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Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva

versão impressa ISSN 1517-5545

Rev. bras. ter. comport. cogn. vol.7 no.2 São Paulo dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Atuação médica frente ao paciente portador de HIV no contexto ambulatorial1

 

Physician's intervention with the HIV carrier in an out-patient context

 

 

Ceres Regina Dias Fernandes; Ilma A. Goulart de Souza Britto2

Universidade Católica de Goiás

 

 


RESUMO

Este estudo analisou a relação médico-paciente na primeira consulta após o diagnóstico de presença do vírus HIV. Os dados foram coletados em observações registradas em vídeo. Foram analisadas as respostas verbais e não-verbais de quatro díades médico-paciente em um contexto ambulatorial de um hospital especializado nesse tipo de atendimento. As respostas das díades foram analisadas em relação à função potencialmente facilitadora ou não-facilitadora de adesão ao tratamento indicado. Observou-se que os comportamentos verbais dos médicos considerados facilitadores de adesão ocorreram com menor freqüência do que os não-facilitadores de adesão. Seus comportamentos não-verbais considerados facilitadores de adesão ocorreram muito mais freqüentemente, do que os não-facilitadores. Os pacientes apresentaram muito mais comportamentos verbais indicativos de adesão do que de não-adesão. Seus comportamentos não-verbais indicativos de adesão ocorreram com maior freqüência do que os indicativos de não-adesão.

Palavras-chave: Relação médico-paciente, Adesão ao tratamento, Comportamento verbal e não-verbal.


ABSTRACT

This study analyzed the doctor-patient relationship in the first consultation after the diagnosis of presence of the virus HIV. The data were collected in observations of video records. The verbal and non-verbal responses of four doctor-patient relationships were analyzed in an out-patient context of a specialized hospital. The responses of the members were analyzed in relation to the function potentially facilitative or non-facilitative to the adhesion to the suitable treatment. It was observed that the doctors' verbal behaviors considered as adhesion facilitators occurred less frequently than the not adhesion facilitators. Their non-verbal behaviors considered adhesion facilitators occurred much more frequently than the non facilitators. The patients presented very more verbal behaviors indicating adhesion than no adhesion. Their non-verbal behaviors adhesion indicative happened a little more than the indicative of no adhesion.

Keywords: Doctor-patient relationship, Adhesion to the treatment, Verbal and non-verbal behavior.


 

 

O presente estudo enfoca um conjunto de comportamentos provenientes da relação entre médicos e pacientes portadores de HIV (do inglês “Human immunodeficiency virus” - vírus da imunodeficiência humana). A qualidade da relação que se estabelece entre os dois deve ser entendida como um conjunto de múltiplas influências entre o médico e o paciente. Nessa relação, os comportamentos dos participantes podem tanto favorecer quanto dificultar o sucesso do tratamento. Na consulta, o médico procura informar o estado patológico em que o paciente se encontra, buscando manter o seguimento do tratamento e a sua efetividade. O trabalho do médico tem como função a promoção da saúde e a adesão ao tratamento; parte de seu trabalho é for-necer, as informações sobre a doença e sugerir mudanças no estilo de vida do paciente após a inclusão da terapia medicamentosa, e dessa forma, contribuir para reduzir o sofrimento e melhorar a qualidade de vida do paciente.

Quando uma pessoa afetada pelo HIV está diante de um médico, antes de tudo busca soluções médicas para sua condição biológica alterada. As intervenções médicas sobre o estado do enfermo e seus condicionantes, as informações que se possui sobre a enfermidade e as suas formas de transmissão e prevenção devem constituir o ponto de partida para a efetividade do tratamento.

A relação entre o médico e o paciente foi estudada por Balint (1975) numa obra clássica da psicologia médica. Esse pesquisador afirma que os pacientes devem ser educados para se comportar adequadamente diante de suas doenças, mesmo que nesse terreno, o médico possa enfrentar dificuldades técnicas. O autor chama a atenção para a necessidade de pesquisas com o intuito de observar o comportamento do paciente ante a enfermidade. Elias e Britto (2004) afirmam que a tarefa de educar o paciente para o tratamento deve ser realizada no momento da consulta, uma vez que isto o torna conhecedor de seu problema. Pode-se argumentar que é indispensável, ao médico, a aquisição de conhecimentos sobre o comportamento humano, posto que a relação médico-paciente ultrapassa o âmbito dos fenômenos biológicos. Antes de tudo, o médico está diante de uma pessoa que se comporta também em função da enfermidade que ora apresenta.

Britto, Oliveira e Sousa (2003) declaram que observar e descrever devem fazer parte dos métodos de investigação do comportamento em contextos clínicos. Ao ensinar esses comportamentos ao paciente, o médico cria condições que permitem, a ele, um contato maior com seus sintomas, e o subseqüente ajuste do tratamento oferecido. No âmbito da prevenção dos comportamentos de risco ou da adesão ao tratamento do HIV, analisar os comportamento da díade médico-paciente também é uma atividade relevante.

Portanto, a relação construída entre médico e paciente portador do HIV e profissionalmente dirigida pelo primeiro é o foco da análise do presente estudo. Dessa forma, a análise do comportamento do médico é tão ou mais importante quanto aquela que se faz sobre comportamento do paciente. Isto porque os comportamentos de ambos durante a consulta são função de suas respectivas histórias, além de também estarem sob o controle de variáveis presentes no momento do atendimento propriamente dito e que são produto da relação entre ambos.

A descrição e a análise dos problemas do paciente portador do HIV fornecem um conjunto de estímulos para o médico, informando-o sobre a história da contaminação e suas conseqüências. Assim, se o médico atentar às reações do paciente, pode obter importantes informações sobre os procedimentos que o paciente utiliza fora do contexto ambulatorial. Isto permitirá, a partir dali, o norteamento da ação médica. A própria relação médico-paciente que torna possível conhecer alguns detalhes sobre como o paciente se comporta e as razões pelas quais se comporta de tal maneira.

É também pela relação com o médico que o paciente aprende comportamentos preventivos que poderão atrasar a manifestação da enfermidade. Se possuir conhecimentos sobre as variáveis das quais o comportamento do paciente é função, tanto em sua rotina diária quanto no momento da consulta, o médico pode ensinar-lhe comportamentos preventivos, o que potencialmente gera prevenção do contágio.

É necessário recomendar ao paciente que proceda a mudanças em sua rotina diária, tais como usar preservativo, evitar compartilhamento de agulhas e de outros objetos infectados, evitar contato com objetos perfurocortantes que possam entrar em contato acidental com material infectado (particularmente de sangue para sangue), evitar a transmissão vertical (da mãe para o feto) ou por meio do leite materno. Obviamente, a aprovação do paciente com a relação à consulta médica que lhe foi prestada, torna-se um fator importante para potencializar a adesão.

Todavia, Vázquez, Rodríguez e Álvarez (1998) afirmam que a comunicação do diagnóstico e do tratamento não se realiza, na maioria das vezes, em condições que favo-reçam as destrezas requeridas no cumprimento da aprovação do paciente. Os profissionais não fornecem instruções explícitas e não empregam termos assertivos sobre o que fazer, como e quando. As informações fornecidas ao prescrever o tratamento não se ajustam ao estilo de vida do paciente. Não se proporciona feedback adequado sobre os problemas surgidos. Os comportamentos requeridos aos pacientes não são modelados, particularmente quando estes são complexos. Além de tudo isso, os autores afirmam que em geral, para esses casos, 'a supervisão [clínica do terapeuta] é insuficiente e, com freqüência, realizada por outros clínicos que desconhecem o paciente'(p.243). Esses autores, então, defendem a necessidade da utilização de procedimentos comportamentais para aumentar a informação ao paciente. Seria útil conhecer em que condições as informações de que dispõe o paciente podem influenciar em suas execuções. Neste sentido, poder-se-ia recorrer ao conceito de comportamento verbal proposto por Skinner (1957/1978).

 

Comportamento verbal no contexto ambulatorial

Ao analisar os padrões comportamentais apresentados na relação médico-paciente, uma questão diz respeito ao comportamento verbal dos participantes. A habilidade do paciente em responder a eventos de seu passado pode estar sob controle de contingências explícitas de reforço proporcionado pelo médico. Entre os fatos que uma pessoa é capaz de descrever após certo tempo, em resposta a perguntas, estão seus próprios comporta-mentos, e muito desses comportamentos são verbais (Skinner, 1957/1978).

A comunidade verbal gera consciência quando ensina uma pessoa a descrever seus comportamentos (Skinner, 1969/1980). Além disso, considerase que por meio do comportamento verbal, um falante pode mudar o comportamento de um ouvinte. “As palavras são meios de levar as pessoas a fazerem as coisas” (Catania, 1999, p.272).

Com efeito, um dos modos efetivos de produzir soluções pode ser também por intermédio do uso das palavras, sejam elas faladas, escritas ou em forma de sinais. Staats (1996) afirma que as palavras nos dão o modo mais fácil para influenciar o comportamento de uma pessoa. Deste modo, as palavras do médico podem ser utilizadas para influenciar e direcionar importantes mudanças no repertório comportamental do portador do HIV em relação à adesão ao tratamento.

Uma forma de esse controle ocorrer se dá por meio de regras que podem especificar o comportamento a ser emitido - a forma, a freqüência e a duração do comportamento; as condições sob as quais ele deve ser emitido - quando, onde e como o comportamento deve ocorrer; e suas prováveis conseqüências, quais sejam, o que poderá acontecer se a regra for seguida (Santos, Paracampo e Albu-querque, 2004). Desse modo, instruções, avisos, conselhos ou ordens podem ser seguidos pelo paciente; suas respostas podem ficar sob controle dos estímulos verbais antecedentes. Desse modo, as regras ou instruções desempenham papel essencial no controle discriminativo e estabelecedor do comportamento do paciente. No contexto ambulatorial é necessário estudar os modos pelos quais se utilizam regras instrutivas para mudar comportamentos. Na relação médico-paciente o médico busca modificar comportamentos por meio de informações, sugestões, prescrições, deveres e assim por diante.

O estudo do controle por regras envolve uma análise do contexto social do falante, que emite a regra; do ouvinte, que seguirá ou não a regra. A função do ouvinte, como responsável pelo comportamento do falante, define e coloca o estudo das regras dentro do campo do comportamento verbal (Baum, 1999; Matos, 2001).

 

A terapêutica anti-retroviral

No Brasil, a medicação anti-retroviral está disponível na rede pública de saúde. O objetivo básico desses medicamentos é retardar a progressão da imunodeficiência e/ou restaurar, tanto quanto possível, a imunidade, aumentando o tempo e a qualidade de vida da pessoa infectada.

Castro e Remor (2004) sinalizam uma revolução na intervenção no âmbito do tratamento para a infecção pelo HIV, a partir de 1996. Essa mudança aconteceu pela introdução no mercado de uma nova geração de fármacos anti-retrovirais, também conhecida como HAART (Highly Active Antiretroviral Therapy). Esses tratamentos reduziram, de forma importante, a mortalidade relacionada a essa infecção, embora exijam, dos pacientes, a ingestão simultânea de múltiplos medica-mentos sob rigorosas condições de administração e por tempo indeterminado.

A saúde biológica, área tradicional da medicina, farmacologia e bioquímica tem-se transformado, por essas razões, também numa área de interesse para a psicologia. Starling (2001) esclarece que décadas de pesquisa sobre esse tema têm revelado o forte componente comportamental nas alterações da saúde biológica.

Nesse sentido, Osler (1892 citado por Bayés, 1995, p. 100), numa obra clássica na história da medicina escreveu: “La fe en los dioses o los santos cura uno, la fe en las pequeñas píldoras a otro, la sugestión hipnótica a un tercero, a fe en un afable doctor a un cuarto... La fe en nosotros, la fe en nuestros métodos y drogas es el gran capital de la profesión... La piedra de toque del éxito en medicina”.

Bayés (1995) argumenta que existem poucas dúvidas de que o sistema imunológico pode modular-se também pelas vias psicológicas. Assim, o sistema imunológico pode ser afetado por problemas emocionais. Sabe-se, en-tão, que tais fatores não são apenas conseqüências, mas também mediadores de diversas doenças. Por essa razão, o autor alerta sobre a importante tarefa de construir modelos heurísticos capazes de sugerir novas hipóteses para direcionar a investigação, como as intervenções preventivas e assistenciais que se empreendem neste campo de estudo. Engel (1977) propôs o modelo biopsicossocial. Com este modelo, partiu-se de uma concepção mais ampla da saúde e da doença, que não separa o biológico do psíquico e do social. Contudo, Starling (2001) aponta que esse modelo, raramente contestado, ainda não promoveu mudanças maiores nas práticas curativas, talvez pelo fato de ele não definir a natureza da interação entre as variáveis de diferentes domínios e nem ter envolvido ativamente disciplinas não-médicas em seu desenvolvimento e implementação.

 

Comportamento verbal e adesão ao tratamento

A adesão ao tratamento constitui um dos problemas mais importantes enfrentados pelos profissionais de saúde. Trata-se de um problema comum, qual seja, o insuficiente ou inadequado cumprimento das prescrições. O modo como um sistema de atendimento em saúde é estruturado influencia a possibilidade de médicos e pacientes colaborarem e melho-rarem a adesão.

Embora o profissional de saúde reconheça a importância do comportamento verbal para contribuir na eficácia do tratamento, ainda se faz necessário investigar e avaliar quão importante são, para a adesão ao tratamento, as instruções que os médicos oferecem ao seu paciente. Hipócrates já avisava que o médico deveria atentar para o fato de que os pacientes freqüentemente mentem quando dizem que tomaram certos remédios. Os termos adesão (adherence) e obediência (compliance) têm sido usados para designar o grau de coincidência entre os comportamentos das pessoas e as recomendações terapêuticas do profissional de saúde (Malerbi, 2000).

Malerbi (2000) aponta que quanto mais complexo o tratamento, menor a adesão. Também, quanto maior a freqüência de cuidados necessários em um mesmo dia, maior a chance de o indivíduo deixar de executá-los. Além disso, quanto maior o número de modalidades envolvidas no tratamento, menos o indivíduo seguirá as recomendações do profissional de saúde.

Outro fator importante citado por Malerbi (2000) é a existência de barreiras culturais em situações nas quais o tratamento proposto pelo médico entra em choque com os valores, por exemplo, religiosos, do indivíduo. Por outro lado, a eficácia do tratamento é um fator que favorece a adesão.

Malerbi (2000) publicou resultados de algumas pesquisas que avaliaram a adesão de pacientes em diversas situações, mostrando que a adesão é mais baixa em situações que requerem tratamentos longos, de natureza preventiva, e quando os pacientes necessitam alterar seu estilo de vida. Estratégias e esforços para promover a adesão, desde o momento do diagnóstico, podem prevenir muitos dos problemas que ocorrem durante a administração do tratamento.

Pode-se considerar que a falta de adesão talvez seja, hoje, a principal barreira para o sucesso da terapia anti-retroviral, e que somente com o compromisso e o comprometimento de uma equipe multidisciplinar, será possível abordar a diversidade dos aspectos implicados em sua detecção e manejo. Para Malerbi (2000), há ainda muito a ser pesquisado para a adesão a tratamentos longos, crônicos e que modifiquem o estilo de vida dos pacientes. Este é o caso do tratamento por anti-retrovirais para situações de infecção por HIV. Entretanto, pode-se enumerar uma série de comportamentos que os profissionais de saúde devem apresentar para facilitar a adesão de seus pacientes.

O objetivo do presente estudo foi identificar as possíveis categorias funcionais potencialmente facilitadoras e não-facilitadoras de adesão ao tratamento aos medicamentos anti-retrovirais a partir da análise dos relatos verbais e não-verbais do médico e do paciente no contexto ambulatorial. Deste modo, pretendeu-se investigar as funções da atuação do médico em relação ao paciente portador do HIV. Deve-se, porém, esclarecer que o presente estudo possui caráter exploratório, circunstância em que se fez uso de metodologia descritiva para a análise da relação médico-paciente.

 

Método

Participantes

Participaram, deste estudo, quatro díades médico-paciente (DMP) provenientes do ambulatório de um hospital público de referência para o tratamento de pacientes portadores de HIV, conveniado com o Sistema Único de Saúde e localizado em Goiânia. Díade Médico-Paciente 1 (DMP1) - Médico participante 1 (MP1): sexo masculino, 38 anos, 13 anos de experiência como médico infectologista. Paciente participante 1 (PP1): sexo masculino, 22 anos, músico, solteiro, não possui filhos, com nível de escolaridade superior, diagnosticado como portador do HIV.

Realizou apenas a primeira consulta para o tratamento e não soube informar por que meio foi infectado. O tempo destinado à primeira consulta foi de aproximadamente 21 minutos. Díade Médico-Paciente 2 (DMP2) - Médico participante 2 (MP2): sexo feminino, 39 anos, 13 anos de experiência como médica infectologista. Paciente participante 2 (PP2): sexo masculino, 32 anos, cabeleireiro, solteiro, não possui filhos, com nível de escolaridade 1º grau incompleto, diagnosticado como portador do HIV. Realizou apenas a primeira consulta para o tratamento e não soube informar por que meio foi infectado. O tempo destinado à primeira consulta foi de aproximadamente 37 minutos.

Díade Médico-Paciente 3 (DMP3) - Médico participante 3 (MP3): sexo feminino, 43 anos, 19 anos de experiência como médica infectologista. Paciente participante 3 (PP3): sexo feminino, 27 anos, do lar, casada, cinco filhos, com nível de escolaridade 1º grau incompleto, residente em Goiânia com o atual parceiro, também portador do HIV. Diagnosticada como portadora do HIV desde maio de 2004. Realizou apenas a primeira consulta para o tratamento e não soube informar por que meio foi infectada. O tempo destinado à primeira consulta foi de aproximadamente 22 minutos. Díade Médico-Paciente 4 (DMP4) - Médico participante 4 (MP4): sexo feminino, 39 anos, 13 anos de experiência como médica infectologista. Paciente participante 4 (PP4): sexo feminino, 33 anos, do lar, casada, 3 filhos, com nível de escolaridade 1º grau incompleto, residente em Goiânia com o marido, também portador do HIV. Diagnosticada como portadora do HIV. Realizou apenas a primeira consulta para o tratamento e relatou que foi infectada pelo marido. O tempo destinado à primeira consulta foi de aproximadamente 9 minutos.

Ambiente e Material

As observações e os registros em vídeo foram realizados em consultórios médicos. O consultório utilizado media, aproximadamente, 12,55 m2 e continha uma mesa, duas cadeiras, uma maca, um armário, uma pia, papeletas e prontuários. Este consultório foi equipado, para atender às necessidades desta pesquisa, com uma câmera de vídeo VHS instalada próximo à díade, com o intuito de captar com maior precisão todos os sons emitidos. A Figura 1 traz a representação esquemática do consultório.

 

 

1. Folhas de Registro: todas possuíam cabeçalho com espaço para as iniciais e o número da díade, a atividade a ser desenvolvida, a data da observação e espaços para registro das categorias comportamentais. Também continham espaços nos quais foram registrados os comportamentos verbais e não-verbais do MP, indicativos da atuação do profissional médico diante do paciente e suas funções, considerados facilitadores e não-facilitadores da adesão por parte do paciente. Igualmente foram construídas Folhas de Registro nas quais foram registrados os comportamentos verbais e não-verbais do PP, indicativos de sua adesão ou não-adesão à terapia com anti-retrovirais.

2. Câmera filmadora, fita de VHS, adaptador de fita de vídeo, aparelho de TV, computador, impressora, caderno, caneta e lápis foram utilizados para a transcrição das verbalizações do PP e do MP; disquetes foram utiliza-dos para armazenar as informações obtidas e as versões intermediárias e final.

Procedimento

Foram coletados dados referentes à primeira sessão de atendimento ao portador do HIV de cada uma das quatro díades participantes. Foi encaminhado um documento para ser lido, e por meio deste, obter a autorização do procedimento pelos médicos e pacientes. O documento continha cláusulas a respeito do sigilo das informações, da garantia do anonimato dos participantes e da permissão para a divulgação dos resultados do estudo em congressos ou eventos científicos. Também foi obtido o Termo de Aprovação pelo Comitê de Ética do hospital.

Os critérios adotados para a realização dos registros em vídeo e o início dos trabalhos foram: (a) consentimentos do médico e do paciente, documentados e assinados; (b) consultas realizadas por MP especialista em infectologia, de um hospital de referência com, no mínimo, cinco anos de experiência, independentemente de sexo e idade; (c) Registros em vídeo da consulta desde seu início até seu término. Os atendimentos foram registrados em vídeo por uma das pesquisadoras durante a primeira consulta das quatro DMP.

Após os registros em vídeo, as sessões foram transcritas. O procedimento para transcrição das sessões consistiu em registro cursivo de todas as verbalizações do médico e do paciente, nomeando-as com as siglas M (verbalizações do médico) e P (verbalizações do paciente). Foi considerada uma verbalização, toda a fala de um participante que se encerrava com a verbalização seguinte do outro. As verbalizações do médico e do paciente para cada díade foram numeradas na seqüência em que ocorreram, por exemplo, M1 para a primeira verbalização do primeiro médico e P1 para a primeira verbalização do primeiro paciente e, assim, sucessivamente. Com este procedimento, foi possível identificar as verbalizações de cada um dos participantes das quatro DMP.

Desse modo, todas as fitas gravadas foram transcritas. Posteriormente, realizou-se a contagem de todas as emissões verbais, tanto dos MP quanto dos PP, sendo feitas atribuições numéricas seqüenciais para os relatos verbais dos médicos e dos pacientes. Após as transcrições, foram realizadas várias leituras das sessões, e as verbalizações de cada parti-cipante que continham possíveis referências à adesão foram sublinhadas.

Procedeu-se à identificação das categorias quando da presença de palavras ou frases que designavam ações verbais facilitadoras e não-facilitadoras de adesão dos médicos em relação aos pacientes. Também foram iden-tificados os relatos indicativos de adesão e relatos indicativos de risco para a adesão por parte dos pacientes. As ocorrências de todas as categorias do presente estudo foram regis-tradas com um ponto (.) e a não-ocorrência com um (x) nas folhas de registro. De modo mais específico, as categorias selecionadas das quatro DMP foram:

Ação verbal facilitadora de adesão: Verbalizações que esclarecem dúvidas dos pacientes sobre aspectos do processo do tratamento ou explicações sobre exames, doenças ou procedimentos, por meio de falas apropriadas ou assertivas. Tais explicações têm a função de alterar o conhecimento do paciente sobre assuntos relevantes a respeito do tratamento. Por exemplo: 'os medicamentos funcionam como uma tranca que se coloca numa porta: impedem a entrada de ladrões' e 'esse esque-ma que estou passando de remédio pra você, existe uma lista de remédio para o HIV. Sem-pre se combinam três remédios, três drogas diferentes, entendeu'? 'Porque, na verdade, mesmo no sexo oral é necessário usar preservativo, viu'? Ou 'não, não... Não há risco de transmissão do vírus pelo uso de copos, talheres, abraços e beijos'.

Ação verbal não-facilitadora de adesão: Verbalizações dos MP que cita termos técnicos sem explicá-los, questiona, aponta comportamentos passíveis de punição social ou biológica ou mesmo não dá oportunidade para que o cliente fale ou se expresse verbalmente. Tais verbalizações podem dificultar as respostas do paciente, por exemplo: 'então não disse ao seu parceiro que você é soropositivo, não é mesmo? Ou 'então, já errou! Jamais. Você nunca procura o banco de sangue para tirar dúvidas. Jamais, né?'. Ou 'esse gânglio ai, pode ter relação com essa soroconversão. Isso é chamado linfa-adenomegalia relacionado ao HIV'. Ou 'teve relação sem preservativo neste período de lá pra cá? Teve, né?'. E 'realmente, epidemologicamente você se expôs muito'.

Relato indicativo de adesão: Verbalizações dos pacientes que afirmam seguir todas as instruções dos médicos, mesmo que com dificuldades, devido à ocorrência de eventos outros. Tem a função de demonstrar conhecer suas condições após a contaminação e relatar suas dificuldades, por exemplo, 'ai conversei com um amigo que já teve a respeito disso. É, é. Já teve constatado HPV (HIV). É certo. Então eu fiz os exames. Deu positivo. Aí vim pra cá'. 'Demoraram a me agendar! Só abrindo um parêntese, pensei que ia ficar louco! Eu fiz os exames e demorou a ser entregue, dar os resultados!' Ou 'eu conheço os portadores. Contato físico e íntimo eu não vou fazer. Não mais'. Ou 'Pode passar os exames. Vou fazer os dois. Faço tudo'.

Relato indicativo de risco para a adesão: Verbalizações que sugerem, ao médico, que o paciente parece desconhecer as conseqüências da enfermidade após contaminação. Tem a função de relatar, ao médico, o desconforto ou mal-estar sentidos ante sua condição, por exemplo, '' e eu vou precisar fazer mesmo esses exames? Qual é o custo? Não tem de outro jeito?' Ou 'e esse tratamento, vai até quando? Há necessidade da gente continuar?' Ou 'se eu peguei, não sei, mas que eu não sei, né? E nem é do meu conhecimento' Ou 'Já estive lá duas vezes! Não me deram os remédios, isso demora, é difícil'.

Deste modo, procedeu-se à observação de comportamentos não-verbais facilitadores de adesão e comportamentos não-verbais não-facilitadores de adesão dos médicos participantes. Igualmente, foram também observados comportamentos não-verbais indicativos de adesão e comportamentos não-verbais indicativos de não-adesão pelos pacientes participantes. Procurou-se levantar funções específicas desses comportamentos a partir da análise das categorias funcionais dos participantes por intermédio de observações detalhadas e criteriosas do material gravado em vídeo. Para esta análise foram considerados, além dos relatos verbais, comportamentos não-verbais dos participantes. Para seleção das classes de comportamentos não-verbais as fitas foram reprisadas várias vezes. As categorias utilizadas estão definidas a seguir:

Ação não-verbal facilitadora de adesão: categorias de ações não vocais do médico, como olhar direcionado ao paciente, sorrir, balançar a cabeça em sinal de aprovação ou curvar-se flexionando o corpo à altura dos quadris em direção ao paciente. Tais comportamentos tinham a função de aproximar-se do paciente quando o médico reforçava os relatos sobre assuntos que lhe interessavam.

Ação não-verbal não-facilitadora de adesão: categorias de ações não-vocais não-facilitadoras de adesão do médico, como postura corporal ereta com a cabeça inclinada para o alto, interromper a consulta, olhar para os lados enquanto o paciente falava, movimentar inquietantemente mãos e pés ou não examinar o paciente. Tais comportamentos parecem ter tido a função de apressar a consulta.

Ação não-verbal indicativa de adesão: ações não-vocais por parte do paciente como manter contato visual com o médico, balançar a cabeça em sinal de aprovação, responder prontamente às solicitações do médico ou curvar-se flexionando o corpo em direção ao médico enquanto recebia informações. Tais comportamentos teriam a função de atentar para as informações recebidas durante a consulta

Ação não-verbal indicativa de não-adesão: ações não-vocais do paciente como balançar a cabeça em sinal de discordância, desviar o olhar do médico, movimentar-se na cadeira, bocejar enquanto o médico falava, ou movimentar mãos e pés durante a consulta. Tais comportamentos sugerem funções desconfortantes diante do médico.

Finalmente, de todo o trabalho de categorização foram selecionadas as categorias funcionais da atuação dos MP e dos PP. Foi realizada análise quantitativa das freqüências de ocorrência das categorias comportamentais selecionadas.

Teste de concordância entre observadores: Durante a fase de análise de dados, contou-se com a colaboração de profissional da área de psicologia com experiência em observação para que fosse realizado o teste de concordância dos dados obtidos, garantindo, assim, a fidedignidade dos mesmos. Para o cálculo do índice foi utilizada a fórmula: [Concordância/(Discordância + Concordân-cia)] x 100.

O porcentual de fidedignidade foi calculado para cada categoria e variou de 87,2% a 93%.

 

Resultados

Na Tabela 1, são apresentados os resultados referentes às categorias 'Ação verbal facilitadora' e 'Ação verbal não-facilitadora de adesão' em relação aos médicos participantes. Também o 'Relato indicativo de adesão' e 'Relato indicativo de risco de adesão' em relação aos pacientes participantes portadores do HIV.

Observa-se, pelos dados da Tabela 1, sobre a 'Ação verbal facilitadora de adesão' do MP, que as categorias 'Explicar sobre exames, doença e procedimentos' e 'Perguntar se o paciente entendeu as explicações' obtiveram porcentuais aproximados, de 33,5% e 31,6%, respectivamente.

Em relação à 'Ação verbal não-facilitadora de adesão', os dados da Tabela 1 indicam que as categorias 'Dar ordens ao paciente', 'Insistir na mesma pergunta', 'Citar termos técnicos sem explicá-los', 'Não dá oportunidade para que o paciente fale ou se expresse verbalmente' e 'Comportamentos passíveis de punição social ou biológica' alcançaram porcentuais aproximados, ficando entre 16,6% e 14,8%.

A Tabela 1 apresenta, ainda, as categorias dos pacientes participantes em relação ao 'Relato indicativo de adesão' bem como ao 'Relato indicativo de risco para a adesão'. Sobre o 'Relato indicativo de adesão', a categoria 'Responder atentamente ao médico' atingiu o porcentual de 52,8%.

Em relação ao 'Relato do paciente indicativo de risco para a adesão', a categoria 'Falar indicando desconhecer a transmissão do vírus' atingiu porcentual elevado: 62%. Tais dados estão resumidos na Tabela 1.

A Tabela 2 apresenta os dados das categorias dos médicos em relação à 'Ação não-verbal facilitadora' de adesão e 'Ação não-verbal não-facilitadora' de adesão. Igualmente, apresenta ainda as categorias dos comportamentos dos pacientes em relação à 'Ação não-verbal indicativa de adesão' e 'Ação não-verbal indicativa de não-adesão'.

 

 

 

Observa-se, na Tabela 2, que dentre as categorias de 'Ação não-verbal facilitadora', a categoria 'Manter contato visual com o paciente' alcançou um porcentual elevado, de 90%. A categoria 'Sorrir para o paciente' atingiu o baixo porcentual de 1,9%.

Os dados apresentados na Tabela 2 referem-se também às categorias comportamentais do MP em relação à 'Ação não-verbal não-facilitadora de adesão'. A categoria 'Movimentar inquietantemente mãos e pés' alcançou o maior porcentual, de 47,9%.

Podem ser identificadas, na Tabela 2, categorias comportamentais em relação às ações verbais e não-verbais dos PP no momento da consulta, as quais foram categorizadas como 'Ação verbal indicativa de adesão' e 'Ação não-verbal indicativa da não-adesão' à terapia com anti-retrovirais.

Os dados da Tabela 2 indicam que a categoria 'Manter contato visual com o médico' alcançou porcentual elevado, de 59,1%. Em relação à 'Ação não-verbal indicativa da não-adesão', os dados da Tabela 2, demonstram que a ocorrência da categoria 'Desviar o olhar do médico' obteve porcentual elevado, de 69,3%. Quando os comportamentos das quatro DMP foram analisados em relação ao total das freqüências da função verbal potencialmente facilitadora ou não-facilitadora de adesão, os dados resumidos nas Tabelas 1 e 2 permitem outras análises.

Em relação à 'ação verbal facilitadora' de adesão, os dados indicam que as freqüências das verbalizações dos médicos foram menores (215) do que as dos não-facilitadores de adesão (229). Em relação aos comportamentos não-verbais potencialmente facilitadores de adesão, os dados indicam uma ocorrência bem maior (358) do que os não-facilitadores (71).

Quanto ao total das ações verbais potencialmente facilitadoras de adesão, os dados indicam que os 'relatos indicativos de adesão' por parte dos pacientes foram muito mais freqüentes de adesão (125) do que não-adesão (50). Os comportamentos não-verbais indicativos de adesão ocorreram um pouco mais (431) do que os indicativos de risco para a adesão (375).

 

Discussão

O presente estudo teve como objetivo investigar a atuação do médico em relação ao paciente portador de HIV em sessões de atendimento ambulatorial num hospital de referência para esse tipo de tratamento. Por se tratar de um estudo exploratório, optou-se por registrar em vídeo as verbalizações dos participantes durante a consulta. Desse modo, tornou-se possível a elaboração de categorias, na tentativa de descrever os relatos verbais do médico e do paciente de acordo com suas funções. O procedimento utilizado consistiu na gravação, transcrição e análise das interações verbais da díade médico-paciente.

A proposição de investigar as categorias funcionais potencialmente facilitadoras ou não-facilitadoras de adesão ao tratamento com os anti-retrovirais tornou possível levantar sinais indicativos de adesão ou não ao tratamento dos pacientes durante a consulta. Como apontaram Vázquez et al. (1998), torna-se necessária a utilização de procedimentos comportamentais para observar e registrar as condições de consultas médicas. Obviamente, poder-se-ia dizer que existe adesão quando há coincidência entre a instrução do médico e o comportamento do paciente. Os dados do presente estudo demonstraram que, durante a consulta, a freqüência dos comportamentos verbais e não-verbais indicativos de adesão foram superiores àquelas observadas sobre os comportamentos de risco de adesão por parte dos pacientes.

Com efeito, buscou-se identificar palavras ou frases das locuções verbais gravadas em vídeo em suas respectivas funções, ao selecionar comportamentos facilitadores de adesão que designavam as funções da atuação do médico em relação ao paciente e deste em relação ao seu médico. Todavia, por se tratar de um estudo exploratório, as discussões são limitadas ao contexto dos dados coletados. Assim, os dados coletados referem-se a aspectos relevantes da relação médico-paciente, com o objetivo de estudar a atuação médica no sentido de preparar o paciente portador do HIV para a importância da adesão ao tratamento. A relação médico-paciente pode tornar-se um fator preditivo para os bons resultados do tratamento.

A falta de adesão talvez seja, hoje, a principal barreira que dificulta este processo. Para Malerbi (2000), esta é uma área na qual há muito a ser pesquisado. Os dados apontam relatos, por parte dos pacientes, sobre a falta de moti-vação para iniciar e prosseguir com o tratamento e falas sobre as dificuldades para conseguir os medicamentos. Observou-se, ainda, a ocorrência de relatos dos pacientes que demonstravam desconhecer fatos sobre a transmissão do HIV. No entanto, poder-se-ia argumentar que em casos de comportamentos socialmente passíveis de punição, declarar desconhecimento, é resposta de esquiva (Banaco, 2004).

De um modo geral, os dados indicam uma preocupação dos médicos em fornecer explicações aos pacientes sobre exames ou efeitos da contaminação. Os resultados indicaram que todos os médicos explicaram sobre os exames e perguntaram se os pacientes haviam entendido as explicações. Em relação aos comportamentos não-verbais, todos os médicos mantiveram contato visual com os pacien-tes, mas apresentaram baixa freqüência dos outros comportamentos registrados enquanto facilitadores da adesão: sorrir para o paciente, balançar a cabeça afirmativamente e encurvar o corpo em direção ao paciente. Observou-se que o médico da díade 1 apresentou a maior freqüência de comportamentos verbais potencialmente não-facilitadores de adesão, mas foram os pacientes da díade 2 e 3 que apresentaram a maior freqüência de falas deste tipo.

A alta freqüência da categoria 'Desviar o olhar do médico' por parte dos pacientes pode ser resultante de variáveis associadas à condição de ser portador do HIV, nível sócio-econômico-cultural do paciente, não querer estar ali, receio de ser criticado no momento da consulta e mesmo à insegurança sobre como proceder após o diagnóstico, dentre outras. Os dados apresentados, neste caso, não seriam representativos do que ocorre em outros contextos ambulatoriais para outros tipos de tratamentos.

Desse modo, faz-se necessário falar da importância de estudos que investiguem a relação entre o médico e seu paciente. Ao médico competirá fornecer regras claras a serem seguidas: instruir, informar ou explicar procedimentos. Cabe ao médico explicar ao paciente os comportamentos necessários, as conseqüências da não-adesão, e os benefícios da terapia.

 

 

Referências

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Recebido em: 03/06/2005
Primeira decisão editorial em: 15/09/2005
Versão final em: 23/11/2005
Aceito em: 02/12/2005

 

 

1 Este artigo reproduz parte da dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Goiás por Ceres Regina Dias Fernandes sob a orientação da Prof. Dra Ilma A. Goulart de Souza Britto.
2 As autoras agradecem à Paula Virgínia de Oliveira Elias pela ajuda na realização do teste de concordância.