoras de um CCTI, em Vitória/ES.
Envelhecimento Ativo e Qualidade de Vida
A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2005) passou a utilizar o termo “envelhecimento ativo” como processo de conquista de um envelhecimento experienciado de forma positiva, com boa qualidade de vida e com participação da população de forma contínua no âmbito de questões sociais, econômicas, culturais, espirituais, civis e de saúde. Considerando que a sua promoção é de responsabilidade de diferentes setores da sociedade, incluindo os órgãos públicos, dentre as instâncias públicas responsáveis pela garantia de direitos ao idoso, destaca-se o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O SUAS é de direito dos cidadãos e dever do Estado, e tem por objetivo garantir a seguridade social não contributiva, assegurando o atendimento às necessidades básicas da população, previsto na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993.
Com inserção em diferentes âmbitos e serviços prestados pelo SUAS, destinado ao público idoso na proteção social básica, tem-se os Centros de Convivência para a Terceira Idade (CCTI), tipificado como um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) (Conselho Nacional de Assistência Social, 2014). De acordo com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais estabelecida na Resolução nº 109, de 11 novembro de 2009, os CCTIs são espaços destinados ao desenvolvimento de atividades de cunho educativo e sociocultural, que visam promoção de autonomia, envelhecimento saudável, sociabilidade, fortalecimento de vínculos familiares e convívio comunitário, prevenindo situações de risco pessoal e social (Derhun et al., 2019; Moura & Veras, 2017; Scolari et al., 2020).
Tendo em vista os aspectos relevantes a um envelhecimento saudável e ativo, torna-se importante compreender a qualidade de vida dos sujeitos que envelhecem, fundamentalmente como promotora de dignidade à pessoa idosa (Azevedo et al., 2022; Paschoal, 2002; Siqueira et al., 2023). Fleck (2000) aponta que não existe consenso sobre a definição deste conceito; porém, o mesmo é preconizado pela OMS e por especialistas da World Health Organization Quality of Life Group - WHOQL Group (1995) como a percepção dos sujeitos acerca da sua posição na vida, em relação ao contexto cultural e aos valores sociais da realidade em que estão inseridos, além dos objetivos, expectativas, padrões e preocupações que possuem. Desse modo, qualidade de vida tem como determinantes o contexto sociocultural, meio físico, dimensão psicológica, níveis de independência, relações sociais e crenças (Miranda & Banhato, 2008; Paschoal, 2002). No que se refere ao envelhecimento, a qualidade de vida abarca também construtos como funcionamento dos sentidos, autonomia, atividades passadas, presentes e futuras, participação social, morte e morrer e intimidade (Fleck et al., 2006), além de se relacionar às experiências no curso de vida e ao contexto histórico-social de referência ao sujeito (González, 2013).
Na temporalidade presente, o contexto da pandemia de Covid-19 tem se configurado como um dos maiores problemas de saúde pública enfrentados pelas sociedades nos últimos anos (Word Health Organization [WHO], 2020). Conhecer como essa realidade tem impactado na qualidade de vida de idosos apresenta-se como tarefa de grande relevância, especialmente considerando que esta população se enquadra como de alto risco à nova doença, com maiores riscos de desenvolver formas mais graves (Costa et al., 2020). Além do risco físico, Silva et al. (2021) e Sepúlveda-Loyola et al. (2020) apontam que o isolamento social contribuiu para que os idosos tivessem sua rotina desorganizada, suas relações sociais limitadas e experimentassem sentimentos e emoções negativas. Ou seja, as medidas de isolamento social para conter a expansão da pandemia, apesar de essenciais, geraram também impactos negativos (Dourado, 2020; Oliveira et al., 2020; Silva et al., 2021).
Representações Sociais e Envelhecimento
A Teoria das Representações Sociais foi inaugurada por Serge Moscovici em 1961 (Moscovici, 1961/2012) e tem como interesse principal a investigação do reconhecimento do saber popular e do senso comum (Moscovici, 2003/2015). Visa, ainda, entender como os indivíduos se apropriam do saber científico e o transformam para construir, socialmente, a realidade e as visões de mundo, produzindo conhecimentos, guiando as comunicações cotidianas e orientando as práticas sociais (Almeida et al., 2000; Jovchelovitch, 2008).
A abordagem sociogenética das representações sociais, utilizada como referência ao desenvolvimento do presente estudo, tem como principal representante Denise Jodelet (Jodelet, 1989/2015). Entre os principais objetivos teórico-metodológicos desta perspectiva, tem-se a análise sobre os processos de elaboração das representações sociais, visando os aspectos que as constituem, como informações, crenças, opiniões e valores (Banchs, 2000).
Para a compreensão do processo de elaboração e atualização das representações sociais, torna-se importante compreender como o que não é familiar (ou o desconhecido) aos indivíduos é assimilado e transformado em um campo compartilhado e familiar aos sujeitos de determinado grupo social (Moscovici, 2003/ 2015). Nesta dinâmica, dois processos são necessários, a saber: a objetivação, que ocorre por meio de uma operação imagética na qual o conhecimento acerca do objeto ganha forma específica, ou seja, a palavra atribuída ao objeto é materializada; e a ancoragem, que se refere a um processo de classificação dos objetos sociais não familiares, no sentido de nomear o desconhecido, introduzindo-o em categorias e sistemas de valores familiares ao indivíduo (Jodelet, 1984; Morera et al., 2015; Moscovici, 2003/2015). Ainda que tais processos ocorram de forma dialógica na constituição do fenômeno das representações sociais (Hakoköngäs & Sakki, 2016; Marková, 2000), estudos têm sido desenvolvidos a partir da perspectiva de análise específica destes processos. Diante disso, o presente estudo utilizou como referência à análise dos dados o conceito de ancoragem, tendo em vista o intuito de compreender como os diferentes significados acerca do objeto social velhice se integram aos sistemas de valores.
O processo de ancoragem, como aponta Jodelet (1984), possui três funções: i) integrar cognitivamente a novidade, atribuindo sentido à mesma; ii) interpretar a realidade e enraíza-la em um sistema de pensamentos pré-existente; e iii) orientar e fundamentar condutas, de forma a instrumentalizar este saber. Tal processo possibilita a interpretação e a comunicação entre os indivíduos, compondo uma linguagem comum por meio de classificações e nomeações a partir de unidades de significados que dão materialidade ao objeto social (Jodelet, 1989/2001, 1989/2015; Moscovici, 2003/2015). A análise do processo de ancoragem, portanto, permite compreender a participação das características históricas, sociais, culturais e institucionais na produção de sentido do mundo e dos objetos sociais (Villas Bôas, 2014). Deste modo, as representações servem, sobretudo, para orientar o agir sobre o mundo e sobre o outro. Almeida et al. (2000) apontam que existe uma interação mútua entre representações e práticas sociais, de modo que se configuram como dimensões interdependentes e dialéticas. Portanto, é possível afirmar que a análise sobre práticas é fundamental para o estudo das representações sociais (Aguiar et al., 2017; Almeida et al., 2000).
Em se tratando das representações sociais de velhice, estudos sobre o tema têm apresentado conteúdos que identificaram resultados associados à ideia de caráter negativo desta etapa, marcados pelas representações de sofrimento, solidão, limitações físicas e cognitivas, adoecimento, perdas funcionais e perda da beleza (Fernandes & Andrade, 2016; Ferreira et al., 2010; Minó & Mello, 2021; Wottrich, 2011). Porém, Faller et al. (2015) apontam que as representações sociais de velhice nem sempre estão relacionadas aos declínios e doenças, mas, quando essa associação é feita, os idosos tendem a demonstrar imagens negativas sobre esta etapa da vida.
Quando a velhice é relacionada a aspectos positivos, diferentes dimensões são consideradas como condição importante para se viver bem a velhice, como o bem estar econômico, familiar, comportamental, social, psicológico e físico, sendo a boa velhice, geralmente associada à qualidade de vida (Biasus et al., 2011; Brito et al., 2017; Minó & Mello, 2021). Aguiar et al. (2017), Castro et al. (2016) e Rozendo et al. (2022), em estudos sobre representações sociais de velhice e práticas de rejuvenescimento, apontam a boa velhice associada à autonomia, a cuidados com a beleza e a estratégias para não envelhecer. Derhun et al. (2019), Scolari et al. (2020) e Gomes et al. (2022), por sua vez, salientam a participação nos grupos de idosos como importante para a construção de uma velhice com qualidade de vida.
Tendo em vista que a velhice possui contornos distintos para cada grupo ou indivíduo, não é possível generalizar as representações que os indivíduos têm sobre esta etapa da vida. Minó e Mello (2021) e Faller et al. (2015) salientam que, para que se compreenda tais representações sociais, é preciso considerar, também, fatores biológicos e comportamentais, experiências de vida, além das situações sociais, econômicas, culturais, sistemas de valores e crenças, considerando o contexto ao qual estão inseridos (Jodelet, 1989/2001; Justo et al., 2014). Assim como Debert (1997) e Gurgel et al. (2018) mostram em seus estudos, a velhice, ao longo do tempo, ganha configurações específicas, que estão de acordo com os modos de funcionamento social, e as diferentes culturas e valores.
Diante dos argumentos expostos, o presente trabalho torna-se relevante, uma vez que tem como objetivo analisar o modo como idosas frequentadoras de um CCTI de Vitória/ES representam a própria velhice, e quais práticas se relacionam com a qualidade de vida. Destaca-se a importância de estudos sobre representações e práticas sociais, pois auxiliam no entendimento e na identificação de diferentes interpretações da realidade social e do senso comum, visando os elementos cotidianamente compartilhados pelos sujeitos da experiência.
Método
Tendo em vista os objetivos propostos, esta pesquisa, de caráter qualitativo, descritivo e exploratório (Flick, 2012), tem como base metodológica a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) (Glaser & Strauss, 1967). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, da Universidade Federal do Espírito Santo, com número CAAE 30252220.6.0000.5542.
Participantes
Participaram da pesquisa 12 mulheres idosas frequentadoras de um CCTI de Vitória-ES, com idades variando entre 61 e 82 anos (média de 71 anos), e com tempo de participação no CCTI variando entre 1 a 13 anos (média de 7 anos). Onze idosas vivem em territórios de grande urbanização e infraestrutura, e uma reside em bairro ocupado por população de baixa renda. Sobre os critérios de inclusão para participação na pesquisa, adotou-se: (a) ter 60 anos ou mais; (b) ter participado das atividades e frequentado o CCTI escolhido para a pesquisa antes da pandemia; (c) estar acompanhando as atividades online promovidas pelos CCTIs durante a pandemia; e (d) ter disponibilidade para fazer a entrevista por meio de ligação telefônica. O critério de exclusão utilizado foi apresentar comprometimento na fala e na audição, uma vez que a entrevista foi feita por meio telefônico.
Em se tratando das relações e composição familiares das idosas, cinco moram sozinhas e sete moram com algum familiar, todas têm filhos e quatro citam ter netos. Duas idosas são viúvas e uma divorciada. As idosas foram identificadas por nomes fictícios, em respeito às questões do sigilo, e pela idade. São elas: Margarida, 61 anos; Melissa, 70 anos; Amarílis, 65 anos; Jasmim, 80 anos; Magnólia, 67 anos; Íris, 81 anos; Hortênsia, 82 anos; Malva, 77 anos; Violeta, 70 anos; Acácia, 66 anos; Dália, 66 anos; e Rosa, 68 anos.
Instrumento e Procedimentos de Coleta dos Dados
Tendo em vista o momento de pandemia de Covid-19 e respeitando as medidas de distanciamento social, a coleta de dados foi realizada a partir de entrevistas por meio de ligações telefônicas, que foram gravadas e transcritas na íntegra. A divulgação do convite para participação ocorreu por meio de autorização e mediação da coordenação do CCTI, por meio de contato telefônico e mensagens no WhatsApp às idosas. O CCTI disponibilizou uma lista com 33 contatos, com potenciais participantes para o estudo; porém, apenas 12 atenderam aos critérios estabelecidos e se disponibilizaram a participar da pesquisa. Considerando o critério de saturação dos dados da TFD, esta amostra se mostrou suficiente ao estudo.
A coleta foi realizada pela primeira autora deste trabalho, no período de 18 de novembro de 2020 a 18 de dezembro de 2020. Todas as participantes receberam e leram o Termo de Conscientemente Livre e Esclarecido e declararam anuência à participação na pesquisa por meio verbal, e não receberam nenhum tipo de recompensa. As entrevistas tiveram duração entre 20 e 60 minutos.
No que se refere ao instrumento utilizado para a coleta dos dados, este foi composto por um roteiro de entrevista semiestruturado, contendo os seguintes núcleos de informações: caracterização geral de participação no CCTI e dados sociodemográficos (nome, idade, bairro onde mora, tempo de participação no CCTI e se já frequentou outro serviço); e aspectos da rotina e do dia a dia; vivências cotidianas no contexto da pandemia de Covid-19; significados e vivência da velhice; práticas de qualidade de vida; e participação no CCTI. Dados específicos de caracterização das participantes não foram apresentados por questão de sigilo, a fim de evitar a sua identificação.
Análise dos Dados
Orientada pela Teoria Fundamentada nos Dados (Glaser & Strauss, 1967), o processo de análise dos dados ocorreu por meio de quatro fases, a saber: (i) codificação aberta, na qual foi realizada a transcrição dos áudios, codificação linha por linha do conteúdo textual e criação de categorias; (ii) codificação axial por meio da junção das categorias da codificação aberta a partir de ideias centrais e definição das propriedades de cada categoria; (iii) codificação focalizada, em que houve a identificação e interligação entre macrocategorias, bem como a definição das propriedades das macrocategorias; e, por fim, (iv) codificação teórica, na qual foi procedido o estabelecimento de relações e hierarquias entre as categorias, a identificação da categoria central e a integração e delimitação de uma teoria interpretativa sobre os dados encontrados. O processo de codificação e análise integrada dos resultados permitiu a organização do conjunto de categorias encontradas em torno de uma categoria central, que representou o processo social de base, sintetizando o conceito que diz respeito às ações dos atores sociais em relação ao tema em estudo na presente pesquisa.
Resultados
As informações coletadas sobre aspectos das histórias de vida das idosas permitem compreender de forma mais aprofundada como estas formam e compartilham conhecimentos, imagens e práticas acerca da velhice e da qualidade de vida. Deste modo, os dados sobre a rotina das idosas demonstram que as participantes compartilham informações sobre espaços que frequentam no dia a dia, além de demonstrarem grande circulação por lugares próximos ao território em que vivem e forte interação nos grupos de amizade: “A gente ia lanchar naquela padaria ali perto” (Jasmim, 80 anos); “Eu vou com as amigas no café” (Malva, 77 anos); “Tem a turma da praia, [...] a maioria é do centro de convivência” (Amarílis, 65 anos).
No tempo livre, alegam que não gostam de ficar paradas, e que têm a vida ativa: “Eu sempre tive muito ativa, eu praticamente vinha em casa só pra dormir” (Margarida, 61 anos); “Eu sempre fui muito ativa, sempre tive muita disposição” (Violeta, 70 anos); “Tô no pique mesmo, fazendo tudo!” (Melissa, 70 anos). Nove idosas alegaram ser aposentadas e três ainda realizam atividades que geram renda, além de realizarem atividades voluntárias, como aponta Rosa (68 anos): “Eu fazia voluntariado na ACACCI”; e Magnólia (67 anos): “Eu faço um trabalho voluntariado no asilo”. No que se refere à saúde, nove idosas mencionaram ter algum problema na saúde, e as 12 participantes tiveram a saúde mental afetada com a pandemia de Covid-19: “Pra mim a questão emocional mudou muito, né? A física também. A qualidade de vida nesse período de pandemia não é cem por cento” (Jasmim, 80 anos).
A partir da análise das narrativas das participantes, foi possível apreender seis categorias principais (Figura 1), quais sejam: (i) experiências pessoais, em que foi possível identificar temas que abordam marcos importantes na vida das idosas (como perdas e aposentadoria), além de questões sobre características próprias, trabalho e finanças, crenças, saúde e atividades que realizam no dia a dia; (ii) contexto socioterritorial, relativo às interações sociais que estabeleceram ao longo da vida e à relação das idosas com o território em que vivem; (iii) contexto temporal, em que estão presentes conteúdos sobre pandemia de Covid-19, que gerou impactos na vida das idosas, e, consequentemente, em suas vivências da velhice e da qualidade de vida; (iv) CCTI, cujas narrativas abordaram temas como atividades realizadas, dimensão sócio-afetiva e psicológica, questões técnicas e satisfação das idosas em relação ao serviço; (v) velhice, relacionada ao que as idosas pensam sobre a velhice e ao uso do tempo disponível nesta etapa da vida; e (vi) qualidade de vida, que esteve associada à vida ativa, referindo-se aos aspectos de bem estar físico, mental e social.
As categorias temáticas geradas por meio da codificação demonstram elementos essenciais para a construção e o compartilhamento de representações sociais de velhice.
A partir da codificação temática, foi identificado que a velhice se configura como categoria central, e está dividida em duas subcategorias: (i) uso do tempo, a qual se relaciona com o modo como as idosas ocupam o tempo na velhice; e (ii) velhice, que se relaciona ao que consideram ser a velhice, e quais questões estão relacionadas a ela (Figura 2).
Diante dos conteúdos presentes na categoria central velhice, é possível estabelecer dois polos que demonstram as nuances relacionadas à construção das representações sociais deste objeto social e às antinomias presentes no processo. Na elaboração da velhice, tem-se a apreensão do conteúdo deste tema, pelas idosas do estudo, elaborada a partir do ser velho e ser idoso, como apresentado na Figura 2.
O esquema demonstra que as representações sociais acerca da velhice, entre as idosas são marcadas por afetos positivos e negativos. Em se tratando da subcategoria uso do tempo, tem-se como ponto negativo no polo ser velho a ociosidade, ou seja, o indivíduo não tem muitos afazeres e fica em casa à toa, porém é possível perceber que, ainda nesse polo, há um ponto positivo, relacionado à menor pressão social para que esses indivíduos sejam produtivos, assumindo que quem é velho não é produtivo. No polo ser idoso, tem-se como ponto positivo a ocupação, valorizada socialmente, e, deste modo, idoso é aquele que ocupa o tempo ocioso com atividades. Porém, essa ocupação se torna negativa por ocorrer em excesso, posto que haveria grande pressão para que os indivíduos fossem produtivos o tempo todo.
Na subcategoria velhice, as características relacionadas ao ser velho são associadas a uma “velhice ruim”, marcada pelo envelhecimento, pelos limites físicos e cognitivos da idade, abandono, solidão, bem como pela dependência. Constrói-se, então, uma imagem do velho que é debilitado, inativo e desamparado. Em contrapartida, cria-se a ideia do ser idoso, que está relacionado ao que é considerado como qualidade de vida para as idosas, configurando-se enquanto uma “velhice boa”. Assim, esses idosos possuem a vida ativa, realizam atividades, a manutenção de relações sociais, do bem estar psicológico, além de serem independentes.
A partir das polaridades identificadas para representar a velhice, foi possível observar uma busca, por parte das idosas, em se enquadrar no status de idoso, assim como demonstrado por Íris (81 anos): “Não é que eu tenho medo da velhice não, é que eu não me sinto velha, me sinto idosa”; e se afastar da categoria velho, como demonstra Margarida (61 anos): “Você não vai ser aquela velhinha que se aposentou e ficou num cantinho fazendo crochê”. Diante desse desejo, a qualidade de vida se mostra como fator predominante para inserção do indivíduo no status idoso (como mostrado na Figura 1).
Deste modo, para as idosas, ter qualidade de vida se relaciona às práticas de cuidado com: (a) o bem estar psicológico, realizando atividades que as façam felizes, como aquelas promovidas pelo CCTI, e expressando emoções; (b) o bem estar físico, realizando uma alimentação saudável e praticando exercícios físicos; (c) o bem estar financeiro, recebendo a aposentadoria e/ou realizando atividades para garantir renda extra; e (d) bem estar social, mantendo contato, conversando, saindo com familiares e amigos. Assim, as idosas buscam o cuidado com o bem estar integral e tentam manter a vida ativa, incluindo atividades que gostam no cotidiano.
O processo de criação de dois polos que configuram o que é a categoria velhice (ser velho e ser idoso), para as idosas, e como ela deve ser vivenciada, além da relação com as práticas de qualidade de vida, são possibilitadas mediante contexto no qual as mesmas estiveram inseridas durante toda a vida, presentes nas categorias “experiências pessoais”, “contexto socioterritorial”, “contexto temporal” e “CCTI” (ver Figura 1). As experiências pessoais somadas ao contexto socioterritorial fornecem aparatos para que as idosas concebam a velhice e a relação com a qualidade de vida de acordo com as possibilidades de acesso a serviços de saúde e de assistência, as atividades realizadas e experiências pessoais, sociais e profissionais que tiveram ao longo da vida. Suas histórias e suas produções pessoais e sociais acerca da velhice permitem que se insiram no status idosas, assim como é explicitado por Hortênsia (82 anos): “Tanto que hoje eu estou com 82 anos, em fevereiro eu faço 83, mas eu sempre fui uma pessoa muito ativa”.
Considerando o momento de pandemia, este contexto temporal tem gerado impactos na velhice e na qualidade de vida das idosas, como aponta Dália (66 anos): “Então, vamos dizer que nessa pandemia, eu não estou com uma excelente qualidade de vida. E acredito que muita gente que diz que está, está mentindo”. Tal contexto acarretou mudanças e adaptações na rotina para a manutenção das atividades, impactos nas relações sociais, necessidade de obtenção de informações seguras sobre a pandemia, e manutenção dos cuidados à saúde física, mental e social. Estas mudanças se mostraram como estratégias para manutenção do status idoso, e, consequente evitação de se enquadrarem no status velho.
A participação no CCTI também se mostrou evidente na construção de novas concepções acerca de velhice e do que é ser idoso. As relações sociais estabelecidas no serviço, a possibilidade de convivência e de participação em discussões sobre as questões técnicas e políticas do CCTI, a realização de atividades que visam a manutenção das funções motoras e cognitivas, e de bem estar psicológico, social e físico, fazem com que estas idosas se aproximem daquilo que consideram importante para a qualidade de vida e para o que é ser idoso, vide o que foi explicitado por Violeta (70 anos): “Sem aquele tempo de convivência ali, eu acho que os idosos iriam envelhecer. Ele não deixa a gente envelhecer”. É importante ressaltar, ainda nesta categoria, as adaptações realizadas na pandemia para que as idosas continuassem tendo acesso ao serviço de forma remota, por meio de oficinas on-line, o que também colabora para a manutenção do status idoso no momento de pandemia.
Discussão
Tendo em vista o processo de envelhecimento populacional e as tentativas da sociedade em buscar alternativas para repensar a velhice, foi possível observar, a partir dos resultados, que o campo das representações sociais de velhice para as idosas também é marcado pela tentativa de atualização dos saberes pré-existentes, por meio de processos de ancoragem (Jodelet 1989/2015; Moscovici, 2003/2015). As representações sociais antes construídas, marcadas por estereótipos negativos como ócio, dependência e limitações físicas, passam a gerar estranhamento, frente à valorização social da juventude e da produtividade (Brito et al., 2017; Debert, 1997; Gurgel et al., 2018; Minó & Mello, 2021).
Com avanços em estudos que buscam rever as perdas e valorizar os ganhos no processo de envelhecimento (Neri, 2006; Schneider & Irigaray, 2008), as políticas públicas trazem novos pontos de ancoragem ao que historicamente tem sido concebido por velhice, redefinindo esses conceitos (Debert, 1997; Gurgel, et al., 2018), posto que a dimensão histórica atua como importante fator no processo de atualização das representações sociais (Villas Bôas, 2014). Assim, as idosas passam a integrar estas novidades de valorização da vida ativa, e da manutenção de funções cognitivas, motoras e do bem estar (psicológico, social e físico), atribuindo novos sentidos ao objeto social velhice e buscando enraizar estes novos sentidos aos esquemas já conhecidos sobre a velhice (marcada pela ideia do ócio, pelos limites físicos e cognitivos, pela solidão e pela dependência) (Jodelet, 1984).
Considerando os elementos associados ao objeto social velhice que não são mais familiares às idosas, ocorre uma perturbação no vocabulário e nas noções de repertórios usuais (Jodelet, 1989/2015; Moscovici, 2003/2015). Deste modo, por meio do processo de ancoragem, uma dupla forma de representar a velhice é criada pelas idosas: o velho e o idoso (Figura 2), em função da necessidade de reformular e ancorar novas ideias a essa categoria, para torna-la familiar e consistente com o que é demandado e praticado socialmente na esfera de referência do grupo (Jodelet, 1989/2015; Moscovici, 2003/2015). Esta tentativa de reformulação da velhice pode também ser observada no processo de criação social do termo “terceira idade” pela sociedade francesa na década de 1970, que teve como objetivo estabelecer uma nova imagem aos idosos, que não fosse sinônimo de decadência ou doença, mas de um tempo privilegiado para atividades de lazer (Debert, 1997).
A partir do momento que são criadas estas duas formas de velhice (ser velho e ser idoso), pelas idosas, elas passam a classificar e a dar nome àqueles que passam pela velhice, enquadrando-os em um dos dois parâmetros, sendo um permitido e valorizado pelo grupo, e o outro não (Moscovici, 1961/2012). Isso pode ser observado pelo desejo de não parecer velho, marcado nas últimas décadas (Aguiar et al., 2017; Castro et al., 2016).
Diante dos processos de classificação dos diferentes modos de velhice, as características que marcavam o velho, que eram incômodas e enigmáticas e que perturbavam a ordem social, abrem espaço para a construção de imagens menos perturbadoras, criando diferentes nomes para a velhice (Brito et al., 2017; Ferreira et al., 2010). A produção de categorias funciona como forma de instrumentalizar os saberes e práticas acerca do objeto velhice (Jodelet, 1984, 1989/2015). Assim, no processo de classificação, cada antinomia e cada ponto de diferenciação são formados detalhadamente e resultam da observação, compartilhamento e vivência de práticas do dia a dia (Jodelet, 1989/2015). As representações se formam e são atualizadas, portanto, a partir das temporalidades e da historicidade (Villas Bôas, 2014), que abarcam as experiências e vivências de cada grupo e do contexto ao qual estão inseridos (González, 2013; Jodelet, 1989/2001; Justo et al., 2014), o que explica a influência das experiências pessoais, do contexto socioterritorial, temporal e da inserção no CCTI na elaboração dos significados sobre ser idoso e ter qualidade de vida (Figura 1).
Os indivíduos que envelhecem e não se adequam aos aspectos referentes à juventude e à produtividade, e, consequentemente, a esta nova formulação de viver a velhice, muitas vezes, são responsabilizados (Wottrich, 2011), podendo ocorrer como consequência sua marginalização ou o preconceito relativo à idade (Biasus et al., 2011). As concepções de vida ativa e qualidade de vida apoiam-se na ideia do indivíduo com acesso a serviços e a determinadas condições de vida, além de dispor de força de vontade para não cair nas armadilhas da velhice (Azevedo et al., 2022; Brito et al., 2017, Siqueira et al., 2023). Deste modo, essas classificações podem definir o status do indivíduo perante o grupo e também o status do grupo perante os indivíduos, ocorrendo movimentos de reformulações das representações sociais (Biasus et al., 2011; Jodelet, 1989/2015).
A relação entre velhice e práticas de qualidade de vida, portanto, apresenta-se como critério de diferenciação entre ser idoso e ser velho, fato demostrado também no estudo de Ferreira (2010) entre velho e idoso ativo. Para as idosas do presente estudo, as práticas de qualidade de vida e a velhice considerada positiva se relacionam à manutenção do bem estar físico, mental, social, financeiro e da vida ativa, com foco na ocupação do tempo, e no “não envelhecer”, assim como também mostram Minó e Mello (2021) e Rozendo et al. (2022).
Na formulação e compartilhamento dessas representações sociais (Moscovici, 1961/2012), as idosas se apropriam dos conhecimentos científicos e de senso comum obtidos acerca da importância das práticas de vida saudável e ativa para a velhice, reformulando e atualizando estes conhecimentos ao seu contexto. Esse conjunto de conhecimentos, imagens e raciocínios formam uma teia de informações, que se cruzam e se confundem, caracterizando dissonâncias marcadas por elementos afetivos que podem guiar as práticas e fortalecer estas representações sociais (Bonomo et al., 2020; Jodelet, 1989/2001, 1989/2015).
Deste modo, a participação no CCTI se mostra fundamental para a formulação e compartilhamento de representações e práticas sociais, uma vez que permite às idosas experiências que não são possíveis a quem não participa. Os estudos de Derhun et al. (2019), Gomes et al. (2022), Moura e Veras (2017) e Scolari et al. (2020) demonstram que o espaço colabora com informações e práticas acerca do processo de envelhecimento, contribuindo para aprendizagem, promoção de saúde e envelhecimento ativo, o que fornece elementos que compõem as representações de velhice pelas idosas, além de possibilitar práticas que aproximam os indivíduos da qualidade de vida.
A realização das atividades on-line no CCTI se mostrou de grande importância para o bem estar das idosas e para o enfretamento do isolamento social. O momento de pandemia de Covid-19 tem trazido marcas ao processo de reelaboração das representações sociais da velhice, como a aproximação com o risco de adoecimento, a impossibilidade de contato social presencial com os pares e familiares e de frequentar atividades presenciais no CCTI ou em locais que costumavam ir, de modo que o medo do se “tornar velho” e se aproximar das perdas decorrentes da velhice se tornaram latentes. A temporalidade atua sobre o processo de ancoragem impulsionando a dinâmica de construção de significados (Villas Bôas, 2014), também com a elaboração de novos nomes ao idoso, que agora é pertencente ao chamado grupo de risco. Este idoso, na pandemia, ganha saliência social de outra ordem, e os medos acerca da morte e do adoecimento físico e mental, bem como do retorno ao velho se mostram presentes no cotidiano destes indivíduos e de seus familiares (Sepúlveda-Loyola et al., 2020). Se antes essas idosas se esforçavam para manter suas vidas ativas, essa pressão aumentou ainda mais quando se viram impossibilitadas de realizar suas atividades de rotina fora de casa.
Conforme aponta Dourado (2020), a pandemia traz riscos à luta para derrubar visões da velhice que retiram os idosos da vida pública, em que o perigo do retorno da imagem do velho improdutivo e descartável se torna socialmente eminente. As conquistas das idosas, portanto, de uma vida ativa e da identidade de idoso, garantida por meio de práticas e hábitos que marcam a rotina, se veem ameaçadas (Oliveira et al., 2020). Diante disso, elas se veem pressionadas a reelaborar a rotina, para garantir a permanência na categoria idosa. A determinação de que idosos são frágeis e que precisam ser protegidos no momento de pandemia sustenta importantes discursos e práticas de cuidado. Contudo, em muitos momentos, o manejo desse lugar de cuidado na esfera social sofreu reformulações por meio da associação a estereótipos e imagens de que a velhice seria uma fase de perdas e de custos aos cofres públicos (Dourado, 2020), dimensão que precisa ser debatida e enfrentada.
Considerações Finais
O presente estudo investigou o processo de construção do objeto social velhice por idosas frequentadoras de um CCTI de Vitória-ES e as práticas de qualidade de vida nesse contexto. A partir da abordagem sociogenética das representações sociais, foi possível apreender os processos de ancoragem para atualização e instrumentalização das representações sociais de velhice entre as idosas, no contexto da pandemia de Covid-19.
O ponto principal da construção, reformulação e compartilhamento de imagens e práticas sociais acerca da velhice e da qualidade de vida parece estar circunscrito na tentativa de negação daquilo que é considerado pertencente à categoria ser velho (marcada por estereótipos negativos) e a aproximação de uma velhice que se ancora na temporalidade presente (de valorização da produtividade e da juventude), estabelecendo uma nova categoria, ser idoso. Aspectos que marcam a história de vida das idosas e os contextos aos quais estão inseridas, bem como a participação dos CCTIs, se mostraram influentes para este processo.
Tais resultados se mostram importantes pois, diante do contexto de envelhecimento populacional, são relevantes estudos que considerem e promovam reflexões acerca das condições do idoso na sociedade e nas políticas públicas, pelos próprios idosos e por profissionais que trabalham com os mesmos, de modo a contribuir para interpretações da velhice como uma etapa que requer dignidade e qualidade de vida. Salienta-se, ainda, a importância de políticas públicas para garantia de direitos e promoção de qualidade de vida aos indivíduos que envelhecem.
Sugere-se, assim, estudos que analisem as relações entre os SCFV e os diferentes processos de envelhecimento, considerando a diversidade de contextos socioterritoriais. Além disso, são importantes, também, estudos que visem compreender o papel da Psicologia nestes espaços e na promoção de qualidade de vida no envelhecimento e na vivência da velhice.