INTRODUÇÃO
Nosso objetivo é trazer uma análise de aspectos gerais da conjuntura na atualidade, trazendo em destaque alguns elementos psicopolíticos como indiferença, percepção de cinismo político e eficácia política, que compõem um cenário político paradoxal, que combina uma profunda crise social e econômica, somadas a uma crise de representatividade, que comporta, paradoxalmente, agudos processos de polarização.
O ponto de partida desta reflexão será o materialismo histórico e dialético, destacando a dimensão econômica – para além do economicismo – como organizadora de relações sociais e dos interesses e conflitos de classe. Complementarmente, traremos uma leitura psicossocial, em diálogo com o modelo de análise psicopolítica da consciência política de Salvador Sandoval, que completa 20 anos (Sandoval, 1994, 2015; Sandoval & Silva, 2016).
ANÁLISE DE CONJUNTURA E O FATOR ECONÔMICO: ECONOMIA COMO CIÊNCIA INTERDISCIPLINAR
Desde já, queremos enfatizar que a formulação de uma perspectiva teórica em torno dos elementos estruturais que regem o dinâmico modo de sociabilidade capitalista é fundamental para uma análise crítica da dimensão psicopolítica de uma determinada conjuntura. É nesta direção que queremos destacar o pensamento marxiano sobre economia e política.
Um dos princípios do pensamento marxiano, como sabemos, é o elemento fundamente da economia, gerada a partir do trabalho1. Esta é uma afirmação, porém, perigosa se não vier antecedida de algumas questões, que, para nós da Psicologia Política, são importantes e que sempre permearam a obra de Sandoval: a subjetividade e a tensões do sujeito com a ideologia e as estruturas da sociedade – trata-se da dimensão psicopolítica, que, como adverte Sandoval (1994), deve trazer em seu cerne uma análise não mecanicista da relação indivíduo/sociedade.
Evidente que o objeto central de Marx, em toda sua obra, foi a questão econômica, mas não de forma trivial. A leitura apressada (ou mal-intencionada) de Marx leva, muitas vezes, ao beco sem saída do economicismo, quando, na verdade, foi algo que Marx tentou combater em toda sua vida. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos (Marx, 1844/2004) é uma prova flagrante de uma abordagem que vincula a economia com possibilidades de emancipação e alienação humanas.
A abordagem marxiana sobre economia também pode ser notada, por exemplo, na Crítica ao programa de Gotha (Marx, 1875/2012) e nos debates com Proudhon em A Miséria da Filosofia (Marx, (1847/2017) sobre as ilusões na conciliação de classes, indicando, ainda, que o problema político da classe trabalhadora não poderia ser resolvido, simplesmente, por intervenções técnicas na economia (Gorender, 2013).
A ênfase marxiana, como sabemos, era a superação da propriedade privada dos meios de produção e da sociedade de classes, que seria alcançado pelo trabalho associado, superação da dicotomia entre trabalho manual e intelectual etc. Em síntese, estes elementos correspondem, como Marx procurou deixar claro em A Questão Judaica, à noção de emancipação humana, que é uma superação por incorporação dos princípios inscritos na cidadania burguesa (Marx, 1844/2010), em uma crítica do nosso filósofo aos limites do que denominou de emancipação política.
A emancipação humana pressupõe uma transformação das relações econômicas da sociedade capitalista e esta, por sua vez, somente ocorre com alterações profundas no conjunto da sociedade, o que revela o caráter amplo da crítica ao capital em Marx. Isto pode ser observado, por exemplo, no debate com Proudhon sobre a luta de classes, em que é revelada uma compreensão de trabalho não restrita ao salário, portanto, entendida para além da sua manifestação empírica e imediata. O trabalho não é apenas o ato mecânico de transformar a natureza e não se limita às relações mercantis. Em Marx é o elemento fundante da sociabilidade, um organizador de estruturas e vínculos sociais, o que foi observado também por Engels (1884/2019) na constatação da divisão social e sexual do trabalho, ainda nas sociedades comunais.
Com isso, não se quer de maneira alguma reduzir a importância da análise técnica da economia ou mesmo minimizar as lutas que ocorrem por dentro do Estado burguês. O que se espera, para aqueles inspirados no pensamento marxiano, é a superação definitiva da visão de que economia se resume à sua manifestação empírica: salário, consumo, operações financeiras etc.
O que Gorender (2013) diz a respeito de O Capital de Marx revela aquilo que vimos tentando explanar:
O capital é, sem qualquer dúvida, uma obra de economia política. A amplitude de sua concepção dessa ciência supera, porém, os melhores clássicos burgueses e contrasta com a estrita especialização em que o marginalismo pretendeu confinar a análise econômica. ... É que O Capital constitui, por excelência, uma obra de unificação interdisciplinar das ciências humanas, com vistas ao estudo multilateral de determinada formação social ... . As categorias econômicas, ainda que analisadas em níveis elevados de abstração, se enlaçam, de momento a momento, com os fatores extraeconômicos inerentes à formação social. O Estado, a legislação civil e penal (em especial a legislação referente às relações de trabalho), a organização familiar, as formas associativas das classes sociais e seu comportamento em situações de conflito, as ideologias, os costumes tradicionais de nacionalidades e regiões, a psicologia social. (Gorender, 213, p. 31)
E o autor finaliza: “Assim, ao contrário do que pretendem críticas tão reiteradas, o enfoque marxiano da instância econômica não é economicista, uma vez que não a isola da trama variada do tecido social” (p. 31). É por isto que Marx demarcou este debate no campo da economia política, demonstrando os limites da compreensão da economia como ciência parcelada e tecnocrática.
Na perspectiva marxiana, como sabemos, o trabalho funda a economia, ainda que esta última assuma formas relativamente autônomas em relação a ele, como observamos no caso da financeirização do capital (Paulani, 2017). Mas o que importa frisar neste momento é que economia é caracterizada, primeiramente, por relações sociais de produção e pela reprodução material e simbólica da vida social.
Para analisar a complexidade da noção de economia em Marx, olhemos para o valor de troca no capitalismo. A valorização ou desvalorização de uma mercadoria ocorrem não apenas por demanda de consumo imediato, mas revelam também uma dimensão simbólica, pois também diz respeito a relações sociais: vejamos, por exemplo, que a valorização de uma marca nem sempre é determinada pela utilidade de um determinado produto, mas pelo fetiche da mercadoria, pela necessidade de o indivíduo se sentir reconhecido por meio da aquisição de mercadorias e outros elementos sociais (e não estritamente econômicos) que envolvem a valorização do valor.
Então, consumo para Marx representaria não apenas relações imediatas de troca e valorização do valor, mas é um sintoma do modo de sociabilidade capitalista e de sua ideologia. Assim, junto a outros conceitos que esmiuçou durante toda sua obra, especialmente em O Capital (Marx, 1866/2013), trouxe uma perspectiva científica para compreensão da economia capitalista, intrinsecamente ligada a uma análise da formação social e conjuntural do capitalismo.
De maneira simples, a economia corresponde ao metabolismo da vida social (Meszáros, 2016), é responsável por estruturar as relações sociais, a formação de valores e ideologias, processos de socialização, constituição de papéis sociais etc. Ela dá caminhos para potencializar ou reduzir as capacidades intrinsecamente humanas, alargar ou reduzir as possibilidades criativas, atrofiar ou não a própria consciência política.
Isto não significa que uma alteração na dinâmica econômica de uma sociedade traria uma mudança imediata nos valores, ideologias, processos de socialização etc. Essa foi a observação de Trotski (1938/2009) ao constatar que a realidade social da URSS, os papéis sociais de gênero, a vinculação de parte significativa da população com a religião – entre outros elementos que ele denominou de modo de vida operário - não mudaram significativamente com a revolução econômica na Rússia.
Da mesma maneira, podemos pensar a relação entre exploração e opressão. Tanto Marx como Engels consideram que a exploração do trabalho e da mão de obra são fundamentais para demarcar as relações de opressão de raça e gênero. Porém, novamente, isto não significa que eliminando o trabalho assalariado e a propriedade privada a opressão chegaria automaticamente ao fim.
O reconhecimento das relações sociais de produção como elemento fundante de um modo de sociabilidade deve vir acompanhada de uma leitura dialética da relação entre objetividade e subjetividade. Nas palavras de Lukács (1923/2003), há uma determinação reflexiva entre estas duas dimensões, assim como entre a vida econômica e política de uma determinada sociedade. A subjetividade – assim como a consciência de classe, observa Lukács – não se limita a reproduzir os fatos sociais e econômicos. Embora sejam fenômenos de natureza social e histórica, estes assumem formas próprias e são capazes de transformar e transcender a realidade posta.
A dialética marxiana, dentre outras características, não é apenas um método para identificação de fenômenos sobrepostos, mas também de elementos primários e secundários de um dado fenômeno. O primário e secundário devem ser compreendidos em uma conjuntura concreta, havendo, por exemplo, contextos históricos que favorecem que a consciência política exerça um momento predominante e cumpra um papel determinante, inclusive, na vida econômica de uma sociedade (Lukács, 1923/2003).
O elemento primário (o momento predominante, como quer Lukács) para fundação do ser social e da sociedade humana, para Marx, é o trabalho, isto é, a transformação da natureza para produção e meios de uso. Mas, a partir do momento em que se cria um modo de sociabilidade e o ser humano se afasta, relativamente, da sua condição de ser natural, os aspectos simbólicos e subjetivos ganham o mesmo estatuto da economia ou das relações sociais de produção e troca. Porém, como a dialética é a lógica que busca compreender o fenômeno em sua natureza histórica e em movimento, o primário e o secundário, tratando-se da relação (complementar, porém, conflituosa) entre subjetividade e objetividade, não estão predeterminados, ainda que a economia, no sentido marxiano, sempre atue um balizador da vida social.
CONJUNTURA NA ATUALIDADE: CRISE ECONÔMICA E SOCIAL
Sem deixar de reconhecer o papel elementar que a economia e propriamente a crise econômica tem para caracterização da conjuntura na atualidade, podemos dizer que a análise teórica do que vivemos nos dias de hoje não é uma tarefa fácil, uma vez que a própria economia e o mundo do trabalho sofreram mudanças significativas nas últimas décadas (Antunes, 2018). Vivemos também uma profunda crise social no Brasil e no mundo: ondas crescentes de xenofobia, autoritarismo e violência, intolerância religiosa etc.
Mas é claro que, sendo coerente com a proposta marxista, entendemos que o propulsor das crises é o fator econômico: a demagogia da igualdade prometida pela democracia burguesa vem contrastando, de maneira cada vez mais contundente, com o empobrecimento da população. A condição econômica da classe trabalhadora vem sendo agravada década após década. No início do século XXI, ela vem sendo ainda mais precarizada pela falência da proposta, supostamente alternativa ao capitalismo selvagem, de pacto social do trabalhismo, reproduzida sob a égide das políticas neoliberais, como é o caso, no Brasil, do Partido dos Trabalhadores (PT).
A falência do pacto social do trabalhismo pode ser identificada, por exemplo, no conjunto de contrarreformas trabalhistas e previdenciárias dos governos federais de Lula e Dilma do PT (2002 a 2014), sendo acirrada, sob uma perspectiva abertamente neoliberal, nos governos de direita e extrema-direita de Temer e Bolsonaro, respectivamente. Tudo isto, somado, contribui decisivamente para gerar um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, gerando revoltas populares de toda a ordem.
O giro à direita de governos tradicionalmente reconhecidos como de esquerda, não foi uma invenção do neoliberalismo e do século XXI, mas foi intensificado, especialmente, após a queda do “muro de Berlim” (1989), invadindo todos os continentes. A atualidade trouxe reconfigurações nas formas de representação e participação políticas, na geopolítica mundial, arrefeceu a força dos movimentos socialistas e classistas, que perderam espaço para as pautas identitárias. Por outro lado, setores organizados da juventude continuam somando as fileiras do marxismo e a sindicalização (Euzébios & Tabata, 2023) parece ser um fenômeno longe de estar no fim – observemos, por exemplo, a onda recente de sindicalização nos EUA, as lutas contra a uberização etc. (Braga, 2023).
As noções de esquerda e direita tem sido reconfigurada se comparadas ao século XX, quando tínhamos uma demarcação mais nítida entre socialismo x capitalismo (Braga, 2023; Euzébios & Tabata, 2023), ainda que o marxismo, por exemplo, permaneça vivo e até mesmo fortalecido em determinados setores do movimento estudantil, movimentos sociais, sindicatos, partidos – até mesmo entre influencers das redes sociais (pois não há nada mais na vida política que escape às redes sociais, o que sugere que a quantidade de seguidores e engajamento nas mídias seja, atualmente, um termômetro das disputas ideológicas...).
Ainda que estejamos vivendo uma conjuntura muito distinta do século passado, a perspectiva de classes, sem dúvida, continua sendo validada pela realidade. Ainda que a pauta classista, aparentemente, se enfraqueça diante de relações cada vez mais difusas no mundo do trabalho, o trabalhador cada vez mais atolado de trabalho e sem tempo livre, vivendo para sobreviver, continua travando suas batalhas em diferentes esferas da sociedade (Braga, 2023).
Contudo, é interessante observar que, com tantos vai-e-vem ideológicos e entre crises econômicas e profundamente sociais, o capital conseguiu, com certo sucesso, reduzir o ímpeto dos movimentos classistas e da própria consciência de classe, mesmo que o neoliberalismo tenha deixado como legado a pauperização crescente do precariado, contrastando, de maneira cada vez mais aguda, com a concentração de riqueza e conglomerados econômicos (Antunes, 2018). Isto ocorre, como já demos pistas, pela alteração da geopolítica mundial após 1989, pela escassez de alternativas políticas concretas ao capital, tendo como exemplo a falência do pacto social do trabalhismo, mas também fruto do recrudescimento da perspectiva classista, dos processos de terceirização e flexibilização das leis trabalhistas que impactam a representação sindical, entre outros elementos observados de forma mais nítida na virada do século (Antunes, 2018; Braga, 2023; Euzébios & Tabata, 2023).
De todo modo, nos dias de hoje muitos tem dito e muito tem se escutado que “vivemos em tempos sombrios”. Talvez todos, direita e esquerda, concordem com essa afirmação, porém, a caraterização da crise é que é radicalmente distinta. A esquerda, compreendida em um sentido amplo, denomina a crise do capital, de crise social, estrutural, ideológica, cultural ou simplesmente econômica, ou ambiental ou todos os fatores reunidos. Para a direita, também no sentido genérico, muitas vezes a questão se denomina também como predominantemente econômica. Mas há também diversas respostas: desde a avaliação de que vivemos fundamentalmente uma crise de valores morais a uma absorção cínica da pauta de responsabilidade ambiental e social etc. (Euzébios & Somma, 2021; Euzébios & Tabata, 2023).
Em um cenário de tentativas sucessivas de lidar com as crises social, política e econômica de maneira paliativa ou simplesmente marcada pelo cinismo, é claro que o populismo à direita e à esquerda são presenças garantidas. O de direita anda junto com o conservadorismo social e o liberalismo econômico. Por outro lado, o populismo de esquerda continua não sendo novidade no Brasil e na América latina, mas competem com movimentos independentes que fortalecem de maneira significativa as pautas identitárias (revertendo, inclusive, em cargos no legislativo), além dos organismos tradicionais como sindicatos (Braga, 2023; Euzébios & Somma, 2021; Hur & Salvador, 2020).
Nas idas e vindas entre esquerda e direita, há de se notar uma dificuldade que os governos de esquerda (populistas ou não), em especial, tem tido, muitas vezes, para obter apoio popular permanente ou, simplesmente, para concluir os mandatos, haja vista o ciclo de golpes na América Latina, a começar pelo impeachment de Dilma, mas também o caso recente da Bolívia, do Peru, entre outros (Euzébios & Somma, 2021). Isto demonstra a já mencionada falência do pacto social, assim como o fortalecimento da direita e extrema direita, que tem tido relativo sucesso em canalizar a insatisfação da população com a precarização das condições de vida e de trabalho.
Neste sentido, perguntamos: há algum lado que esteja em vantagem no cenário da polarização social? Difícil responder, mas há alguns fatos a serem reconhecidos: a burguesia neoliberal, pela via da flexibilização das leis trabalhistas e precarização das condições de vida e de trabalho, mas também pelo cooptação institucional e esvaziamento do debate público, altera as lógicas de participação e representação política e torna a cidadania mais fluida.
Ao esvaziar politicamente o mundo do trabalho, forçando cada um de nós a se jogar nos calabouços do individualismo, ainda mais acirrado com a desregulamentação da economia e de tudo que for possível, a direita e extrema direita vem dividindo atenção dos indignados, mundo afora (Braga, 2023; Hur & Sandoval, 2020). O projeto coletivo de transformação social vem sendo, em muitos casos, tragado pela comercialização das utopias, transformando-as em dóceis produtos vendáveis.
Paradoxalmente, o aumento do fosso entre os extremos da riqueza e da pobreza e diante de tantas incertezas e de uma esquerda fragmentada e sem unidade, permitiu que a extrema direita se recuperasse de um pequeno cochilo histórico (Braga, 2023; Euzébios & Somma, 2021; Euzébios & Tabata, 2023). O despertar da extrema direita – que não anula, bom que se diga, as alternativas de resistência de esquerda – veio com força. No Brasil se deu de maneira mais clara após as manifestações de junho de 2023 (Euzébios & Tabata, 2023), mas, na Europa, especialmente, e nos Estados Unidos já vinhamos observando como a crise de imigração vinha e vem produzindo xenofobia, como o neonazismo vinha se tornando realidade e retomando a vida institucional em partidos e parlamentos da Polônia, Hungria, Itália... (Braga, 2023; Euzébios & Somma, 2021; Hur & Sandoval, 2020).
O mundo encontra-se em uma situação de tensão entre grupos com interesses econômicos, sociais e morais distintos, antagônicos ou simplesmente divergentes, mas que, muitas vezes, não se conciliam dada a polarização social – o que vem produzindo articulações políticas relativamente inéditas, como a coalização representada por Lula-Alckmin para as eleições presidenciais no Brasil em 2022.
Diante do crescimento da pobreza, destruição ambiental, violência e outras mazelas do capital no neoliberalismo, o pacto social vem esgotando seus cartuchos e dando vazão a um sentimento de indignação e contestação da democracia – aquela que prometeu igualdade e justiça e não entregou (Antunes, 2018; Euzébios & Tabata, 2023).
Ao contrário do que se poderia supor, os escombros do neoliberalismo, como já anunciamos, também vêm alimentando a extrema-direita (Euzébios & Somma, 2021; Hur & Sandoval, 2020). Por outro lado, o movimento pela diversidade na política, as pautas identitárias e movimentos sociais e partidos com penetração nas massas, como é o caso (contraditório) do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), são atores ativos na oposição ao conservadorismo social e econômico, ainda que o predomínio no campo da esquerda seja do reformismo ou simplesmente do pragmatismo político exigido pelo governo de coalização (Euzébios & Somma, 2021).
UMA ANÁLISE PSICOPOLÍTICA DA CONJUNTURA NA ATUALIDADE
Uma análise da conjuntura deve levar em conta seriamente a questão psicopolítica, que não deve ser compreendida como uma questão acessória da política e muito menos como um fenômeno limitado ao contágio afetivo das multidões.
A Psicologia Política de Sandoval nos ajuda a compreender que as massas não são compostas apenas por multidões e que existem grupos organizados e conscientes das tarefas e missões que tomam para si, portanto, produzem ações relevantes que podem operar mudanças na vida em sociedade.
Por seu turno, Meszáros (2016) nos ajuda a compreender esta relação entre psicopolítico e política quando afirma ser necessário caracterizar as mediações de primeira e segunda ordem das formações sociais alienadas e, consequentemente, da própria consciência alienada. Esta caracterização do primário e secundário retoma a discussão sobre o papel fundante do trabalho e da economia como elemento estruturante da realidade, mas não sem reconhecer as contradições e tensões que emergem da vinculação ontológica entre subjetividade e objetividade. São tensões e contradições que ocorrem de maneira inalienável, pois a dimensão psicológica da realidade não se limita à reprodução da vida material, ainda que constituam um ao outro. E o psicopolítico, da mesma maneira, não é política pura, factual, imediata, ainda que um esteja envolto no outro.
Exercendo um papel mais ou menos relevante em uma dada conjuntura, o psicopolítico sempre interfere na natureza do político, pois é parte integrante da psicologia das massas – que, ao contrário do que pressupõe Gustave Le Bon, Freud e outros que veem nas massas apenas uma multidão irracional, ela é, segundo Sandoval – e da mesma maneira em Marx – também capaz de formular política e promover mudança social (Sandoval & Silva, 2016).
Evidente, assim, que a análise psicopolítica traz elementos centrais para pensar o contexto social e político de hoje. Estamos diante de um cenário que contrasta, radicalizações com indiferença à democracia, em que as consequências da intensificação da violência política e das políticas de esquecimento favorecem um certo recrudescimento dos movimentos contestatórios, onde a defesa pública do “retorno à ditadura” e a polarização social produzem uma guerra (também) simbólica de difamação do inimigo (Euzébios & Somma, 2021; Hur & Sandoval, 2020).
A corrupção e o fisiologismo (presentes na esquerda e direita, ainda que de maneiras distintas), mesmo com mobilizações populares, não são freados. Do contrário, muitas vezes, eles são alimentados pela indiferença e desconfiança nas instituições, que contribuem para questionar o sentimento de eficácia política de movimentos sociais e da própria capacidade do Estado em combater os problemas da sociedade capitalista (Antunes, 2018; Braga, 2023; Hur & Sandoval, 2020). Não há no horizonte, alternativas estruturais ao capitalismo (Antunes, 2018; Braga, 2023). A corrupção generalizada também contribui para naturalizar a percepção de cinismo político (Euzébios & Tabata, 2023).
O que se observa na realidade atual – dentre outros aspectos, evidente – é que as crises (humanitária econômica, migratória, ambiental...) não apenas produzem rebeliões à esquerda, mas à direita. E, ainda, alimentam uma desconfiança crescente nas instituições democráticas (Braga, 2023; Euzébios & Somma, 2021).
Podemos caracterizar, brevemente, algumas posturas políticas predominantes na conjuntura a partir da identificação de dois grandes atores políticos na atualidade: por um lado, os radicais de direita que trazem em grande parte um discurso com forte teor religioso e/ou afetivo, com posicionamentos conservadores “às claras” (Braga, 2023; Euzébios & Somma, 2021). Por outro lado, os movimentos radicalizados e institucionalizados da esquerda permanecem sendo atores relevantes nos espaços de resistências e proposição de pautas, que, muitas vezes, combinam elementos de gênero, raça e classe (Antunes, 2018; Braga, 2023).
Entre os polos radicalizados, é evidente que as propostas de centro, abertamente adaptacionistas à economia neoliberal, também continuam atuando de maneira relevante. Logo, a aproximação deste grupo, no Brasil, às pautas conservadoras é um dado preocupante diante do fortalecimento da extrema-direita nas ruas e no parlamento brasileiro (Euzébios & Somma, 2021; Euzébios & Tabata, 2023). E, claro, atuam também em governos de centro-esquerda, como o governo Lula atual (2023), causando retrocesso nas minguas pautas progressistas.
Diante desta conjuntura, a passividade de que “nada vai mudar” permanecem em diferentes setores da sociedade e da classe trabalhadora, assim como a crença na humanização do capitalismo, neste caso, atingindo o terceiro setor, o mundo corporativo, o cenário filantrópico etc.
Para finalizar, adensaremos uma discussão que envolvem alguns aspectos psicopolíticos que remetem a determinadas posturas políticas do nosso contexto atual, destacando os seguintes aspectos:
Indiferença e ódio à democracia, frutos da falência da democracia burguesa e da crescente precarização das condições de vida e de trabalho das maiorias populares, juntos, segundo Braga (2023), alimentam a crise de representatividade e a polarização política. São dois sentimentos que vem atuando em favor da extrema direita dado o sucesso com que ela, muitas vezes, tem conseguido explorar um sentimento geral de indignação e desconfiança nas instituições democráticas;
A percepção do cinismo político, compreendida no âmbito dos limites concretos do pacto social e das pautas populistas, é um elemento psicopolítico que, para Euzébios e Tabata (2023), se soma à indiferença e ao ódio à democracia (não necessariamente ao capital), mas revela também uma percepção acertada de muitos cidadãos acerca dos seus rumos, desgastada por corrupções, por suas promessas vazias e pela contradição entre o que se fala e o que se faz na política. Daí que o cinismo político, sem a revolta e organização populares, pode alimentar o ressentimento com a democracia, operando, neste caso, na polarização também em favor da extrema-direita (Braga, 2023);
Os sentimentos de eficácia e ineficácia política, analisados no bojo do refluxo das lutas sociais e do enfraquecimento da luta sindical, remetem às formas como os grupos organizados, especialmente, respondem à opressão e exploração. Quando não conseguem mudar a realidade ou quando, simplesmente, não enxergam um caminho para transformações na sua vida e na realidade como um todo, o sentimento de ineficácia atua como obstáculo à mobilização coletiva e são traduzidos em frases como: “nada vai mudar”, “político é tudo igual” etc. Alimentam, assim, a indiferença e/ou o ódio à democracia. Do outro lado, quando se produzem ações concretas fortalecidas por uma rede de solidariedade e organizações populares, vislumbra-se um processo de conscientização e de alargamento das possibilidades de negociação e ação política dos marginalizados. É o que resume a frase de um movimento de resistência relevante na realidade brasileira, o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), que traz consigo a seguinte bandeira: “Só a luta muda a vida”. É importante pensar dialeticamente a eficácia x ineficácia para que possamos compreender as contradições e reconhecer as possibilidades de convivência de posições distintas de aceitação e contestação da ordem (Iasi, 2006);
Os valores societais, situados aqui no debate marxista sobre a ideologia/ideologia dominante, nos ajudam a identificar os atores da polarização e suas pautas. Revelam diferenças e antagonismos políticos entre os amplos espectros da direita e da esquerda, seja do ponto de vista das pautas econômicas como a de costumes. Eles são compreendidos, a partir de Sandoval, como capacidade de o sujeito “que assimila as suas crenças, valores societais e expectativas, que ele desenvolve suas relações sociais e construir uma espécie de “consciência da sociedade” (Silva, 2001, p. 80).
Engajados e indiferentes, aqueles que lutam por um mundo melhor ou que lutam pelos “seus” ou que, simplesmente, odeiam a democracia. Há de tudo na conjuntura atual – explosiva, bélica, xenofóbica e necropolítica. Mas dinâmica e que inspira também esperança por justiça e igualdade.
Reconhecemos que a indiferença é um dos ingredientes da conjuntura na atualidade. Mas este reconhecimento não exclui a análise da complexidade dos fatos, de que há muita mobilização social e polarizações, incluindo guerras e um arsenal de elementos agregados. E, entendemos que a indiferença não se deve à falta de consciência, mas a um outro fenômeno: o sentimento de ineficácia política resultante de uma democracia que, para a maioria, espreme a esperança e não traz ganhos práticos.
O estudo etnográfico de Rui Braga (2023) com operários norte-americanos ilustra a complexidade da conjuntura na atualidade. Ele vê uma limitação na tese de que o ressentimento com a democracia, causado pela permanente marginalização de negros, brancos e estrangeiros, teria impulsionado a extrema direita norte-americana. Para o autor, a questão é mais complexa, primeiro porque há resistência à esquerda nos movimentos sociais e nas ações sindicais que vão além do economicismo – o chamado “sindicalismo de justiça social” (p. 10) que envolvem não apenas negros e estrangeiros como brancos norte-americanos e trazem à baila a questão de gênero, raça e classe. No entanto, o ressentimento, a indiferença e evidentemente o ódio à democracia continuam a operar, na lógica da polarização, em favor do extremismo de direita.
O sentimento de eficácia/ineficácia política é outro elemento operante na atualidade, como adiantamos. Inspirado no modelo psicopolítico de Sandoval, ele pode ser entendido como uma “dimensão que trata sobre os sentimentos e as percepções de uma pessoa sobre a sua capacidade de intervir, e a eficácia dessa intervenção, em um contexto político” (Fraccaroli et al., 2018, p. 78). Entendemos que o contraditório (não necessariamente o oposto, pensando dialeticamente), ou seja, a ineficácia, interfere em outras dimensões da consciência política.
A eficácia/ineficácia da ação política do grupo e ou dos seus representantes pode ter uma interferência significativa na “vontade de agir coletivamente” (Fraccaroli et al., 2018; Sandoval & Silva, 2016; Silva, 2001) e para que as pessoas possam seguir atuando em favor dos “interesses coletivos”. Nesta direção, é importante lembrar que, em um cenário em que as derrotas populares são sucessivas, sendo as demandas progressistas geralmente não atendidas – o que obriga a uma reorganização coletiva das “metas e repertórios de ações”2 – (Fraccaroli et al., 2018; Sandoval & Silva, 2016, Silva, 2001;) a ação contestatória tem, muitas vezes, se pautado por uma perspectiva mais reativa/defensiva, alimentando, muitas vezes (por razões conjunturais, que fogem à livre escolha) o populismo de esquerda ou simplesmente os governos de coalização (ou em um sentido marxista, a governabilidade burguesa).
Da ausência de alternativas concretas ou da dificuldade de identificar diferenças significativas entre projetos nos amplos espectros da esquerda ou direita, emerge sentimentos como a indiferença. Mas, também, uma certa revolta, desconfiança com o “sistema” de uma maneira geral.
Seguimos afirmando que a falência da própria democracia burguesa vem levando a uma onda de descontentamentos ou de indiferença em relação às instituições democráticas. A nosso juízo, é isto que explica, por exemplo, o fato de Donald Trump ser o mais cotado da história nas atuais prévias internas do Partido Republicano mesmo tendo ele enfrentando uma série de graves acusações contra o “sistema” ou a “democracia”. Isso vale também para Bolsonaro, que ainda tem uma grande capacidade de mobilização popular, apesar de sua recente inelegibilidade
Ora, se não se crê mais na democracia ou nas eleições, elas já não são mais parâmetros para conformação dos valores societais e da mesma maneira na avaliação dos candidatos. A experiência da invasão do Capitólio nos EUA e do parlamento brasileiro não são apenas fatos isolados. Observamos uma desconfiança em cadeia, seja no campo das esquerdas – como é de costume – seja pelas direitas.
A figura do outsider, que fala a “verdade” e odeia os “políticos” compõem esta cadeia de desconfiança, indiferença e ódio. Valoriza-se as atribuições morais e pessoais do candidato, como em todo populismo, de ser um sujeito comum, mas corajoso, honesto etc., ou seja, totalmente diferente dos “políticos”.
Dentro e fora dos círculos polarizados (aqui no Brasil Lula x Bolsonaro, Trump x Biden nos EUA), a percepção de cinismo político é generalizada (Euzébios & Tabata, 2023). No Brasil, estudos e pesquisas de opinião pública trazem dados abundantes sobre a desconfiança nas instituições democráticas, como parlamento e partidos políticos (Euzébios & Tabata, 2023). Mas, por outro lado, há fatores que contradizem a ideia de que impera apenas o ódio e indiferença.
Neste sentido, é interessante observar o comportamento político e eleitoral da juventude que, em parte significativa, ainda é engajada em projetos de esquerda (na concepção ampla do termo, lembramos), que nos últimos anos preencheu as fileiras de partidos deste mesmo espectro político, que, aliás, são os que mais cresceram no Brasil nos últimos anos em termos de filiados (Euzébios & Tabata, 2023).
A juventude vem, ainda, protagonizando uma série de mobilizações (desde a marcha da maconha, à luta pela educação de qualidade etc.) e ao mesmo tempo promovendo amplas ações políticas dentro e fora de movimentos sociais, partidos e sindicatos (Braga, 2023; Euzébios & Tabata, 2023).
O relativo enfraquecimento do sindicalismo também não se concretizou mesmo com as empresas flexíveis e com o desfiguramento das leis trabalhistas. Movimentos sociais como o já citado MTST se fortaleceram. A dinâmica do capital neoliberal continua expondo contradições e fissuras...
CONCLUSÕES
O fator econômico continua sendo, sem dúvida, fundamental na análise da conjuntura: as crises do capital vêm produzindo miséria, fosso entre os mais ricos e mais pobres, violência e outras mazelas. Com isto, vem alimentando o ódio, a indiferença, mas também lutas sociais e esperança por um mundo melhor.
Neste sentido, vimos destacando que o pensamento marxiano nos ajuda a compreender os afetos e sentimentos de maneira concreta e produzidos na conjuntura para além do contágio afetivo das multidões e que transcende a dimensão intersubjetiva isolada.
O modelo psicopolítico de Sandoval também nos ajuda a olhar para os fenômenos de massa de maneira crítica. Ele nos traz, por sua vez, duas importantes lições sobre a relação entre o psicopolítico e o político: (a) que o psicopolítico não é apenas reprodução, mas também invenção do político; (b) assim, não é um fator subordinado à produção e reprodução da vida material, mas, sim, tem uma dinâmica própria que pode ser observada no resgate das categorias como cinismo e eficácia política.
Entendemos que, o que Sandoval quer com a dimensão de “valores societais” e outras categorias é, acima de tudo, trazer uma concepção dialética entre sujeito e política, valorizando a singularidade e reconhecendo a capacidade de superar a consciência imersa no “cotidiano” alienado de Agner Heller (Silva, 2001).
Ou seja, guiado pelo nosso autor, consideramos fundamental observar não apenas o lado da confusão ideológica ou de indiferença e ódio à democracia, mas as alternativas, produções criativas e processos de resistência. O jovem engajado, ator sempre presente na história, continua a nos trazer lições sobre o tema. Os movimentos de moradia também, assim como as próprias urnas, que produzem Bolsonaros mas também produzem Marielles.
Como é importante seguir o espírito aberto e democrático de Salvador Sandoval para que possamos alcançar uma leitura cada vez mais certeira da realidade política e psicopolítica.