INTRODUÇÃO
Existe uma aparente divisão temática no campo de estudo dos movimentos sociais, protestos e das ações coletivas no norte global. Sociólogas/os tendem a se preocupar com as oportunidades políticas, disponibilidade de recursos e outras dimensões macroestruturais desses fenômenos. Já os psicólogas/os sociais dão mais atenção aos processos de reconhecimento, coalizões, formação de identidade e outros aspectos microrrelacionais dos conflitos políticos (van Stekelenburg, 2006). Na América Latina, pesquisadoras/es na área de Psicologia Política têm trabalhado diligentemente na construção de pontes entre esses dois campos de pesquisa (Silva, 2017) através do diálogo intenso com uma variedade de disciplinas no campo das humanidades – sociologia, ciência política, filosofia, entre outras – visando compreender e explicar as atividades políticas em cenários distintos da vida coletiva (Sears, Huddy, & Levy, 2013).
Alessandro Silva e Felipe Corrêa (2015) situam a Psicologia Política latino-americana “no interstício das disciplinaridades”. Refletindo sobre os desafios a serem enfrentados para constituição do campo, e abraçando a tradição política e teórica vigente no continente, eles argumentam que a principal característica dessa subdisciplina na região é o seu compromisso com os processos de transformação social. Grande parte das/os pesquisadoras/es construindo essa subespecialidade se distanciaram de uma concepção de conhecimento científico como algo desprovido de valor político e adotaram abordagens teórico-metodológicas explicitamente comprometidas com práticas promotoras de equidade (Rosa & Silva, 2012; Silva, 2012). É no contínuo dessas tradições que Salvador Sandoval propõe o Modelo da Consciência Política (MCP).
A ferramenta foi concebida no contexto dos estudos de Sandoval sobre as lutas operárias no Brasil (Sandoval, 1993), com o objetivo de compreender as condições psicopolíticas sob as quais os sujeitos podem transformar o status quo envolvendo-se em ações coletivas como greves e protestos. Construído a partir das ideias sobre a consciência operária descritas por Alain Touraine (1966), no MCP, Sandoval (2001) apresenta a consciência política como uma estrutura dinâmica composta por “dimensões psicológicas e sociais interrelacionadas de significados e informações que permitem aos indivíduos tomar decisões sobre o melhor curso de ação dentro de contextos políticos e situações específicas” (p. 185).
O artigo no qual Sandoval apresenta o modelo à comunidade acadêmica foi publicado em 2001 – no primeiro número da Revista de Psicologia Política brasileira. Ele representa um esforço teórico político importante para a agenda de pesquisa sobre transformações sociais em curso no continente. Isso pois a proposta apresenta caminhos através dos quais pesquisadoras/es construindo a Psicologia Política na região pudessem expandir os limites do campo para além daqueles demarcados pelo estudo do comportamento eleitoral e das disputas políticas dentro da esfera estatal.
A escolha do conceito de consciência reconhece a proeminência da noção entre estudiosos de mudanças sociais no Brasil, bem como seu uso por atores políticos comprometidos com a diminuição das iniquidades sociais brutais ainda vigentes na América Latina. A esse respeito, o estudo de Rafael Castro (2020) corrobora a popularidade da ideia na região ao informar que a noção de consciência política é mobilizada em 76 teses de doutorado e em 162 dissertações de mestrado publicadas entre 2001 e 2019. Dessas pesquisas, 12 estudos doutorais e 17 em trabalhos de mestrado aderem ao modelo proposto por Salvador. Segundo David Snow e Roberta Lessor (2013), a ideia de consciência política tem estreita relação com “os conceitos cognatos de consciência oposicional e de classe, falsa consciência, elevação da consciência e transformação da consciência” (tradução nossa, p. 1).
Frederico Costa e Marco Prado (2017) sustentam que os conceitos de consciência e conscientização são caros às teorias de mudança social desenvolvidas na Psicologia Social latino-americana. Na mesma direção, Alessandro Silva e Antonio Euzébios (2021) entendem que “formar militantes é uma tarefa política e científica e é parte do campo de estudos do Comportamento Político” (p. 15). Ciente da relevância de tais tradições políticas e teóricas, Sandoval elabora o MCP para orientar estudos interessados na seguinte questão: “quais fatores poderiam impulsionar pessoas a participarem num movimento social ou permanecerem alheios à mobilização?” (Sandoval, 1989, p. 71).
O modelo postula que sete dimensões interconectadas dão forma ao conteúdo cognitivo e emocional da consciência política das pessoas. Esse modo de apresentar o problema da consciência possibilita qualificar análises populares entre líderes políticos, organizadores de protesto e acadêmicos. É comum entre tais sujeitos ouvir avaliações de que os atores sociais têm ou não consciência política. Nos casos em que as pessoas teriam consciência, geralmente ela seria de um tipo específico: patriótica, cívica de classe etc.
Partindo da premissa básica de que os sujeitos humanos são em alguma medida cientes, o modelo possibilita entender como determinadas configurações de consciências são informadas por conteúdos e emoções políticas específicas e produzem singulares modos de ação ou de inação. Dito de outro modo: partindo da premissa materialista de que os humanos vivem e são socializados no mundo político, todos os humanos detêm uma consciência política. Cientistas interessados em trabalhar a consciência desses sujeitos precisam investigar a seguinte questão: como a forma de consciência política presente em determinado ente político – seja ele individual ou coletivo – informa o tipo de ação, ou inação daquele ente?
O MCP foi construído em estreito diálogo com a tradição norte-americana e europeia de estudo dos movimentos sociais e ações coletivas (Klandermans, 2004; Melucci, 1989; Tilly, 2006, 2008). Ele elenca sete elementos – identidade coletiva; crenças, valores e expectativas societais; interesses coletivos; eficácia política; sentimentos relacionados aos adversários; metas e repertório de ações e vontade de agir coletivamente – dando forma a consciência política e, consequentemente, informando a decisão de um indivíduo ou de um grupo, de agir ou não coletivamente para endereçar um problema político.
O objetivo deste artigo é entender como o emprego do MCP por pesquiadoras/es contribuiu para o seu desenvolvimento teórico-metodológico e, conjuntamente, para as discussões sobre participação e consciência política no campo da Psicologia Política no Brasil. Para tanto, realizaremos uma análise de 28 artigos publicados em periódicos brasileiros entre 2001 e 2021 que adotaram o MCP para investigar distintos fenômenos. O período da amostra se inicia do ano em que o modelo foi proposto por Sandoval e se estende por duas décadas. Analisar as formas como o modelo tem sido usado nesse período evidencia as transformações sofridas por ele ao longo do tempo, indica pontos que necessitam de refinamento conceitual e contribui para consolidação futura desta ferramenta teórica e analítica produzida pela vertente brasileira de Psicologia Política latino-americana.
O texto está organizado da seguinte forma. No primeiro tópico, apresentamos o desenvolvimento teórico do modelo de consciência política e suas dimensões analíticas. No segundo, descrevemos a metodologia de sistematização das informações e a perspectiva de análise do conjunto de artigos selecionados. No terceiro, desenvolvemos nossa análise dos artigos, lançando reflexões sobre diferentes elementos que perpassam os usos do MCP nas últimas duas décadas. Por fim, apresentamos nossas considerações finais e algumas indicações para pesquisas futuras que optem por trabalhar o modelo.
O MODELO DE CONSCIÊNCIA POLÍTICA DE SALVADOR SANDOVAL
Muito já foi dito sobre a centralidade da consciência política nas lutas contra a exploração e contra a escravidão do indivíduo pelo atual modo de produção material. Em geral, há uma suposição implícita, ou explícita, de que a consciência política descreve um estado fruto de “processo de tomada de consciência” (Ribeiro & Guzzo, 2017) e aquisição de “consciência crítica” (Silva, Freller, Alves, & Saito, 2017), o qual indivíduos e grupos devem alcançar para intervir intencionalmente nas normas sociais vigentes em determinado contexto sócio histórico. Nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, em um momento em que a influência do modelo de consciência operária de Touraine (1966) era mais proeminente, Sandoval (1994) retratou quatro configurações típicas de consciência política – senso comum, populista, polêmica e revolucionária. À medida que o modelo foi sendo utilizado em estudos sobre participação política fora do contexto sindical e diversas pesquisas começaram então a explorar a flexibilidade do MCP (Dau, Palassi, & Silva, 2019; Rosa, 2015), essa tipologia caiu em desuso.
A teorização de Sandoval foi construída com a premissa de que a decisão de agir ou não coletivamente para endereçar um problema político é orientada por interesses coletivos pessoais, por uma avaliação das condições materiais para o sucesso, e pela identificação das estratégias e repertórios de ação disponíveis (Costa & Prado, 2017). Sandoval compreende a consciência política como “social e historicamente determinada (mas não mecanicamente) pelas condições materiais existentes e pelas relações sociais constitutivas dentro de uma determinada sociedade em um determinado estágio de seu desenvolvimento” (Stetsenko, 2018, p. 179).
O MCP identifica o fenômeno da participação na vida política “na interseção entre os fatores estruturais, as relações sociais interativas, as visões de mundo com seus pré-conceitos de fundo cultural e as reflexões conscientes de custos e benefícios de participar” (Sandoval, 1989, p. 68). Assim sendo, para o entender a participação dos sujeitos nas questões políticas é crucial desvendar cuidadosamente as atividades de socialização política passadas, presentes e futuras, porque elas criam oportunidades para o desenvolvimento de um senso de identidade partilhada e de crença na eficácia da ação coletiva. Além disso, elas oferecem aos sujeitos conhecimento sobre os possíveis repertórios de disputa política prevalentes em determinada realidade (Gonçalves, 2009; Silva, 2007).
A disposição de uma pessoa ou de um grupo para agir, ou não agir coletivamente, tanto quanto a preferência por maneiras específicas de fazê-lo, pode ser entendida como um produto da interação constante entre expectativas e crenças sobre a sociedade, senso de identidade coletiva, sentimento de interesses coletivos compartilhados, suposições sobre eficácia política e a identificação com os objetivos e repertórios de ação disponíveis em um contexto específico (Sandoval, 2001). A multidimensionalidade dessa forma de conceber os elementos determinantes da consciência política permite às pesquisas que usam o modelo realizar um diagnóstico abrangente das condições sob as quais grupos, ou indivíduos, decidem participar, ou não, em esforços coletivos para solução de questões políticas. Na verdade, o modelo também pode ser usado produtivamente no planejamento de intervenções destinadas a intervir em aspectos específicos da configuração da consciência política de grupos e indivíduos (Costa, Deliberador, & Silva, 2014).
Alinhavando proposições de diversas/os autoras/es – Tilly (2006, 2008), Tajfel (1982), Melucci (1989, 1996) e Heller (1997) – Sandoval concebeu uma abordagem teórica que equipa investigadores de diversas disciplinas com categorias descritivas e analíticas para compreender e intervir nas condições psicossociais sob as quais, grupos ou indivíduos decidem entrar, ou não, na arena política. O Modelo da Consciência Política concebe esse fenômeno como estruturado a partir de sete dimensões que são: crenças e expectativas sociais, identidade coletiva, interesses coletivos percebidos, eficácia política, sentimentos para com os adversários, disposição para agir coletivamente e propostas de ação persuasivas (Sandoval, 2001; Sandoval & Silva, 2016).
As dimensões propostas foram concebidas com o intuito de capturar a dinamicidade e a processualidade de uma consciência em constante processo de formação e transformação. As interações das pessoas com o mundo material informam, deformam e transformam tanto conteúdo, quanto forma dessa consciência em um processo contínuo e dialético. “As diferentes configurações das dimensões da consciência política – circunscritas pela luta hegemônica ideológica de determinado momento histórico – potencializam ou não, a práxis política individual ou coletiva” (Rosa, 2015, p. 401). O enquadramento feito por Sandoval para o problema da consciência política oferece uma heurística, um modo sistemático de se aproximar de um objeto de investigação multifacetado, que viabiliza analisar dinamicamente como fatores individuais, contextuais, históricos e políticos, informam as ações políticas de indivíduos e grupos.
Ainda que possa haver um ímpeto em fazer uma leitura mecânica e sequencial das dimensões, Sandoval (1989) assevera que a compreensão da consciência política deve ser considerada a partir de categorias psicossociais relacionadas de maneira dependente das vivências das pessoas em contextos políticos diversos. Consciências são entidades inacabadas e em constante processo de produção.
A seguir, na Figura 1, descreveremos brevemente cada uma das sete dimensões do modelo, bem como algumas revisões e transformações que elas foram sofrendo ao longo do tempo.
Crenças e valores societais concernem aos valores e crenças que os indivíduos constroem sobre as relações de poder existentes nas sociedades em que vivem. O convívio com as instituições introduz as pessoas aos valores sociais da cultura política hegemônica, e as crenças adquiridas pelas vivências sociais viabilizam o processo de formação da subjetividade do indivíduo. Este cotidiano se torna campo onde as pessoas agem de forma pouco reflexiva. É nele, e dele, que se forma o senso comum, cristalizando crenças e valores, diminuindo a necessidade de reflexão, criando hábitos e automatizando processos decisórios. Paralelamente através dos laços de identidades grupais estabelecidos ao longo da sua história, as pessoas constroem socialmente suas realidades. Assim sendo, esta dimensão foca nas ideias e afetos sustentando a espontaneidade da vida cotidiana. Ela pede atenção para aspectos automáticos e naturalizados da vida das pessoas. Portanto, ela recomenda que os interessados em entender o fenômeno da consciência interroguem o natural e investiguem as condições macrossociais que permitiram a sedimentação de crenças e valores onde, em condição propícia, podem viabilizar a alienação e o conformismo das pessoas, destituindo-as da reflexão sobre seus cotidianos (Sandoval & Silva, 2016).
Em Identidade Coletiva, observa-se o sentimento de pertença a grupos sociais. O modelo postula que a identidade compartilhada com os membros do grupo é o mediador usado para que os sujeitos escolham como priorizar seus investimentos dentro e fora do grupo. Através dela, as/os pesquisadoras/es e analistas observam como indivíduos escolhem seu foco de atuação política e desenvolvem lealdade e a solidariedade para com um grupo específico, tornando-o mais politizado. Sendo assim, a identificação grupal é um elemento importante para formar o direcionamento individual e coletivo da ação política (Sandoval & Silva, 2016).
A dimensão Eficácia política, aborda “os sentimentos de uma pessoa acerca de sua capacidade de intervir em uma situação política” (Sandoval, 2001, p. 188). O foco dela é a compreensão de como as pessoas explicam as causas dos comportamentos dos outros e de si mesmas, bem como os eventos sociais a seu redor. Mais especificamente, a categoria busca analisar como as atribuições que as pessoas fazem impactam seu senso de eficácia em relação à política. Sujeitos podem atribuir uma causalidade divina a um determinado fenômeno político, gerando sentimentos de baixa eficácia política, ou uma causalidade prioritariamente interna (características pessoais como personalidade, habilidades e competências que ele possui, etc.) e direcionada a elas mesmas, fazendo com que busquem preferencialmente soluções individuais para questões coletivas. Os indivíduos também podem identificar que as questões sociais advêm das ações de determinados coletivos e sujeitos. Desta forma, é mais provável compreender certos acontecimentos como resultantes das ações de outros grupos ou indivíduos, motivando potencialmente as pessoas a acreditarem na eficácia de ações individuais e coletivas organizadas como ferramenta de mudança diante de uma situação de angústia social (Sandoval & Silva, 2016).
A penúltima dimensão, Vontade de agir coletivamente, diz respeito à viabilidade de as pessoas aderirem (ou não) a ações organizadas que objetivem corrigir situações percebidas como justas ou injustas. Alguns pontos como avaliação de custos e benefícios da ação, aspectos de classe de ganhos e perdas materiais, e identificação dos riscos para agir coletivamente, são questões importantes a serem avaliadas quando do trabalhando com esta dimensão. As escolhas a esse respeito serão informadas pelo compartilhamento de informações e significados próprios que norteiam a participação e o comprometimento das pessoas com o movimento social (Sandoval & Silva, 2016). Essas influências também serão encontradas na dimensão seguinte.
Em Metas e ações do movimento social, observa-se como os participantes percebem o alinhamento entre seus sentimentos de eficácia política em relação às metas e ações propostas pelo movimento. Suprir as expectativas que advém da atribuição de significado e do sentimento de eficácia política aumenta as chances de que os participantes do movimento estejam dispostos a mobilizar os outros componentes da consciência política, viabilizando que a ação coletiva ocorra num cenário de engajamento psicossocialmente harmonioso (Sandoval & Silva, 2016).
Na dimensão Adversário e interesses antagônicos localizam-se os sentimentos individuais e grupais desenvolvidos e nutridos de forma comparativa com os interesses materiais e simbólicos de outros grupos. Antes do desenvolvimento do MCP, Sandoval (1994) já salientava que a identificação de oponentes servia como ponto de referência para desenvolvimento de práticas alternativas às defendidas por eles, para construção da moralidade e definição de interesses do grupo ao qual se pertence. O antagonismo de interesses entre grupos estimula o reconhecimento de quem são os sujeitos e grupos com os quais as pessoas estão em concorrência direta. Ressalta-se que a identificação e a materialização de um adversário mobilizam e motivam sujeitos a agirem coletivamente diante de um objetivo específico, podendo este adversário ser um indivíduo, grupos ou instituições, materializando o sentimento de pertença ao grupo (Sandoval, 2001).
Antes de prosseguir com a apresentação, é necessário abordar, ainda que brevemente, a transformação da dimensão de “sentimentos de justiça e injustiça”, presente na versão do modelo de 2001 na dimensão “adversários e interesses antagônicos” que acabamos de descrever. Diante da crescente atenção aos impactos das emoções na política, Sandoval apresenta uma reformulação do Modelo de Consciência Política, visando localizar de forma mais precisa o papel das emoções no processo de conscientização dos indivíduos em experiências de participação em ações coletivas. A partir dessa atualização, o foco deixa de estar na percepção emocional sobre justiça em relação aos adversários do grupo ao qual se pertence, ou a sociedade de uma forma geral. Sentimentos e emoções passam a ser compreendidos em uma posição transversal, afetando todas as dimensões e sendo um fator importante para a atribuição de significados aos conteúdos que informam todos os componentes da consciência. Afetividade é então concebida como um elemento crucial na construção de sentidos impactando vivências do sujeito e processo histórico que moldam a consciência das pessoas (Sandoval & Silva, 2016). A figura abaixo tenta captar essa mudança:
Interesses coletivos é também uma dimensão que não estava presente na versão publicada em 2021. Ela diz respeito ao trabalho necessário para construção e reconhecimento de interesses partilhados com os demais membros de um grupo e está intrinsecamente relacionada à construção da identidade coletiva. Por sinal, na teorização feita em 2016 é recomendada maior atenção às relações entre afetividade, interesses e identidades coletivas. “Indivíduos orgulham-se de identificar-se com grupos ao qual pertencem, e suas interações com outros membros oferecem a eles uma variedade de prazeres” (Jasper, 2022, p. 21). A mudança do lugar da afetividade no modelo está sustentada na premissa de que emoções impactam os significados atribuídos ao conteúdo dos demais elementos da consciência política (Sandoval & Silva, 2016). Na versão do modelo apresentada em 2016, a ideia de sentimentos emotivos foi o enquadramento dado pelos autores para argumentar sobre a influência da disponibilidade afetiva de indivíduos e grupos na conformação das dimensões da consciência política.
É mister esclarecer que, mantendo seu compromisso com a elasticidade epistemológica, Sandoval não afilia sua discussão sobre emoções a nenhuma macro teoria sobre o assunto – cabendo novamente aos usuários do modelo o trabalho de desenvolver essa abordagem em seus estudos. O que o termo «sentimentos emotivos» indica é a necessidade de atenção ao impacto da afetividade sobre as dimensões que compõem a consciência política (Sandoval & Silva, 2016) Assim sendo, entendemos que uma representação visual mais acurada da ideia é necessária e, por isso, elaboramos a figura abaixo. Nela, cada uma das categorias analíticas é marcada com disposições afetivas possíveis, reforçando visualmente a afetividade como um qualificador transversal que impacta potencialmente todas as dimensões da consciência.
Ademais, em consonância com as discussões feita por Sales (2023), propomos renomear a dimensão “Adversários e interesses antagônicos”. Para explicitar os aspectos afetivos presentes nas relações de rivalidade política, é adequado conceber tal dimensão sob o título de “Sentimentos em Relação aos Adversários”. Estamos convencidos de que isso torna a descrição dos fenômenos a serem trabalhados nessa sessão mais precisa pois quando grupos políticos se percebem em relação de rivalidade direta, como por exemplo, presenciadas no conflito entre lulistas e bolsonaristas no ciclo eleitoral brasileiro de 2022, “eles fortalecem as fronteiras que veem separando-os, o que aumenta a solidariedade interna e a demonização externa. Sua interação também possui suas dinâmicas, especialmente um tipo de gangorra emocional, onde cada um age de forma que o outro sinta-se ameaçado ou ultrajado” (Jasper, 2022, p. 28, tradução nossa).
Identificar a consciência política de um grupo ou um indivíduo demanda compreender que este fenômeno reflete um momento específico da consciência que está sendo observada e analisada. O modelo oferece acesso a configuração específica da consciência em determinado momento do tempo. Quase como um quadro no filme da vida de uma pessoa, ou de um grupo. Portanto, é preciso reconhecer os processos dialéticos que modelam as nuances vividas por grupos e sujeitos, e que provocam mudanças frequentes, conforme as experiências vivenciadas.
Finalizada a breve apresentação sobre as dimensões do modelo, explicaremos a seguir os caminhos metodológicos de coleta, categorização e análise realizados neste trabalho.
METODOLOGIA
Para a análise dos usos e o desenvolvimento do MCP em pesquisas de Psicologia Política, selecionamos 28 artigos publicados em revistas acadêmicas de 2001 a 2011. Os artigos foram selecionados de um banco mais amplo, que compilou publicações acadêmicas sobre o MCP (teses, dissertações, livros, artigos e capítulos) alimentado pelo Núcleo de Pesquisas em Psicologia Política e Movimentos Sociais (NUPMOS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A construção do banco foi iniciada em 2021 por um grupo de trabalho do NUPMOS, levantando publicações1 a partir do uso dos descritores “modelo de consciência política” e “modelo analítico da consciência política”. Em sua última atualização, em dezembro de 2022, o banco contava com 99 trabalhos catalogados. Optamos por selecionar apenas os artigos publicados em revistas científicas por terem passado por um processo de avaliação peer-review e conterem de forma mais sintética, discussões teóricas e resultados de pesquisa.
Inicialmente, foram extraídos 35 artigos do banco principal. Considerando o objetivo de compreender as formas de uso do modelo, excluímos os textos que apenas mencionam o MCP sem qualquer tipo de elaboração teórica ou analítica. Após tais exclusões, permaneceram um conjunto de 27 artigos para análise – listados no Quadro 1. Fazendo um panorama deste conjunto de artigos, a sua grande maioria (21) foi publicada no período de 2011 a 2021. Alessandro Soares da Silva, professor da Universidade de São Paulo, e Marcia Prezotti Palassi, professora da Universidade Federal de Espírito Santo, foram as/os pesquisadoras/es que autoraram ou coautoraram o maior número de artigos (ambos em 8 cada), contribuindo para o desenvolvimento do MCP em trabalhos empíricos e teóricos. Silva e Palassi foram orientandos/as de Sandoval e desenvolveram formas particulares de utilização do MCP em pesquisas psicopolíticas, que respondem também às demandas de seus respectivos campos (Silva mais centrado nas intersecções entre Psicologia e Teoria Política, e Palassi no campo da Administração Pública).
Ano | Título | Autoras/es |
---|---|---|
2001 | Consciência e participação política: uma abordagem psicopolítica | Silva |
2002 | O lugar das crenças e valores societais na formação da consciência política entre trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra | Silva |
2007 | A identificação de adversários, de sentimentos antagônicos e de (in)eficácia política na formação da consciência política no MST Paulista | Silva |
2008 | Memória política: construindo um novo referencial teórico na Psicologia Política | Ansara |
2009 | O legado da greve de Perus: lembranças de uma luta operária | Ansara |
2009 | Impactos da participação e da consciência política na vida das mulheres líderes em política | Gonçalves |
2009 | Exclusão social e consciência política: Luta e militância de transgêneros no ENTLAIDS | Silva & Barboza |
2012 | Um estudo sobre a consciência política de jovens universitários | Azevedo |
2012 | Participação dos Núcleos de Defesa Civil do Município de Vitória na Gestão de Desastres Naturais | Lugon & Palassi |
2013 | Metas da ação coletiva e vontade de atuar de maneira coletiva na produção da consciência política de agricultores acampados do MST – Brasil | Silva |
2014 | Contribuições da noção de consciência política para a pesquisa e a prática da comunicação comunitária | Costa, Deliberador, & Silva |
2015 | Consciência Política e Corrupção em Moçambique: entre a subalternidade e a transformação | Ba-Senga & Silva |
2015 | Psicologia e Consciência de Classe “Para-Si”: ações e desafios na direção da mudança social | Euzébio & Guzzo |
2015 | Trabalhador e Mãe: Papéis, identidade, consciência política e democracia | Puccini, Aron, & Santiago |
2015 | Participação política: diálogos entre consciência política e práxis política | Rosa |
2015 | Consciência política e participação no Orçamento Participativo em Cachoeiro de Itapemirim (ES, 2009-2012) | Souza, Palassi, & Silva |
2016 | Crítica, política e psicologia social: A mudança social e o lugar da ação intelectual na luta política | Costa & Prado |
2016 | Consciência política e participação cidadã de estudantes de administração: um estudo exploratório em uma universidade pública no Brasil | Palassi, Martins, & Paula |
2017 | Ações coletivas e comportamento político: Produção científica da Psicologia Social brasileira (1986-2011) | Costa & Prado |
2018 | Memória e Consciência Política: uma proposta de revisão teórica e metodológica para o campo da Psicologia Política | Fraccaroli, Arantes, & Aragusuku |
2019 | A Educação Ocupada: um Ensaio Psicopolítico sobre as Ocupações Secundaristas de São Paulo | Oliveira |
2019 | Aprendizado político no Conselho do Orçamento Participativo em Cachoeiro de Itapemirim – Espírito Santo – Brasil | Souza, Palassi, Silveira, & Silva |
2019 | O Diretório Central de Estudantes da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul como espaço de representação política: análises e discussões sobre consciência e participação política | Schinaider, Hernandez, & Petry |
2019 | Consciência política e participação dos representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Assistência Social de Vitória – ES | Dau, Palassi, & Silva |
2020 | Entre o discurso empreendedor e a consciência política: estudo exploratório do Movimento Empresa Júnior em uma universidade pública no sudeste do Brasil | Palassi, Martinelli, & Paula |
2021 | Consciência política e predisposição à participação dos trabalhadores de uma empresa de saneamento em ações coletivas contra a privatização no Sudeste do Brasil | Oliveira, Palassi, & Paula |
2021 | Consciência e participação política em conselhos gestores de unidades de conservação: Adversidades e forças | Santos & Hernandez |
2021 | Marxismo, consciência e comportamento político | Silva & Euzébios |
Fonte: Elaboração própria.
Para a leitura e sistematização dos artigos, organizamos uma tabela com algumas informações relevantes para a fundamentação das análises. Para além das categorias mais descritivas (como título, revista, ano, autoras/es, desenho de pesquisa etc.), analisamos as bases epistemológicas e teóricas, as metodologias e procedimentos empregados, as temáticas abordadas, as contribuições para a literatura e os usos das dimensões do modelo. A partir das informações sistematizadas nessa tabela, foi possível produzir tanto uma análise de cada trabalho em sua particularidade quanto um panorama geral do conjunto de artigos. No presente artigo, escolhemos por realizar uma análise menos descritiva (voltada a descrição de elementos dos artigos) e mais interpretativa (volta a interpretação dos usos do MCP pelas pesquisas). Desse modo, estaremos a todo momento dialogando a nossa análise com outras literaturas e discussões que extrapolam os conteúdos presentes nos 28 artigos selecionados. Sendo assim, dividimos nossa análise em quatro subtópicos: (a) caracterização dos usos do MCP; (b) contribuições do modelo para o estudo de fenômenos políticos; (c) consensos e dissensos sobre o conceito de consciência política; e (d) os limites do uso do MCP a partir de análises normativas.
ANÁLISE
CARACTERIZAÇÃO DOS USOS DO MCP
Trabalhamos com um total de 28 artigos. Desses, nove relatam pesquisas teóricas, enquanto dezenove trabalham com dados empíricos. A forma prioritária para coletas de dados desses estudos foi entrevista – quatorze artigos mencionam tal procedimento. Sete investigações fizeram uso de questionários. Observação participante e análise documental são usadas para complementar dados coletados através de entrevistas.
Os 19 artigos empíricos exploram diferentes formas de participação dos cidadãos nas questões da vida pública. Essas investigações se debruçam sobre quatro contextos de engajamento político distintos, a saber: movimentos sociais, participação cidadã, atividade sindical e atividade junto a espaços de gestão de políticas públicas. Esclarecemos que na categoria de participação cidadã foram incluídos estudos discutindo as expectativas de engajamento dos cidadãos em temas relevantes à vida pública como corrupção (Ba-Senga, Silva, 2015) e os estudos exploratórios sobre consciência e participação política de jovens universitários feitos por Lúcia Azevedo (2012), Fernanda Schinaider, Aline Hernandez e Liriane Petry (2019) e Marcia Palassi, Raiane Martinelli & Ana Paes de Paula (2020).
Dois estudos empíricos realizados por Soraia Ansara (2008, 2009) usam a memória política como mediador principal da participação política. Nesses textos, a autora convida as/os pesquisadoras/es a desenvolverem aspectos pouco teorizados e presentes indiretamente na proposição das dimensões do modelo. Entendemos que esses dois trabalhos, posto que usam seus dados empíricos para marcar a necessidade de um aprimoramento teórico, situam-se na fronteira entre textos de orientação empírica e teórica.
Os artigos classificados como teóricos foram construídos mobilizando como procedimento metodológico formas sistemáticas e assistemáticas de revisão de literatura (Fraccaroli, Arantes, & Aragusuku, 2018; Silva, 2001; Rosa, 2015). Eles discutem – usando prioritariamente o formato de ensaios teóricos – distintos aspectos da participação dos cidadãos na vida pública. Predominam nesses estudos discussões sobre os determinantes da consciência política, tais como os textos de Alessandro Silva (2001) e Leandro Rosa (2015). No primeiro, o autor explicita como a Teoria do Self Social, apresentada por George Hebert Mead, está presente na proposta do modelo de Salvador. Já o segundo, elabora pontes entre o modelo da consciência política e os projetos teórico-políticos de Gramsci e Vigotsky; esse estudo também postula o ambiente ideológico vigente em determinado período histórico como o principal determinante da forma que a consciência virá a tomar.
CONTRIBUIÇÕES DO MODELO PARA O ESTUDO DE FENÔMENOS POLÍTICOS
A partir da análise das diversas formas de uso do MCP que se observaram nos artigos estudados, identificamos três contribuições que os usos do modelo trouxeram para o campo da psicologia política ao longo desses vinte anos: fomento de debate teórico conceitual; compreensão dos múltiplos fenômenos agrupados na categoria consciência política; reafirmação do compromisso da Psicologia Latino Americana com a diminuição das iniquidades estruturais presentes na região através da compreensão das condições para mobilização e participação política.
Ainda que Salvador tenha mobilizado prioritariamente ideias do campo dos estudos de movimentos sociais estadunidenses em sua proposição, o modelo foi concebido sem grandes amarras epistemológicas. Essa flexibilidade, além de reconhecer a pluralidade de perspectivas dentro dos debates sobre consciência, permitiu que as/os pesquisadoras/es desenvolvessem seus estudos usando outras teorias, e levantando outras possibilidades de hipóteses para explicar os fenômenos políticos do nosso tempo. Trata-se de um enquadramento conceitual desenhado para comportar com rigor tanto as singularidades do objeto de estudo, quanto as ferramentas teóricas com as quais distintas/os analistas pretendem trabalhar.
Pesquisas teóricas como a de Alessandro Silva (2001) e a de Antônio Euzébios e Raquel Guzzo (2014) demonstram a utilidade do MCP para construções interdisciplinares que, a um só tempo, contribuem para consolidação do campo da psicologia política, como elaboram questões para a sociologia dos movimentos sociais. A primeira investigou a relevância da ideia de self na determinação de aspectos sociopolíticos da consciência e da participação política. Já a segunda usa o MCP para examinar a relação entre determinados modos de sociabilidade e processos de tomada de consciência política.
Nesse mesmo sentido, a atenção dada por Soraia Ansara (2008, 2009) à memória na formação da consciência política aponta direções importantes de inovação com potencial para qualificar a compreensão dos elementos determinantes de cada uma das dimensões da consciência. Esses dois trabalhos revisaram artigos que haviam empregado o modelo e destacaram neles a presença de debates implícitos sobre a relevância da memória política como determinante nos processos de politização da consciência. Aproveitando a flexibilidade do modelo, as/os autoras/es desses estudos argumentam pela necessidade de avançar uma agenda de pesquisa focada nas relações entre memória e consciência, e sugerem ser profícuo para a pesquisa da Psicologia Latino Americana escrutinar, a partir da noção de memória, as funções desempenhadas pelas emoções na construção das consciências políticas.
Insistimos no argumento de que o arranjo conceitual apresentado por Salvador tem caráter inovador pois, seguindo a tradição das construções em Psicologia Política Latino-Americana (Montero, 1987; Parisí, 2008; Silva & Corrêa, 2015), ele fomenta diversas possibilidades de teorização sobre a consciência política. Ainda que as/os pesquisadoras/es reconheçam a matriz de onde Salvador partiu para construção do modelo, ao usá-lo nesses vinte anos, elas/es empregaram as matrizes teórico epistemológicas as quais já estavam afiliadas/os, explorando as dimensões da consciência em perspectivas hora mais marxista dialética – como fez Leandro Rosa (2015) – ou pela via da literatura da conflitualidade política – como fazem Audri Silva dos Santos e Aline Reis Calvo Hernandez (Santos & Hernandez, 2021). O resultado disso foram avanços significativos para o campo, qualificação do potencial analítico interdisciplinar do modelo e consolidação da Psicologia Política como uma subárea dentro da Psicologia Social Brasileira.
Os estudos dedicados a realizar o mapeamento das configurações de consciência de distintas populações foram fundamentais para explorar empiricamente os movimentos e transformações característicos da consciência política. Nos trabalhos que Marcia Palassi produziu em parceria com outra/os autora/es (Dau, Palassi, & Silva, 2019; Lugon & Palassi, 2012; Oliveira, Palassi, & Paula, 2021; Palassi, Martinelli, & Paula, 2020; Palassi, Martins, & Paula, 2016; Sousa, Palassi, Silveira, & Silva, 2019; Souza, Palassi, & Silva, 2015) identifica-se o uso das dimensões do MCP como direcionadoras metodológicas para mapear a dinâmica da consciência política de diversos públicos. Nesses estudos, as dimensões do MCP foram usadas como categorias de coleta de informação e organização de análise. Esse tipo de uso tem ajudado a esclarecer a natureza do conteúdo de cada dimensão, a forma como elas se relacionam entre si e o modo como essas relações afetam as diversas configurações possíveis de consciências. Estudos dessa natureza contribuem para uma melhor compreensão de cada um dos determinantes da consciência, permitindo que o tema seja abordado de forma mais adequada e precisa.
Por fim, destacamos dois estudos nos quais o modelo foi utilizado para compreender mais acuradamente as condições necessárias para mobilização de maiorias minorizadas na cena política. Alessandro Silva e Renato Barboza (2009) resgatam a tipologia da “consciência revolucionária” utilizado por Sandoval no seu artigo de 1994, antes da criação do MCP, para analisar o engajamento político de pessoas transgêneras no Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Atuam na Prevenção da AIDS (ENTLAIDS). Os autores são explícitos em seu objetivo teórico e político de compreender como o ENTLAIDS “pode constituir-se enquanto um espaço privilegiado de militância e formação de uma consciência política afeita à participação de ações coletivas que visem o enfrentamento da dialética perversa da exclusão/inclusão social” (Silva & Barboza, 2009, p. 257). Já o estudo de Betânia Gonçalves (2009) analisou o impacto da participação política na vida das mulheres, e fez uso do MCP para definir consciência política. Essa investigação visava tanto mapear entraves estruturais dificultando o acesso de mulheres a espaços de lideranças dentro da política, quanto para acompanhar o impacto da participação na identidade das mulheres.
Em ambos os casos, as formulações sobre consciência política desenhadas por Sandoval (1994, 2001) foram escolhidas por sua capacidade de proporcionar insights pertinentes à disputa política pela redução das iniquidades imorais às quais certas populações seguem expostas. As/os autoras/es desses estudos mobilizam o modelo para marcar seu alinhamento às lutas contra as múltiplas formas de inequidade e opressão presentes no contexto brasileiro.
A luz das contribuições mencionadas, argumentamos que o MCP tem sido uma ferramenta adequada para compreender a consciência política enquanto um objeto de investigação caracterizado pelo processo de transformação contínuo. Ele fomenta inovação ao fornecer uma direção de trabalho simultaneamente estruturada e flexível. Nas subseções seguintes, iremos explorar os debates sobre o conceito de consciência ancorando o modelo, bem como analisar uma limitação importante decorrente do uso predominante do mesmo para estudar fenômenos políticos e sujeitos alinhados ao lado esquerdo do espectro político.
CONSENSOS E DISSENSOS SOBRE A CONSCIÊNCIA POLÍTICA
Uma das principais contribuições do modelo é teórico-conceitual, referente à definição de “consciência política” e a seu uso no estudo da participação política. Na literatura sobre mobilização política e movimentos sociais, prevalente na América do Norte e na Europa, consciência política não é um conceito tradicionalmente utilizado para analisar a participação ou não das pessoas em processos políticos. Estrutura de oportunidades políticas, enquadramentos interpretativos, redes colaborativas, repertórios de ação coletiva, oferta de canais para manifestação, custos materiais e emocionais da participação são categorias analíticas mais frequentes (Klandermans, 2004; Rosa & Klandermans, 2022; Snow, Vliegenthart, & Ketelaars, 2018; Tilly, 2006, 2008).
Como descrito por Sandoval e Silva (2016), a decisão pelo desenvolvimento teórico deste conceito se deu a partir de um diálogo com a Psicologia Social latino-americana de vertente crítica, emergente nas décadas de 1980 e 1990 – naquele momento fortemente influenciada pela filosofia social marxista e pela pedagogia freireana. A ideia de consciência faz parte do vocabulário usado por jogadores políticos no Brasil, sendo comumente utilizado para descrever um atributo subjetivo ou cognitivo entendido como determinante à participação política. Isto é, no senso comum, “ter consciência política” aumentaria a probabilidade de as pessoas participarem em ações coletivas e se engajarem politicamente. Atento a esses usos na vida cotidiana, Salvador integrou diversos elementos presentes na literatura sobre participação política para descrever analiticamente o que seria a consciência política. Em suma, a costura de noções da Psicologia social, da Sociologia dos movimentos sociais e da filosofia política que amparam o modelo apresenta uma tentativa de responder a seguinte questão: quais fatores aumentam a disposição das pessoas para participar de um movimento social ou as influenciam a permanecerem alheias a essas mobilizações?
Em sua proposição inicial do MCP, Sandoval (2001) conceituou consciência política como “um conjunto de dimensões sociopsicológicas inter-relacionadas de sentidos e informações que permitem aos indivíduos tomar decisões quanto ao melhor curso de ação dentro de contextos políticos e situações específicas” (tradução nossa, p. 185). Trata-se de uma definição interessada no escrutínio dos determinantes que conformam e mediam os processos políticos. Por isso, o estudo deste fenômeno foi desmembrado em sete dimensões distintas, de modo que fosse possível a análise detalhada de diferentes elementos sociopsicológicos que constroem e favorecem, a nível individual ou grupal, a participação política. Nos artigos analisados, ocorreram diferentes apropriações deste conceito, gerando variações em sua compreensão.
Antes de tratar das variações, é importante destacar os consensos nos artigos. O primeiro elemento em destaque é a definição da consciência a partir de seu aspecto interacional ou relacional. A conformação da consciência ocorreria a partir de múltiplas interações/relações entre pessoas, grupos, instituições e contextos sociopolíticos, tratando-se de um fenômeno sociopsicológico que é situado em um contexto relacional. Portanto, são apresentadas definições evidenciando que a consciência “é socialmente dada, forjada no interior do processo social, no qual objetividade e subjetividade interagem” (Silva, 2001, p. 84), “surge da interação entre cultura e cognição” (Ansara, 2008, p. 38), e “é resultante do processo relacional entre o indivíduo e o meio no qual está inserido” (Palassi, Martins, & Paula, 2016, p. 6). Segundo, é explicitado o aspecto motivacional ou causal da consciência, que é compreendido como determinante para o engajamento das pessoas na política (Silva, 2002, 2013). Algo explicitado por André Lugon e Marcia Palassi (2012), ao concluírem que a participação política do grupo estudado é “consequência da formação de sua consciência política” (p. 458). Outros trabalhos igualmente enquadram a consciência política como um elemento “possibilitador” da participação política (Oliveira, 2009; Silva, 2007) e algo relacionado diretamente à “práxis política” (Rosa, 2015).
Já as variações na compreensão refletem as diferentes perspectivas epistemológicas que fundamentam os artigos. Podemos sintetizar estas variações em duas vertentes: (a) uma definição normativa2 de consciência, fundada na tradição materialista histórico-dialética e associada a ações transformativas para diminuir iniquidades; e (b) uma definição empírica de consciência, baseada na tradição pragmática norte-americana. Consideramos que estas duas vertentes são expressões de tensões internas nas próprias discussões de Sandoval (1989, 1993, 2001), tendo em vista que ambas as tradições (pragmatismo norte-americano e materialismo histórico-dialético) foram colocadas em diálogo na construção do MCP. A primeira vertente define consciência política como uma forma de disrupção do pensamento dominante. O fenômeno da conscientização aqui teria como fim a participação em ações coletivas de viés emancipatório. As/s autoras/es que se engajaram nessa direção articularam a ideia de consciência com o conceito de cotidiano em Agnes Heller (Ba-Senga & Silva, 2015), com a noção marxiana de consciência (Euzébios & Guzzo, 2015) e com a teoria gramsciana (Rosa, 2015). Na segunda vertente, o conceito de consciência política é enquadrado como uma ferramenta de análise que descreve uma realidade empírica, sem necessariamente carregar um fim emancipatório. Ou seja, o foco está na produção de um diagnóstico da configuração que a consciência política adquire – que pode ser favorável ou desfavorável à participação. Trabalhos como de Soraia Ansara (2009) e Arthur Dau et al. (2019) expressam esta tradição em suas discussões e evidenciam que “há entre os representantes da sociedade civil distintas configurações de consciência política ... [que se expressam através de] distintas formas de atuação desses atores” (Dau et al., 2019, p. 209).
Por fim, é importante apresentar as críticas apresentadas por Costa e Prado (2016, 2017) ao conceito de consciência política proposto por Sandoval. Na concepção dos autores, consciência pressupõe uma visão racionalista e essencialista, que entende os conflitos políticos como disputas de interesses (com vistas à maximização dos ganhos) entre atores estritamente racionais, sem colocar em questão as tensões no campo discursivo entre hegemonia e subalternidade. Nessa mesma linha de raciocínio, a inclinação materialista histórico-dialética também implicaria na definição de consciência política como a superação de uma falsa consciência, resultando na essencialização da atividade política.
Apesar de tais críticas estarem vinculadas a um pressuposto epistemológico estranho ao MCP (o pós-estruturalismo3, no caso), o questionamento do racionalismo excessivo e da essencialização da “consciência desejável” apontam direções importantes para o desenvolvimento teórico-conceitual do modelo. É fundamental destacar o papel dos elementos não racionais da política, como já apontado por Sandoval e Silva (2016), quando propuseram revisões ao MCP dando maior destaque às emoções, buscando afastar o conceito de consciência política de qualquer inclinação excessivamente racionalista. Leandro Amorin Rosa (2015) também insiste neste ponto ao concluir que a consciência “relaciona-se, de forma dialética, a outras funções psicológicas, em especial as emoções” (p. 401). Por outro lado, de fato, existe uma tendência, em muitos artigos, em reafirmar a “consciência ideal”, e isso poderia ser ajustado por meio do estudo da consciência política de grupos que se opõem aos valores preconizados pelo mainstream das Ciências Humanas – isto é, estudos de grupos alinhados à direita política e a ideais conservadores.
CONSCIÊNCIAS POLÍTICAS CONSERVADORAS E OS LIMITES DAS ANÁLISES NORMATIVAS
Seja pela prevalência de um certo monopólio no campo dos movimentos sociais por atores políticos localizados no lado esquerdo do espectro político no Brasil (Avritzer, 2016), seja pelo alinhamento político das/os autoras/es que utilizaram o modelo, é válido apontar um efeito colateral das apropriações do MCP ancoradas em uma definição normativa da ideia de consciência. Tal e qual os usos do vocábulo no senso comum, os textos afiliados a essa tradição refletem um entendimento de que a consciência política seria um atributo que favorece necessariamente o engajamento dos sujeitos em ações políticas visando a diminuição das iniquidades brutais que marcam a sociedade brasileira. As/os autoras/es trabalhando nessa direção assumem que ter consciência política é agir para questionar o status quo e promover aumento da equidade.
No texto de Ansara (2008) sobre a relação entre memória e consciência, a consciência política aparece como algo que favorece a contestação e a luta por uma verdade popular, desideologizada, sendo esta formada e formadora da “própria práxis, a qual procura responder aos problemas sociais, vai contra a mentira social, rompe com a dinâmica que mantém a ordem social, e reverte o conhecimento ao povo possibilitando a transformação social” (Ansara, 2008, p. 39). Em trabalho posterior da autora, onde discute a importância da memória para formação da consciência política, ela chama atenção para o fato de que “nos relatos dos sindicalistas, como é forte a consciência de que são da classe trabalhadora e têm direitos para reivindicar” (Ansara, 2009, p. 254).
A equivalência entre ter consciência política e estar comprometido com a defesa do ideário democrático está posta no trabalho de Beatriz Puccini, Mariana Aron e Evelyn Santiago (2015), onde as autoras afirmam “a gradual conscientização das mulheres sobre seus direitos tem se dado, mas os resultados são insuficientes para garantir a cidadania e a consolidação da democracia” (p. 594). Contudo, é na conclusão do texto de Silva e Barboza (2009) que a ideia aparece articulada de forma mais direta. Analisando o histórico de luta política de um grupo de travestis, os autores afirmam que “a luta política dessa população certamente possibilitou a visibilidade de novas formas de identidades sexuais, de consciências política ... abrindo espaço para a geração de novas formas de luta contra a exclusão, novas formas de formulação e implementação de políticas públicas e de construção política da subjetividade humana” (Silva & Barboza, 2009, p. 275).
André Sales, Flávio Fontes e Silvio Yasui (2021) argumentam que a associação entre consciência política, militância e combate às iniquidades integram uma semântica de transformação social orientada por ideários marxistas muito caros à cultura de política nacional no Brasil. A gramática participativa e de contestação social na qual a consciência política se insere foi de suma importância para movimentos sociais que lutaram pela democracia e contra a violência da ditadura militar entre 1964-1985. Alicerçado na ideia de consciência, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) liderou campanhas pela liberdade de expressão e direitos humanos no período. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), formado durante a ditadura militar para lutar pela reforma agrária e pela justiça social, também usou a ideia para mobilizar pessoas a agir coletivamente em prol de mais equidade na distribuição de recursos fundiários. O movimento estudantil organizado na União Nacional dos Estudantes (UNE) invocava – e invoca – a retórica da consciência política no chamamento de suas manifestações e protestos (Avritzer, 2016).
Por outro lado, há um aumento expressivo de ações coletivas orientadas por ideários conservadores e de extrema direita usando repertórios de ação (protestos de rua, marchas, petições etc.) típicos dos movimentos progressistas, o que demanda atenção às ideias usadas para analisar os fenômenos contestatórios. A consolidação de uma militância de direita no Brasil – e seu uso da noção de consciência para mobilizar pessoas na defesa do seu projeto populista reacionário (Lynch & Cassimiro, 2022) – explicita a limitação analítica dos usos normativos da noção de consciência. Para entender a complexa cena participativa contemporânea será preciso suspender a premissa de que todos os movimentos sociais são progressistas e repensar o estudo do ativismo e da militância de direita (Sales, 2021; Salgado, 2023) através de categorias como extremistas, radicais e terroristas (Atran, 2021; Futrell et al., 2018; Van den Bos, 2020). Algo ainda praticamente inexplorado pelas pesquisas que se fundamentam no MCP para a análise da participação e da consciência política de pessoas que se engajam em mobilizações sociais4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do artigo, buscamos demonstrar como diferentes trabalhos oriundos de pesquisas qualitativas, sejam empíricas ou teóricas, fizeram uso do modelo de consciência política proposto por Salvador Sandoval. Argumentamos que o MCP tem se mostrado uma ferramenta teórica e metodológica que traz contribuições para a compreensão da consciência política por viabilizar a produção de análises que reconhecem os aspectos sociológicos, políticos e psicológicos desse fenômeno. Seu emprego facilitou a compreensão dos fatores que condicionam e motivam as pessoas ao engajamento em ações coletivas. Por conta disso, consideramos o MCP é um arranjo teórico-conceitual e metodológico inovador para a Psicologia Política latino-americana, tendo em vista sua capacidade de operacionalizar analiticamente a noção de consciência política (um conceito caro para a tradição política no continente) a partir de uma perspectiva relacional, em contraposição às formas de conceituação que a deixam ambígua ou excessivamente ampla.
Para além desse aspecto, ressalta-se que o modelo possui mais duas contribuições notáveis. Como demonstrado ao longo do artigo, a primeira é sua funcionalidade em permitir a análise de uma ampla gama de situações, grupos sociais e processos políticos. O MCP é bastante maleável do ponto de vista teórico, possibilitando pontos de diálogos entre as tradições pragmática norte-americana e materialista histórico-dialética, e adaptável aos diferentes problemas de pesquisa e metodologias de coleta de dados. Desse modo, as/os pesquisadoras/es que o empregaram, se debruçaram sobre uma variedade de objetos e campos de estudo, a partir de diferentes bases epistemológicas e teóricas, sem prejuízo à consistência e qualidade das análises.
A segunda contribuição é capacidade do MCP em dialogar com as tradições latino-americanas sobre consciência política, possibilitando o planejamento de intervenções sociais para além da academia. Essa dimensão de intervenção visando a diminuição de desigualdades tão presentes na América Latina se reflete na aposta de muitas/os pesquisadoras/es latino-americanos sobre a construção de condições propícias para a mobilização social e participação das pessoas em ações de luta por cidadania – notadamente a partir de conceitos como “práxis política”, “emancipação”, “contestação” e “transformação social”. Essa dimensão da intervenção social, atenta às desigualdades historicamente constitutivas do continente latino-americano, é fundamental para o enfrentamento dos desafios coletivos no mundo contemporâneo
Assim como constatado no último tópico do artigo, um dos principais desafios das próximas pes quisas que utilizam o MCP é a análise da consciência política de grupos de extrema direita e movimentos reacionários em ascensão na atualidade. É notável que tais grupos e movimentos ainda são preteridos pelas pesquisas que fazem uso do MCP. Algo que ocorre também na literatura sobre movimentos sociais e participação política de forma mais geral, dificultando a compreensão aprofundada de suas ideias, valores, identidades e visões de mundo. Neste sentido, as contribuições do modelo poderão ser de suma importância para desvelar comportamentos e consciências políticas (de atores à direita do espectro político) antes pouco exploradas teoricamente, mas que atuam e interferem diretamente na arena política e democrática.