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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.10 no.19 São Paulo jan. 2010

 

DOSSIÊ

 

Massacres juvenis e paixão pelo real: o império do sentido e a discussão sobre os impasses do adolescer na atualidade

 

Juvenile massacres and the passion for the real: the empire of the senses and the discussion about the questions to reach adolescence in the nowadays

 

Masacres juveniles y pasión por lo real: el imperio de los sentidos y la discusión sobre lo desfavorable del adolecer en la actualidad

 

 

Roselene Gurski*

Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)
Clinica Maud Mannoni, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo, inspirado na forma de ensaio, analisa os denominados massacres juvenis como um sintoma do laço social atual, interrogando: o que estes jovens devolvem através dos atos de violência? Partimos do caso de Cho Seung-hui, o jovem que, em 2007, protagonizou um dos maiores massacres juvenis nos EUA, para problematizar as condições implicadas nesses acontecimentos; além da Psicanálise, utilizamos discussões sobre o tema da experiência e da transmissão desde Walter Benjamin, bem como o conceito de “paixão pelo real” (Zizek, 2004). A hipótese é de que as novas condições sociais criaram uma espécie de ilusão, como se fosse possível o encontro com a “coisa em si”; tal modalidade de relação, muitas vezes, impede que o adolescente recorte da relação com o real uma versão própria e necessária para a operação psíquica da adolescência.

Palavras-chave: Juventude, Adolescência, Violência, Experiência, Paixão pelo real.


ABSTRACT

The present essay analyzes the so-called juvenile massacres as a symptom of the current social bond, questioning what youngsters give back to society through acts of extreme violence. The starting point for the analysis is the case of Cho Seung-hui, the young man who was responsible for one of the greatest juvenile massacres in the USA, in the year 2007. The essay focuses on the conditions implied in the events of the aforementioned case under the perspective of Psychoanalysis, and also through discussions on the themes of experience and transmission based on the studies of Walter Benjamin, as well as the concept of “the passion for the real” (Zizek, 2004). The hypothesis is that the emptiness of experience, established since the beginning of Modern era, sculpted gradually the symbolic void that builds what we now denominate the passion for the real.

Keywords: Youth, Adolescence, Violence, Experience, Passion for the real.


RESUMEN

Este artículo, inspirado en la forma de ensayo, analiza los denominados masacres juveniles como un síntoma del lazo social actual, interrogando: ¿lo qué estos jóvenes devuelven a través de los actos de violencia? Partimos del caso de Cho Seung-hui, el joven que, en 2007, protagonizó uno de los mayores masacres juveniles en EEUU, para problematizar las condiciones implicadas en estos acontecimientos; además del Psicoanálisis, utilizamos discusiones sobre el tema de la experiencia y de la transmisión en Walter Benjamin, así como el concepto de “pasión por lo real” (Zizek, 2004). La hipótesis es de que las nuevas condiciones sociales crearon una especie de ilusión, como si fuese posible el encuentro con la “cosa en si”. Pensamos que tal modalidad de relación, muchas veces, impide que el adolescente recorte de la relación con lo real una versión propia y necesaria para la operación psíquica de la adolescencia.

Palabras clave: Juventud, Adolescencia, Violencia, Experiencia, Pasión por lo real.


 

 

Introdução

Enquanto Cho Seung-hui (Mente, 2007) tirava a vida de colegas da Universidade de Virginia Tech e se encaminhava para suicidar-se, chegava à TV NBC, em Nova York, o que os repórteres denominaram “manifesto multimídia”. O sul-coreano de 23 anos que matou 32 pessoas, no que ficou conhecido como o maior massacre em universidades americanas, planejou todo o desfecho de seu último ato. A abertura do vídeo enviado à emissora estadunidense tinha a imagem de Cho vestindo uma camiseta preta com os braços abertos segurando nas mãos duas armas. A fala lenta e monocórdia continha um tom confessional e testemunhal: “Vocês tiveram bilhões de chances e formas de evitar hoje. Mas vocês me acuaram e só me deram uma opção”.

Após conhecer alguns fragmentos da vida de Cho, podemos dizer que, além do manifesto multimídia, outras expressões menos ostensivas de seu sofrimento ocorreram. Conforme reportagem da Revista Veja supracitada, na universidade, Cho revelou-se um jovem muito calado. Falava pouco e aos sussurros, quando interpelado, respondia de modo monossilábico, economizando qualquer rastro de experiência relacional. A dificuldade para sustentar um lugar de enunciação era tal que assinava seus e-mails e conversas on-line com um ponto de interrogação. Em uma aula de literatura, no lugar de assinar o nome, colocou o sinal da interrogação, em um ato que poderíamos pensar como uma clara expressão de que algo vacilava em sua estruturação.

Segundo alguns colegas que o acompanharam na High School – o equivalente ao Ensino Médio no Brasil –, já na escola ele era uma vítima frequente de chacotas, especialmente quando falava. Ou seja, era um jovem que acabou encontrando a margem do espaço social como lugar de representação.

Apesar de isoladamente a opção pelo silêncio não representar necessariamente um indício grave de psicopatologia, a descrição de Cho nos leva a pensar que a quietude era o sinal de que ele não estava bem. Porém, o que gostaríamos de interrogar nesse caso é por que alguém tão anônimo buscou um modo de escrever seu nome em letras de todos os tipos ao redor do planeta? Que demanda será essa? Por que os famosos quinze minutos de fama visionados por Andy Warhol tornam-se tão importantes em nossa época, mesmo que aconteçam pos-mortem? Por que jovens como ele praticam crimes dessa magnitude? (ver Gurski, 2002; 2007). Tais questões nos interpelam porque, mesmo reconhecendo as nuances da psicopatologia individual de Cho, ele não está sozinho.

Nos últimos dez anos, fomos surpreendidos por episódios de massacres protagonizados por jovens em uma frequência bastante superior se compararmos à década anterior. Para citar outro acontecimento semelhante, tivemos em 1999 o famoso episódio de Columbine, protagonizado por Eric e Dylan – dois adolescentes de classe média que estudavam em uma das melhores escolas do Colorado, não usavam drogas e cujas famílias não apresentavam o perfil de “desajustadas”. Nos rastros de suas curtas vidas, o que podemos recolher é que tinham um especial apreço pelas prerrogativas nazistas e por vídeos superviolentos, cultuavam o satanismo do roqueiro Marilyn Manson e, semelhante a Cho, eram um tanto deslocados do ponto de vista social.

Os massacres juvenis, de algum modo, parecem inscrever a reação mais trágica da cadeia de acontecimentos que tem pontuado o que estamos denominando de dificuldade dos jovens atuais para encontrar traços que os representem. O que será que esses jovens devolvem através de seus atos? Por que não podem escrever seus nomes, fazer suas marcas de outro modo? Por que no caso de Cho a mídia foi explicitamente convocada a participar deste momento?

Partiremos dos interrogantes que o caso do sul-coreano produziu a fim de pensar os avatares da violência juvenil da atualidade, ou melhor, a paixão pelo real que os jovens apresentam, enlaçando isso com o tema do esvaziamento da experiência e da transmissão na chamada sociedade do espetáculo.

 

Olhar Contemporâneo: invisibilidade ou excesso?

Quando vamos às escolas, não raro escutamos as queixas dos professores e orientadores reclamando da ausência da família e dos pais no cotidiano dos filhos. A essa repetida queixa juntam-se as autorrecriminações dos pais que sofrem com a falta de tempo para se dedicarem aos filhos. O interessante é que para dar conta desse mal-estar da atualidade, sobram tecnologias. Não são poucas as escolas, especialmente nos grandes centros urbanos, que oferecem em seu cardápio câmeras cuja função é acompanhar todos os passos e espaços dos filhos, de modo que de casa ou do trabalho os pais possam ver tudo o que os filhos fazem.

Destacamos que a reclamação não se limita às instituições sociais tradicionais, famílias e escolas. Em recente matéria da Revista Veja (Melman, 2008), tivemos a oportunidade de constatar que psicanalistas acostumados a estar na vanguarda do pensamento crítico também se seduzem pela “moral do apocalipse”.

O francês Charles Melman (2008), na entrevista intitulada A família está acabando, denuncia o que parece ser, em sua visão, a dissolução do grupo familiar. Ele tributa o declínio da família e da função paterna à constituição de uma nova economia psíquica, na qual os jovens não sabem mais o que desejar, pois buscam a satisfação imediata de um prazer maximizado em que não sobra espaço para a tolerância às frustrações. Ora, concordamos com a problematização proposta pelo psicanalista acerca da relação com o Desejo, porém, a fala de Melman evoca a noção de que a função simbólica, responsável pelas inúmeras formas do sujeito se representar, só poderia ter potência no aconchego dos velhos elos familiares. Como se não fosse possível, a partir das novas configurações da família e do social reinventar um novo laço com o outro.

Mas perguntamos: será que falta família ou trata-se aqui de outras ausências ou até mesmo de outros excessos? Será que as problemáticas juvenis abordadas nesta tese estão relacionadas especificamente às mudanças da “geografia afetiva” nas relações familiares e parentais? Acaso estas relações poderiam ficar apartadas do porte, olhar e gesto que cada época apresenta, conforme dizia Baudelaire (1996:27)?

Deixemos essa questão repousar um pouco mais e sigamos nos rastros que as queixas revelam. Serão os jovens invisíveis aos olhares parentais ou padecem eles exatamente do oposto, de um excesso nessa relação com o “olhar”? Como compreender uma relação que apresenta um semblante de onipresença, mas que, ao mesmo tempo, não consegue “ver” o que acontece nas diferentes formas de sofrimento juvenil? O que se passa com este olhar (da cultura e da família) que, mesmo fazendo-se sempre “presente”, parece deixá-los sem referências simbólicas capazes de ofertar um traço que sirva de arrimo de representação? Qual relação pode se estabelecer entre o empobrecimento da experiência e o movimento “pendular” de falta ou excesso de olhar?

Debord (1997:13) inicia o clássico A Sociedade do Espetáculo dizendo que nas sociedades em que imperam “as modernas condições de produção encontramos uma intensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”. O autor agrega a essa ideia a noção de que o espetáculo afirma toda a vida humana como simples aparência. Para ele, o que é real transforma-se em imagens, pois o espetáculo leva o sujeito a se relacionar com o mundo através do se fazer ver, ficando a visão como o sentido privilegiado em relação a outros.

Eric e Dylan, dias antes do massacre de Columbine, disseram a um colega que iriam fazer algo notável para que fossem sempre lembrados. Da mesma forma, o estudante alemão que, também no ano de 1999, protagonizou uma chacina semelhante na pequena cidade de Erfurt, antiga Alemanha Oriental, declarou a demanda pela fama: “Um dia quero que todos saibam o meu nome, quero ser famoso”.

Nesta direção, podemos pensar que, em grande parte dos massacres juvenis, fica em questão um apelo imaginário, cujo vetor parece ser inscrever um traço simbólico passível de criar um lugar no Outro, enquanto instância simbólica.

Cho, o estudante da Virginia Tech, ao enviar vídeos seus com mensagens a uma emissora televisiva, parece ter ido um passo adiante dos antecessores. Com o ato, mostrou seu último desejo: inscrever-se na rede de imagens televisivas, como se esse fosse “O”1 espaço de inscrição na esfera pública. Afirmar a si mesmo através da visibilidade midiática foi um modo de, simultaneamente, confirmar e denunciar a obsessão pela fama presente no laço social atual. O problema disso, como aponta Kehl (2005:242), é que a lógica da espetacularização contida na demanda de “fama” alimenta-se das intensidades e, portanto, além de violenta e excludente, marginaliza “tudo aquilo que não se dá a ver, mas é parte essencial de nossa humanidade: a falta, o enigma, o campo simbólico, que são exatamente as condições do pensamento”.

Ora, a ausência da falta e do enigma impossibilita as polissemias e confere um caráter unívoco aos sentidos. As práticas da publicidade e do marketing mostram exatamente um modo de funcionamento no qual o terceiro está ausente, em que os sentidos são produzidos para as massas. O excesso de olhar deste Outro que incita à completude convoca a pulsão escópica, de modo, por exemplo, a tornar a visão soberana em relação a outros invocantes da estruturação psíquica. Tais condições constroem uma realidade pautada por uma instância vigilante; um olho que nos vê o tempo todo, de modo intermitente, produzindo um efeito paranoicizante nas relações.

O psicanalista Betts (2007), ao analisar a pulsão escópica na contemporaneidade, observa que mesmo a vidinha banal e cotidiana é passível de espetacularização. Quer dizer, “a representação das aparências ocupa o centro do palco no laço social escópico” (2007:51). Cria-se uma espécie de império da imagem no qual o sujeito se encontra convocado ao consumo efêmero e fugaz dos objetos e das interações.

Nesse sentido, Modernidade e ciência andam juntas. Se os novos modos de produção levam o sujeito a consumir seu corpo no labor, a promessa da ciência de tentar resolver a dissimetria entre sujeito e objeto não oferece saídas mais criativas para o drama humano da falta. Assim, a convocação da visão como sentido supremo de nosso tempo social, através do incremento crescente do marketing, da cultura das performances visuais e do desfiladeiro intenso de imagens parece esvaziar o sentido do olhar.

Conforme Betts (2007:53):

no espetáculo do consumo cotidiano, a mercadoria (inclusive a obra de arte autêntica mercantilizada) visa absorver a visão e nos poupar – ou até mesmo impedir – o estranhamento subjetivo causado pelo olhar do desejo. Como veremos, ver fascina e acalma, enquanto o olhar causa estranhamento e interroga a respeito do que causa o desejar.

Lacan (1964), quando trabalha, no Seminário 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise propõe, na parte dedicada ao olhar, a diferenciação entre ver e olhar. Ele sugere que a visão está relacionada ao imaginário, enquanto o olhar evoca a causa do Desejo, mais relativo ao simbólico. Parece que tal diferenciação entre ver e olhar, proposta por Lacan e retomada por Betts (2007), aproxima-se do que Benjamin (1936) propõe quando diferencia vivência e experiência.

Para o filósofo alemão, a Modernidade trouxe um outro tipo de experiência ao sujeito das grandes metrópoles. O antigo narrador, do qual ele tomou Leskov como paradigma, era aquele que ao narrar esquecia de si, pois não era autor no sentido egoico, ele era um elo a mais na cadeia de transmissão. Porém, ao consolidar-se a Modernidade, Benjamin percebeu que a fruição do tempo gradativamente dava origem a uma intensa aceleração – algo que poderíamos chamar de uma espécie de comportamento maníaco -, de modo que a contemplação foi sendo substituída pela pressa enquanto cresciam os controles sociais, instalando, assim, o anonimato. Neste quadro, Benjamin viu surgir a Erlebnis, a vivência do sujeito que vive em meio à multidão – o tipo de experiência pela qual o indivíduo isolado que vive o instantâneo e fugaz momento do acontecimento fica tomado.

Ora, sabemos que Benjamin (1989:139), ao denunciar esses novos modos de subjetivação, reclamava da perda da aura e revelava o que ficou conhecido como a crise da percepção. Para ele, o fim da aura coincide com o fim da experiência. Toda a nascente possibilidade de reproduzir a arte através das novas técnicas diminui, em sua visão, o valor de culto dos objetos em face da exposição e retira a aura da autenticidade: “Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução” (Benjamin, 1989:170).

O filósofo, em Sobre Alguns Temas em Baudelaire (Benjamin, 1989:141), associou o declínio da aura à ausência da capacidade de olhar: “Baudelaire descreve olhos que haviam por assim dizer perdido a capacidade de olhar”; é como se o homem das multidões estivesse impossibilitado de olhar no sentido de fruir as vivências, de fazer com que delas pudesse decantar uma experiência, um contato aurático com os acontecimentos e objetos. Assim, Benjamin (1989:139), ao recolher a fala de Novalis2, “a perceptibilidade é uma atenção”, sublinha que a perceptibilidade à qual se refere o poeta não é outra que não a da aura.

A aura e a experiência, tratadas por Benjamin, podem ser aproximadas ao saber inconsciente e ao sujeito do Desejo – conceitos caros à Psicanálise. Talvez possamos fazer uma analogia do fluxo narrativo do antigo narrador com o que, em Psicanálise, tratamos como o saber não sabido, o saber do inconsciente em transferência. O saber que produz efeitos simbolizadores porque vem marcado pelo Desejo, porque faz elos entre os diferentes tempos e, portanto, aglutina uma transmissão, não uma prescrição. As antigas narrativas propiciavam a polissemia necessária à construção da experiência no plural; a brincadeira com os sentidos que se produzia em meio às “passagens” ou transmissões narrativas parecem ter sido trocadas por histórias cada vez mais pautadas pelo real.

Quando Cho reclama da falta de opção que “lhe deixaram”, ele parece denunciar um tanto deste empobrecimento que podemos, junto com Benjamin, chamar de empobrecimento da transmissão. Parece que no lugar da transmissão da falta apresentam-se prescrições de condutas, manuais de autoajuda, dicas de especialistas e toda a parafernália que acompanha a cultura de mercado. Como diz Kehl (2005), não é mais necessário um ditador que se ocupe em controlar a sociedade; as práticas sociais ancoradas nas premissas do individualismo e da sociedade do mercado se encarregam da tarefa. Assistimos a uma espécie de midiatização (grifo meu) da subjetividade, em que estamos sempre prontos para ver e ser vistos.

Da arquitetura do vidro comentada por Benjamin (1989) aos reality shows de hoje, vemos a transformação da transparência: não há mais fronteiras entre público e privado, as duas esferas são amalgamadas de modo que se criam zonas de indistinção entre o que pode ser da esfera pública e o que é da esfera privada e pessoal. As práticas do Grande Irmão, de George Orwell, são mais sutis e prescindem de uma figura que encarne a vigilância3.

Segundo Debord (1997:14), o espetáculo não é só um abuso do mundo da visão, ele é “uma Weltanschauung que se tornou efetiva, materialmente traduzida. É uma visão de mundo que se objetivou”. Perguntamos então: será que a dimensão do espetáculo, ao instalar a saturação de imagens como paradigma do sentido, penetra no sujeito de modo a criar uma relação literal demais para o homem?

Acaso poderíamos pensar que na declaração de Cho está contida a denúncia de que não lhe restou nenhum enigma, nada a decifrar a partir do que vinha do Outro? Será que a passagem ao ato de Cho e de outros jovens como ele revela o impossível contido na armação do que podermos chamar de Império do Sentido?

 

O Império do Sentido e o “Esculacho” da Vida

O interessante é que na atualidade vivemos acontecimentos que talvez possam ser pensados como o efeito das condições descritas por Benjamin e Baudelaire. O esvaziamento da dimensão da experiência instalado gradativamente há mais de uma centena de anos parece ter, aos poucos, esculpido o vazio simbólico que acolhe a atual paixão pelo real (Zizek, 2003).

Na medida em que diminuem as mediações, em que a função da simbolização dá lugar ao imaginário, a “terceira margem”4 como lugar de polissemia se apaga. A ciência, com seus pressupostos, aliada ao mercado de bens, tratou de expandir, ao longo do último século, a noção de que a relação com a falta do objeto podia ser tomada a partir da dimensão de potência e impotência, prejudicando o contato com a natureza impossível desta dissimetria irredutível.

Não é demais lembrar que Lacan (1955/56:17), em O Seminário 3: As Psicoses, diz que a falta do objeto como conceito constitutivo do sujeito é a noção mais essencial da experiência psicanalítica, até porque o objeto para a Psicanálise só existe como negativo. Ou seja, o objeto como “coisa em si” inexiste, a história do objeto se dá pontualmente no trajeto de sua busca, em nenhum outro lugar.

Quando Zizek publicou o livro Bem-vindos ao Deserto do Real!, em 2003, ele tratou do real a partir do sentido consagrado por Alain Badiou: a busca da coisa em si. Em suas análises acerca do acontecimento de Onze de Setembro5, ele questiona o quanto os sujeitos contemporâneos buscam exatamente o impossível desse encontro. Vejamos como Kehl (2005:46), ao tratar da dimensão do espetáculo na atualidade, tensiona o texto de Zizek:

O título do livro mais recente de Slavoj Zizek [...] é uma frase tomada do filme Matrix, dos irmãos Wachowski. Lembra a passagem em que os protagonistas despertam da realidade virtual controlada pela Matrix, e encaram a realidade em que viviam sem saber. Ao se confrontarem com o “deserto do real”, livres da ilusão em que estavam mergulhados, a reação dos heróis de Matrix não é de libertação: é de horror. Para Zizek, este é o paradigma da sedução operada pela ideologia: ela nos faz desejar a dominação e repudiar o alto preço cobrado pela liberdade. A contrapartida da eficácia da ideologia manifesta–se no que o filósofo denomina (com Alain Badiou) paixão pelo Real. Só que paixão pelo real, a meu ver, não é o avesso da ideologia, é a força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. Só que paixão pelo real, a meu ver, não é o avesso da ideologia, é a força propulsora das formações imaginárias que recobrem todos os aspectos da vida que não podemos compreender. É precisamente do imaginário que se alimenta a ideologia. A violência da ideologia advém desta totalização do imaginário como representação “fiel” do Real.

A partir desse entendimento, propomos a articulação da crítica benjaminiana acerca do esvaziamento da experiência com a chamada paixão pelo real. Pensamos que a morte da narratividade, ou seja, o movimento gradativo que foi secando as fontes narrativas é o mesmo que propõe o imaginário como cópia fiel do real. Na medida em que os sujeitos não se sentem mais autorizados a constituir experiências atravessadas pelas construções históricas e simbólicas, perde-se uma dimensão da transmissão essencial para a construção de uma relação com o real que permita a emergência do novo. É deste modo que vemos criar-se o que pode ser denominado de “ecolalia” na leitura do mundo, como se não fosse mais possível inventar, criar, recortar do real uma versão própria, na qual o sujeito possa estar ativamente colocado desde as suas experiências. As lentes da ciência, da sociedade de consumo e da cultura escópica parecem convocar o sujeito a esse deleite mortífero da ilusão de encontrar-se com a coisa em si, com um objeto que supostamente suture a falta.

Podemos então tomar algumas violências contemporâneas mais como efeitos de articulações do tempo atual e não como um sinal do “fim do mundo” ou do “fim dos laços”. Para Zizek, o desejo de destruição das aparências, bojo da crítica às ideologias do século XX, acabou provocando o desnudamento do que ele chama de “as camadas enganadoras da realidade”, produzindo neste ato a chamada paixão pela coisa em si.

O homo sacer e a vida nua (Agamben, 2002) podem ser tomados como correlatos desta relação (com o real). O encontro com o outro em um laço que se organiza a partir das aparências e do protagonismo da imagem parece deixar pouco espaço para intercâmbios que não sejam da ordem da paixão pelo real. Façamos o exercício de pensar se o sujeito lírico do século XIX, um flâneur, por exemplo, poderia desenvolver tal relação com os fenômenos e objetos6.

Para ilustrar a realidade que se arma a partir das novas condições, trago um fragmento do documentário, Falcão - meninos do tráfico, no qual MV Bill7 mostra a dura realidade dos menores que participam da rede de tráfico de norte a sul do Brasil. Segundo as imagens, dos 16 adolescentes entrevistados, apenas um ainda estava vivo quando o vídeo, em 2006, foi transmitido e comentado no Programa de TV Fantástico, da Rede Globo. Em um fragmento das entrevistas, um dos meninos diz: “Se eu morrer, nasce um outro que nem eu, pior ou melhor. Se eu morrer, vou descansar, é muito esculacho nessa vida.”

Esse relato trágico de um futuro que não se consuma revela um pouco da violência incorporada ao cotidiano. Porém, a reflexão não se esgota aí. Alguns meses antes de o programa ser exibido, inquietou-me a notícia de uma chacina protagonizada pelo Comando Vermelho, no bairro Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro.

Vale registrar que se não fosse o requinte cruel dos assassinos, a morte de três jovens negros talvez não passasse de mais um episódio assinado pelo tráfico: um dos rapazes foi decapitado e sua cabeça colocada no capô do carro, enquanto os outros dois tiveram os órgãos internos expostos. Contudo, a reportagem de Lobato (2006) recolheu brilhantemente o mais inusitado da situação, a reação da população. Alguns passantes, ao se depararem com a cena, ao invés de se chocarem, começaram a fotografar os cadáveres com os celulares, em uma demonstração explícita da espécie de “atração” que tal “horror” produz; alguns ainda, aos risos, justificavam-se dizendo: “Ri porque é engraçado ver um corpo todo picado”.

Neste mosaico, unificado apenas pelas diferentes nuances reveladores da paixão pelo real, não pude deixar de lembrar uma notícia, veiculada em dezembro de 2005 no jornal Zero Hora (Entranhas à Mostra, 2005). A reportagem, cujo título era Entranhas à Mostra, tratava da polêmica Exposição Corpos: a Exibição. A amostra, sob o comando do médico Roy Glover, era composta por 20 cadáveres dispostos em poses atléticas, preparados a partir de técnicas de ressecamento. Segundo o relato jornalístico, na exposição ainda podiam ver-se 260 outras partes do corpo humano, desde pulmões cancerosos até fetos defeituosos. O texto que anunciava a “atividade cultural” sublinhava também que, para aqueles que podiam recalcar o fato de estarem frente a cadáveres, ou seja, seres humanos mortos, um balcão na saída tratava de explicar o método da conservação dos corpos.

Parece-nos que, de algum modo, a brutalidade explícita deste crime está associada às condições sociais que levam a cultura atual a acolher uma exposição como a de Glover. Calligaris (2006), ao comentar a repercussão da chacina carioca, fala dos efeitos de uma subjetividade tecida longe dos sonhos e dos ideais, uma subjetividade cada vez mais confundida com o corpo.

Realmente, parece que a exposição de Glover, ao exaltar a finalidade educativa de mostrar os recôncavos da anatomia do corpo, aponta para uma relação de paixão com a “coisa em si”. Ora, se essa “paixão pela coisa em si” identificada por Zizek como a tônica do século XX, o século da ciência, levou-nos a grandes avanços, precisamos talvez reconhecer que a “paixão pelo real”, que daí decorre, pode nos levar a uma tal atração pelo “horror”, cujo resultado pode ser realmente um novo tipo de subjetividade, quiçá uma nova metafísica.

 

Herança e Transmissão

Deus criou o mundo como o mar criou a praia, retirando-se
(Holderlin citado por Julien, 1997:50).

 

Se o segredo de Deus para o engendramento do mundo esteve na retirada, podemos dizer que o engendramento do homem está na transmissão da falta, também um modo de retirada.

É no espaço que se abre no Outro que surge a possibilidade do registro. Registrar é representar o que se inscreve no corpo, desde a relação com o Outro; é também o que permite que o sujeito saiba quem ele é e qual é o seu nome. Nesse sentido, o registro é uma outra forma de falar do sujeito e da memória.

Kehl (2001), ao prefaciar o livro Corpo e Escrita, da psicanalista Ana Costa, diz que a memória, nas construções teóricas da estudiosa, estaria dada em dois registros distintos. Um seria o registro que dá consistência ao sujeito e promove uma ligação duradoura entre o moi e o je, enquanto o outro seria o registro da rememoração e da transmissão: o sujeito que marca a presença no registro daquilo que experienciou. Pode-se tomar o segundo como o registro da ordem do inconsciente, não do conhecimento; ele constitui um saber que decanta, que faz trânsito entre o sujeito e o Outro, é aquilo que faz passagens e cria pontes ao estabelecer trajetos possíveis entre os diferentes tempos.

Nas reflexões acerca da transmissão, Costa (2001) associa experiência e testemunho. Segundo ela, os dois conceitos andam juntos, pois o ato de testemunhar e narrar é sempre endereçado a um outro, mostrando no próprio endereçamento a insuficiência do sujeito e, portanto, do Outro8.

Pensamos que essa dimensão da falta contida na transmissão é a vertente evocada por Benjamin ao chamar de “calor” aquilo que o homem moderno buscava nos romances: o saber que, diferente do conhecimento e da informação, faz laço porque evoca o vivido como narrável e historicizável. A possibilidade de que das vivências decantem experiências, narrativas e testemunhos, parece ser o que “aquece” o laço entre os sujeitos. Podemos pensar que esta é uma das formas pelas quais se produzem inscrições e representações, é um modo que possibilita a produção da polissemia, a qual flexibiliza os sentidos e produz enunciações, não só enunciados ecolálicos.

Na leitura atenta do texto de Costa, Kehl (2001:22) desdobra o que pode ser o mais interessante do enlace entre experiência, transmissão e criação; ela diz que os modos de evitamento da experiência são formas de manter a potência absoluta do Outro, pois o que faz experiência, ou seja, a possibilidade de uma versão própria no encontro com o real é o que também opera, fazendo limite ao poder absoluto do Outro/Pai. Ainda na esteira de Ana Costa, ela propõe que a adesão aos enunciados da ciência e o gozo com o “encontro absoluto de corpos fora do discurso” seriam dois modos atuais de contornar a experiência.

Costa (2001) utiliza a metáfora do exílio para falar da passagem adolescente. É como se, desde o lugar de exilado, o adolescente estivesse autorizado a testar os traços que irão representá-lo, exercitando, assim, as tentativas de inscrever um estilo próprio, inventando um lugar psíquico e social para si. Pois é nas terras deste exílio que os jovens se deparam com aquilo que pode ser o mais caro às suas construções psíquicas, o encontro com o sexo e a morte, este real que cobra um preço alto de elaboração. Parece que as experiências intensas vividas em meio ao exílio e às margens também revelam o teor do que eles demandam elaborar por conta desse momento lógico da estruturação. Nesse sentido, perguntamo-nos sobre os atos dos adolescentes e jovens aqui referidos. Serão atos que testemunham a redução da experiência contida na transmissão que recebem daqueles que vieram antes9?

Destacamos o caráter desconstrucionista presente na adolescência tomada como operação psíquica. Dizemos desconstrucionista, pois o jovem, a partir do que recebeu, tentará constituir novos traços que o representem frente ao Outro. O grande trabalho psíquico da adolescência é operar a partir da transicionalidade entre o campo familiar e o campo da cultura. Assim, na medida em que a passagem do Outro parental para o Outro social acontece, o jovem debatese, destruindo e reconstruindo referências e conceitos de si e do mundo. Aqui cabe pensar na concepção de transmissão que o desconstrucionismo de Jacques Derrida nos legou.

Antes de sua morte, Derrida estabeleceu um diálogo com a psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco, no qual discorreu longamente sobre o tema da herança e da transmissão. Logo no início, Roudinesco (Derrida & Roudinesco, 2004:9) apresenta-nos o teor da conversa: “Trata-se de escolher sua herança, segundo seus próprios termos: nem aceitar tudo, nem fazer tábula-rasa”. Ela segue dizendo que a partir do desconstrucionismo10 a “melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser-lhe infiel, isto é, não recebê-la à letra, como uma totalidade, mas antes surpreender suas falhas” (2004:11).

Pensamos que tal conceito de transmissão, além de dialogar com algumas questões abertas por Benjamin, também pode ser associado à movimentação própria da adolescência enquanto momento lógico da constituição psíquica. Entre outras interrogações, tal conceito evoca uma questão importante para a Psicanálise contemporânea: como a falta pode ser operativa para pensarmos os sintomas juvenis da atualidade? Ou ainda, como é possível para o adolescente lidar com a herança, em uma medida que possibilite a emergência do novo?

Derrida (2004:13) assim falou sobre a herança: “saber deixar é uma das coisas mais belas, mais arriscadas e mais necessárias”. Quer dizer, “saber deixar” pode ser tanto passar a herança enquanto marca significante, não sígnica, quanto receber o herdado desde outro lugar que não o do espelho. Talvez seja interessante brincar com a polissemia da expressão, pensando na potência que pode advir frente à possibilidade de ser sujeito na e da transmissão.

Como fazer então para que o passado não se transforme em uma lembrança nostálgica hermeticamente fechada em um acervo chamado memória? Como operar para que não tenhamos passado morto, somente histórias vivas a ponto de se deixarem reescrever pelas letras do presente?

Nesta direção, encontramos na pena de Derrida (2004:14) a proposta desconstrucionista como uma transmissão de “vida viva”:

[...] a desconstrução [...] tenta pensar o limite do conceito, chega a resistir à experiência desse excesso, deixa-se amorosamente exceder. É como um êxtase do conceito: goza-se dele transbordantemente. Nos textos desconstrutores que escrevi [...], há sempre um momento em que declaro o mais sinceramente do mundo, a admiração, a dívida, o reconhecimento – e a necessidade de ser fiel à herança a fim de reinterpretá-la e reafirmá-la ao infinito [...].

O adolescente talvez possa ser tomado como o paradigma social do herdeiro, aquele que testemunha uma herança tanto em termos pessoais quanto geracionais. Tal posição o impele a desconstruir o que recebeu. É preciso fazer uma nova montagem, encontrar um lugar próprio de enunciação. Neste sentido, parece-nos que eles padecem da não transmissão da falta como promotora de elos entre os diferentes tempos. O que propor para que a transmissão possibilite que os jovens se tornem, de algum modo, contemporâneos em relação a fatos não vividos?

Quando Arendt (2001:28), no prefácio do livro Entre o Passado e o Futuro, recolhe o aforismo do poeta e escritor francês René Char, Notre héritage n’est précéde d’aucun testament, ela aponta para uma ruptura no legado do passado cujo sentido é o de impossibilitar que um futuro daí advenha. Isso porque, em sua visão, “cada nova geração, e na verdade cada novo ser humano, inserindo-se entre um passado infinito e um futuro infinito, deve descobri-lo e, laboriosamente, pavimentá-lo de novo”. Porém, parece que as práticas sociais desta época, associadas à dificuldade cada vez maior de os adultos se colocarem como sujeitos desejantes, impossibilitam que o passado seja sorvido pelo jovem no diapasão proposto por Arendt (2001:243):

Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura [...] a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.

Se concordamos com a visão da filósofa acerca da perda da tradição e a consequente ausência de referenciais que “indiquem onde se encontram os tesouros e qual o seu valor” (2001:31), no que se refere aos jovens da atualidade, também compartilhamos da reflexão crítica de Costa (2001:66) acerca dessas premissas. Para a psicanalista, tomar a perda da tradição como um prenúncio de uma catástrofe na relação com as representações seria uma espécie de idealização imaginária da tradição, enquanto condição suprema de representação. Desta reflexão, Costa (2001) retira a noção de que, na atualidade, não há uma autoridade anterior à experiência. Será a experiência que produzirá a autoridade, já que não existem lugares prévios no social que garantam uma representação. Assim, os sujeitos sentem-se interpelados a agir, buscando promover, a partir de seus atos, um lugar de representação nos laços discursivos.

Ou seja, tudo o que discutimos até aqui nos leva a problematizar os fenômenos juvenis de modo mais complexo. Está claro que estamos frente a um laço social que apresenta lacunas no que se refere à possibilidade de encontrar artifícios possíveis a fim de ajudar na difícil elaboração do encontro com o real. A ciência, a mídia e as novas tecnologias reconhecem muito precariamente o sujeito em suas produções, levando à impessoalidade e ao anonimato do Desejo e do outro. Soma-se a esse quadro o fato de a cultura atual apresentar menos diques passíveis de conter os ímpetos pulsionais, de modo que os jovens, ao terem dificuldade em transpor o que há de irrepresentável na adolescência, acabam quase impelidos a buscar, através de atos extremos, a representação que não obtêm por outras vias (Costa, 2001:126).

Tais condições culturais de transmissão também produzem efeitos na esfera privada da família. O psicanalista francês Philliph Julien (2000), em meio às configurações da Modernidade, pergunta-se: o que pode ser a função da família na atualidade? O que ela pode ou não transmitir à geração seguinte?

Ora, os pais são aqueles que transmitem a lei do Desejo, a partir dos avatares do Édipo. O Desejo aqui referido deve ser compreendido no sentido intransitivo, já que, para a psicanálise lacaniana, desejar não é desejar uma coisa em si. Conforme Calligaris (1991:179), “O Desejo não é algo suscetível de um saber. O Desejo é um exercício sem saber e o difícil é conseguir desejar”. O Desejo do sujeito é o que psiquicamente sustenta as demandas, é a instância psíquica que anima toda a metonímia dos objetos do sujeito. A ética do Desejo para a Psicanálise é justamente a possibilidade de desejar, não no sentido de querer alguma coisa.

Neste ponto, propomos o enlace entre a transmissão da experiência e a transmissão do Desejo. Ambas parecem apontar para a possibilidade de que algo da origem, do que vem antes tenha um lugar de inscrição. Ora, quando tratamos da transmissão, tratamos daquilo que pode decantar, ou seja, daquilo que pode separar-se depois de estar fusionado. Conforme vimos com Arendt, a transmissão à geração seguinte implica que algo das experiências decante; é preciso, como lembrou Derrida, deixar algo passar; é a relação com o velho e com o já existente que pode produzir o novo, aquilo que na passagem poderá se transformar.

Pensamos agora nas famílias dos sujeitos aqui citados, os jovens protagonistas de massacres, maiores ou menores. As famílias desses jovens, em geral, parecem presas de um sentimento intenso de perplexidade; hesitam, muitas vezes, em acreditar no que a realidade apresenta-lhes e não raro interrogam: “Onde foi que eu errei?”.

Neste sentido, é interessante pensar que, segundo Lacan, uma transmissão (psicanalítica) ocorre na medida em que o inconsciente produz efeitos e não pela comunicação de uma doutrina. Ou seja, não importa o que se diz aos descendentes, mas aquilo que lhes é transmitido.

No tema da transmissão, Melman (2003:158) é preciso. Ele diz que atualmente o que se transmite são bens ou dívidas reais, enquanto anteriormente o que se transmitia era um estado de espírito,

[...] uma maneira de compreender o mundo, de se sustentar, todo um conjunto de elementos que, sem serem verdadeiramente enunciados em algum lugar, regiam, entretanto, as atitudes e as formulações [...]. O que os pais doravante querem transmitir aos filhos é uma posição social. É horrível! Crianças bem constituídas só podem querer se marginalizar [...]. Além do mais, a questão verdadeira de uma transmissão não é o saber em si, mas a relação com o saber: o importante é o que o funda, sua relatividade, seus usos.

Na impossibilidade de se interrogar sobre a origem, o simbólico deixa de ser eficaz, surgindo a paixão pelo real e seu correlato: a violência. Nesse cenário, talvez a Psicanálise possa ajudar a circunscrever lugares potentes de criação. Segundo Melman, o inconsciente pode ser tomado como o último refúgio do sujeito, a morada que, apesar do “deserto do real”, continua produzindo significantes, ou melhor, segue possibilitando que se façam sempre outras e novas versões sobre o real.

Como diz Derrida (Derrida; Roudinesco, 2004:14) acerca da herança, apesar das convocações da atualidade, é preciso sempre considerar a responsabilidade do sujeito com o que veio antes e com o que virá depois:

É-se responsável perante aquilo que vem antes de si, mas também perante o que está por vir, e, portanto, também perante a si mesmo. Perante duas vezes, perante o que deve de uma vez por todas, o herdeiro está duplamente endividado. Trata-se sempre de uma espécie de anacronia: ultrapassar em nome de quem nos ultrapassa, ultrapassar o próprio nome! Inventar seu nome, assinar de maneira diferente, de uma maneira a cada vez única, mas em nome do nome do legado, caso seja possível!

Pela responsabilidade com o que veio antes e o que virá depois é que “a verdadeira experiência é, com efeito, falante, ela não cala, ela faz falar” (Pereira, 2006:65). Porém, os laços da atualidade apresentam-se silentes, produzindo alguns impasses na relação com a palavra. Assim, na ausência de transmissão da herança, apaga-se a possibilidade de experiência, pois uma vivência que não pode ser narrada e transmitida condena simultaneamente o passado e o futuro à aridez – ou à falta de calor, conforme Benjamin. Para Rochlitz (2003:340), os aspectos não elaborados e resgatados do passado “[...] nos assombram e envenenam quanto mais eles sejam esquecidos [...]”.

Assim, qual seria o contraponto que poderíamos oferecer aos jovens frente ao emudecimento crescente que vivenciam? Como reagir à atrofia da experiência denunciada por Benjamin e atualizada em nossos dias?

Talvez seja interessante fazer como o flâneur de Baudelaire, simplesmente deixando que as marcas do Desejo inscrevam traços pelos caminhos onde passamos. Ou ainda, como alude poeticamente Arendt (1987), pescando as “pérolas” simbólicas que, apesar dos impasses trazidos em meio ao “deserto do real”, insistem em se presentificar. Isso porque, para que uma experiência venha a ser uma herança transmissível, é preciso que se constitua um herdeiro, um sujeito que banque o encontro com os tesouros do passado sem temer ir às profundezas, para que dali possa emergir o verdadeiramente novo.

 

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Endereço para correspondência
Roselene Gurski
E-mail: roselenegurski@terra.com.br

Recebido em: 26/08/2009
Revisado em: 05/04/2010
Aceito em: 13/04/2010

 

 

* Psicanalista. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil; Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil e Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Coordenadora da Clinica Maud Mannoni.
1 Propomos aqui o deslizamento de sentido do artigo definido “o” para indicar o que tomamos como sintoma atual: a mídia como espaço privilegiado de representação do sujeito. O trocadilho por O, com maiúscula, é uma alusão à necessidade de inscrição no Outro enquanto instância simbólica. Vale lembrar que, para que um sujeito possa falar desde um lugar, é preciso um espaço simbólico, uma inscrição no Outro.
2 Novalis era o pseudônimo de Georg Friedrich von Hardenberg, um dos mais importantes representantes do romantismo alemão do final do século XVIII.
3 Lembramos aqui o programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, como uma versão atual do Grande Irmão de Orwell.
4 O conto A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa (2005), alude ao Pai no sentido de sua função. O Pai como função é esse terceiro que se aliena na “outra” margem que é o meio do rio. O conto faz confluir a alegoria e a polissemia literária, produzindo um diálogo importante com o conceito de significante em Lacan. Conforme Azevedo (2001:63), o Pai, “esse terceiro que se aliena na terceira margem, apesar de levar a efeito um certo corte na potência desta mãe que ‘tudo regia’, abdica, tal como Rei Lear, de seu patrimônio [...]”; porém ela lembra a importância de considerar-se os dois pólos da transmissão. Citando Blanchot (1999 citado por Azevedo, 2001:63-64), a psicanalista interroga tal dimensão: “É o pai que naufraga no exílio da canoa, ou o filho que afunda à e na margem, sem poder ouvir falar deste outro?”.
5 Data do ataque terrorista que destruiu as torres gêmeas em Nova York, em 2001.
6 Sublinhamos que nesta colocação não reside nenhuma nostalgia idealizadora, o lirismo presente na subjetivação do homem pré-industrial não é melhor nem pior; utilizamos a analogia somente como um modo de problematizar de forma mais plural os fenômenos do tempo presente.
7 MV Bill é um cantor de rap que compõe letras marcadas pela denúncia social. Publicou, com o produtor Celso Athayde, o livro e também documentário Falcão: meninos do tráfico (Bill; Athayde, 2006), no qual retratam a vida dos jovens das favelas brasileiras que trabalham com o tráfico de drogas. O documentário foi realizado ao longo de seis anos, entre 1998 e 2006. Uma parte dele foi apresentada no Fantástico – Rede Globo, no dia 19 de março de 2006.
8 É preciso sublinhar que, se o Outro fosse pleno, os sentidos seriam cerrados e não haveria espaços possíveis para a inscrição das marcas do sujeito.
9 A expressão alude ao que Arendt (2001) discute no texto A Crise da Educação como a responsabilização dos adultos com o mundo ao qual trouxeram as crianças.
10 Segundo nota de Roudinesco (Derrida & Roudinesco, 2004:9), o termo desconstrucionismo foi utilizado pela primeira vez por Jacques Derrida, em 1967, no texto Gramatologia; é um termo retirado da arquitetura que significa a decomposição de uma estrutura. Consiste basicamente em desfazer um sistema de pensamento hegemônico ou dominante sem nunca aniquilá-lo, destruí-lo: “Desconstruir é de certo modo resistir à tirania do UM [...]”. É preciso lembrar que estamos utilizando o desconstrucionismo como uma inspiração, estabelecendo uma espécie de analogia com o movimento psíquico da adolescência; não se trata, portanto, de uma concepção teórica sustentadora deste escrito.