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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. v.10 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Vínculos de amor que favorecem a autonomia do desejo

 

Bonds of love that favor the autonomy of desire

 

Vínculos de amor que favorecen la autonomía del deseo

 

 

Maria Emília Sousa Almeida

Centro de Investigação em Psicanálise e Psicossomática do Vale do Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão a respeito do processo pelo qual se articulam o sofrimento psíquico do sujeito na infância, seus vínculos patológicos com seus objetos do desejo, sua ligação com a moral tradicional e sua influência por algumas idéias da cultura pós-moderna. Esses fatores constituem empecilhos à autonomia do desejo, com seu sentido de leis e princípios próprios ao desejo do sujeito. Faz-se uma interlocução entre recortes de situações clínicas – apreendidas pelo método psicanalítico – e a prática discursiva dos sujeitos no cotidiano. São examinadas sob o vértice dos déficits do sistema das representações em representar situações traumáticas e seus efeitos deletérios sobre a autonomia do desejo. Falhas da representabilidade psíquica devidas aos traumas nos vínculos iniciais constituem lacunas do eu. Junto com os ditames da pós-modernidade, distorcem o vínculo amoroso do sujeito com seu desejo e do outro. Conceitos de psicanalistas e sociólogos têm dado ensejo às construções hipotéticas da autora.

Palavras-chave: Desejo, Autonomia, Vínculos, Representações, Afetos.


ABSTRACT

This article aims to think about the process through which the psychic suffering of the being in his childhood, his pathological bonds with his object of desire, his connection with the traditional moral and his influence by some ideas of the post modern culture. Those factors turn themselves into obstacles to the autonomy of the desire, with its sense of the proper laws and principles of the persons’ desire. A connection between parts of clinical situations – learned by the psychoanalytical method – and the discursive practice of the people in their daily lives is made. They are examined through a vertex of the deficits in the representational system to represent traumatic situations and its damaging effects on the autonomy of the desire. Failures in the psychic representation due to the traumas in the initial bonds constitute into blanks of the self. Together with the dictates of post modernity, they distort the loving bond of the person with his desire and the other’s. Concepts of psychoanalysts and sociologists have been giving opportunity to the hypothetical constructions of the author.

Keywords: Desire, Autonomy, Bonds, Representations, Affections.


RESUMEN

Este artículo propone una reflexión sobre la articulación entre el sufrimiento psíquico del sujeto en la infancia, sus vínculos patológicos com sus objetos del deseo, su ligación con la moral tradicional y su influencia por algunas ideas pos-modernas. Esses factores constituen obstáculos a la autonomía del deseo, con su sentido de leys e princípios singulares ao deseo del sujeto. Se hace una interlocución entre recortes de situaciones clínicas – aprendidas por el método psicoanalítico – com la práctica discursiva de los sujetos en el cotidiano. Son examinadas sob el vértice de los déficits del sistema de las representaciones de representar situaciones traumáticas y de sus efectos negativos sobre la autonomía del deseo. Falhas de la representabilidad psíquica asociadas a los traumas en los vínculos iniciales constituyen lacunas del yo. Juntan-se a los dictámenes de la pos-modernidad para produciren distorciones en lo vínculo amoroso del sujeto com su deseo y del otro. Conceptos psicoanalíticos y sociológicos han dado ocasión a las construcciones hipotéticas de la autora.

Palabras clave: Deseo, Autonomia, Vínculos, Representaciones, Afectos.


 

 

Introdução

Este artigo constitui um estudo de revisão teórica baseado em recortes de casos clínicos e em fragmentos de situações extraclínicas. Ambos revelam a adesão patológica dos sujeitos a certos ideais da cultura pós-moderna, a partir de traumas em seus vínculos iniciais. Eles alteram a capacidade representativa de seu sistema das representações. Assim, fazse necessário examinar a complexidade desse fenômeno, à luz das teorias psicanalítica e sociológica. A relevância científica do tema sustenta-se na forte presença dos baluartes da pós-modernidade na construção da subjetividade contemporânea. O objetivo desse estudo é fazer uma revisão teórica sobre o tema vínculos de amor e apresentar algumas reflexões da autora sobre essa questão.

Conceito importante nas diferentes vertentes da psicologia, em especial, na clínica, o vínculo tem sido examinado sob várias lentes que acentuam sua relevância na formação do ser. Bowlby (2002, p. 18) descreve três tipos de vínculos entre mãe e bebê, aos 12 meses de idade. Bebês seguramente apegados à mãe são ativos nas brincadeiras, procuram contato quando afligidos por uma separação breve, são prontamente atendidos e logo se absorvem nas brincadeiras. Bebês ansiosamente apegados à mãe e esquivos evitam-na, especialmente após a segunda separação breve. Bebês ansiosamente apegados à mãe e resistentes oscilam entre a busca e a resistência à proximidade e ao contato com ela. Ele afirma que a dimensão segurança-insegurança nas relações iniciais parece referir-se ao traço da infância, que Erikson (apud Bowlby, 2002) designa confiança básica. Na linha humanista-existencial, Boss (1988, p. 50) fala sobre o valor da relação de confiança entre paciente e terapeuta que ilumina seu caminho. Ela é enfatizada também por Maslow (1982, p. 33).

Em psicanálise, os vínculos normal e patológico são lidos por Pichon-Riviére (2007, p. 8). Numa relação adulta normal, o objeto é diferenciado do sujeito, de modo que ambos tenham uma livre eleição de objeto. De forma indireta, o vínculo aparece na obra de Bion (1994, p. 87) por meio de conceitos como: elo de ligação, função alfa e reverie. Os ataques ao elo de ligação referem-se aos ataques de ódio à percepção da realidade interna e aos órgãos sensoriais responsáveis por ela. A função alfa materna transforma os elementos brutos da percepção e da emoção do bebê em elementos alfa, fundamentais para o pensamento. A reverie refere-se à capacidade materna de digerir os produtos tóxicos projetados pelo filho e devolvê-los de maneira tal que possam ser pensados por ele. Assim, os vínculos intrapsíquicos e interpsíquicos do sujeito com seus objetos originários fundamentam a formação de sua mente e de seu desejo em sua relação com o mundo.

Este trabalho propõe idéias de base psicanalítica sobre os vínculos necessários para a construção da autonomia do desejo. A autonomia remete aos princípios e às leis próprias ao desejo, algo inalienável da singularidade do sujeito e de sua demanda de ser exercido no mundo. O sistema das representações do sujeito tem a função de representar seus impulsos, suas relações de objeto e seus estados mentais ligados ao seu desejo e à sua autonomia, aos seus paradoxos, às suas noções de tempo e espaço etc. São vivências que fundam seu eu em suas relações iniciais. Cabe salientar que o sistema representacional é um termo de Herrmann (2003) associado a vários conceitos de sua obra: superfície das representações, lógica de concepção, lógica do concebido, vórtice, crença, entre outros.

Para tanto, o sistema precisa integrar as representações, os afetos e os significados do sujeito, atinentes às suas experiências com figuras significativas, bem como com circunstâncias de sua vida. Por princípio, esse aparato permite a estabilidade do psiquismo frente às turbulências emocionais. Na vida, ocorrem várias interferências que alteram essa atividade representativa do sistema. São elas os traumas oriundos de uma vivência violenta e de forte intensidade afetiva (FREUD, 2006c, p. 275) ou advindos de formas de relação emocional bastante repetidas (HERRMANN, 2003, p. 151).

A relação primária fornece elementos estruturantes do funcionamento mental do sujeito. As várias representações do vínculo pais-filho estão presentes em seu sistema representacional. Seus vínculos se formam por meio de representações de sua identidade imbricadas às da alteridade. As referências dos pais sobre o filho contêm uma gradação de ampla influência sobre esse filho. Tais cadeias de representações abrangem: ser amado e ser importante para pais amorosos, que o valorizam ou ser não-amado e ser desprezível para pais não amorosos, que o desprezam. Os vínculos basilares do eu com os objetos primários têm como derivação o valor que ele confere aos seus predicados, para satisfazer seu desejo. Dentre outros, o dom da inteligência adquire eficácia – no sentido de garantir força de empreendimento ao desejo do sujeito – se a representação de ser inteligente for legada a ele em seus vínculos iniciais. Outras representações depreciativas projetadas nele – ser estúpido ou ser uma nulidade na vida – demandam muito trabalho analítico, para deixarem de se antagonizar com suas reais potencialidades e talentos.

Praticamente todo trauma vivido pelo sujeito pode alterar o potencial de seu sistema das representações de representá-lo, de elaborar seu sofrimento e de realizar seu desejo no presente. As falhas do processo representativo do sistema favorecem a tenacidade do sofrimento psíquico, que se perpetua para muito além do tempo e do espaço em que efetivamente ocorreu o trauma. Esse trauma é transmitido por meio de sentenças incompletas, de frases com significado obscuro, de afirmações que negam a realidade, de idéias contraditórias e de brincadeiras repetitivas. Permitem que o desejo dos pais seja veiculado para o filho, mediante vários tipos de identificação.

A identificação projetiva é uma relação de objeto agressiva: um ataque anal ao objeto. Introduz nele partes do ego, para apoderar-se de seus conteúdos ou controlá-lo (KLEIN,1982, p. 2). Eiguer (1997, p. 1856) afirma que na identificação atributiva, o pai atribui ao filho uma vivência, um traço, uma representação de seus objetos internos, que ele não pode elaborar em si mesmo. Essa identificação, tão estruturadora quanto desorganizadora, atua na alienação transgeracional. Para Faimberg (2001, p. 82), uma parte cindida e alienada da psique do filho identifica-se com a lógica narcisista dos pais: ”tudo que merece ser amado sou eu, ainda que venha de você, filho; tudo que reconheço como vindo de você, filho, eu odeio; além disso, deposito em você tudo que não aceito em mim”. Devido às suas identificações inconscientes com a história de seus pais, o filho fica marcado por uma fórmula parental alienante: ”o que eu amo é parte do meu eu (o objeto bom sou eu, seu genitor) e o que eu odeio é você (o objeto mau é você, filho)”.

Considerada no plano individual ou supra-individual, a identificação exerce grande influência sobre a formação psíquica do sujeito. Consiste no mecanismo básico que fundamenta o desenvolvimento da autonomia de seu desejo: matrizes e princípios de suaespecificidade. Essa característica de homens e mulheres psiquicamente adultos sofre uma série de distorções em sua constituição. Em adultos ”modernos”, as posições de homem e mulher psiquicamente adultos podem estar reprimidas. Essa repressão se deve à sua identificação com seus pais - traumatizados em seu desejo na infância - que atuam como agentes mantenedores do trauma familiar sobre o desejo do filho. Ser psiquicamente adulto guarda considerável independência do padrão de homem e mulher adultos ”modernos”, preconizados por nossa cultura atual.

 

Revisão e análise com base na teoria e nos construtos teóricos discutidos

Alguns parâmetros iniciais para se pensar a autonomia do desejo e suas vicissitudes põem em relevo certos vínculos equivocados do sujeito com seu desejo. Eles são fornecidos sobejamente pela clínica e por certas situações extraclínicas vigentes na cultura contemporânea. A partir delas, faz-se uma revisão e uma análise teórica sobre os vínculos na pós-modernidade. Para tanto, dialoga-se com elementos da Psicanálise e da Sociologia. Herrmann (1999, p. 26) argumenta a favor de se trabalhar com recortes do mundo psíquico imbricado às condições sociais. Propõe uma clínica extensa, generalizada para as condições concretas vividas pelo homem. Seu mundo psíquico estende-se para o real fabricado por ele. A realidade é a representação do real. Assim, articula-se à identidade: a representação do desejo.

Uma garota sexy e ”antenada” com a modernidade emite uma fala jocosa e divertida. De sua gata de estimação, ela exibe uma carteira de identidade e um kit de beleza importado. Repetidamente, brinca que sua gata precisa muito de um pai. Ao descobrir que um homem - com cabelo loiro e bem mais velho que ela - é importante, tem carrão e dinheiro, fala que ele é o pai perfeito para sua filha-gata, cujo pêlo tem tons dourados. Suas frases repetitivas não fazem qualquer alusão ao seu desejo – de filha – de ter um pai e ao desejo da mulher de ter um homem. A mulher psiquicamente adulta está reprimida, dada sua identificação com as posições traumáticas de mãe e de filha. Quando ela tinha 8 anos, seus pais se separaram e houve uma grande queda no padrão financeiro da família. Seu pai enriqueceu depois da separação, mantendo a nova família num alto padrão de vida. Em contrapartida, sua mãe casou-se com um homem que mantém a casa com dificuldades financeiras consideráveis. Ela reclama da situação da família para a filha e a incita a buscar um homem com dinheiro, pois, com sua beleza e juventude, ela merece melhor destino que o da mãe. Assim, a filha procura um pai bem mais velho e mais rico, que a proteja. Seu namorado anterior tinha 50 anos e um belo carro. Ela sente falta das belas roupas, dos perfumes caros, das viagens pagas por ele e do porta-malas do carrão, no qual viajava com ele. Freud (2006a, p. 48) aborda a relação dos chistes com os impulsos eróticos e hostis inconscientes. A brincadeira aparentemente leve e divertida da garota abre uma brecha para seu mundo mental. Seus temas traumáticos recorrentes envolvem seus impulsos eróticos e hostis.

Certo microempresário passou por altos e baixos em sua vida. Atualmente, é bemsucedido e vive seu apogeu em termos de sucesso profissional e financeiro. Em meio a isso, seu casamento está a soçobrar, de modo mais evidente há dois anos. Após sair comCerto microempresário passou por altos e baixos em sua vida. Atualmente, é bemsucedido e vive seu apogeu em termos de sucesso profissional e financeiro. Em meio a isso, seu casamento está a soçobrar, de modo mais evidente há dois anos. Após sair com incontáveis prostitutas, ele se apaixona por uma moça com metade de sua idade. Ela mora na mesma rua que ele, sua esposa, seus filhos, seus pais e seus vizinhos, que o viram crescer. Aliás, a visão é fator de cega atração em sua vida psíquica. É dirigida à moça, em razão de sua juventude, sua beleza e ao intenso prazer sexual que vive com ela. Essa paixão caudalosa alimenta-se do fato de ele ter ouvido que era especial para ela e que ela já o vinha olhando havia muito tempo. Fundamentalmente, vê, nela, a vida, o amor-próprio, a juventude, o prazer e o sucesso, que não acredita serem seus. Durante sua infância e adolescência, foi visto como mau, terrível, traquinas, irresponsável e destinado a ser um nada na vida. Ele levou incontáveis surras de seu pai, vistas publicamente. No geral, eram injustas e devidas à predisposição paterna de sempre culpá-lo, pela gravidez fora de hora de sua mãe. Seu descrédito - junto aos outros - foi amenizado por uma prima, que sempre acreditou no que ele falava, que segurou seu pai quando este quis lhe bater na frente de todos, razões pelas quais ele teria morrido para ela. Com isso, instala-se – em sua psique – uma figura feminina benfazeja, que traz amor, acolhida e crédito. Assim, ele encontra no olhar especial da moça e no da analista certa estabilidade emocional. Todavia, a racionalidade da garota - que impõe limites à sua paixão destemperada - é vivida como uma perda dilacerante por ele. Quase o põe a perder algo ainda mais valioso: o lugar de pai e marido bem-visto por todos. Recupera sua frágil estabilidade junto à analista, que o acolhe e o ajuda a pensar em e por si mesmo.

No noticiário, um empresário bastante bem-sucedido e rico lida com contrabando em larga escala, tendo suas bases de operação em São Paulo. Mantém seu negócio graças ao pagamento de propinas para policiais e a subornos para altos mandatários de seu país de origem e do Brasil. Quando pequeno, ele foi colocado numa mesa alta pelo pai. Este lhe disse para se jogar, que ele o pegava. Porém, seu pai deixou-o cair, machucar-se, chorar sozinho e arrematou seu feito com a fala: ”Para você subir e vencer na vida, não pode confiar em ninguém, nem mesmo em seu pai”. Essa fórmula paterna trouxe-lhe muito dinheiro, sucesso e fama. Contudo, levou-o à prisão..

Num comercial, uma jovem faz uma apologia ao prazer de mergulhar. Quando o mergulhador ficar sem fôlego, é o momento de emergir. Igualmente, alguns programas sobre viagens e diversão veiculam o apelo pós-moderno ao prazer, baseado no perigo próximo à morte. Essa equação é essencial em alguns esportes radicais e, em suas versões extremas, infiltra-se no uso de drogas, nas orgias em época de aids e nas brincadeiras de roleta-russa com arma de fogo.

Esses fragmentos do mundo psíquico na clínica e em situações do cotidiano ilustram vínculos doentios do sujeito com seus objetos do desejo e certas condições que os favorecem. A clínica evidencia que boa parte dos traumas dos pacientes é transmitida por seus pais. Ao que parece, seus pais também foram herdeiros desses traumas, constituindo, então, uma transmissão em cadeia. Posto isso, cabe pensar a construção da autonomia do desejo.

A autonomia do desejo baseia-se numa relação amorosa segura, estável, constante e de confiança do sujeito com seus objetos primários. A segurança envolvida nessa relação implica que os genitores tenham uma vida psíquica organizada, de modo que a criança possa neles encontrar uma base sólida para lidar com os diferentes conteúdos de sua psique. A estabilidade refere-se a um padrão de relação, no qual os objetos primários cuidam da criança com regularidade e consistência, de modo que ela possa dirigir sua energia psíquica para seu crescimento mental. A constância saudável do cuidado articulase à prevalência de experiências emocionais construtivas e amorosas nessa relação, que minimizem o impacto do ódio dos pais e do filho. A confiança nos objetos primordiais do desejo remete ao crédito dado pela criança a eles, que, por sua vez, são capazes de dar crédito às suas vivências, às suas necessidades e ao seu desejo.

Esse conjunto de fatores fornece as bases para uma organização psíquica consistente na criança, que suaviza os impactos internos e externos que possam vir a atingir seu sistema das representações. Uma organização psíquica consistente constitui uma espécie de background interno que assegura um bem-estar anímico básico, apesar das vivências que desequilibram esse sistema. Assegura que o sujeito mantenha um bom gradiente de amorpróprio, de valor, de autoconfiança e de confiança no bom objeto interno para lidar com essas situações. A idéia de organização leva a se pensar em padrões constantes da relação primária eu-outro com uma base amorosa preponderante. De modo algum, isso remete à ilusão de que os pais sejam capazes de amar seu filho de modo absoluto. Cada sujeito, per se, detém uma constituição psíquica – um potencial neurótico ou psicótico para certo quadro clínico. Este se exacerba ou se abranda segundo as frustrações vividas por ele. Bion (1994, p. 103) considera que a frustração é um fator importante para a constituição do pensamento, da ação adequada à satisfação dos impulsos e da noção de realidade. O diferencial de crescimento psíquico do sujeito decorre de sua capacidade de modificar ou de fugir da frustração.

A complexidade do sistema faz que ele não seja estático em seu funcionamento. Entretanto, pode funcionar segundo a referida organização de base. A ela, opõem-se os padrões relacionais instáveis de cunho amoroso, bem como os padrões constantes de tom intrusivo-agressivo nas relações primárias. Ambos consistem em fatores que desestabilizam o sistema. Nessa desestabilização, sua atividade representativa sobre os conteúdos mentais fica empobrecida. O padrão amoroso instável pode ser proporcionado por uma mãe que ama e procura cuidar bem de seu filho, mas cujo cuidado é interrompido por períodos repetidos de depressão materna. Nessa fase, não tem energia para dar-lhe banho, lavar suas roupas e cuidar de sua alimentação. O padrão intrusivo-agressivo constante deflagra diferentes montantes de ódio na criança, que é propagado por promessas, profeciasmaldições e paradoxos proferidos por suas figuras parentais. A construção dos princípios e das leis singulares do desejo é alterada por todos esses elementos.

As promessas podem ser explícitas ou implícitas, enredando a psique do sujeito. A promessa explícita ocorre quando uma mãe diz para sua filha: ”Quando você se formar, vamos usar esses lençóis novos”. Quando ela se forma, essa promessa não é cumprida, tal como outras. Essa situação é o emblema de um padrão relacional marcado pela restrição do prazer e contenção do desejo. A promessa implícita talvez provoque maior dor, por ter bases relacionais mais sub-reptícias. Um rapaz desempregado quebra seus óculos, dos quais depende sobremaneira. Ao conversar com a família sobre esse problema, a irmã lhe diz: ”Imagine se irmão meu vai ficar sem óculos! Vai lá na ótica, que depois a gente vê”. Passam-se alguns dias e quando ele está bem próximo da ótica, recebe o telefonema da referida irmã: ”Eu não vou pagar coisa alguma pra vagabundo!”. Nas profecias,as diferenças entre o desejo dos pais e do filho levam-nos a pespegar frases como: ”Com esse gênio horrível que você tem, quem é que vai te querer? Só outro monstro como você. Logo, você vai ver: seus filhos ainda vão fazer com você tudo o que cê tá fazendo comigo”. Numa de suas formas mais leves, o paradoxo aparece quando certa mulher está organizando sua própria casa, enquanto sua irmã, que não mora lá, está descansando. Então, a dona da casa diz que está sobrecarregada e que tudo sobra para ela. Quando a outra começa a organizar as coisas da casa à sua maneira, ela diz: ”Pára aí, você não faz nada direito; eu faço muito melhor”. Essas distorções dialógicas atuam no âmbito intrapsíquico individual, perpassado pelo interpsíquico relacional: domínio da psique dos pais e do filho – atravessado pelas gerações da família. Quaisquer desses tipos de comunicação são diferencialmente destrutivos de uma organização psíquica consistente e da autonomia do desejo. A importância afetiva dos pais para a criança faz que essas formas de interação estabeleçam uma seqüência: confiança no bom objeto, traição ao vínculo, consolidação do objeto mau e ruptura do vínculo. Repetida por muitas vezes, essa seqüência gera desespero, desestrutura o eu e descredencia o objeto, mas cria dependência dele. Por fim, solapa a operacionalidade representativa do sistema e a autonomia do desejo desse legatário da rede de desejos de sua família.

Os paradoxos e as profecias-maldições-pragas são pensados por alguns psicanalistas. Racamier (1983, p. 145) define o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas injunções inconciliáveis. Não é possível obedecer a uma sem desobedecer à outra. A criança, cuja percepção é desqualificada, deve crer em seus sentidos ou em seu objeto, confiar em seu eu ou no amor do objeto. Ela não discerne seu ódio: o paradoxo gera confusão da mente e dos sentimentos. Eiguer (1997, p. 1857) considera que, nos traumas de natureza transgeracional, o ”mal-dito” evoca a maldição proferida por um avô, a palavra extraviada, mal-dita e sem estatuto de palavra, que atua nos bastidores da psique do indivíduo.

A construção da autonomia do desejo – e suas intercorrências – encontra no nicho da família sua fonte substancial e inequívoca de geração. Numa família que favorece a autonomia do desejo e a organização psíquica do filho, o desejo parental com relação ao filho é transmitido por meio de falas claras, que comunicam seu respeito a ele como ser desejante. Esse tipo de relação se constrói segundo uma organização hierárquica, em que os pais assumem com responsabilidade os encargos que a paternidade lhes confere. Fundamentalmente, seu desejo deve ser conhecido e exercitado por eles, como pessoas com vida própria e independente de sua posição como pais. Por contraste, uma pseudo-estabilidade psíquica é estabelecida quando os pais são agressivos com a criança e tão-somente outra figura externa ao núcleo familiar - mas pouco constante em sua dinâmica - a investe com amor, confiança e credibilidade. Essa pseudo-estabilidade vivida pelo sujeito pode lhe propiciar boa adaptação à realidade e sucesso profissional apreciável, mas o insucesso é garantido no reino das emoções.

Para pensar a autonomia e sua relação com os temas do desejo inserem-se novas idéias. Herrmann (2003, p. 104) diz que nossa vida psíquica apresenta zonas de concentração emocional que permitem recortar temas fundamentais que se repetem. Cada um desses temas comporta um campo do desejo: regras de organização não encontradas em outros setores da vida psíquica.

Os padrões relacionais de uma família produzem diferentes gradientes de déficit na autonomia do desejo e atingem a força, a fluidez e a espontaneidade do desejo do sujeito. O desejo é composto por temas: sucesso-fracasso, perdas-ganhos, sexualidade-agressividade. Certo tema do desejo da criança muito reprimido - em sua infância - torna-se um tema proibido em termos de realização. No mais das vezes, vários temas proibidos do desejo estabelecem um vínculo entre si. É o caso do entrelaçamento entre sucesso, dinheiro, sexo, poder, realização amorosa e realização financeira. A interdição aos temas do desejo – entrelaçados entre si – produz um diferencial de resistência contra sua atualização no presente. Assim, se o sucesso da criança foi violentamente reprimido por seus pais, ele se torna bastante persecutório quando o adulto o conquista. Nesse caso, quando ele alcança a condição de ser bem-sucedido, pode ser avassalado pelo imperativo de lidar desastradamente com outros temas proibidos de seu desejo, vinculados ao primeiro.

No paciente apaixonado pela garota jovem e bela, o auge de seu sucesso financeiro deflagrou um desejo indômito de assumir sua paixão por ela, diante daqueles que o viram crescer. Nessa ocasião, ele ainda não tinha a mínima certeza de que ela o desejava com a mesma intensidade e a mesma convicção que ele. Ademais, ele queria abandonar seus polpudos negócios - arduamente conquistados -, deixá-los para a esposa e começar tudo de novo, num lugar distante. Noutra paciente, a oportunidade de fazer conferências em público era extremamente apavorante. Ante a possibilidade de realizar seu desejo de ser uma conferencista brilhante e de ser uma mulher com autonomia - inclusive sexual -, ela se martirizava. Irrompia, nela, a fantasia de falar despudoramente de sexo, de tirar a roupa e de exibir-se, de modo a chocar a todos. Ao dar um escândalo, descontrolarse e envergonhar-se, destruiria a si e a seus pais. Destruir-se seria a condição para ela libertar-se da violência a que sua sexualidade fora submetida pelos pais. Para ambos os pacientes, parecia impossível tomar a si seu desejo e realizá-lo de forma integrada, vigorosa, equilibrada e autônoma, na atualidade e na realidade do mundo das relações. A violência do ódio deflagrado neles, pelas críticas e surras parentais, atingira os vínculos de amor entre certos temas de seu desejo. A possibilidade de realizar essas facetas proibidas do desejo era vivida como uma explosão destrutiva, do plano interno para o externo. A pretensa explosão era um índice da violenta fragmentação de seu eu em sua relação com seu desejo.

O intrincado processo de origem familiar que engendra transtornos na autonomia do desejo e nos vínculos amorosos entre seus temas imbrica-se aos ditames da pós-modernidade. Japiassu (2000, p. 10) diz que estamos na Idade Contemporânea, do ponto de vista histórico; ainda que textos de História e Sociologia façam menção à pós-modernidade, como sendo o período atual.

A pós-modernidade se pauta na fragmentação das relações, nas sensações, na troca da ética pela estética, no imediatismo, no excesso-escassez, no hedonismo, no narcisismo. Seus excessos e insuficiências não resolvem os problemas humanos. A perda de diretrizes pessoais-sociais e a falta de projetos ideológico-políticos geram desorientação, desamparo, impotência e perda de élan vital. Como as relações giram ao redor do consumo, a publicidade é seu guia-mor. Psicanalistas e sociólogos têm se debruçado sobre essas questões e sobre sua influência na constituição da subjetividade em nossa cultura pós-moderna.

Baudrillard (1991, p. 9) investiga o pós-modernismo, caracterizado pela força da imagem na construção da identidade e pelo consumismo, motor do capitalismo. Com muita informação e pouco sentido, a identidade se desfaz ante o poder das imagens. O simulacro é a imagem que inventa a realidade. Como a verdade é substituída por simulacros, perde-se o sentido das coisas. Da implosão da distinção entre mundo real e da simulação-imagem, sobra um sujeito descentrado. Debord (1997, p. 6) aponta a alienação do espectador em proveito do objeto como resultado da atividade inconsciente. Quanto mais contempla, menos vê, e quanto mais ele se reconhece nas imagens dominantes de necessidades, menos compreende sua existência e seu desejo. Ele retoma Feuerbach, que considera que nosso tempo prefere a imagem à coisa, a representação à realidade, a aparência ao ser. Ao decrescer a verdade, a ilusão aumenta e o sagrado cresce aos olhos do espectador. Assim, o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.

Bauman (2001, p. 12) afirma que a ruptura do conjunto de dizeres e saberes da vida social nos anos 1980 alterou a possibilidade de construir projetos de vida, de família e de sociedade. A busca da verdade e da perfeição deixou de ser um valor quase universal. Impera a descrença no homem, a ausência de utopias, o descrédito na política, o fim dos mistérios e da transcendência, a apatia generalizada e a liquefação das relações humanas e sociais. A aceleração das mudanças e a superabundância de informações gera desperdício dos viveres e conviveres. O tempo líquido significa que tudo flui, mas nele se esvaem os mais caros sonhos humanos (BAUMAN, 2006, p. 3). Costa (2005, p. 80) admoesta que a vida humana entra em liquidação ao se aceitarem os desígnios da pós-modernidade. Com a suspensão da transcendência moral privada familiar, religiosa, política, o homem fica suscetível à dominação das classes que detêm o controle da publicidade e do mercado. A perda do secular centro de gravidade valorativa - religião, política e moral - fez que essas agências fossem destronadas pela ciência, pela economia e pela indústria do espetáculo. A sólida pirâmide do valor da vida se liquefez nos pequenos, provisórios e errantes sentidos designados pela cultura do espetáculo e por padrões econômicos e científicos.

Vetores da propalada pós-modernidade, certos meios de comunicação primam pelo intuito de vender idéias e produtos. Eles têm proposto um pattern geral sobre os objetos de desejo dos sujeitos: sucesso, riqueza e largueza de vida - obtidos mediante modos indolores e fórmulas rápidas: fama instantânea por meio da exposição dos corpos, da vida íntima, escândalos e fofoca. Propõem, ainda, liberdade e prazer por meio de festas, viagens, muito sexo, competições esportivas, bem como shows com grandes astros e multidões. Estampam a proposta pós-moderna de se viver intensamente: ”É melhor viver dez anos a mil que mil anos a dez” e ”no limits”. Sua influência propicia que os vínculos entre idéias e afetos do sujeito no tocante aos seus objetos do desejo - passados e atuais, saudáveis e patológicos - confundam sua vida psíquica. Apregoados pela cultura pós-moderna, aqueles objetos do desejo comportam uma ordem de valores e prioridades alienantes da autonomia do desejo. Nessa alienação, perde-se a posse de si.

Lazer, liberdade, riqueza, luxo, sucesso, largueza de vida, sexo, beleza, fama e poder - a quintessência do prazer - são os valores exaltados por essa parcela da mídia. Em seu cotidiano miúdo, os receptores dessas mensagens filtram os valores subjacentes a elas, segundo seu nível de autonomia do desejo. Por sua vez, os objetos de desejo das pessoas influenciam o modus operandi dessa mídia. Nesse intercâmbio, institui-se um fenômeno psicossocial interessante. Gaps na autonomia do desejo do sujeito permitem seu engate aos objetos de desejo midiáticos. Esse processo reflete-se no discurso das pessoas, por meio de uma faixa de normalidade considerada aceitável no exercício das formas de prazer defendidas pela pós-modernidade.

O ”ficar” consiste em um padrão de comportamento amoroso-sexual instituído pelos adolescentes que visa ao prazer e à liberdade. Ele ocorre em meio às festas, que propõem alegria, prazer, bebida e agrupamentos sociais em lugares bombados. O ”ficar” facilita o trânsito sexual entre jovens e adultos de ambos os sexos. Por um lado, esse padrão pós-moderno de liberdade abala a antiga estrutura de dominação homem e mulher. Por outro, ainda veicula o poder do homem sobre a mulher. Assim, o número de parceiros para homens e mulheres - por festa e nas festas ao longo do ano - é alvo de minuciosa atenção e de avaliação crítica posterior. Ficar com vários parceiros proporciona prazeres, junto com os enquadramentos na ordem social. Dentre eles, há as fofocas sobre o casal recém-formado que passou a namorar sério e as alcunhas de piranha e corno atribuídas a eles. Elas se juntam aos ciúmes, brigas e vigilância entre o casal. De uma garota, se ouve: ”...uma mulher pode até ir atrás do homem que quiser, mas depois vai ser chamada de piranha e galinha”. Certo garoto - agressivo, rebelde e festeiro - gosta de ”... piranhas, galinhas, gatas, vacas, cadelas e éguas”. Uma garota queixosa diz que: ”Eu fico com vários caras; depois, eles nem olham na minha cara”.

A despeito da mudança de valores que comporta esse pretenso padrão de liberdade sexual, ficar é regra imposta a ambos os sexos, fundamentando a avaliação e a aceitação social da pessoa. O grupo jovem não aceita que um garoto não queira ficar com várias garotas. A primeira idéia é de que ele é homossexual ou que tem problemas: discurso normativo arcaico imposto à liberdade de ser. Se o garoto namorar firme, o peso da crítica social fica bem menor. Se uma mulher – ligada a certo credo religioso – disser que não fica, há certa aceitação de seu posicionamento. Nesse caso, não lhe é atribuída obrigatoriamente a pecha de ser homossexual ou enrustida. No discurso jovem sobre o ficar, ressaltam-se o poder e o controle do homem sobre a mulher, à qual ele infringiria algo mau ou desagradável ao transar com ela. Igualmente forte, nele, é a idéia de animalidade: categoria subumana no exercício supostamente livre e moderno da sexualidade. Vigora, ainda, a vigilância pública do ”ficar” e forte agressividade dos participantes-espectadores, ao exercê-la. Vigiar associa-se ao paradoxo inerente do ”ficar”, visto haver conflitos entre a regra cultural racionalmente aceita, as sub-regras não explicitadas e o caldeirão das paixões humanas. Segundo a regra geral e por definição, entende-se que qualquer um pode ficar com qualquer um. Na prática, um grupo de amigas acaba se dividindo quando uma delas fica com o cara com que uma outra ficava eventualmente. Ele não assumia a relação com a primeira, e a segunda queria namorá-lo, mas não podia dizer isso para ele, tampouco para as amigas, e ”... a coisa tava embaçando”. A suposta traidora aproveitou a brecha dada pela regra, mas não avaliou suas sub-regras: não se pode ficar com o ”ficante” da amiga, sendo preciso um tempo para a relação engrenar ou terminar.

Facetas do intercâmbio do eu desejante com certos veículos de comunicação, a quantificação e a qualificação da normalidade ajuízam o valor do jovem em seu cotidiano miúdo. A quantificação da norma aparece na delimitação do número das ”ficadas” – mais ou menos aceitáveis – e em sua avaliação por seus pares – baseada nesse número e no uso de drogas. A qualificação da regra desvela-se em sua subdivisão e diferenciação, quando se trata de questões de gênero quanto à sexualidade (homem pode, mulher não) e de drogas mais limpas e mais sujas. Vigora entre jovens a prescrição das normas a serem seguidas no ”ficar”: maior tamanho, altura e idade do homem com relação à mulher; raça, classe socioeconômica e beleza aproximadas entre eles e a heterossexualidade do casal. Fofocas, piadas e gracejos encarregam-se de confirmar a regra e suas incontáveis exceções. Perpetuando uma forma de vínculo entre homem e mulher, esses valores culturais são transmitidos por meio de ditos jocosos e agressivos no cotidiano. Com força destrutiva, visam a diminuir o outro, mas deflagram nele reações do mesmo nível do agressor. Em certo bar da moda, um casal bebe uma cerveja. A diferença de altura e tamanho entre eles dá margem a falas do tipo: ”Como cê faz pra pegar uma mulher desse tamanho?” Ele retruca: ”Vou te dar o telefone de outras garotas e cê pergunta pra elas, cara”. Noutra ocasião, em que ele está dirigindo, uma garota o pára e diz: ”Com tanta mulher por aí, como cê foi namorar uma gigante?” Nas inúmeras desavenças entre jovens, são recriminados e amplificados – em seu adversário – aspectos do eu do sujeito que fogem à regra: o uso de drogas, a variedade de parceiros etc. Um jovem deixa seu rival desesperado sob a ameaça de contar aos pais as transgressões que todos cometem. Outras situações do mundo midiático e cotidiano integram-se a esse panorama contraditório da pós-modernidade: se um presidente bebe, é acusado de governar o país com regras soltas, por um jornalista de outro país; uma juíza que bebe numa festa, em sua casa, choca os demais e é digna de crítica e, por fim, um pai de família que trabalha muito, gosta de reunir os amigos e beber nos finais de semana choca a família da esposa, que o critica em surdina.

As rupturas nos vínculos saudáveis com o desejo na relação homem-mulher se articulam a determinadas idéias e valores de nossa cultura atual, como as noções de ser moderno ou careta. No paciente apaixonado pela bela jovem, há uma cisão entre o homem cafajeste, maldito e moderno - que experimenta intenso prazer sexual com ela - e o marido e pai bonzinho, resignado e careta - que vive uma rotina marido-mulher monótona e exasperante. Sua esposa - honesta, fiel e confiável - não é desejável sexualmente. Seu prazer com a namorada dá margem às suspeitas: ”Se ela sai comigo, que sou casado, não sairá com outros?” Olhar vigilante a ser redobrado parece ser a solução momentânea para suas suspeitas. Devido a essa cisão em sua vida mental, prazer, aventura, perigo e punição se confrontam com desprazer, monotonia, segurança e rotina. Enreda-se sob a conjunção do modelo social do macho bem-sucedido - cujas conquistas sexuais de belas mulheres são propagandeadas para outros machos - com a trama familiar neurótica - que traumatizou o menino. Esvai-se o homem consciente e autônomo no exercício de seu desejo.

Outra forma de prazer proposto pela pós-modernidade, o uso de drogas está submetido a uma gradação de valor e perigo atribuídos aos seus usuários, sendo ainda pior para mulheres. Um grupo de amigos - que usa maconha - reúne-se à noite, passa na casa de um deles que está dormindo e grita: ”Maconheiro, maconheiro”. Será a punição pública e clamorosa pelo fato de ele estar se desligando do grupo de companheiros de embalo? Entre os jovens, a cocaína é considerada uma droga pior que a maconha, mas faz seu usuário ser representado numa faixa que vai desde ”ser o cara” até ”ser um marginal” e ”ser um desclassificado”. Em momentos de intimidade e de união, amigos e amigas confidenciam o uso anterior de drogas. Todavia, nas discórdias, a intimidade compartilhada será estilhaçada pela quebra do sigilo e da confiança. Duas ex-amigas brigam numa festa: ”Sua droguinha fugida de casa, sua piranha que não perdoa nem namorado da amiga”. A segunda retruca: ”Vou contar pros seus pais sua onda com drogas”.

Bastante incentivado pelos meios de comunicação, o consumo de cerveja é marca de quem curte a vida, é moderno e descolado. Contudo, cair bêbado merece especial destaque nas conversas pós-festa, em que a fofoca é a regra. Quando uma mulher cai bêbada, sua desclassificação em valor pessoal é maior que a do homem e catalogada para possível uso numa desavença. Uma ou duas vezes em que ela cai adquire a marca da generalização e da previsibilidade: há de ocorrer novamente. Numa briga entre garotas, uma refere que a outra vivia roxa: ”por cair nas festas depois de tanto beber ou apanhar do namorado ou talvez fosse psicossomático. Nem cheguei a bater nela, a ponto de ela ficar roxa”.

Corridas para o êxtase, os rachas, os cavalos-de-pau e as aventuras em locais de difícil acesso consistem em musts pós-modernos. Conflagram uma turma a se reunir em torno de um jovem com poder de liderança. Inconsciente de sua responsabilidade, ele busca romper os padrões adultos que limitam seu eu. Agressivo e iconoclasta, ele é rejeitado por grande parte da sala, mas influencia alguns rapazes. Estimula-os a matarem aula, a irem para rachas, bares e danceterias, em noitadas de embalo. Algumas garotas se encantam com ele. É ele ”o cara” que divulga gostar de ”cadelas, galinhas, éguas...”. A pretensa liberdade de ser e a afronta ao outro o guiam. As regras da instituição em que estuda são quebradas por ele de forma evidente: cola sem disfarces, paga para fazerem seus trabalhos e, de posse da presença em aula, sai de imediato. Chamado pela coordenadora, ele espera ser repreendido por ela e revidar. Contudo, ela lhe pergunta o que ele está fazendo com sua inteligência e seu poder de liderança. Ele surpreende-se e, depois de hesitar, diz: ”Antes, eu tava levando a turma pro mal, agora eu tô levando pro bem”. A cisão maniqueísta entre bem e mal diametralmente opostos subverte sua suposta liberdade. Falta-lhe refletir com profundidade sobre si, o outro e o mundo, abolindo os clichês culturais.

Outra faceta desses fenômenos psicossociais atuais, a reverenciada conjunção entre poder, sexo e dinheiro produz a moderna gíria-metáfora do render. Certo grupo de rapazes está trabalhando num hotel de luxo, na alta estação de uma cidade badalada. A chegada de uma mulher bonita e desacompanhada, numa Ferrari vermelha, deixa-os alvoroçados. Resolvem ficar na deles, pois ”... não ia render”. A posição social avantajada da moça faz que se sintam inferiores e sem ”poder de fogo”. Ademais, a provável negativa da moça - ao avanço de qualquer um deles - provocaria uma zombaria geral dos demais. Ridicularizar o outro mantém a contenção geral. Noutra situação, uma mulher casada de classe média sai com dois homens mais velhos e o marido sabe dessas ”saídas”. Com uma colega, ela comenta que só precisa passear de carro com eles pela cidade e que nada demais acontece. Essa colega diz: ”... se o marido sabe, deve render para ele”.

Sob a égide de distorção de vínculos saudáveis com o desejo, vicejam numa parte da mídia programas sensacionalistas e apelativos que rondam em torno de temas repetidos: sexo, relações sórdidas e doentias dele decorrentes e as últimas novidades da moda e da ciência quanto a ele; a fama com suas delícias e mazelas; o sucesso financeiro de certas celebridades atuais, antes muito pobres; o mundo dos ricos e os objetos do desejo a que eles têm acesso e que os outros almejam; a beleza e a forma física perfeita, bem como os caminhos para obtê-las; a violência que se articula ao poder, ao medo e à agressividade. Para esse amplo fenômeno contribuem a curiosidade e a apetência dos espectadores pelo lado superficial e inclusive perverso das relações humanas. Parece originar-se do anseio - a meio caminho entre a idealização e a perseguição - de ser superior como seus ídolos e estar acima dos demais, de gozar a vida, de lesar o outro e vê-lo sofrer. Enfim, visa se aproximar do gozo excluído pela moral tradicional, mas que faz parte de seu eu. Klein (1982, p. 33) considera que a idealização liga-se à divisão do objeto primário, em objeto bom e mau. Os aspectos bons do seio são exagerados, como proteção contra o seio perseguidor.

Emersa das exceções à regra, uma paradoxal moralidade circunstancial para circunstantes está profundamente arraigada em quase todos, inclusive em seus mais contumazes detratores. Essa moralidade - que viceja às avessas - passa por ideais de perfeição, restritivos da autonomia do desejo. Em geral, a moral mostra-se dicotômica, bivalente e excludente, favorecendo o enquadre dos comportamentos humanos em duas categorias estanques: bem e mal, certo e errado. A categoria do bem inclui as representações de ser estudioso, trabalhador, honesto, econômico e ter uma relação duradoura, entre outras. A categoria do mal compreende o oposto dessas representações, incluindo os prazeres ”descomedidos” como: gasto supérfluo do dinheiro, lazer e lucro escusos em detrimento do estudo e trabalho, sexo promíscuo, abuso de drogas e de bebida.

O desejo humano - em sua variedade e multiplicidade de apetências - não se enquadra nessa visão constritiva sobre ele. Cientes do melting pot dos impulsos e desejos humanos, certos meios de comunicação apresentam objetos que despertam seu appetite appeal. Segundo a moral tradicional, os desejos despertados fazem parte da categoria do mal. A cisão instaurada no sujeito faz com que essa moral bivalente – bem/mal; certo/errado – se transforme numa moral univalente. Esta confere valor ao comportamento ”perfeito” e execra sua mínima ruptura: abomina um único desvio do ideal. Com isso, ela se torna uma moral panvalente - paradoxalmente pontual e extensa. O desvio momentâneo e parcial do padrão é alçado à valência máxima e totalitária: gera horror. Uma única ocasião de ruptura do protótipo estático de perfeição – roubo de gravatas numa loja – pode ser capaz de destruir uma imagem profissional, até então ilibada e arduamente construída. Em síntese, a moral tradicional prima pelo desconhecimento da complexidade do desejo.

Esses arranjos de moralidade privilegiam o erro, sua correção ou sua punição. Impossibilitam o reconhecimento das circunstâncias inconscientes de produção dos atos e de suas conseqüências e, assim, impedem uma visão ampla sobre si e o outro. Confirmam a lógica subjacente à quebra de padrões morais dúbios por adultos e jovens. Em parte, o adolescente se identifica com a lógica parental e a moral - indispostas contra a ruptura das regras - e, em parte, com a lógica do grupo de adolescentes e da parcela da mídia que propõe rompê-la. Por vezes, essa identificação apresenta-se como um jogo de espelhos contrapostos, que o confundem. Para ter o amor de seus pais e ser aceito - por eles e pela sociedade - deve obedecer suas regras, mesmo que as odeie e que abdique de uma porção fundamental de seu desejo. Ao abdicar dessa parte de seu desejo, odeia a autoridade que estabelece as regras e decide quebrá-las ou não. Nesse ponto, não sabe se o faz por si ou para dar o contra na autoridade. Sob o jugo da cisão, ele debate-se entre a lógica tradicional e a pós-moderna, e seus pares padecerão com ele dessa confusão. A parte cindida de seu eu é - por identificação projetiva - criticada e controlada em outro jovem. Da parte dos adultos e pais, vários mecanismos de defesa primitivos são postos em ação: cisão, negação da realidade e identificação projetiva. Assim, os pais quase não vêem as camisinhas carregadas pela filha, bem como os olhos avermelhados e o nariz do filho que passou a fungar de uns tempos para cá. Características e atos dos filhos são negados por eles. Quando essa defesa for contundida pela realidade, resta-lhes atribuir a culpa do desvio do filho aos amigos. Para os pais do garoto desviante, uma namorada torna-se especial se colocá-lo nos trilhos do bem e se for a guardiã dos valores morais ameaçados. A cisão divide o sujeito e seu objeto em seus aspectos bons e maus, idealizados e persecutórios. A negação da realidade defende o self de seus vários perseguidores internos (KLEIN, 1982, p. 19).

Analogamente ao seio como objeto idealizado, certos objetos do desejo na cultura atual - poder, luxo, sexo, beleza, sucesso, dinheiro e fama - ilustram a primazia da idealização. A persecutoriedade neles inscrita impede que o sujeito os projete em sua real dimensão: objetos de seu desejo e não senhores dele. As conseqüências amargas desse tratamento dos objetos do desejo não tardam a chegar. O circo da fama e do sucesso - ocos de talento - tende a ser efêmero.

Para a barbárie no tratamento do desejo, contribuem outros mecanismos de defesa - como o triunfo maníaco e a depreciação do objeto - que levam à banalização dos vínculos patológicos. A relação cindida do sujeito com seus pares - que passam à categoria de objetos utilitários - articula a sua depreciação e seu triunfo maníaco sobre eles. É o caso da vantagem obtida pelo ”esperto” que ludibria o ”otário-estúpido”, da granjeada pelo ”protetor” que explora o ”protegido-explorado” e daquela auferida pelo homem na relação sexual com a mulher, entre outras. Conforme proposto por Klein (1982, p. 38), o triunfo sobre o objeto faz parte das forças destrutivas do sujeito, que impede a recriação de seu mundo interno. A depreciação do objeto defende o sujeito contra sua inveja dele. Essas defesas primitivas do sujeito com relação ao seu objeto atingem seu ego, culminam no abafamento de suas emoções e mantêm seu sofrimento. O concern para com o outro se liga à maturidade e à saúde psíquica do ser (WINNICOTT,1983, p. 4).

Fio condutor daqueles valores, o prazer imediato, superficial e extático é endeusado na cultura vigente. Esse prazer se inscreve no registro de um evento finito no tempo, numa sucessão de outros episódios também finitos e circunstanciais, que devem gerar êxtase sem reflexão. Nessa clave, a emoção almejada precisa gerar altos níveis de adrenalina. A fórmula ”adrenalina, prazer e perigo próximo da morte” faz com que a saúde geral do sujeito, os jogos sociais resultantes da moralidade ambivalente e as armadilhas neuróticas do eu sejam desconsiderados. O imediatismo do prazer - alçado a um nível extático - impõe farta dose de inconsciência sobre a importância do cuidado efetivo e recíproco nos vínculos entre sujeitos. Favorece a selvageria, que, não raras vezes, se revela regra revalidada pela pós-modernidade.

 

Considerações finais

Parte dos valores da pós-modernidade arremessa o homem a se distanciar de vínculos baseados em valores e em afetos sutis e delicados, congruentes com seu desejo mais recôndito. O respeito a si e ao outro - seres diferenciados entre si - e outros critérios para um bom vínculo - intimidade, sigilo e confiabilidade - passam despercebidos sob a lógica pós-moderna. Suas distorções - quanto às relações humanas - induzem ao descuido no tocante à essência do vínculo saudável e integrado com o próprio desejo, singular e distinto do outro.

Diferenciada da moralidade tradicional e da parcela cultural que a subverte, a ética objetiva pensar os fundamentos e os princípios da moralidade. Na clínica psicanalítica, a ética é fundamental e as regras que norteiam a relação paciente-analista devem ser respeitadas. A ética do desejo - que vigora nessa clínica - consiste em resgatar os princípios e os valores essenciais ao paciente, independentemente de suas distorções familiares e culturais. Lida com os traumas do sujeito e sua mistura aos objetos de desejo pós-modernos. Esses objetos funcionam como altos-relevos de suas defesas contra o sofrimento. Do ponto de vista ético, faz se necessário ao adulto pensar o fascínio exercido pelo convite pós-moderno ao desfrute de seus artifícios. Sucesso, ganhos e prestígio social podem defendê-lo contra vivências infantis de fracasso, perdas e insignificância pessoal. Seu trauma continua indelével nos estratos inconscientes do sistema das representações, a despeito de o sujeito ”curtir” fartamente as várias ofertas de prazer pós-modernas.

O trabalho analítico com essas questões demanda rever a relação do ser com seus traumas, a partir dos quais ele pode ter associado prazer, aventura, desafio, perigo, punição e sofrimento. Seus traumas fizeram que sua vitalidade ficasse obstruída nos desvãos de seu passado. Em conseqüência, o império do desejo pontual e do prazer instantâneo - a ser atendidos incontinênti - visa ao êxtase dos sentidos: fontes putativas de vitalidade e bálsamos contra a dor. Faz parte da sedução cultural de se obter prazer em alta escala, com ganhos amplos e poucos vínculos afetivos, o que tende a lançar o homem às perdas maiores. Proposta pós- moderna de felicidade, o prazer imediato e supremo confronta-se com a experiência do prazer prolongado na linha de tempo: elemento de um contexto global do eu que dialoga com suas conseqüências. O cuidado com o desejo - em seus fundamentos essenciais - tende a transcender a urgência de satisfação pela via do prazer pontual e irrefletido. Essa premência do prazer tende a escamotear a força destrutiva dos temas do desejo carregados de sofrimento a partir das relações familiares. O prazer alicerçado numa temporalidade extensa depende do desinvestimento de ódio nos temas proibidos do desejo, de modo que o interdito de pô-los em ato no mundo seja elaborado. O prazer ligado à autonomia do desejo afirma o valor de se saborear o momento presente, lidar com a consciência de sua volatilidade e inserir o prazer e o desejo nessa temporalidade extensa. Esse prazer advindo de se integrar as facetas conflitantes do desejo exige lidar com amor e ódio, ganhos e perdas, sucesso e fracasso. Por vezes, reposiciona o prazer num nível sutil e menos apoteótico. Logo, o sucesso na atualização do desejo no aqui e agora se deve ao resgate de sua pujança ou força de realização, advindas da elaboração de seus mananciais infantis traumáticos.

As distorções da autonomia do desejo e dos vínculos saudáveis revelam a falência parcial do sistema representacional em representar vivências traumáticas no bojo da família. Os traumas aumentaram o investimento de ódio em seus estratos inconscientes, tendo como efeitos os handicaps na capacidade do sistema das representações de elaborá-los. Outro resultado disso consiste no ódio aos temas do desejo e na fixação em vínculos doentios. Esses vínculos patológicos ligados aos padrões amorosos instável e agressivo-invasivo constante - por meio de promessas, profecias e paradoxos - produzem a desorganização do sistema. A promessa não cumprida pelos pais demarca uma traição à expectativa do filho de satisfação de seu desejo. Sua repetição produz um aumento do ódio, nesse filho, contra temas de seu desejo. Inserindo-se nessa fenda, certos meios de comunicação seduzem o sujeito com suas promessas e paradoxos. Certo artefato sedutor do desejo é apresentado como um produto maravilhoso e acessível ao desejo do consumidor. Não há a menção aos processos da realidade necessários para obtê-lo, aos corolários de sua aquisição e às circunstâncias gerais que envolvem seu desfrute.

Contrapontos às defesas arcaicas do eu, os vínculos saudáveis são axiais para a autonomia do desejo e a estabilidade psíquica do sujeito. Para tanto, a cisão do sujeito e de seu objeto - outro ser humano - deve ser elaborada, permitindo integrar amor e ódio. A fusão desses afetos primordiais deve ser alcançada sob a primazia do amor investido em si mesmo. As defesas do sujeito contra a realidade – interna e externa – cedem à integração de novas auto-representações, ao conhecimento de sua dinâmica psíquica, à clareza mental, à discriminação entre seu desejo e de seu objeto, bem como à reflexão sobre essa relação. O triunfo maníaco sobre o objeto se transforma em compaixão por ele, no sentido de se compadecer de seu sofrimento, sem se confundir com ele. A depreciação do objeto tende a dar lugar a sua valorização e à possibilidade de aprender e crescer com ele. Ao contrário do que defende parte da cultura pós-moderna, vínculos baseados em valores eternos - amor, dignidade, verdade, confiança e respeito - contribuem para a autonomia do desejo do sujeito e para a força de realização desse desejo. Sua grande base de formação é a família, à medida que ela permite à criança vivenciar vínculos amorosos seguros, estáveis, consistentes e confiáveis nas relações originárias.

Em face dessa problemática, o trabalho de análise com o sistema das representações deve permitir ao sujeito dar novo significado a seus traumas e reconhecer a diferença entre vínculos saudáveis e vínculos patológicos. Nesse trabalho, é comum observar que o fascínio do dinheiro, da beleza, do sucesso, do sexo, do prazer e do poder se integra ao encanto do amor, do respeito, da confiança e do cuidado consigo e o outro. O ódio deixa de estar fixado na relação traumática do eu com os objetos primários e o amor idólatra aos objetos materiais cede ao amor a si e a objetos humanos. O amor-próprio, a autovalorização e o senso de dignidade do sujeito alicerçam-se nele e não mais nos objetos de desejo externos que lhe angariariam prestígio social. O valor de seus atributos pessoais e de suas potencialidades para a atualização de seu desejo é integrado. Então, ele pode conviver de forma consciente e saudável com seus objetos do desejo.

Um dos meios de resgate da autonomia do desejo é a revivescência dos vínculos primários do paciente na relação com o analista. Dos vínculos mais afetivos e próximos até os mais sóbrios e distantes, todos são revisitados em sua função defensiva. Favorecem os vínculos saudáveis do eu assentados no reconhecimento e na assunção do próprio desejo em sua unicidade. Articulada à eficácia do sistema representacional, a autonomia do desejo permite que ele busque fontes alternativas de satisfação, ante as frustrações da realidade. Os vínculos da autonomia do desejo dependem do investimento de amor em suas auto-representações e num paradigma interno de vínculo amoroso consigo e o outro. A autonomia do desejo consiste num caminho psíquico diferenciado da mera adesão a alguns apelos pós-modernos, que distorcem as relações humanas.

 

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Endereço para correspondência
Maria Emília Sousa Almeida
Praça Comendador Marcelino Monteiro, 111
CEP 12030-010 Taubaté – SP
E-mail: maealmeida@yahoo.com.br

Tramitação
Recebido em agosto de 2008
Aceito em novembro de 2008

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