INTRODUÇÃO
A história contada ano após ano sobre a realidade brasileira não reflete o seu povo e sua riqueza territorial presente nos mais diversos cenários nacionais, principalmente quando relacionamos com espaços de periferias e favelas que compõem grande parte das cidades (Martins, 2018). A imagem construída de homens brancos, cisgêneros e heterossexuais como heróis da pátria solidificou figuras sociais, históricas e culturais acabando por apagar importantes personagens da história, muitas delas mulheres negras e mulheres com deficiência, a exemplo de Marielle Franco, mulher negra e bissexual, ‘cria’ da Maré, vereadora assassinada em 2018 e sua luta emerge dos pré-vestibulares da favela e sua atuação no combate as milícias da capital carioca, Renata Souza, mulher negra, vereadora e cria da Maré, tem atuado na proteção e garantia de direitos de pessoas faveladas, Jaqueline Andrade, mulher negra e lésbica, yawô de candomblé efon, cria da Maré, atriz e produtora cultural, exerce importante influência na cena artística carioca,, Caju Bezerra, mulher negra bissexual, atriz e produtora cultural, yawô de candomblé efon, cresceu nas ruas da Maré e atualmente tem se apresentado em turnê na Europa e em várias regiões do Brasil, Anahi Guedes, mulher com deficiência, doutora em Antropologia, professora e pesquisadora, e tantas outras pessoas esquecidas das narrativas contadas ao longo dos anos.
Quando estes escritos começam a emergir ao longo dos últimos meses, surge o desejo de trazer a discussão em torno da deficiência para o campo da favela, atrelado a minha experiência como trabalhador no complexo de favelas da Maré. Primeiro, em função da escassez presente nos estudos que articulem a deficiência em espaços periféricos e de favela, e segundo por entender que a discussão nesse território atravessa situações e elementos singulares das pessoas com deficiências e faveladas. Pontuo ainda que a ideia não é falar por essas pessoas, nem trazer uma verdade ou análise sobre tais vivências, mas auxiliar na construção de uma história, que é além de qualquer coisa coletiva (Favero, 2020).
Recorrentemente é possível encontrar os desafios de pessoas com deficiências (demarcando que são plurais) e faveladas, pois vivem em ruas com pouca estrutura, vielas estreitas e correm riscos de vida quando acontecem operações policiais. Somando a isso, há a ausência de políticas públicas dentro de espaços de favelas destinadas a esse público e também a criminalização de moradoras desses territórios. Se por um lado, as questões de acessibilidade e circulação se conectam com as maneiras de organização presentes em espaços periféricos, por outro é fundamental à atenção para as estruturas sociais e políticas desenvolvidas para inviabilizar essas pessoas nesses territórios como diz Araújo e Mallart (2021).
Não raro, lideranças comunitárias lutam ao longo das últimas décadas para a promoção efetiva e no acolhimento das demandas vivenciadas pelas populações de favela. Apesar de não ser um movimento que comumente ganha destaque, há ainda lideranças faveladas de pessoas com deficiências, propondo a reflexão e a transformação em relação ao desenvolvimento e da existência desse público nas favelas. Dentre essas pessoas encontrei Bira, um homem preto, cadeirante, morador da Favela da Maré, fotógrafo e articulador territorial, que faleceu no início de 2022 e deixou um legado de luta e resistência. O objetivo desse ensaio é não deixar a trajetória de Bira cair no esquecimento da história, tendo como norte o seu legado para as discussões em torno da deficiência em espaços de favela.
A FAVELA DA MARÉ
A Maré é um bairro recente na cidade do Rio de Janeiro que legalmente só se oficializou enquanto tal a partir de 19 de janeiro de 1994 através da Lei municipal n° 2.119/1994, configurando-se o maior conjunto de favelas da região da Leopoldina, na zona norte carioca. O complexo da Maré é a soma do total de 16 comunidades, que se situam as margens da Baia de Guanabara e permeiam à Avenida Brasil, Linha Amarela e Linha Vermelha (Pires & Bruce, 2022).
Apesar da Maré ter sido considerada bairro apenas em meados dos anos 90, sabemos que a ocupação da região e a organização social do espaço têm seus registros desde os anos 40, no decorrer da construção da Variante Rio Petrópolis, hoje conhecida como Avenida Brasil. Sabemos ainda que, a mobilização e a ocupação das favelas cariocas antecedem ambas as datas, na Maré não foi diferente.
De acordo com Amador (1997), por volta de 1500 haviam na Baía da Guanabara cerca de 30 a 40 grupos tupis-guaranis. A existência destes povos indígenas resultou no uso e na cultura atualmente de dialetos e palavras na região, tais como: Inhaúma, Timbau, Catalão, Sapucaia, Pindaí, entre outros. Os índios Tupinambás caracterizaram os povos originários da região.
A região hoje ocupada pelas comunidades da Maré era uma extensão territorial marcada por praias, ilhas e manguezais que formavam a Enseada de Inhaúma (Praia de Inhaúma, Ponta do Timbau, Ponta da Pedra, Praia do Apicum, Ilha de Sapucaia, Ilha do Pinheiro, Bom Jesus, Pindais, Fundão, das Cabras, Baiacu e Catalão). Ao logo dos anos, a região foi tomada como lócus de grande notoriedade comercial, sendo referência para o centro da cidade, Caju, São Cristóvão e ilhas próximas.
No início do século XX, o prefeito Pereira Passos almejava uma urbe aos moldes coloniais, que por conta da precariedade acabava sendo palco propício para doenças e epidemias, tais como tuberculose, febre amarela, varíola e malária. Estas questões eram preponderantes devido ao intenso fluxo portuário, assim como a aguçada crise habitacional que submetia as moradias ao longo da cidade, visto que, as pessoas moravam em condições precárias e sem nenhum suporte do Estado. Para agravar a situação, não havia abastecimento de água e saneamento básico. Ainda nesse período, o processo de expulsão das pessoas das regiões centrais da cidade aguçou o povoamento da região que através dos violentos processos de expulsão de suas casas foram obrigados a circular por outras áreas urbanas.
Segundo a Redes da Maré (2019), uma instituição do terceiro setor, que emerge como fruto da articulação de moradores da favela através de um pré-vestibular e trabalha na atualidade com eixos de educação, segurança pública, cultura e arte, a população da Maré é de aproximadamente 140 mil habitantes, estando entre os 10 bairros mais populosos do município do Rio de Janeiro.
Alguns dados foram coletados ao longo de um censo realizado em 2019 com objetivo de “materializar – por meio de vivências, reflexões e construção de metodologias – ações integradas e abrangentes que ampliem os campos de possibilidades sociais e de direitos dos moradores de favelas e periferias” (Redes da Maré, 2019, p. 9). Entre os dados acerca da Maré no censo em questão estão: 62% da população é preta, 55% é composta por adultos entre 30 e 59 anos de idade, 44,4% dos responsáveis únicos ou principais pelo domicílio são mulheres, 19,6% dos adolescentes entre 15 e 17 anos estão fora da escola. 67,7% dos estudantes frequentam escolas localizadas na Maré, 37,6% da população completou o ensino fundamental, e 3,5% do total de domicílios há pelo menos, um morador com deficiência.
Os dados evidenciam a precarização do viver em territórios favelados que é uma imagem bastante difundida quando apresentados pela sociedade. Esses elementos fazem emergir não apenas as mazelas que costumeiramente já sabemos e também a falta de dados do Estado brasileiro, eles nos atentam para a amplitude de informações e a urgência de outras maneiras de pensar a realidade e as experiências de quem vive na favela. Veiga (2019. p. 244) diz “é tempo de decretarmos o fim do colonialismo”, o lugar no qual estou falando já decretou a bastante tempo, este lugar é o Complexo da Maré na cidade do Rio de Janeiro/RJ.
A compreensão que a Maré é um território plural e intenso se configura como uma disputa atualizada em meio a uma produção social que procura esquecer histórias dos não colonos, tais como os corpos pretos, das mulheres, das pessoas faveladas, das pessoas com deficiências que tendem a contar versões únicas em torno de espaços como a Maré. A favela reduzida à violência, ao sucateamento, pobreza e atraso passa a definir toda e qualquer possibilidade de vida ali existente, Chimamanda Adichie (2019) em seu livro “Os perigos de uma história única” introduz a ideia que são relações de poder como molas propulsoras dos meios pelas quais as histórias ganham valores, a partir dos sujeitos que as contam, das formas que serão difundidas, dos contextos que são produzidas e como serão apresentadas.
É importante pensar a maneira como contamos histórias acerca de pessoas e de lugares, pois elas constituem uma prática fundamental para o imaginário social e também para o modo como as narrativas serão elaboradas e difundidas. Neste sentido, as relações de poder que estruturam o pensamento social, geralmente estão ancoradas pela perspectiva dos colonos que acabam por serem apresentados como principal versão em torno dos acontecimentos. Lélia Gonzalez (2020) relata em sua obra como os territórios periféricos são exibidos em relação às vulnerabilidades sociais, principalmente a partir da ótica da polícia, que extermina e criminaliza qualquer forma de vida ali presente.
Nesse raciocínio, as favelas são configuradas como territórios do negativo, da violência e da vulnerabilidade. Contudo, a atualidade requer que pensemos acerca desses territórios a partir das questões que presentificam e que não surgem nos dias de hoje, perpassam acontecimentos, histórias e estruturas, a exemplo do genocídio da juventude preta e favelada (Nascimento, 1978) e da ausência de reconhecimento da existência de pessoas com deficiências e faveladas.
A Maré é para nós pensada como um palco de intensa mobilização social e política, uma construção inquieta de lutas e resistência, no sentido amplo que ambas as palavras possuem. Ao longo de suas ruas, há dezenas de instituições compostas por lideranças locais e pela sociedade civil fruto da luta de quem nela mora. Vale salientar que a Maré tem uma atuação singular na construção de metodologias de pesquisa e de intervenção em espaços de favela contribuindo na elaboração de práticas que dialoguem diretamente com a transformação da realidade desses territórios.
Toda essa força e articulação é composta por gente, que pouco se ouve falar seus nomes, e Bira sem via de dúvida é uma dessas pessoas, com seu corpo, suas ideias e a forma como compreendeu o mundo, auxiliou na transformação da imagem da Maré com a fotografia e principalmente na luta de pessoas com deficiências em espaços de favela. Seu legado e sua memória estarão presentes nas próximas linhas desse texto e extrapolam cada palavra escrita.
BIRA CARVALHO: UM HOMEM ALÉM DO SEU TEMPO
Ubirajara Carvalho nasceu em Niterói no ano de 1970 e é o quinto filho de sete irmãos. Conhecido pelo apelido de Bira, sua mãe por não ter condições financeiras de cuidar do mesmo, o deixou sob cuidados da tia. Com cinco anos de vida chegou na favela da Nova Holanda no Rio de Janeiro e foi ali que ele fez toda sua trajetória. Teve uma infância e uma adolescência marcada pela pobreza, mas como ele descreve em seu perfil do Facebook “O guerreiro da tribo do leão de Judá” não se acanhou e foi imenso em tudo aquilo que se propôs a construir. Sempre que trazia as memórias de sua tia, a qual chamava “mãe de alma”, falava com intensidade das palavras que ouviu dela a seguinte frase que o acompanhou por toda vida “assim que ele se encontrar e voltar a estudar, você vai ver o que ele vai se tornar”, pois era conhecido pelas peraltagens e inquietações quando criança.
Não há como ignorar que seu percurso foi marcado por muitas dificuldades e a partir da primeira turma do curso de fotografia da ‘Imagens do Povo’ ofertado pelo Observatório de Favelas (OF) sua vida passou por uma significativa transformação, anteriormente a isso, participou do curso de fotografia do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) no Morro do Timbau. O OF é uma instituição da sociedade civil localizada no Conjunto de Favelas da Maré e que se propõe a construir conhecimento e metodologias que incidam sobre políticas públicas para favelas e articule o acesso e o direito à cidade. O OF foi um espaço fundamental para o desenvolvimento de Bira como profissional da fotografia, embora seja fundamental mencionar que o mesmo trabalhou como articulador territorial em outras instituições do território, a exemplo da Redes da Maré e da Luta pela Paz.
Bira quando tinha 22 anos sofreu um tiro e ficou paraplégico, o deixando cadeirante, e que nitidamente dificultou sua circulação em diversos espaços da favela, inclusive no período que se deslocava para o Morro do Timbau. Ao longo de sua carreira de fotógrafo foi responsável por milhares de cliques, seu acervo é uma verdadeira leitura da favela compondo cenários que vão de feiras-livres, crianças, mulheres, trabalhadora/es, becos e vielas.
Ele se denominava um “fotógrafo rueiro”, por ficar com sua cadeira de rodas em muitos momentos fotografando o cotidiano da favela. Para ele, a rua era compreendida como seu escritório e que suas ações extrapolavam qualquer parede física ou ideológica. Costumeiramente, via-se sua cadeira trafegando por diversos lugares da Maré. Em uma das suas entrevistas, disse:
Preconceito por ser cadeirante. . . [risos] sou cadeirante, preto, favelado e filho de nordestino. . . eu tenho meus direitos negados todos os dias nesse país, e deficiente. . . não é todo espaço que oferece acesso a todos. Já perdi prova da UERJ por táxi e Uber se recusarem a levar cadeirante. (Carvalho, 2019)
O pensamento interseccional de Bira evidencia a importância de pensar os variados marcadores que configuram a experiência dele na favela. O entendimento que um cadeirante favelado não irá acessar espaços e instituições é parte estrutural de uma sociedade que se fecha para a diversidade, e mais ainda que, pessoas com deficiências e faveladas passam a ser compreendidas a partir de uma lógica perversa do não deslocamento, como se estivessem marcadas a não transitar pela cidade, uma lógica que engloba pessoas sem deficiências, inclusive para pessoas como Bira está em outro lugar.
Bira é um importante expoente no campo da fotografia carioca. Podemos afirmar que ele foi e é fundamental no desenvolvimento da fotografia popular no Estado, e mais que isso, sua arte ajudou diretamente na transformação e no desenvolvimento da Maré, bem como na reconstrução da percepção da sociedade em torno da favela. Seu trabalho foi exposto em importantes instituições no Brasil e no exterior. Ao longo das fotografias os mais diversos públicos estão contemplados e o cenário não apenas físico, mais também afetivo é composto pelas ruas da favela.
Sua forma de apresentar as histórias e as críticas que compõem suas fotografias, muito se aproxima do que Carniel e Mello (2021) falam de como ocupar o corpo, articulando um campo teórico e político que se associam com o fazer da vida. Bira ocupava os espaços da favela, da arte, dos movimentos sociais com seu corpo, com sua cadeira e seu gingado, como quem manuseia as lentes de sua máquina fotográfica.
O corpo na qual estamos situando a nossa reflexão é o corpo com deficiência, da experiência e do contato, e não um corpo inerte. Bira em seu percurso fotográfico de suas mais de 17 mil fotografias construídas ao longo dos anos. Facilmente, o corpo cadeirante que circulava pelos mais diversos espaços do território apontava para a operacionalização de uma experimentação construída no contato. Há uma clássica questão que circula em muitas publicações de epistemologia, inclusive na psicologia: O que pode um corpo? Através da vida de Bira, refazemos a pergunta e questionamos: O que pode um corpo preto, cadeirante e favelado?
Para estes escritos é fundamental a prerrogativa de entrar em contato com a trajetória de Bira para produzir novas questões em relação à deficiência que estão sendo acolhidas em espaços de favelas. Bira passou parte de sua vida na Rua Teixeira Ribeiro na comunidade da Nova Holanda na Maré, e ali, como ele sempre comentou fez amigos, parceiros, histórias e trocas. Bira coordenou até o ano de 2021, a Imagens do Povo, uma agência de fotografia do OF, e enquanto esteve à frente foi crucial para a popularização e aprimoramento de técnicas fotográficas entre populações faveladas. Além da fotografia, ele também atuou como um importante articulador territorial e circulava pelas ruas construindo eventos, acionando serviços públicos, trocando e acolhendo demandas, pautando melhorias para a vida nos territórios que circulava, combatendo o racismo, o machismo, as LGBTQIAPN+fobias e o capacitismo.
Não é possível apresentar Bira sem pensar em sua trajetória de luta, além de sua arte que também era uma ferramenta de transformação social, e principalmente suas ações que incidiam sobre as imagens criadas acerca da Maré.
Há em Bira uma questão fundamental em torno das experiências das pessoas com deficiências em territórios de favelas, como ele diz em entrevista em 2021:
Fui cadeirante muito novo com 22 anos, me deparei com uma cadeira de rodas e toda minha relação com a favela mudou, o espaço, o território. A Nova Holanda por ser plana, é que a Maré é basicamente plana, das suas 16 favelas, apenas tem o Morro do Timbau. A convite de uma amiga, a Eliana Sousa (da Redes), eu fui fazer um curso no CEASM no ano de 2000 lá no Timbau, e eu escolhi o de fotografia. Confesso que no começo das aulas eu não entendia muita coisa, eu tinha largado a escola muito cedo e a aula era na facção rival de onde moro. (Carvalho, 2019, online)
Bira localiza sua experiência aterrada nos elementos que compõem a sua vida enquanto uma pessoa que mora na Maré. Porém, é preciso um olhar singular para seus trânsitos, sua circulação como uma pessoa cadeirante, sua arte e seu trabalho de criar novas narrativas acerca daquele espaço, pois sua fotografia está atravessada pelos direitos humanos, apresentando em seu trabalho como as pessoas moradoras da Maré circulam, sorriem, trabalham e vivem. Sua inspiração estava nas ruas e também na sua mãe, uma mulher que adorava ópera e Blues e daí surgia seu gosto pela arte, a admiração e a sensibilidade para olhar para o cotidiano, Bira sem dúvida nenhuma é unânime para quem o conheceu, um homem sensível.
É de grande valia lembrar que o ‘fotógrafo rueiro’ da Maré marcava sua luta para descontruir uma imagem impregnada pela grande mídia que a favela estava naturalmente atrelada à violência, principalmente armada. Suas fotos apresentam leveza, seriedade, alegrias e realidade. Isso não quer dizer, que não existem violências na Maré, mas que não é a única forma de pensar em torno das pessoas que ali estão. Em relação a isso, Frantz Fanon (1968) relata que há efeitos devastadores no processo de colonização implicando na concepção de compreensão de desenvolvimento humano e consequentemente da nossa subjetividade. Assim como para Bira, Fanon atenta para um movimento de descolonização, processo este responsável por novos homens. Digo que a fotografia de Bira está nesse movimento, desconstruir ideias e fazer emergir novas percepções.
Ainda seguindo o raciocínio de Fanon, a visão colonial é uma perspectiva dividida-dualista, uma ótica do apartheid, uma lógica que se propõe segregadora e excludente. É com essa realidade cindida, que pessoas com deficiências, faveladas e pretas precisam articular suas existências. Como exímio admirador do funcionamento da vida na favela, Bira ao longo de sua vida fez um resgate da cultura e da arte na favela, era um exaltador do samba, do funk, da pipa e do futebol de rua. Ele como articulador territorial auxiliou na difusão de muitos processos de comunicação comunitária, pois como movimentos de resistência acreditava que a vida na favela era atravessada pela produção artística, como território vivo, que produz conhecimento e transforma a realidade.
Não se deve esquecer que toda a estrutura de crescimento nacional em áreas como a economia, a educação, a saúde, por exemplo, é fruto de parte da articulação de moradoras e moradores de favela, não existe progresso se não pela mão dessas pessoas, como uma experiência orgânica. O fotógrafo rueiro se dizia um apaixonado pela Maré, pelo calor humano que habitava os espaços que o mesmo transitava, “estar numa cadeira de rodas é complicado, porém aqui eu conto com a solidariedade dos moradores, porque muitas das vezes as instituições não conseguem perceber esse segmento da sociedade” (Carvalho, 2019, online).
Ao falar da favela como seu território, ele apresenta como um avanço ter ruas asfaltadas, alguns serviços com rampa de acesso, e destaca a dinâmica do afeto como um diferencial para a vivência em territórios de favela, ele acredita que a mudança para um certo movimento conservador que se instalou no país, sendo preciso aprender com a favela. Bira acredita no afeto e no cuidado presente na dinâmica da Maré como uma ferramenta de mudança, mas não só isso.

Descrição da Imagem: Desenho produzido em um beco da Maré na favela da Nova Holanda. Nele, há a imagem do Bira, com uma toca com listras brancas e seu rosto com a boca fechada. Na imagem se encontra seus ombros com uma blusa preta. Ao lado esquerdo uma parede laranja e ao lado direito uma parede azul
Figura 1 Bira Carvalho
Bira foi um homem que como lembrou Milton Nascimento com “sonhos que não envelhecem”, Bira faleceu em 2021 aos 51 anos, um infarto em sua casa na Maré. Ele deixou um legado para os povos de favelas do Rio de Janeiro e foi fundamental para a construção de um pensamento que leve em consideração a vida das pessoas com deficiências, principalmente no tocante ao pensamento colonizado em torno das experiências dessa existência, como ele disse “a cadeira maior é o desejo das pessoas sem deficiência só olharem o cadeirante e favelado como um coitado ou perigoso”.
FAVELA E DEFICIÊNCIA
Há na literatura uma escassez de material que articule a experiência das deficiências em espaços de favela. Algumas pistas me ajudam a pensar os motivos que levam as produções acadêmicas não situarem as questões da deficiência dentro de espaços de favelas.
A primeira pista versa acerca da psicologia e sua aproximação das discussões em torno da deficiência e também da ideia de favela, produzindo ao longo dos seus trabalhos um amplo campo de solidificação de imagens que ainda hoje fazem parte do imaginário social e representacional da sociedade. Não raro, encontramos alguns profissionais da psicologia que ainda reproduzem uma concepção de que a favela é um lugar perigoso e que pessoas com deficiências precisam ser olhadas sob uma ótica da superação, quase como se fossem retiradas as suas características humanas como aponta Diniz (2003). O caminho se entrelaça e se repete ao longo do tempo, criar narrativas unificadas, seja da população preta, favelada ou das pessoas com deficiências, pois nessa sociedade marcada pelas desigualdades e pela produtividade existe um imperativo pela padronização e patologização das vidas.
A padronização historicamente tem relação com a imagem produzida pela ciência em relação as minorias (Haraway, 1995), com um conhecimento que não se situa e nem se localiza, universalizando pessoas e categorizando grupos que não seguem a lógica da produção desenfreada no funcionamento do capitalismo. O desejo justificado pela intervenção no corpo do outro foi tomado como natural durante todo o processo histórico brasileiro, a ciência que corrobora com a ideia evolucionista contemporânea percursora aponta que tudo precisa servir ao mercado, inclusive favelados e pessoas com deficiência, como se houvesse um lugar para esses sujeitos, destinados pela medicina e pela psicologia a estarem associados à subalternidade.
O modelo biomédico da deficiência corrobora com o pensamento que pessoas com deficiências sejam apresentadas como sujeitos da falta, que precisam ter algo a ser corrigido, tendo reduzindo seu corpo à sua funcionalidade. Nesse âmbito, o que está em voga são os jogos de forças e de poder presentes no campo da ciência médica e psicológica em relação ao que são definidos como deficiências, ao longo dos tempos atrelado ao anormal e ao patológico.
Mello (2016) aponta para a definição das deficiências numa abordagem biomédica como um movimento que instaura uma compreensão de corpos capazes, ao estabelecer aptidões, funções e finalidades para certas experiências de vida. É importante que ao nos atentarmos aos principais sentidos dessa perspectiva focada na funcionalidade e saúde, como se isto estivesse atrelado a ausência de deficiências. Historicamente, a compreensão da ciência em relação aos corpos com deficiências segue uma lógica excludente e arbitrária de que existem maneiras e modos de compreender a dimensão corpórea que são anormais e menos possível de viver como aponta apresenta Diniz (2007).
A segunda pista aparece no entendimento que em detrimento de uma abordagem biomédica que entende as deficiências sob uma ótica da falta e da ausência, emerge do Modelo Social da Deficiência integrando ações dos movimentos sociais do Reino Unido e dos Estados Unidos voltados a refletir as estruturas sociais que perpassam a vida de pessoas com deficiências (Braga & Moraes, 2021; Mello, 2016). Como a ideia o nomeia, a questão social passa a ter uma importância notória na compreensão das deficiências, entendimento este que toma as deficiências como formas de ser e estar no mundo, e não como a ausência de algum elemento que compõem o grau de humanidade da pessoa.
Nesse enfoque, a tensão corpo-sociedade baliza o que é deficiência, relacionada às barreiras, condições socioambientais e políticas de acessibilidade. O conceito de deficiência é colocado como instrumento de justiça social e não somente como questão individual. Observamos que não está colocada uma definição, e sim um conceito passível de atualização. Está em curso um reposicionamento: a deficiência passou a ser o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória. (Braga & Melo, 2021, p. 4)
Os processos de discriminação das pessoas com deficiências perpassam práticas e estruturas nomeadas pelos movimentos de luta e de organização social do Capacitismo. A segunda pista desses escritos atravessa essa concepção, Guerra (2021) aponta que apesar de ser uma expressão bastante difundida pela sociedade atual ainda precisa ser maior detalhada. Essa violência se articula nos mais variados segmentos da vida de uma pessoa com deficiência, em outras palavras está presente no campo político, econômico, social e subjetivo das relações em sociedade. Segundo a autora, pode ainda ser compreendido através das estruturas e dos sistemas que formulam elementos que se alicerçam em dados modelos ou estilos a serem seguidos e padronizados, a exemplo do corpo, da beleza, da sexualidade e tantos outros, sendo formulado a ideia de uma vida perfeita, pois não há como pensar tal violência sem entender os efeitos que isso provoca.
Contudo, é fundamental que possamos pensar o Capacitismo como produto das relações históricas e sociais que fundam o pensamento e a subjetividade do homem em diversos momentos da história humana. Ao entendermos que esse sistema de opressões atravessa a existência de corpos e pessoas com deficiências e a premência de reconfigurar os espaços, as relações, as estruturas e a subjetividade na qual é preciso aleijar as nossas percepções (McRuer, 2021). Para McRuer as políticas aleijadas (pensando aqui o termo que ao longo de muito tempo tem sido pensado para limitar pessoas com deficiências a suas questões físicas e funcionais) podem se articular a tantos outros movimentos minoritários. Bira por exemplo, é um homem cadeirante, que cotidianamente sofre com o Capacitismo quando tem sua intelectualidade questionada em detrimento ao seu corpo e sua cadeira de rodas, e ele é ainda um homem preto, mediante um país racista e escravagista.
Nesse raciocínio, uma sociedade capacitista surge mediante ações direcionadas para tais existências relacionadas à infantilização, o encarceramento e o assassinato. A compreensão que a capacidade está atrelada ao funcionamento intelectual ou físico advêm de um entendimento normativo diante das múltiplas possibilidades de ter e não de ser corpo. Não à toa, em diversas situações de nossas vidas somos medidos pela nossa contribuição de produzir (Guerra, 2021). Os ideais de utilidade se amplificam com a sociedade do consumo e tomam a integrar nossas maneiras de ser e estar mundo, afinal estamos em prol de um movimento constante de produção, de sermos úteis e de estarmos a serviço do consumo.
Há sem dúvida, uma dificuldade de pensarmos as nossas ações em sociedade atreladas à elementos que se distanciam de uma ideia capacitista em relação aos corpos com deficiências. De acordo com Siqueira, Dornelles e Assunção (2020), esses elementos se ancoram na percepção que pessoas com deficiências são naturalmente incapazes de desenvolver uma vida como qualquer outra pessoa, esquecendo as barreiras e as formas de controle presentes no nosso meio social e que isso está articulado com a concepção que pessoas faveladas são perigosas, possuem má índole ou estão de alguma maneira associadas aos movimentos ilícitos e ao crime organizado.
Segundo Valladares (2000) o final do século XIX e o início do século XX demarcam os primeiros registros do que até então se denominou de morro, tendo em vista que, anteriormente a esse período o olhar da elite estava para os cortiços (espaços sem estrutura que abrigavam os desvalidos e a pobreza da sociedade brasileira. Somente a partir das constantes perseguições de moradores de cortiços e a migração dessas pessoas para pontos elevados da cidade é que se tem a compreensão inicial do que seria uma favela, a exemplo do Morro da Providência, localizado na região central do Rio de Janeiro, que na grande mídia da época já aparecia como um aglomerado de vagabundos, criminosos e residentes de barracos sem nenhuma estrutura para moradia, uma maneira de olhar para a favela que está presente até hoje.
A história nos serve para pensar os processos e auxiliar na construção do entendimento em relação ao como se produziu uma narrativa em relação a esses territórios, inclusive contribuindo para a perpetuação de violências, pois é através da lógica da aniquilação que o Estado vai funcionar. Vanessa Andrade (2013) em sua dissertação discute os efeitos do trabalho policial em uma favela carioca, principalmente a partir da inclusão das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP) que nos dias de hoje são espaços abandonados evidenciando o alto gasto e descaso com a política de segurança carioca. Os últimos 15 anos totalizaram 17.929 operações e apenas 1,5% delas foram consideradas eficientes segundo dados apresentados pelo Grupo de Estudos pelo Novo Ilegalismo (GENI) da Universidade Federal Fluminense (UFF), tendo como base os indicadores de mortos, feridos e presos.
A compreensão que as operações policiais em territórios de favelas cariocas não objetivam combater o tráfico, não é uma novidade. A política do extermínio e do genocídio das pessoas faveladas se configura uma maneira de fazer morrer chamado de necropolítica por Mbembe (2018). Este conceito pode ser associado com os processos de violência, cerceamento, desigualdades, exploração e aniquilamento que marcam determinados territórios e raças, fazendo aparecer à concepção que determinadas vidas são mais valiosas que outras na interlocução máxima presente na boca de muitos que “bandido bom é bandido morto”, como se quem morasse na favela estivesse destinada a vida do crime, e ainda que, não existe nada bom naquele território, sendo necessário exterminar qualquer vida que ali se faça presente.
Grada Kilomba (2019) discute a produção da violência articulada ao racismo, observando a construção histórica que incide sobre a subjetividade preta relacionada aos processos de silenciamentos e opressão desse povo. A autora ao longo da sua reflexão estabelece um diálogo com questões raciais colocadas como secundárias e também que negam as existências da população preta. Não à toa, pensar que a deficiência no território de favela atravessa esse lugar da negação, onde em muitos momentos é como se elas não existissem duplamente.
Negar que as pessoas com deficiências precisam ser pensadas de acordo com suas experiências é algo que não está interpelado apenas na favela. Na favela a deficiência poderá ser compreendida pelo lugar da falta, mas também vai ser construída por uma rede afetiva, que está presente na construção comunitária desses espaços. Quando digo de uma rede afetiva, falo de uma construção coletiva composta de um vizinho que auxilia na travessia de uma pessoa cadeirante em becos e vielas, retirando obstáculos, desviando buracos, na preocupação com o trajeto, é também nos colegas de um projeto que demandam aprender Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) para se comunicar com o aluno surdo da atividade e tantas outras possibilidades de pensar em termos coletivos. Nas palavras de Favero (2020) não é o entendimento de estar na dor do outro, não é assumir aquele lugar, pelo contrário, é não sendo o outro que essa rede é construída.
Compreendemos aqui que pensar acesso e segurança na favela se aproxima também de pensar elementos sociais do entendimento da deficiência: Como uma criança surda tem ideia de que ouvir um tiro é um sinal de alerta e de perigo? Um deslocamento para um morro em uma cadeira de rodas enfrentará quais dificuldades? Quais recursos inclusivos estão disponibilizados em escolas da favela, quando em sua maioria não possuem nem professores no ensino regular? Quais elementos presentes no acesso de pessoas com deficiências em serviços de atendimento fora da favela estão presentes nesses territórios?
Essas indagações acompanham as discussões em relação aos territórios de favela e nos apresentam singularidades presentes na experiência da deficiência. Apesar de não encontramos um número significativo de publicações que produzam essa interlocução não há como olhar para a favela e pensar que não exista pessoas com deficiências.
Quando pensamos a experiência das deficiências é inegável contextualizar onde e como a apresentamos. Recentemente, Bira Carvalho foi homenageado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) com o dia estadual do comunicador popular, 22 de agosto, proposta realizada pela então vereadora Renata Souza do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL/RJ). Não há no contexto carioca como apresentar a contribuição de Bira para o desenvolvimento de pautas e de direitos de pessoas com deficiências nas favelas. Ele entendia as limitações presentes nos moradores do asfalto em relação aos favelados, e que em sua cadeira de rodas muito contribuiu para o desenvolvimento da Maré como um espaço potente, aleijando a subjetividade e colocando pessoas com deficiências em lugares de protagonismo.
Aleijar o mundo não como forma de apresentar a ideia de superação e de luta presente nos discursos, mas como uma construção de uma nova configuração da vida, da ampliação dos corpos e da subjetividade. A perspectiva do aleijar leva em consideração a premissa de que pessoas com deficiências e faveladas precisam serem compreendidas na concepção do COM e não do SOBRE (Alves, 2020; Moraes, 2010), que quer dizer de uma maneira de não se colocar como especialistas em quem entende sobre as questões e experiências que atravessam a experiência das pessoas com deficiências e faveladas.
Ao pensarmos o quão é necessário olhar para a intersecção presente na construção de vida e de mundo de pessoas com deficiências moradoras de favela, que precisam lidar cotidianamente com o Capacitismo, a truculência do Estado através da polícia, da ausência e precarização de serviços públicos e disputam narrativas com quem violenta. Cai a ficha quando no contato com a trajetória de Bira encontramos o pouco reconhecimento que tem no campo da fotografia. Em diversas ocasiões, a memória de Bira não é sentida, apesar dele ser uma importante figura no campo das artes brasileiras, ainda é pouco conhecida, pois pessoas com deficiências quando não apresentadas como descartáveis, passam a ser entendidas como ameaças, sobre isso podemos entender que “aleijadas em suas esquisitices, monstruosidades, perversões e defeitos que conseguiremos pensar e criar cada vez mais espaços aleijados no mundo e que sejam mais um espectro ... que ronde e assuste ... as nossas normalidades” (Gavério, 2015, p. 114).
Trazer as pessoas com deficiências em sua multiplicidade para a centro das discussões nas potências construídas em seus aspectos singulares pode ser um caminho importante, construindo espaços com elas, e que as mesmas possam falar sobre si, inclusive apresentando o que entendem como Capacitismo, o que aniquilam suas formas de vidas e fazem calar, inclusive na tentativa de construir ações que vão na contramão disso.
O resgate do trabalho de uma pessoa favelada e com deficiência como Bira nos ensina que certas histórias não podem cair no esquecimento, e mais que isso, apresentar a trajetória de um homem como ele, um sujeito que teoriza com seu corpo, reconfigura as narrativas postas para as pessoas com deficiências, nas palavras de bell hooks (hooks, 2013, p. 97), “Para mim essa teoria nasce do concreto, de meus esforços para entender as experiências da vida cotidiana, de meus esforços de intervir criticamente na minha vida e na vida de outras pessoas”, sendo fundamental entender as pessoas com deficiências como produtoras de conhecimento e de vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Recontar histórias e produzir novas narrativas nos coloca frente à personagens reais: pessoas pretas, faveladas e com deficiências. O reconhecimento da importância de Bira para pensar a interlocução entre favela e deficiência é fundamental na compreensão que ainda estamos distantes de ambos os campos, e que é urgente construir não apenas reflexões acerca desse território e dessas pessoas, mas a afirmação que há uma existência, que experimenta desafios e potencialidades cotidianamente.
Ao trazer Bira e sua cadeira de rodas, trazemos também a favela da Maré com suas contradições, seus problemas de acessibilidade e com as realidades históricas que compõem o espaço favelado, e para além disso, como um território que produz subjetividade e que é espaço de vida para pessoas com deficiências. Nesse sentido, Bira pode trazer novos olhares para a experiência de viver com deficiência na favela, produzindo arte, conhecimento e contando novas histórias e imagens sobre seu povo. Esperamos que Bira não tenha sua história tomada como espaço de pena, como se procurássemos um enquadre para o fotógrafo da Maré, e mais ainda, tomando o campo da normalidade como parâmetro para falar o que pode ou não um homem como Bira.
É preciso lembrar da necessidade de mais produções que apresentem narrativas de pessoas faveladas e com deficiências e que lutam por novas possibilidades de pensar a história com essas pessoas, não pelas vias da superação, da quase desumanização, e sim, a partir de singularidades e experimentações nesses territórios, a deficiência e a favela como potência.