Introdução
A luta pela implementação dos Direitos Humanos (DH) tem sido uma pauta importante na agenda mundial para a busca de um mundo em que a paz, a justiça social e a igualdade entre os povos, como preconizam vários dos artigos das declarações de DH, sejam imperativos. Essa luta, entretanto, que se estende desde as primeiras declarações de direitos até a atualidade, encontra obstáculos sociais, culturais e históricos que limitam a concretização das aspirações de universalidade presentes nessas declarações (Lafer, 2009; Bobbio, 2004). A psicologia, mais especificamente a psicologia social, tem buscado contribuir para o entendimento do modo pelo qual aspectos psicossociológicos impactam a forma como as pessoas compreendem os DH, das dimensões que organizam essa compreensão, assim como do efeito observado sobre os comportamentos relativos a esses direitos (Camino, Camino, Pereira, & Paz, 2004; Camino, Galvão, Rique, & Camboim, 2006; Doise, 2002, Doise, Staerklé, Clémence, & Savory, 1998; Feitosa, 2009; Fernandes & Camino, 2006; Galvão, 2005, Queiroz, 2011, Queiroz et al., 2013; Queiroz, Camino, García, & Zacaréz, 2015; Santos, 2009; Spini & Doise, 1998; Santos, 2009; Queiroz, 2011; Queiroz et al., 2013). No bojo dos estudos sobre os DH, no âmbito da psicologia social, tem-se buscado estudar o processo de gênese das Representações Sociais (RS) sobre tais direitos. Essa necessidade levou pesquisadores da área a buscar uma articulação entre a psicologia social e a psicologia do desenvolvimento, de modo a explicar, do ponto de vista ontogenético, como se constroem as Representações Sociais sobre os Direitos Humanos (Queiroz, 2015). Com essa finalidade, Queiroz (2015), propondo uma articulação entre a Teoria das Representações Sociais e estudos sobre Socialização Parental, demonstrou, por meio da testagem de um modelo teórico, que a educação oferecida pelos pais desempenha um papel importante na construção das RS sobre os DH. Ainda, outros estudos têm apontado para a influência da socialização parental sobre atitudes relacionadas aos DH (Queiroz, 2015; Queiroz, Camino, Zacarés, & García, 2015). Os estudos realizados nessa perspectiva abordaram os DH como construções históricas que, segundo Bobbio (2001) e Lafer (2009), poderiam ser compreendidas a partir de quatro gerações de direitos correspondentes aos contextos históricos em que surgiram: 1ª Geração - Liberdades; 2ª Geração - Direitos Sociais; 3ª Geração - direitos de grupos minoritários; e 4ª Geração - direitos relativos ao meio ambiente. Os estudos que articulam a Socialização Parental e Direitos Humanos buscaram avaliar como diferentes formas de socializar os filhos influenciavam a disposição desses em lutar pelos princípios dos DH. Nenhum desses estudos, entretanto, buscou analisar como agentes de socialização do contexto familiar de crianças e adolescentes concebiam esses direitos. Nessa direção, foram realizados estudos que buscaram avaliar como mães, consideradas um dos principais agentes de socialização no âmbito familiar, representavam os DH (Queiroz, 2011; Leite et al., 2016). Além disso, os pesquisadores desses últimos estudos passaram a analisar, não o conjunto dos direitos de diferentes gerações, mas direitos específicos da terceira e quarta geração, uma vez que eles estão em processo de consolidação e são controversos na atual conjuntura sociopolítica brasileira. Destacam-se, dentre esses estudos, aqueles relativos aos grupos minoritários dos homossexuais (Silva, 2018; Silva & Queiroz, 2018; Queiroz, Camino, & Silva, 2017; Gomes et al., 2016), das pessoas com deficiência (Lima et al., 2016), e dos presidiários (Lima, Lima, Camino, Queiroz, & Silva, 2017). Além desses estudos referentes à terceira geração de direitos, também foram verificados estudos relativos ao meio ambiente (Alves et al., 2016, Morais, Queiroz, & Medeiros, 2019; Queiroz, Garcia, Garcia, Zacares, & Camino, 2020). A partir de 2017, muitos desses estudos relativos à socialização em direitos humanos passaram a ser desenvolvidos em escolas de cidades de pequeno porte do interior do Brasil (Lima & Queiroz, 2017; Silva & Queiroz, 2018). Essas escolas atendem tanto estudantes da zona urbana como aqueles das zonas rurais próximas, entrelaçados por um fenômeno conhecido como “rurbanidade”. O conceito de rurbanidade, segundo Paiva (2008), resulta da articulação entre as culturas da zona urbana e da zona rural, possibilitada, por exemplo, pelos relacionamentos construídos dentro da escola. Nenhum desses estudos, entretanto, buscou analisar o efeito de variáveis psicossociológicas e de socialização parental sobre o direito de primeira geração relativo à liberdade religiosa. Esse direito tem ganhado crescente notoriedade no cenário político-social brasileiro, uma vez que se têm noticiado com regularidade o efeito da religião sobre as escolhas políticas (Damasceno, 2018) e casos de crescente intolerância religiosa (Mello, 2019). Como exemplo desse último fenômeno, pode-se mencionar o caso dos “Traficantes de Jesus”, que invadiram e depredaram terreiros de religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro. É para diminuir essa lacuna que o presente estudo se propõe a analisar as Representações Sociais que estudantes de escolas públicas e privadas de cidades de pequeno porte do interior do Rio Grande do Norte têm sobre a liberdade religiosa, assim como analisar o efeito da socialização oferecida por pais e mães sobre as representações desses estudantes.
Metodologia
Participantes
Participaram da presente pesquisa 53 estudantes do ensino médio, com idades entre 12 e 19 anos, sendo 43,4 % de escolas públicas e 56,6% de escolas privadas, localizadas no interior do Rio Grande do Norte. Desses, 71,7% se declararam católicos, 13,21% evangélicos, 7,55% disseram pertencer a outras religiões e 7,55% disseram não ter religião.
Instrumentos
Os participantes da pesquisa responderam a uma entrevista semiestruturada na qual constavam questões relativas a dados sociodemográficos e sobre os Direitos Humanos. Dentre essas questões, o presente estudo analisará aquelas concernentes à liberdade religiosa: o que você pensa de as pessoas poderem escolher a religião que quiserem? O que sua mãe fala a esse respeito? E seu pai?
Procedimentos Éticos
A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, parecer nº 2.625.686, observadas todas as recomendações éticas previstas na resolução 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde.
Procedimentos de Coleta de Dados
Após a devida aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da UFRN/FACISA, os pesquisadores entraram em contato com as diretorias das escolas para fazer uma apresentação formal do projeto e discutir as melhores estratégias para a realização da coleta de dados, sem prejuízos pedagógicos aos alunos. Os estudantes foram entrevistados nos horários de intervalo, durante os horários vagos de disciplinas ou durante o horário de disciplinas mais flexíveis na reposição de atividades. Para tanto, foi necessária a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, pelos alunos com mais de 18 anos, ou pelos pais dos alunos com menos de 18 anos (o que foi realizado com antecedência). Além disso, também houve um Termo de Assentimento, assinado por todos os alunos. Essa autorização também se referia à permissão de gravação da entrevista para fins apenas de posterior transcrição do conteúdo.
Procedimentos de Análise de Dados
As entrevistas foram gravadas e transcritas de forma literal. A partir dessas transcrições, as respostas foram organizadas e analisadas por meio da análise de conteúdo proposta por Bardin e pelo software de análise lexical IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires).
Resultados e Discussões
Os resultados e discussões do presente estudo serão apresentados em duas partes. Em primeiro lugar serão apresentados e discutidos os resultados da análise de conteúdo acerca da socialização de pais e mães e a liberdade religiosa. Em seguida, a Classificação Hierárquica Descendente (CDH), obtida por meio do software de análise textual IRAMUTEQ.
No que concerne à socialização de pais e mães, considerando a liberdade religiosa, foram obtidas quatro categorias principais:
Socialização Democrática: nessa categoria foram alocados os discursos atribuídos pelos adolescentes à suas mães e seus pais e que indicavam a importância de respeitar a pluralidade religiosa, destacando a liberdade de escolha de cada pessoa. Como exemplos de discursos dessa categoria tem-se:
Participante 01 - “Mãe é bem ‘de boas’ sobre isso. Ela respeita, conversa com outras pessoas sobre a religião, mas respeita. Meu pai também.” Participante 59 - “Meus pais também são bem abertos para isso, eles sempre dizem que a gente tem que respeitar as escolhas dos outros.”
Socialização Autoritária: essa categoria foi composta por discursos em que os pais, segundo a percepção dos adolescentes, eram restritivos em relação a religiões distintas daquelas adotadas por eles. Os adolescentes reconhecem no discurso dos pais posições discriminatórias e preconceituosas. A seguir, exemplos de discursos que compuseram essa categoria:
Participante 34 - “Eu que brigo com meus pais sobre isso. Tipo, eles não concordam que exista outras religiões, eles criticam, é todo aquele preconceito. Tipo, com o candomblé, espírita, eles colocam como se fossem do demônio e a católica de Deus.”
Participante 35 - “Meus pais têm um discurso bem intolerante. De que as outras (religiões) são seitas, que as outras são erradas e que ensinam as coisas erradas, que a nossa é que é a certa, que existiu primeiro.”
Ausência de Socialização: Nessa categoria foram incluídos os discursos em que os adolescentes relataram que seus pais não falam com eles sobre a questão da liberdade religiosa. Como exemplos dessa categoria tem-se:
Participante 38 - “Meus pais não falam não.”
Participante 20 - “Não, minha mãe é católica e ela não debate muito sobre religião não. Meu pai diz nada, não.”
Não Identificado: Foram incluídos nessa categoria falas que não possibilitaram a identificação do tipo de socialização exercida por pais e mães dos adolescentes estudados, bem como aqueles que não mencionaram este aspecto em suas respostas. Exemplo:
Participante 58 - “Meu pai nunca falou sobre isso de religião, só ri às vezes quando vê essas coisas de adorar vacas.”
A Tabela 1 apresenta os principais tipos de socialização atribuídos pelos adolescentes a seus pais e suas mães, as frequências obtidas para cada um desses tipos de socialização em função do agente socializador (pai ou mãe), o percentual referente a essas frequências e os índices de um teste de qui-quadrado realizado para verificar diferenças estatisticamente significativas entre a socialização proporcionada pelos pais e aquela proporcionada pelas mães em relação à liberdade religiosa.
Tabela 1 Comparação entre os tipos de socialização materna e paterna em relação à liberdade religiosa na percepção dos seus filhos.
Socialização Materna | Socialização Paterna | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Tipos | F0 | % | X2 | F0 | % | X2 | Total | X2 Total |
Democrático | 16 | 30,19 | 0,63 | 23 | 43,40 | 0,63 | 39 | 1,26 |
Autoritário | 16 | 30,19 | 2,27* | 6 | 11,32 | 2,27* | 22 | 4,54 |
Ausente | 15 | 18,30 | 1,93 | 6 | 11,32 | 1,93 | 21 | 3,86 |
Não Identificado | 6 | 11,32 | 3,00* | 18 | 33,96 | 3,00* | 24 | 6,00 |
Total | 53 | 100 | 7,83 | 53 | 100 | 7,83 | 106 | 15,66 |
X2 = 15,66; Gl = 3; p ≤ 0,01.
Legenda: F0 - Frequência observada. % - Porcentagem; X2 - Qui-quadrado; Gl - Graus de liberdade; p - Nível de significância. Fonte: os autores, 2019.
Os resultados do teste do qui-quadrado indicaram que as mães, mais do que os pais, tinham um discurso autoritário em relação à liberdade religiosa, e que os pais, mais do que as mães, foram incluídos na categoria Não Identificado. Acredita-se que esses resultados podem ser explicados pelo fato de as mães serem os principais agentes de socialização de crianças e adolescentes no contexto familiar (Hoffman, 1975), e nesta pesquisa ter sido significativa a ausência de socialização da figura paterna. Além disso, são elas que passam a maior parte do tempo cuidando dos seus filhos (Camino, 2008, 2012). Acredita-se, ainda, que a propagação de ideais discriminatórios dificilmente poderia ser feita a partir de técnicas de socialização mais democráticas, fato este que pode explicar um maior uso de socialização autoritária pelas mães no que toca à liberdade religiosa. Ademais, considera-se que o papel que a mulher desempenha em muitas das religiões cristãs, que historicamente privilegia o papel masculino, é de submissão a regras e menor protagonismo, além da negação das potencialidades femininas (Lenartovicz, 2016; Bonine, 2020). Acredita-se que o fato de os pais, mais do que as mães, constarem na categoria Não Identificado pode indicar a influência ainda acentuada de uma cultura patriarcal e machista que reforça a ideia de que o cuidado e socialização dos filhos é papel da mulher. Os dados obtidos por meio do IRAMUTEQ consideraram as 53 entrevistas realizadas, que foram transformadas em 116 segmentos de texto cujo aproveitamento foi de 72,41%. As categorias obtidas na análise anterior foram transformadas em variáveis intervenientes, de modo a que se pudesse verificar a influência da socialização na composição das classes lexicais (figura 1). O corpus foi organizado em 5 classes lexicais que serão semanticamente caracterizadas a seguir:

Fonte: Os autores, 2019.
Figura 1 Classificação Hierárquica Descendente (CDH) das Representações Sociais sobre a Liberdade Religiosa.
Classe 01 - Respeito parcialmente condicionado pelo monoteísmo (Relação ambivalente com as diferenças religiosas): Esta classe foi formada pelos discursos de adolescentes que destacaram a liberdade de cada pessoa de seguir a religião que desejar. Também foi destacado nesses discursos a crença na existência de um só Deus, o que poderia gerar um estranhamento em relação à necessidade de mais de uma religião para adorar um mesmo Deus. Em menor frequência, alguns discursos apresentaram visão negativa sobre determinadas religiões (principalmente as que são politeístas), associando-as a práticas relacionadas ao demônio ou discordando de suas práticas. Esta classe está ancorada na categoria Socialização Democrática Materna. São exemplos dos discursos que compuseram essa classe:
Participante 45: “eu acho estranho tanta religião para adorar um mesmo Deus, sei lá, se é só um Deus não faz sentido cada um ir para um lado, eu penso assim, mas também não discuto por causa disso, cada um tem sua escolha, é livre para isso”.
Participante 58: “eu penso que existem muitas religiões estranhas que acredita em animal como deus e até onde eu sei Deus é um só, e não é um animal”.
Nessa classe fica evidenciada a relação ambivalente dos participantes com a liberdade religiosa: defendem a livre escolha, entretanto demarcam sua opção por religiões monoteístas. Considerando que muitas das religiões mais populares no Brasil reforçam posicionamentos conservadores, acredita-se que essa ambivalência pode significar um princípio de mudança na direção de um maior respeito à liberdade religiosa. Esse princípio de mudança pode ser fruto da atuação dos movimentos sociais, considerados como importantes para mudanças estruturais importantes na sociedade, principalmente relacionado aos preconceitos (Barros et al., 2019). É importante dar ênfase ao fato de que essa classe está associada a uma socialização materna considerada democrática, pelo fato de, apesar de indicar que se deve respeitar escolhas diferentes, utiliza-se, dentro do mesmo discurso, estigmas às outras religiões (como destacado no exemplo do participante 58). Nessa direção, acredita-se ser um fenômeno semelhante ao observado por Pereira, Torres, Pereira e Falcão (2011), em relação aos homossexuais: o preconceito sutil.
Classe 02 - Respeito e Reconhecimento do aspecto falho das religiões (Escolha por identificação pessoal): Esta classe é constituída por discursos em que os adolescentes destacaram a importância de existir diversas religiões, bem como a liberdade de escolher qual delas seguir. Essa liberdade se justificaria em razão da pluralidade de pensamentos e opiniões que existem na sociedade. Destacam, ainda, que a escolha da religião deve estar pautada na identificação pessoal e no bem-estar psicológico. Além disso, os discursos fazem uma relativização da ‘verdade religiosa’ ressaltando que nenhuma religião é melhor ou mais correta e que é preciso respeitar as escolhas religiosas de todos. Ainda, a partir da análise do IRAMUTEQ, essa classe está ancorada nas seguintes variáveis: ausência de socialização paterna; segundo ano do ensino médio no nível de escolaridade; e no sexo feminino. São exemplos de discursos que caracterizaram esta classe:
Participante 07: “É necessária (a existência de várias religiões) pois nem todo mundo se adequa em uma religião e já que tem várias, as pessoas têm a opinião própria de saber qual vai seguir, não acho errado existirem várias religiões e não me incomodo também”.
Participante 29: “eu acho que toda religião tem sua falha, a gente só vai para que se identifica mais mesmo. Acho que o mais importante é todo mundo se respeitar mesmo.”
Os discursos que compõem essa classe parecem demonstrar uma maior percepção da dimensão política e moral que envolve as escolhas religiosas. Estes aspectos ganham relevo pelo destaque dado à impossibilidade de se avaliar a religiosidade do ponto de vista do certo ou do errado e pela defesa da liberdade de escolha com base na dimensão da subjetividade. O fato de que essa classe, especificamente, esteja relacionada, por sua ancoragem, ao mundo do feminino, pode ser relacionado ao que apontar Lima (2004) de que as mulheres possuem uma maior sensibilidade às diferenças e às demandas do outro, postura que podem influir nas formas de atuação política. Além disso, achados empíricos indicam uma maior empatia das mulheres em relação a temas relacionados aos Direitos Humanos (Camino et al., 2016). Acredita-se que a dimensão de cuidado relacionada às mulheres pode ser ainda mais destacada em contextos de cidades do interior do nordeste e em ambientes rurais, onde os estereótipos de gênero parecem ser ainda mais demarcados que em grandes centros urbanos (Pereira & Lozano, 2012; Barbosa, Smith-Santos, & Pelegrini, 2020).
Classe 03 - Religião como influência da Família (Necessidade de respeito e reconhecimento de conflitos): Esta classe é constituída por adolescentes que defendem a necessidade de que se respeitem as escolhas dentre as várias religiões, ao mesmo tempo em que reconhecem a existência de conflitos entre pessoas de diferentes denominações religiosas. Destacam, ainda, a importância da história de vivências contextuais, sobretudo familiares, na consolidação da identidade religiosa. Entre eles, alguns discordam do fato de a família impor a prática religiosa aos filhos. Não foram verificadas ancoragens sociais para esta classe. A seguir, exemplos de falas que caracterizaram essa classe:
Participante 03: “cada um segue a religião que pensa, segue o seu padrão, que muitas vezes vem da família, mas eu não acho que deve ser o que a família segue”.
Participante 34: “eu concordo, porque cada pessoa é influenciada de uma forma, é como se a sua opção de religião fosse uma consequência de uma influência no passado, tipo isso de seguir uma religião porque é de família. Já eu, brigo com meus pais sobre isso”.
Nessa classe, entra em destaque a dimensão contextual da escolha religiosa. Embora pessoalmente questionem, os estudantes reconhecem o efeito da socialização familiar na construção de uma identidade religiosa e nas posturas que se assumem frente a religiões diversas da sua. Acredita-se que esse achado corrobora pressupostos teóricos que preconizam a influência da socialização parental no desenvolvimento psicológico (Hoffman, 1975), assim como estudos empíricos que indicam um efeito dessa socialização na adesão a princípios dos DH (Queiroz, 2015; Queiroz, Camino, Zacarés, & García, 2015).
Classe 04 - Escolha Religiosa como Direito (Dimensão legal da escolha): Esta classe é composta por discursos que destacam a escolha da religião como um direito, ressaltando o aspecto legal da liberdade de escolher a religião a ser seguida e que gere bem-estar subjetivo. Além disso, os estudantes defendem que não haja conflitos em razão das diferentes afiliações religiosas das pessoas. Esta classe está ancorada em estudantes do terceiro ano do ensino médio. São exemplos de discursos dessa classe:
Participante 13: “Eu acho que é um direito das pessoas, cada um pode escolher sua religião sem problema”.
Participante 43: “Existem as religiões e as pessoas que se sentem confortáveis em segui-la, porque se você confia e gosta daquela crença é direito seu”.
Nesta classe, observa-se que os estudantes recorreram à concepção de direito de escolha como um aspecto assegurado pela legalidade. Acredita-se que esse resultado pode estar relacionado, por exemplo, aos seguintes aspectos: prática pedagógica a que esses estudantes tenham sido expostos; influência da mídia, da família ou dos grupos de pares; e ao período do desenvolvimento que estão vivenciando. Em relação à prática pedagógica, destaca-se a mudança na legislação brasileira quanto ao ensino religioso nas escolas, que buscou evitar o caráter proselitis-ta da disciplina e estimular que, através dela, fosse promovido o respeito à diversidade cultural religiosa no Brasil (Lei nº 9.475, 1997). A respeito da influência da mídia, compreende-se que se trata de um elemento que pode produzir efeitos na formação das representações sociais desses adolescentes, através da legitimação das ideias pela participação em grupos virtuais ou pela forma como esses conteúdos são apresentados nos canais midiáticos (cinema, propagandas de consumo, esporte, entre outros) (Quiroga & Vitalle, 2013). Nesse sentido, destaca-se que cada vez mais a mídia tem abordado a temática da religião de forma mais diversa e descentralizada (Hoover, 2014), o que, por sua vez, pode estar contribuindo para a mudança de perspectiva acerca da religiosidade e estimulando a liberdade religiosa. Ainda, pode justificar-se pelo fato de, por estarem no final da adolescência, os estudantes se orientem moralmente pelo quarto estágio de desenvolvimento moral, proposto por Kohlberg (1992). Esse estágio consiste na consideração das leis e contratos estabelecidos dentro da sociedade para a orientação moral.
Classe 05 - Respeito e aspectos da Escolha Religiosa (O processo de escolha): Os discursos dos estudantes alocados nesta classe parecem enfatizar o processo de escolha religiosa. Esse processo se daria por identificação pessoal ou por uma avaliação das diferentes religiões. Os estudantes destacaram ainda a dimensão de escolha pessoal e o fato de que seguir uma religião não a torna mais correta que as demais. Em menor frequência, os discursos desta classe reconheciam a existência do preconceito religioso e a importância de combatê-lo. Não foram observadas relações com ancoragens sociais analisadas neste estudo. Como exemplos de discursos, têm-se:
Participante 01 - “[...] eu acho que cada um tem a sua, cada um vai para aquela que se identifica mais [...]”
Participante 48 - “Cada um acha que a sua seja a mais correta, mas acho que não deveria existir só uma. Cada religião tem um jeito diferente de propagar as suas leis e cada pessoa se identifica com uma”.
Acredita-se que a ênfase no processo subjetivo de escolha e na importância de combate ao preconceito reforçam nesta classe, assim como na classe 2, o respeito irrestrito à liberdade de escolha religiosa. Julga-se que o conteúdo dessas classes demonstra que, apesar da existência do preconceito, é possível observar uma transformação social na direção de uma convivência mais respeitosa e igualitária entre praticantes de diferentes credos religiosos. Compreende-se que, no atual cenário político social brasileiro, questões relacionadas à liberdade religiosa e ao exercício da psicologia enquanto profissão têm se constituído um desafio que tem tido destaque nos debates e na formação profissional. O entrelaçamento entre crenças religiosas e o exercício profissional esbarra no compromisso da Psicologia com os ideais democráticos e com a necessária laicidade do Estado (Lionço, 2017; Rios, Resadori, Silva, & Vidor, 2017). De acordo com Dias (2019), um dos principais cernes dessa crise está no pensamento conservador propagado por muitas religiões, sobretudo as consideradas evangélicas, sobre fenômenos como a homossexualidade e a transexualidade. Interpretações bíblicas acerca desses fenômenos embasam pensamentos discriminatórios relacionados a homossexuais e transexuais que patologizam essas condições e passam a demandar da psicologia a possibilidade de terapias para tratar supostos “desvios” da sexualidade.
Além de produzir desafios para o exercício da psicologia na atualidade, observa-se que a existência de históricos conflitos entre as diferentes orientações religiosas, principalmente manifestado no preconceito e na discriminação de religiões cristãs contra religiões de matriz africana, demonstra que ainda existem grandes obstáculos para a construção de uma sociedade mais justa e tolerante onde o respeito à pluralidade, às liberdades e aos Direitos Humanos sejam de fato efetivados (Santos, 2019). Assim, essa conjuntura constitui um desafio para a atuação ética da psicologia e seu compromisso com a laicidade do Estado. E, tendo em vista essa relação entre religiosidade e o próprio exercício profissional da psicologia, questiona-se sobre como a laicidade do Estado tem sido representada a partir do direito à liberdade de escolha religiosa.
Considerações Finais
Entende-se que o presente estudo contribuiu com a construção de conhecimentos acerca da liberdade religiosa em um contexto educacional caracterizado pelo fenômeno da rurbanidade. Destaca-se aqui a complexidade que envolve as Representações Sociais da Liberdade Religiosa observada nesse grupo e o predomínio de representações destacando a importância do respeito à livre escolha religiosa. Apenas uma classe demonstrou uma ambivalência nesse sentido e uma dificuldade em lidar com um respeito mais amplo à liberdade religiosa. Ademais, destaca-se a relação paradoxal entre uma socialização democrática e uma visão mais restritiva da liberdade religiosa, observada na primeira classe de resultado. Tal fato parece sinalizar para a importância de estudos mais aprofundados sobre os conteúdos de socialização, de modo a que se compreenda melhor como características de intolerância e de autoritarismo podem aparecer em discursos travestidos de democráticos. Nesse sentido, parece se estar diante de um tipo de socialização pseudodemocrática que aparenta não ter sido ainda relatada em estudos na área da socialização parental. Entre as limitações desse estudo destaca-se o significativo intervalo entre 12 e 19 anos do público estudado, que pode ter impactado nas percepções mais paradoxais observadas. Assim, a divisão em dois intervalos etários e a utilização desses intervalos como variáveis, poderia, a partir da análise realizada pelo software, identificar se existiria ou não impactos nas representações desse público.