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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.18 no.17 São Paulo dez. 2010

 

ARTIGO

 

Psicomotricidade: uma visão pessoal

 

 

Vitor da Fonseca*

Universidade Técnica de Lisboa

 

 

A Psicomotricidade como ciência, é entendida como o campo transdisciplinar que estuda e investiga as relações e as influências recíprocas e sistémicas, entre o psiquismo e o corpo, e, entre o psiquismo e a motricidade, emergentes da personalidade total, singular e evolutiva que caracteriza o ser humano, nas suas múltiplas e complexas manifestações biopsicossociais, afectivo-emocionais e psicosóciocognitivas.

Neste parâmetro de enquadramento conceptual, a motricidade é entendida como o conjunto de expressões corporais, gestuais e motoras, não verbais e não simbólicas, de índole tónico-emocional, postural, somatognósica, ecognósica e práxica, que sustentam e suportam as manifestações do psiquismo.

No âmbito da matriz teórica da psicomotricidade, o psiquismo é entendido, concebido e compreendido como sendo composto pelo funcionamento mental total, isto é, pelas sensações, percepções, emoções, fantasmas, representações, projecções e condutas relacionais e sociais. Cabem nesta concepção dinâmica, corporalizada e actuante do psiquismo, todos os processos cognitivos que integram, processam, planificam, regulam e executam a motricidade, como uma resposta adaptativa intencional e inteligível exclusiva da espécie humana.

A psicomotricidade, estudada em pressupostos e paradigmas claramente diferenciados da motricidade animal, é portanto compreendida como suporte corpóreo das funções mentais, donde emana a identidade singular e plural do indivíduo, nos inúmeros aspectos da sua evolução complexa e única, isto é, do seu desenvolvimento, da sua socialização e da sua aprendizagem.

Como sistema conceptual, a psicomotricdade, na nossa visão pessoal, deve estudada e investigada numa arquitectura com três componentes mutuamente interligados: o multicomponencial, o multiexperiencial e o multicontextual.

Multicomponencial, porque procura integrar de forma coerente e coibida os contributos e domínios das Ciências Biológicas, Humanas e Sociais, que abrangem secâncias transdisciplinares biopsicossociais que integram paradigmas da ecologia, da antropologia, da fenomenologia, da biosemiótica, da psicossomática, da psicologia, da psicofisiologia, da psicopatologia, da psicologia cognitiva, da psicanálise, da psicopedagogia, da neurociência, da neurologia, da neuropsiquiatria, da neuropsicologia, da neuropatologia, da defectologia, da cibernética e da epistemologia.

Multiexperiencial, uma vez que procura estudar e pesquisar a implicação da psicomotricidade no processo do desenvolvimento e desdesenvolvimento humano, desde o recém-nascido ao sénior, desde o indivíduo inexperiente ao experiente, desde o indivíduo normal ao indivíduo portador de deficiências, dificuldades e ou desvantagens, etc., englobando o espectro total da vinculação, da experiência e da vivência humanas.

Multicontextual, na medida em que visa projectar o nível de aplicação do seu conhecimento, das suas capacidades e competências de intervenção profissional nos vários contextos onde se integra e observa a actividade humana, desde a família às creches, desde a educação pré-escolar à escola primária e secundária, desde o hospital aos centros de lazer e animação cultural e desportiva, desde os locais de trabalho aos lares de séniores, ou seja, o âmbito da inclusão total do indivíduo na comunidade em geral.

O enquadramento científico deverá partir igualmente duma concepção multifacetada da psicomotricidade e da corporeidade humanas, visando a sua caracterização: filogenética, sociogenética, ontogenética, disontogenética e retrogenética, não só contextualizada, mas aprofundada, nas suas necessidades biopsicossociais transcendentes, descrevendo o funcionamento do corpo e da motricidade, assim como das suas perturbações ou disfunções como um processo interactivo e evolutivo numa perspectiva biocultural e ecológica coerente e integrada.

A mesma matriz científica encerra igualmente uma concepção de prevenção, educação, reeducação, terapia e reabilitação total, em cujos campos se deve integrar a psicomotricidade nas suas várias facetas interventivas no sistemas de saúde, de educação e de segurança social ou de bem estar, consubstanciando-a como instrumento privilegiado para além doutros. A psicomotricidade, que estuda as condições predisponentes à maximização, optimização e modificabilidade máximas do potencial de adaptabilidade psicomotora do indivíduo, normal, excepcional ou diferente, visa a sua acessibilidade aos vários ecossistemas envolventes, quer sejam naturais, arquitectónicos, laborais, tecnológicos, recreacionaios ou culturais.

A nossa visão da psicomotricidade toma em consideração, não só o indivíduo, normal ou portador de deficiências, de dificuldades ou desvantagens, como um todo psicossomático ou psicocorporal único, original e evolutivo, onde as funções da motricidade e da corporalidade são encaradas como indissociáveis das funções afectivas, relacionais, linguísticas e cognitivas, são pers+ectivadas, como a acção, o agir, o gesto, a conduta, a expressão corporal o comportamento, e não meros movimentos, produtos finais, respostas motoras ou exercícios físicos. A psicomotricidade, toma também em consideração, o contexto ecológico, sócio-histórico e cultural onde o indivíduo está inserido, com a finalidade de gerar novos processos de facilitação e de interacção com os vários ecossistemas (micro, meso, exo e macrossistemas) de uma sociedade em mudança acelerada e complexa, no sentido de a eles se adaptar, com ajuda de estratégias específicas de intervenção psicomotora.

A psicomotricidade como ciência apresenta uma arquitectura conceptual e uma estrutura disciplinar actualizada, hierarquizada e sistémica, com um conjunto de paradigmas e pressupostos que se compatibilizam, interligam e coibem em termos conteudísticos, porque emergem duma matriz biocultural, alargada, abrangente e inovadora.

Na psicomotricidade, os paradigmas do comportamento humano, do seu funcionamento ou disfuncionamento, da aprendizagem, da adaptação e da reabilitação, são entendidos como uma relação inteligível e dialéctica, entre a situação externa envolvimental e a acção interna mentalmente elaborada.

A psicomotricidade, valoriza a interdependência e a interconexão das várias unidades disciplinas estruturantes acima referidas, bem como reforça a conexão e a secância das suas várias sub-matrizes, que constituem a sua interdisciplinaridade e multidisciplinaridade fundadora. Os incentivos para uma discussão mediatizada e para uma transferência de conhecimento entre os vários campos científicos e disciplinares, deverão ser planeados, promovidos e implementados de forma inovadora, sistemática e prospectiva.

Desde o dualismo teológico ao cartesiano, que os estudos do corpo, e por inerência lógica, da sua motricidade, continuaram alheios aos estudos do psiquismo, da consciência e da mente, bem como da sua significação neurofuncional. Apesar da civilização grego-latina ter cultivado o corpo harmonioso e sensual, o catolicismo reduziu o corpo a uma essência carnal e perversa, que o cartesianismo escravizou a um instrumento executor dócil e comandado pela razão e pela vontade. Tal racionalismo, que o iluminismo e o positivismo exacerbaram até à máxima expressão, ainda que libertando o corpo flagelado e torturado, transformou-o inexoravelmente num objecto físico e anatómico, sem sensibilidade e sem identidade, que ainda hoje tem os seus defensores performáticos.

A psicomotricidade tem como objectivo nuclear, colocar o corpo e a motricidade no centro do comportamento e da evolução humanas.

Considerar o corpo como o lugar fenomenológico, onde o ser humano constrói e co-constroi a sua identidade e o seu sentimento e conhecimento de si, como fonte de sensações, pulsões, emoções e intenções, é pôr em causa um dualismo de vinte séculos, é também, produzir uma rotura com o cognitivismo puro.

Eis o paradigma principal da psicomotricidade como ciência, donde emana em certa medida, a sua legitimidade profissional e o seu reconhecimento social.

Romper com o paralelismo psico-motor, como se tratassem de duas entidades separadas do ser, é o grande desafio da psicomotricidade. Reconhecer o corpo como um organismo complexo que mobiliza a função tónica e postural para desenvolver a sua afectividade sociabilizada, evocar que a acção é o primado do comportamento adaptativo e do pensamento reflexivo e o meio práxico privilegiado para se apropriar dos objectos, do espaço, do tempo e do símbolo, numa palavra da cultura, é o seu objectivo primacial.

Em síntese, a psicomotricidade parte duma noção holística, total e sistémica do corpo e da motricidade, considerando o ser humano, como possuidor dum organismo complexo, que integra um corpo e um cérebro, como entidades observáveis e compostas de matéria viva, mas também é possuidor duma mente, como entidade inobservável, interna e íntima, donde emergem funções psíquicas que representam dois mundos: o externo, dos outros, dos objectos e dos ecossistemas; e o interno, das sensações, dos sentimentos, das imagens, dos pensamentos e dos movimentos.

A mente humana não pode ser independente do corpo e do cérebro, sendo consequentemente impossível separar o mental do neuronal e o psíquico do motor, o que pressupõe compreender o desenvolvimento pessoal e social dum indivíduo, normal ou portador de disfunções psicomotoras, como o resultado de uma múltipla integração e interacção entre o corpo (periferia) e o cérebro (centro) e os diversos ecossistemas que constituem o contexto sócio-histórico onde ele se insere e integra.

Neste enquadramento conceptual, a motricidade humana passa a ser entendida e estudada, como uma resposta adaptativa, resposta essa que está na origem da sobrevivência, da evolução da espécie e da sua cultura.

Como manifestação global do comportamento, a psicomotricidade, ao contrário da motricidade animal, envolve um processo prospectivo (acto mental antecipatório) e um produto final (acto motor controlado), subentendendo para além de funções de execução motora, funções psíquicas de integração, elaboração, planificação, antecipação, extrapolação, controlo e reaferência.

Nesta perspectiva a matriz teórica da psicomotricidade, como já referimos, encerra paradigmas do corpo e da motricidade que cruzam e integram conteúdos de muitas disciplinas nomeadamente de: antropologia, biosemiótica, filosofia, fenomenologia, neurologia, neuropsiquiatria, neuropsicologia, neuropatologia, defectologia, psicologia, psicopatologia, psicoterapia, psicossomática, psicopedagogia, etc.. As transições dos seus paradigmas e subparadigmas terão de ser devidamente analisadas e investigadas para terem impacto duradouro, sólido e sustentado. Em certa medida, esta missão constitui um dos objectivos mais críticos do desenvolvimento conceptual da psicomotricidade.

O corpo e a motricidade do ser humano, não podem continuar hipotecados e restringidos ao biológico, ao anatómico, ao fisiológico, ao físico, etc., defendendo um paralelismo psico-fisiológico desintegrado e fragmentado, deverá antes privilegiar, uma dimensão afectiva, tónico-relacional, emocional, simbólica, cognitiva e interactiva do seu ser total, na medida em que se deve considerar o ser humano como um sujeito de acção e intenção, i. e., ter em consideração que ele se constitui como um organismo biologicamente complexo mas situado num contexto social e cultural, igualmente complexo.

A acção entendida como conduta humana só se pode compreender nas estruturas neuropsicológicas que a integram, elaboram, regulam e controlam intencionalmente, e não meramente nas estruturas que a executam e realizam, daí a importância da psicomotrcidade como processo de intervenção reeducativa e terapêutica.

Ao reforço da biologia, da anatomia e da fisiologia, que valoriza os segmentos corporais, os componentes musculares e os indicadores de esforço, desenvolvendo técnicas de excelência física e biomecânica, com excessos na análise performática terminal, frequentemente assumida pela defesa da motricidade como instrumento e produto de utilização que é preciso rentabilizar, dominar, controlar, e pôr ao serviço da vontade e da consciência, deve acrescentar-se, matricialmente e conceptualmente, um conceito de psicomotricidade, que combata a concepção unifacetada do corpo como massa muscular sem sensibilidade e proprioceptividade, questionando a concepção da motricidade como actividade física mecanicamente mensurável.

Para servir os paradigmas da psicomotricidade, o corpo humano e a sua motricidade devem ser situados na unidade e totalidade psicossomática do ser, consubstanciando abordagens mais neuropsicológicas, comportamentais e contextuais, buscando nelas e nas disciplinas afins, prolongamentos conteudísticos mais fundamentados e interconexões mais relevantes, não só para a construção do conhecimento da psicomotricidade, como para que se possa formular um entendimento mais sustentado sobre o disfuncionamento do seu funcionamento.

A tentativa de assimilar os conceitos mais actualizados da destreza, da praxia, do controlo do acto motor e da aprendizagem motora, deve em convergência, analisar e aprofundar os paradigmas psicomotores do modelo postural, da integração tónica, proprioceptiva e vestibular, do esquema corporal, da imagem do corpo, do membro fantasma, da anosognósia, do sentimento de si, da função de planificação, de decisão e de execução da acção, do acto ou do gesto.

Só nesta busca de novos pressupostos e paradigmas, a psicomotricidade pode alcançar uma abordagem das funções, subfunções ou disfunções do corpo e da sua motricidade, da sua descoordenação ou desorganização sistémica, reinvindicando a sua função reeducativa, reorganizativa e terapêutica. Efectivamente, só com base nesse objectivo, o curso pode dar lugar a novos investimentos pesquisadores mais significativos sobre o papel dos factores e subfactores emocionais, afectivos, psíquicos, cognitivos, sociais, culturais e ecológicos, que estão na origem da motricidade como expressão da subjectividade e da intencionalidade.

A referência ao esquema corporal e à imagem do corpo, como esquema mental que pode ser "treinado por exercícios", em analogia com o desenvolvimento dos factores de execução da educação física e dos desportos, não absorve a transcendência das suas implicações na psicogénese da consciência humana e nos diversos e múltiplos problemas de personalidade e de comportamento que lhe estão adstritos, levando em consideração os seus fundamentos neurofuncionais e sócio-adaptativos.

Pelo contrário, o conceito de psicomotricidade que interessa às diversas profissões da educação, da reeducação e da reabilitação, tem necessariamente de abordar a significação subjectiva do corpo e da motricidade nas seguintes componentes somatopsíquicas: na cinestesia; na integração sensorial; na proprioceptividade; na tonicidade; na segurança postural; na lateralização; na somatognosia; na ecognosia; na estruturação espácio-temporal; na dominância manual; na especialização hemisférica; na representação iconográfica e gestual da linguagem; na atenção; na interacção; na afiliação; na imitação e identificação intra-pessoal; na inteligência emocional; na inteligência quinestésica e corporal; na proxémica; na organização e elaboração práxica; no processamento da informação; na comunicação não verbal e verbal; na aprendizagem não simbólica e simbólica; nos síndromes psicomotores; na apraxia e na dispráxia; nas apractognosias somato-espaciais; na hipocondria; na anorexia mental; na histeria; na anosognosia; na esquizofrenia; na despersonalização e neurastenia; nas ilusões somáticas; no membro fantasma; etc., etc.

Por isto tudo, a profissão de psicomotricista, distingue-se da dum fisioterapeuta, da dum professor de educação física ou dum treinador desportivo. Os fundamentos, os meios de intervenção e os objetivos da sua acção profissional, são muito diferenciados.

A dimensão da intervenção psicomotora encerra não só parâmetros reabilitacionais como educacionais, reeducacionais e terapêuticos, que a caracterizam preferencialmente, como uma prescrição de inspiração psicoterapêutica e psicossomática, especificamente mediatizada pelo corpo, pela acção, pelo gesto, pelo jogo, pelo conto, pelo ritmo e pela motricidade.

A reconceptualização e resignificação da psicomotricdade, deve partir dum corpo vivido, depois percebido e reconhecido nas suas esferas afectivas, simbólicas e cognitivas, visando a sua integração e orientação no espaço e no tempo e na interacção com os outros, com os objectos e com a natureza.

A intervenção educacional ou reabilitacional mediatizada pela psicomotricidade deve visar a facilitação da tomada de consciência do corpo e das suas diferentes partes no espaço e no tempo, enfocando a descentração e a flexibilidade das relações entre posições e pontos de referência, pondo em destaque as funções psíquicas de atenção, de percepção, de imagem, de memória, de processamento simultâneo e sequencial de dados internos e externos, de simbolização, de expressividade estética e artística, i.e., o seu primado não pode ser terminal, periférico, físico ou puramente motor, tem de ser, por retroacção e por proacção, eminentemente representacional, central e psíquico.

Por conseguinte, a psicomotricidade equaciona, em síntese, uma resolução mental com complexos processos de planificação e antecipação, e não a pura execução de produtos motores finais mensuráveis e observáveis.

Na sua essência neuronal, a psicomotricidade envolve processos mentais privilegiados, internalizados e íntimos de mobilização e reorganização de funções tónicas, emocionais e mentais, ela implica o aperfeiçoando da conduta consciente e a liberdade do acto mental, composto sistemicamente nas seguintes componentes principais: atenção, processamento, planificação e auto-regulação.

No seu conceito matricial, a actividade psíquica não pode ser vista separadamente da actividade motora, mas sim como a sua componente complementar, retratando consequentemente, a sua dialéctica funcional, a sua unidade e totalidade dinâmica, que exactamente consubstanciam o ser humano em acção e em comportamento.

A psicomotricidade não se pode preocupar apenas com a reaprendizagem motora em si, mas sim, com a totalidade do processo de reaprendizagem, de redesenvolvimento, de modificabilidade e de interacção e contextualização das suas funções receptivas (gnósicas), integrativas (representacionais e elaborativas) e expressivas (práxicas).

A importância da integração sistémica dos módulos ou factores psicomotores (tonicidade, equilibração, lateralidade, somatognosia, ecognosia e praxias) é entendida na psicomotricidade como uma componente construtiva da actividade psíquica, daí que a sua desintegração corresponda na criança, no adolescente, no adulto ou no sénior, a inúmeras perturbações psicomotoras, nomeadamente: paratonias, sincinésias, adiadococinésias, ataxias, deslateralizações, assomatognosias, autopoagnosias, agnosias digitais, apraxias, negligências visuoespaciais e visuoconstrutivas, etc., que tendem a restringir o seu potencial habilitativo e de aprendizagem, quando não a sua qualidade de vida.

A prática clínica psicomotora apresenta uma lista substantiva de factos e evidências sobre as estreitas relações que unem as anomalias psíquicas com as motoras, que mais não são do que a expressão de uma solidariedade neurofuncional original e profunda entre as acções e as sensações, entre o movimento e o pensamento.

A noção de défice instrumental de inegável importância para a psicomotricidade, introduzida por insignes pioneiros (Wallon, Piaget, Ajuriaguerra, Spitz, Winnicott, Freud, Reich, Kephart, Cratty, J. Ayres, Frostig, Vygotsky, Luria, Bernstein, etc.) e continuada por investigadores reconhecidos, separa a noção de motricidade da noção de psicomotricidade, conferindo à primeira, a função de equipamento, e à segunda, a de funcionamento auto-organizado desse equipamento, uma espécie de metáfora entre o pianista e o piano.

Efectivamente, no seio do cérebro humano, principalmente no seu lobo frontal, distinguem-se as áreas motoras, que obviamente são inerentes aos outros vertebrados, das áreas frontais pré-motoras e suplementares, únicas e exclusivas da espécie humana, esta distinção neurofuncional, consubstancia de facto, uma diferença radical entre a motricidade animal e a motricidade humana, entre a motricidade e a psicomotricidade.

Os contornos epistemológicos e os pressupostos da psicomotricidade (e das suas subespecialidades), só podem ser encarados à luz duma teoria científica que integre a dimensão multicomplexa e multidiversificada do ser humano.

A psicomotricidade entendida como um processo de facilitação adaptativa que permite a uma Pessoa, com ou sem deficiências ou Necessidades Especiais, atingir utilidade e satisfação na vida, ilustra um conceito muito complexo que não cabe numa explicação motora restrita.

Reeducar no sentido etimológico da palavra, é sinónimo de restaurar, recuperar, readquirir, reinstalar, remediar, reintegrar, etc., o estado de integridade e de invulnerabilidade anterior a zona de desenvolvimento proximal, ou seja, um estado de ajustamento sustentado, funcional e adaptativo do indivíduo, isto é, um ajustamento total o mais útil possível, isto é, não só motor, mas emocional, cognitivo, pessoal, familiar, social, vocacional, económico, ecológico, numa palavra, psicomotor.

Em contrapartida educar é sinónimo de desenvolvimento, de aprendizagem, de compensação, de modificabilidade, de adaptabilidade, etc., de promoção e enriquecimento de atitudes, de habilidades, de competências e de capacidades, trata-se de atingir um estado adaptativo e psicomotor ideal, provavelmente jamais consumado plenamente, por isso serve como objectivo para ser seguido por qualquer indivíduo.

O que é então esse estado adaptativo e psicomotor ideal?

À luz da psicossomática, ou seja, do estudo das relações recíprocas e sistémicas, entre o soma e o psíquico, e mesmo da definição de saúde, de qualidade de vida e de bem estar (preconizados pela Organização Mundial de Saúde), tal estado ideal de comportamento, deve subentender uma relação inteligível, sentida, interiorizada e invariável entre o corpo, o cérebro e os ecossistemas. É por esta razão que a psicomotricidade se legitima cientificamente e profissionalmente.

Os pressupostos da psicomotricidade devem claramente enunciar conceitos de potencialidade e de virtualidade, de modificabilidade, de autopoiesis, de auto-organização, de desenvolvimento de auto-competências, ou seja, devem evidenciar o papel das acções, das interacções, e das retroacções na totalidade da conduta humana, concebendo o ser humano como um ser auto e eco-organizado.

Em termos de futuro, depois de situarmos alguns paradigmas e subparadigmas da psicomotricidade, parece compreensível conceber o corpo e a motricidade como condições da totalidade do ser humano, assumindo a significação do corpo e da motricidade dentro da inspiração do monismo ontológico.

O Corpo e a sua Motricidade como instrumentos de acção e de interacção do ser humano e de transformação do mundo envolvente, e obviamente, como instrumentos de aprendizagem e de comunicação, com os quais estabelecemos contacto e relação com os outros, com os objectos e com os produtos culturais, e com os quais acrescentámos ao mundo natural um mundo civilizacional, devem ser perspectivados como pressupostos preferenciais do objecto legítimo de estudo da psicomotricidade.

O estudo da psicomotricidade, mesmo quando confrontado e integrado com o seu universo conteudístico tão amplo, ambicioso e multifacetado, deve ser apanágio da Universidade. É na universidade, como instituição social e como sede máxima do conhecimento, que a psicomotricidade deve ser ensinada e investigada.

 

Vitor da Fonseca
Oeiras, Fevereiro de 2010

 

 

* Professor Catedrático Agregado da Universidade Técnica de Lisboa e Consultor Psicoeducacional.

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